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Balanço sobre a Inserção Internacional do Brasil

An appraisal of Brazil's Insertion on the International Scene

Resumos

O artigo tem como propósito analisar o processo de inserção internacional do Brasil sob duas frentes distintas: a da política exterior (PEB) e a da política internacional (PIB). Após breve percurso histórico, nos deteremos na corrente gestão do Itamaraty, sob a chefia do embaixador Celso Amorim e a presidência de Luiz Inácio Lula da Silva. Algumas alternativas e caminhos para a melhor inserção internacional brasileira serão avaliados em nossa trajetória.

Brasil; Política Externa; Política Internacional; Governo Lula


The article aims at assessing the process of Brazil's international insertion under two different lines: Brazil's foreign policy and Brazil's international polity. After delivering a brief historical panorama, we will focus on current Itamaraty's administration, under the leadership of Ambassador Celso Amorim and the presidency of Luiz Inácio Lula da Silva. Somes paths and alternatives for Brazil's better placement among the nations of the world will be put under scrutiny in the course of this article.

Brazil; Foreign Policy; International Polity; Lula's Government


Balanço sobre a Inserção Internacional do Brasil

An appraisal of Brazil's Insertion on the International Scene

Dawisson Belém LopesI; Joelson Vellozo JuniorII

IMestrando em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pesquisador do Departamento de Ciência Política da UFMG

IIMestrando em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB) e coordenador do Departamento de Cooperação do Ministério da Defesa

RESUMO

O artigo tem como propósito analisar o processo de inserção internacional do Brasil sob duas frentes distintas: a da política exterior (PEB) e a da política internacional (PIB). Após breve percurso histórico, nos deteremos na corrente gestão do Itamaraty, sob a chefia do embaixador Celso Amorim e a presidência de Luiz Inácio Lula da Silva. Algumas alternativas e caminhos para a melhor inserção internacional brasileira serão avaliados em nossa trajetória.

Palavras-chave: Brasil - Política Externa - Política Internacional - Governo Lula

ABSTRACT

The article aims at assessing the process of Brazil's international insertion under two different lines: Brazil's foreign policy and Brazil's international polity. After delivering a brief historical panorama, we will focus on current Itamaraty's administration, under the leadership of Ambassador Celso Amorim and the presidency of Luiz Inácio Lula da Silva. Somes paths and alternatives for Brazil's better placement among the nations of the world will be put under scrutiny in the course of this article.

Key words: Brazil - Foreign Policy - International Polity - Lula's Government

"Tristestrópicos", "país monstro", "florão da América","tigre com baleia", "ilha Brasil", "Belíndia", "país do futuro", "Pindorama", "gigante de natureza", "ornitorrinco". Decorridos 504 anos do "achamento" português, metáforas e apelidos não faltaram para tentar ilustrar caracteres desse complexo Estado-nação brasileiro. Nenhum, entretanto, mostrou-se capaz de englobar as inúmeras facetas de um país como o nosso. Como sugere o poeta, talvez seja razoável dizer que Brasil nenhum existe (Carlos Drummond de Andrade apud Rocha, 2003)1 1 . "O Brasil não nos quer! Está farto de nós! / Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil. / Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?" (Carlos Drummond de Andrade apud Rocha, 2003: 17). . Não há um Brasil bem-acabado, seguro de si, autoconsciente e ciente de seu "locus standi internacional" - para lembrar uma expressão de Celso Lafer. Ao contrário, é sintomático que esse jovem Estado, tão majestoso e imponente quanto miserável e inofensivo2 2 . Celso Lafer, em comentário à tipologia dos "países monstros", de George Kennan, afirma que o Brasil é "um monstro que não assusta". A sua estratégia de inserção internacional não preza pelo incremento do poder militar "persuasivo". , ainda busque compreender-se a si, ao passo que intenta decifrar os condicionantes que selam a sua inserção internacional. Eis o nosso Brasil, país de contrastes e acomodações, riqueza e pobreza, força e fraqueza (Lafer, 2000).

Tema dos mais controversos e apaixonantes, a inserção internacional do Brasil é capaz de despertar o interesse de nossos maiores e melhores estudiosos das Relações Internacionais. Nem mesmo aqueles em mais profundo estado de transe intelectual permanecem impassíveis àdiscussão. E cumpre salientar que os debates sobre a inserção internacional do país não deverão estar dissociados, em nenhuma hipótese, de uma questão identitária: a edificação de um projeto nacional para o Brasil. A inserção internacional a que se alude não corresponde, portanto, a uma razão de Estado burocrática, não porosa aos interesses do demos, mas, antes, aos reais propósitos nacionais, reclamados e respaldados pela sociedade, vetor resultante do equacionamento entre o Estado e a nação, confluência entre os ideais democráticos e republicanos, percepção social dos interesses mais ou menos duradouros de um povo, o brasileiro, ao longo de sua qüincentenária existência.

Não engrenaremos outra marcha sem, antes, proceder a um necessário esclarecimento conceitual. Seguem algumas definições de bastante utilidade para o bom fluxo deste ensaio:

Poder: "a probabilidade de um ator, dentro de uma relação social, estar em posição de realizar sua própria vontade, apesar da resistência de outro ator social e independentemente da base sobre a qual se apóie" (Weber, 1968: 53). A definição weberiana, que se tornou communis opinio na lida com temas de política moderna e contemporânea, é-nos de grande valia, porque abrangente e concisa.

Inserção internacional: pretende-se a posição relativa, nos termos do poder, de que desfrute um ator no sistema internacional. Diz-se qualitativamente "boa" a inserção se o agente (Estado, as mais das vezes) estiver em condição efetiva de exercer as suas prerrogativas de poder no seio do sistema internacional.

Influência: termo residual de poder, referindo-se a um consentimento não-coercivo e não-legitimado. Falar-se-á em influência se houver nexo causal entre a ação praticada, o fim pretendido pelo agente e os respectivos efeitos desencadeados no bojo do sistema internacional. Em suma: influencia quem, deliberada e conscientemente, atinge determinado fim sem se valer de força ou de consenso.

Instituição: prática regular e continuada no tempo, formalizada ou não por instrumento jurídico.

Expostos os conceitos que serão instrumentalizados ao longo deste ensaio, cumpre reforçar a nossa proposta: uma análise do processo de inserção internacional do Brasil, ao longo dos tempos, em duas frentes: a da política exterior ("foreign policy") e a da política internacional ("international polity") brasileiras.

Política Exterior do Brasil (PEB) e a Dinâmica Geoeconômica

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem alguns motivos para comemorar. Possivelmente, não são aspectos macropolíticos, sociais ou econômicos os alvos dos aplausos, já que, nesses diversos campos, não houve resultados de envergadura. No que tange à política exterior brasileira, no entanto, o ano foi de muito trabalho. Ainda que, nos tempos de oposição, Lula fosse o primeiro a demonizar as viagens de Fernando Henrique Cardoso (FHC), o presidente acionou como ninguém as turbinas do "sucatão" (recém-aposentado avião presidencial brasileiro) nesse primeiro ano de governo.

O presidente do Brasil pisou os mais diversos palcos internacionais, em uma turnê digna de um pop star. É de grande destaque a abrangência de suas viagens, o ineditismo de muitas delas e a ampliação de horizontes que toda essa atividade internacional representou para a PEB. Por mais simbólicos que alguns desses movimentos diplomáticos tenham sido, efetivamente, houve uma expansão dos horizontes. A prova cabal desse novo cenário, a última delas, foi a visita brasileira ao Oriente Próximo. Não há registro, no último século, de uma passagem presidencial oficial brasileira por aquelas paragens, o que prova a manifesta intenção do atual governo em estabelecer novos eixos de relacionamento mundo afora. Se a América do Sul é a base dessa nova dinâmica da PEB, a aproximação com a Índia (cujas terras foram visitadas pelo presidente no início deste ano), a China, a África do Sul e boa parte do restante do continente africano constitui outro marco para o que já se poderia identificar como uma nova fase na política exterior do país.

É natural que resultados práticos sejam pouco perceptíveis no tempo imediato (como é habitual em intercâmbios rápidos como esses). O fundamental, entretanto, é perceber a disposição do governo em, por um lado, elevar o perfil do país em terras já conhecidas e, por outro, inaugurar portos por mares nunca dantes navegados. Esse simbolismo é muito forte (mostra o ecumenismo praticado pelo governo) e útil (desconstrói mitos e reforça a personalidade brasileira) para o país. Se conquistas materiais advirão daí, só o futuro nos revelará. Muito da essência dessa movimentação brasileira (à parte, obviamente, as questões de identidade cultural) se vincula aos intentos econômicos.

A diplomacia presidencial brasileira está, como poucas vezes se viu, engrenada no eixo do incremento comercial (por intermédio de novas oportunidades de negócios e abertura de "bases" nacionais além-mar), da instrumentalização política (por meio de possíveis ganhos associados a alianças ou concertações políticas) e da promoção do "perfil político de liderança" brasileiro (via reconstrução da imagem do Brasil diante do "outro"). Enfim, o governo parece apostar alto no desenvolvimento nacional baseado na sua projeção exterior. No entanto, a pergunta que fica é: qual o papel desses "novos" eixos da PEB (principal mente, da África e do Oriente Próximo) no agenciamento do desenvolvimento?Há, nessa configuração, alguma confrontação com os centros de poder mundial?O que há de inédito e realista nessa opção, aos olhos da história da política exterior nacional?

Governo após Governo e... Tudo por um Pedaço de Aurora Boreal

Se, em um primeiro momento, a PEB esteve visceralmente ligada à defesa da independência e do recém-formatado território nacional, pode-se afirmar que o início do século XX já moldava um novo modus operandi para a inserção internacional do Brasil, o qual assumia sem remorsos a tática de aproximação junto ao centro do poder mundial (primeiro Londres, depois Washington) como o eixo norteador de sua política exterior por anos a fio. O grau dessa aproximação e a forma pela qual ela se desenvolveu vão, obviamente, variar com o tempo. O inquestionável é o emprego da PEB a serviço do desenvolvimento nacional. Em outras palavras, a bússola da política exterior apontava para o desenvolvimento. Enfim, apontava para o Norte. Já nos anos 30, a diplomacia econômica brasileira e sua forte ênfase em uma política comercial que privilegiasse o incremento das exportações nacionais vão estar no centro do pensamento e planejamento diplomático brasileiro.

Dessa forma, independente do modo como se dará a inserção brasileira (eqüidistante, autônoma, associada etc.), fato é que as preocupações quanto ao desenvolvimento nacional estarão sempre conectadas às relações com o Norte, o centro propulsor da economia mundial. Seja pela instrumentalização da política exterior praticada por Vargas com vistas a vantagens econômicas e comerciais advindas da então disputa entre os dois blocos de poder, EUA e Alemanha;seja pelo alinhamento incondicional (desenvolvimento associado) de Dutra com os EUA; seja pelo projeto de desenvolvimento de Juscelino Kubitschek(JK), que previa ampla participação de capital externo impulsionada pela "explosão" das exportações nacionais e tinha na Operação Pan-Americana (OPA) uma proposta de "tradução econômica para a solidariedade política" (Cervo e Bueno, 1992: 259) vivida no hemisfério; seja pela Política Externa Independente (PEI), de 1961 a 1964, e seu caráter universal, mas claramente dependente dos EUA3 3 . Segundo Cervo e Bueno, "[..] a busca de maior liberdade de movimentos no concerto internacional foi acompanhada de um componente de frieza nas relações com os Estados Unidos. Isto foi ressaltado como um aspecto negativo da PEI, pois não podia o país prescindir da colaboração norte-americana e mesmo porque o relacionamento com a União Soviética apresentava poucas vantagens econômicas em razão do pequeno volume do seu comércio com o Brasil" (1992: 279). ; seja pelo nacionalismo de fins do governo Costa e Silva ou pelo pragmatismo responsável do governo Geisel durante o regime militar brasileiro; enfim, não houve momento em que a inserção internacional do Brasil e sua política exterior não fitassem o Norte como lugar privilegiado onde nossas relações mais proveitosas deveriam desenvolver-se. Ao longo dos anos, a palavra de ordem foi o desenvolvimento nacional, e a resposta mais direta e eficiente para a concretização desse objetivo estava nas relações especiais com o Norte. Por via de regra, as relações com o Sul observaram sua função complementar ao Norte (idem: 374). Situações muito específicas servem de exceção a essa regra. No campo da segurança (regional, hemisférica ou global), a tendência não foi bem a de associação com o Norte, por razões muito óbvias.

Na América do Sul, as consternações acerca da segurança regional, da balança de poder e da manutenção do status quo,quando ocorreram, nunca foram de modo desfavorável ao Brasil. O país apenas manteve seu horizonte de política exterior no Sul quando questões de vizinhança (normalmente ligadas à segurança) estiveram no centro da agenda nacional, ou seja, quando se precisou agregar força de barganha em fóruns multilaterais pela "causa sulista" ou quando o Sul se transformou em único trampolim para vôos mais altos (rumo ao Norte), como se observa na década de 80.

O período demarcado entre o final dos anos 70 e o início da década de 80 demanda um novo olhar brasileiro sobre o chamado Terceiro Mundo. Naqueles termos, a América Latina teve papel central. De forma geral, no campo da política externa do Brasil, esse período representa uma continuidade em relação ao governo Geisel e, na história de nossa presença externa, o apogeu do multilateralismo. A PEB tentou uma nova adaptação ao cenário que se apresentava interna (crise política e econômica) e externamente (crise da dívida, nova Guerra Fria) (Cervo, 2001: 277). Os novos e crescentes constrangimentos que se postavam diante dos tomadores de decisão brasileiros forçaram uma revisão do papel da América Latina na política exterior brasileira. Dessa forma, fortaleceu-se, em grande medida, o relacionamento brasileiro na região, tendo a Argentina como principal parceira por intermédio de um relacionamento cada vez mais intenso (o Mercosul parece ser um resultado claro dessa dinâmica).

O Oriente Próximo foi palco de poucas aproximações e de negócios limitados para o Brasil (talvez sua importância se encontre apenas no "fôlego" que concedeu à indústria bélica nacional). A África continuou apenas como um ponto localizado em uma órbita distante da PEB. É possível dizer que, historicamente, o continente africano recebeu algum grau de "atenção" por parte da diplomacia brasileira apenas quando se observaram (i) questões de ordem identitária (por exemplo, a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), cuja maior parte de seus membros está na África) ou, ainda, quando da então referida (ii) vontade de "cortejar as delegações do Terceiro Mundo em órgãos multilaterais" (Vizentini, 1998: 64). Questões comerciais foram sempre muito pontuais e de pouco ou nulo impacto prático.

Na década de 90, a projeção da imagem nacional esteve altamente vinculada "aos grandes" e aos instrumentos multilaterais. Como poucas vezes visto na história da política exterior brasileira, o país assumiu compromissos e assinou tratados que durante décadas pretéritas geraram desconforto aos tomadores de decisão no Brasil. Enfim, o país fez o dever de casa e comportou-se burocraticamente (mas sem tropeços ou descompassos como os de, por exemplo, Castello Branco), sem maiores impulsos ao "corpo a corpo" com seus parceiros do Sul. A vinculação dos desígnios brasileiros com o centro de poder político e econômico mundial, na década de 90, refletiu a visão de um país que administrou sua imagem e seus relacionamentos, mas não deu vazão a um espírito mais autóctone e audacioso de inserção internacional.

Cabeça ao Norte, Tentáculos ao Sul

Críticas de toda ordem podem ser dirigidas ao governo Lula. Entretanto, não se pode negar a sua intensa vontade de mostrar ao mundo a suposta (por ele e sua equipe) vocação brasileira para liderança dentro do grupo de países em desenvolvimento. Lula parece ter encontrado, no Sul, o local; e na tática de aproximação, via eixo Sul-Sul, a oportunidade para implementar uma estratégia maior: pensar os ganhos e o relacionamento do Brasil em relação ao Sul não apenas como complementares às suas relações com o Norte. Assistimos a um momento em que ir à África ou ao Oriente Próximo parece ter um fim em si mesmo: levar negócios brasileiros além-mar e mostrar o know-how brasileiro em terras de grande potencial, conquanto subaproveitadas. No caso específico de Líbano, Emirados Árabes, Egito, Síria e Líbia, tratamos de países com recursos financeiros de grande porte, os quais podem perceber no Brasil um fiel parceiro para empreitadas conjuntas.

O ponto importante dessas visitas aos parceiros "menos favorecidos" vai muito além de um mero simbolismo. Há elementos simbólicos, é claro, principalmente na África (culturais, sociais etc.), mas há intenções econômico-comerciais muito sólidas. Comitivas presidenciais, como as que têm sido formadas pelo governo em suas viagens internacionais, demonstram vontade e volume de ações por parte do Brasil. O governo Lula identifica nessas visitas a oportunidade de "unir semelhantes". É, sim, uma oportunidade de suprir o atraso tecnológico e econômico nacionais, por intermédio de "alianças". Entretanto, ao contrário do que muitos pensam a respeito da viagem ao Oriente Próximo (para citar como exemplo), nada faz crer que haja "conluio" contra os poderosos. Não é clara a alegada confrontação brasileira com os EUA ou a Europa (ainda que o ambiente de guerra contra o terrorismo represente, certamente, um agravante nessa visita ao epicentro do problema). Se há o risco de confrontação, talvez ele esteja na "carga ideológica" que se pode dar aos discursos, mas não na iniciativa de visitar países revestidos pelo atual estado de tensão nas relações internacionais, ou na iniciativa de formar alianças proveitosas (que não necessariamente representam oposição direta aos "grandes"). A estratégia brasileira tem uma operacionalidade muito racional, e só a grandiloqüência e os improvisos poderão, eventualmente, comprometer os seus resultados.

Nesses termos, o Brasil necessita agir da maneira mais pragmática possível. O momento e a pró-atividade do governo convergem favoravelmente para bons resultados. Entretanto, ao invés de uma mera retórica em favor, por exemplo, de uma "nova geografia do comércio internacional", o país fará muito melhor caso estabeleça o foco no resultado e não no discurso para consumo interno e popular. Eis aqui, muito provavelmente, aquilo que pode eliminar a riqueza das intenções e da viabilidade de um projeto de inserção mais corajoso. Palavras até ajudam (e certamente atrapalham), mas atitude é que vende. O Brasil precisa, portanto, ser vendido pelo que faz (ou pode fazer) e não pelo que fala.

Esse ecumenismo do atual governo se aproveita, em grande medida, de posições já tomadas pelo Brasil em temas como a guerra no Iraque e o papel da Organização das Nações Unidas (ONU) na recomposição do país. Já não se pode permanecer atado à tão repetida idéia de que se está tentando montar um bloco de oposição aos EUA e aos demais centros de poder. Há que se separar as coisas e, antes de tudo, se estabelecer justos parâmetros de comparação. Oposição a certos itens da pauta de formação da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) ou à guerra contra o Iraque não pode ser confundida com outros movimentos de política exterior. Que possa o presidente Lula seguir o seu curso de diversificação das parcerias estratégicas internacionais. Por esses e por outros motivos que, deliberadamente ou não omitimos neste texto, pode-se crer que Lula tenha a mente voltada ao Norte (nos termos de sua articulação positiva e, em certos casos, produtiva com aqueles países) - o tradicional "harém" de oportunidades -, mas seus tentáculos ao Sul (na medida em que o presidente instrumentaliza com maior desenvoltura e menos impedimentos suas relações nesse eixo da PEB). A aproximação com a África e com o Oriente Próximo não é, per se, inédita. A forma como está sendo desenvolvida e posta em prática é que parece ser inovadora (sem nenhum julgamento quanto aos seus possíveis resultados). Mais do que isso, o desígnio do desenvolvimento nacional passa do "Norte ao Sul", sem deixar o Norte. A questão central é que o Sul passa (do que se depreende dos últimos discursos e ações) a ser o destino final dos esforços de política exterior e não mais uma mera rota complementar. Mais uma vez, vale lembrar, tratamos de ensaiar um novo traço de política exterior e não os resultados que poderão surgir dessa nova tendência. Os fatos falam por si só: o Brasil assumiu uma postura razoavelmente diferente de outras gestões. Pode ser que fique no campo das intenções e das ações de impacto limitado, pois podem não oferecer resultados práticos. Pode, ao contrário, representar um rol de novas e efetivas parcerias. Com mais tempo, teremos mais certezas do que suspeitas.

Temos mais de um ano de governo e Lula já visitou (com propósitos definitivamente comerciais, ao lado de empresários brasileiros) lugares que nunca antes haviam sido visitados, e outros tantos que já haviam feito parte da agenda de compromissos presidenciais, porém com um teor muito mais protocolar. Há muito que se concluir disso. A mais importante constatação pode ser, entretanto, o fato de que o governo realmente identificou oportunidades em um momento muito adequado.

A Estratégia Geoeconômica " Sul-Sul" e o Poder da Contra-intuição

Em um contexto de "brasilianização"4 4 . A expressão é do sociólogo alemão Ulrich Beck. do mundo, com concentração extrema da renda mundial no hemisfério Norte, que cabimento pode haver nas chamadas estratégias de desenvolvimento econômico "Sul-Sul"?

Contra-intuitivamente, é necessário aplacar o mal-entendido que propala a pretensa "irracionalidade econômica" dessas estratégias. E os dados podem ajudar neste intento; conforme aponta o relatório anual do Banco Mundial, os países periféricos (ou PEDs), tomados em conjunto, contabilizam aproximadamente 24% do Produto Interno Bruto (PIB) mundial, ou US$4,5 trilhões (World Bank Indicators, 2002). Nada mal, não é verdade? Com efeito, ainda há de se ter em conta que os índices (nos últimos vinte anos) e projeções de crescimento dos PEDs em muito superam aqueles dos países do Norte desenvolvido5 5 . O que é, em certa medida, compreensível, uma vez que as populações dos países ricos já desfrutam de um nível de bem-estar material bastante satisfatório, fazendo-se menos premente o seu crescimento econômico. . Além disso, é fundamental acrescentarmos uma outra informação: PEDs concentram mais da metade do mercado consumidor global. Ante o gigantismo demográfico do Sul não desenvolvido, aumentos nos níveis de renda per capita das populações de economias periféricas significam um enorme potencial multiplicador de consumo (vertido em aumento de exportações ou de produção no mercado interno, para os empreendedores que nesses mercados puderem penetrar), para ficarmos apenas em um exemplo. O que nos leva a postular, sem dar margem à hesitação, um olhar dinâmico sobre as relações econômicas internacionais. Essa abordagem joga facilmente por terra a tese da "irracionalidade econômica" das estratégias geoeconômicas do Sul para o Sul6 6 . O vigor potencial das relações comerciais entre Índia e China e o salto qualitativo ocorrido nos relacionamentos comerciais bilaterais entre Brasil/México, Brasil/Índia e Brasil/China dão mostras em suporte à tese. . Rubens Ricupero - nunca é demais lembrar: comandante de uma entidade do sistema ONU voltada para o comércio e o desenvolvimento no mundo - resume: "Tem razão o presidente Lula: uma nova geografia do comércio se delineia. Para japoneses e americanos, os mercados das economias emergentes se aproximam de 50% de suas exportações e importações" (2004).

Como bem sabemos, entretanto, nem só de estatísticas e dados econômicos se faz o processo de desenvolvimento de um Estado. Longe disso. Partindo de uma concepção ampliada do desenvolvimento, que privilegia os seus aspectos não econômicos, qual vem a ser a racionalidade das parcerias desenvolvimentistas Sul-Sul? Aqui, os motivos são mais intuitivos, porém não óbvios. Dividamo-los em três frentes: (i) os desafios comuns da globalização; (ii) a reforma do sistema internacional; e (iii) o diálogo sobre governança nacional7 7 . A tipologia é de Ignacy Sachs e serve aos propósitos do presente ensaio (ver Sachs, 1997). . Questões como a liberalização de mercados financeiros, a competitividade (espúria) no comércio internacional, os fluxos migratórios e a destinação de investimentos internacionais demarcam o campo de reflexão da primeira categoria. No tocante ao segundo feixe de questões, referente à governança global, o eixo Sul-Sul permanece valioso para a cooperação política. O professor francês Ignacy Sachs (1997: 73) vislumbra: "a competição provável entre os três blocos de países industrializados - América do Norte, Europa e Japão - possivelmente criará oportunidades de um novo tipo de neo-neutralismo". O pleito pela reforma da ONU e as ações concertadas na Organização Mundial do Comércio (OMC) dão corpo a esse ideal, em bases essencialmente não ideológicas, e sim pragmáticas. Por fim, no relativo ao compartilhamento das "melhores práticas" de gestão interna dos PEDs, é Ricupero (2002: 36), novamente, quem toma a palavra: "não podemos [países em desenvolvimento]nos comparar aos Estados Unidos ou à União Européia, porque estes inventaram e plasmaram a globalização". O emparelhamento de estratégias de desenvolvimento dos PEDs ajuda a compreender "como estão resolvendo seus problemas de inserção" (ibidem).

Política Internacional do Brasil (PIB) e a Busca por Influência Via Instituições Internacionais

A busca por influência via instituições internacionais é tradição de nossa política exterior e, por que não dizer, também de nossa política internacional. A distinção entre os dois conceitos é ainda nova em nossa literatura especializada, gerando notável carga de imprecisão semântica. Buscar-se-á, nos limites deste artigo, uma compreensão da procura brasileira por um "lugar ao sol" na sociedade das nações. Para tanto, serão resgatadas de nossa memória coletiva as recônditas conexões históricas entre inserção e instituições internacionais, e, por fim, intentaremos uma avaliação da gestão internacional do governo Lula nos termos da PIB - para cujo propósito serão identificadas as principais linhas de ação do país nas instituições internacionais contemporâneas. Urge, antes de prosseguirmos, estabelecer a distinção entre Política Internacional e Política Exterior. É o que faremos a seguir.

Política Internacional (PIB) versus Política Exterior (PEB)

Não se deixe enganar o leitor: a maneira como apresentamos o subtópico, confrontando as noções de política internacional e de política exterior, não embute nenhuma conotação de exclusão ou incompatibilidade. Antes, o contrário: idealmente, PIB e PEB deverão perseguir um mesmo norte - o que, nem sempre, ocorrerá. Impende, no momento, um contraste entre os conceitos, ressaltando-lhes discrepâncias e similitudes, se pretendemos gerar subsídios teóricos e analíticos para uma adequada compreensão da PIB. Procedamos, assim, à necessária planificação conceitual.

A terminologia Política Internacional do Brasil deve a sua paternidade - ou, ao menos, a sua notoriedade - ao ex-chanceler João Augusto de Araújo Castro. Percebendo uma desproporção8 8 . Cabe ao leitor notar que a leitura de mundo de Araújo Castro não está infensa a condicionalidades espaço-temporais, tampouco a idiossincrasias e constrangimentos funcionais/profissionais. Um lembrete da conjuntura pode ser útil: vivíamos o sonho do "Brasil-potência", sob os auspícios de um governo militar. Dados estatísticos dão conta de que, entre 1960 e 1975, o Brasil passou de 70 para 110 milhões de habitantes; o Produto Interno Bruto (PIB) per capita, de US$ 320 para US$ 1.000; a participação brasileira no PIB mundial, de 1,5% para 2,5%; a participação no comércio mundial, de 1,25% para 1,72%. A defesa de um "salto de poder" do Brasil não é, portanto, injustificada. entre o papel efetivamente jogado pelo Brasil na cena internacional e aquele que, dadas as nossas credenciais diplomáticas e potencialidades políticas, deveria jogar, Castro sustenta, em palestra proferida na Escola Superior de Guerra (ESG), no ano de 1971:

"[...] estamos sendo levados à definição de uma política internacional [...], de uma norma de conduta brasileira no âmbito da comunidade das nações. Já não basta definir os termos da política brasileira em relação aos outros países do hemisfério e aos outros países do mundo. Torna-se indispensável definir e precisar uma política brasileira [...] frente aos problemas do mundo contemporâneo. [...] A política externa e a política internacional se ajustam e se completam, tal como, no campo específico da segurança, a tática e a estratégia" (Araújo Castro apud Amado, 1982: 198).

É possível - sem maior acrobacia intelectual - comparar e equiparar a proposição conceitual de Araújo Castro à moldura analítica que nos é ofertada por David Singer (1969), os ditos "níveis de análise". Escrevendo em tempos de Guerra Fria, Singer observou, sobre a produção acadêmica em Relações Internacionais (RIs), certa "anarquia epistemológica", à qual prescreveu antídoto: o enquadramento das análises sobre os objetos de estudo das RIs em três diferentes níveis, a saber: o individual, o estatal (ou dos "subsistemas nacionais") e o global (ou do "sistema internacional"). Segundo o estudioso, a metodologia permitiria, enfim, "centrar atenção nos componentes de um sistema, ou em todo o sistema".

Ora, deixando apenas momentaneamente de lado o nível "individual" de análise, observa-se curioso paralelo entre a PIB e o sistema internacional; a PEB e os subsistemas nacionais. Outro paralelismo que não escapa às anotações de Georges Lamazière é o seguinte:

"De certa forma, sem presumir coincidência perfeita ou exaustiva, a Política Externa teria maior afinidade com a Diplomacia Bilateral, a Política Internacional com a Diplomacia Multilateral. [...] Correndo o risco da simplificação, poder-se-ia dizer que a primeira trata da conjuntura e das ações a que procede o país para se aproximar deste ou daquele parceiro, ou opor-se a este ou aquele competidor ou rival, em função de seus interesses mais concretos. A segunda se referiria à visão do mundo e das regras que devem regê-lo esposada pelo Brasil, e que portanto adquire características de maior durabilidade" (1998: 140).

Destilando visão bastante familiar aos diplomatas, o embaixador José Guilherme Merquior traça articulação simples e direta entre os conceitos em tela: equivaleria à política internacional (estatal ou interestatal) o "somatório das políticas externas". Simplório? Não faria justiça lhe reputar tal demérito. Em outra passagem, Merquior mostra-se cônscio da complexidade das relações internacionais, mesmo ao tempo de seus escritos (1978), ao advertir: "De fato, é curial que, na era contemporânea, a política internacional se viu cada vez mais ampla e fortemente condicionada pelo crescimento e diversificação das relações internacionais, aquém e além dos canais do estado e até da esfera política institucionalmente delimitada" (Merquior, 1993 [1978]: 67). Tomar a política internacional como "jogo de Estados" parece fazer parte de uma estratégia deliberada de simplificação instrumental, temperada, é claro, por doses de anacronismo. Se nada, a passagem suscita outra reflexão: a que corresponde, entre acadêmicos e diplomatas, o "internacional" de uma Política Internacional do Brasil?

Uma resposta resoluta não se faz possível. Uma tentativa, sim. Um flerte com a teoria das relações internacionais vem a calhar: Jean-Baptiste Duroselle, encarnando o tradicionalismo no estudo das relações internacionais, afirma, em seu clássico estudo Todo Império Perecerá: "Existem numerosos atos de política interna pura, sem nenhum aspecto exterior. [...] A política interna pura é um fenômeno perfeitamente isolável" (2000 [1981]: 57). Ao estabelecer um corte entre o interno e o externo, o professor da Sorbonne privilegia o constructo "Estado" como unidade de medida das relações internacionais; ao blindar o interno das influências do externo faz vista grossa à dinâmica das forças interiores a um país que tão claramente incidem sobre a vida internacional. Contra essa divisa estanque, insurge-se Frederick Halliday, pesquisador da London School of Economics and Political Science. Ele propõe uma concepção do "internacional" que englobe as interações Estado/sociedade. O professor inglês não é universalista a ponto de apregoar o fim do Estado, mas também não deixa de contemplar atores não-estatais e forças transnacionais em sua teoria do "internacional". Diz Halliday:

"O que é vivido, e normalmente estudado como algo que aconteceu 'dentro' de países, revela-se como parte de processos internacionais muito mais amplos de mudança política e econômica. [...] Portanto, nenhuma das abordagens convencionais, da negação ao exagero, faz justiça à questão comum a todos os cientistas sociais e que, dentro da ótica particular da disciplina das relações internacionais, é sua preocupação constitutiva: a interação do nacional e do internacional, do interno e do externo" (1999: 18).

O internacional como disciplina é, então, expandido na síntese de Halliday. Nos termos de Lafer, "internaliza-se o mundo". Se se refuta a abordagem micro/macrossociológica (rechaçando-se, assim, a concepção de política internacional como "somatório de políticas externas"), há que cambiar o eixo de análise. O Estado, outrora ponto de partida e de chegada dos diplomatas, passa a não dar mais conta da barafunda de processos que ocorrem - à sua revelia - no ambiente internacional. O "internacional" (interestatal) metamorfoseia-se, pois, em "global", "transnacional", "subnacional". Ainda Lafer:

"O mundo do século XXI, sobretudo para um país como o Brasil, já não pode ser administrado como uma externalidade, como se pôde fazer durante boa parte do século XX, graças ao legado do Barão do Rio Branco, que definiu nossas fronteiras e equacionou, assim, o primeiro item de uma clássica agenda diplomática, que é a distinção entre o 'interno'e o 'externo'. No mundo contemporâneo, diluíram-se as diferenças entre a política nacional e a política internacional. Tal diluição engendrou novas realidades e essas, por sua vez, têm colocado desafios inéditos aos atores que atuam na cena internacional, deles exigindo novas e criativas soluções" (2002).

Resta um questionamento: a que "ambiente" internacional nos referimos, tão recorrentemente, ao curso desta narrativa? Buscando fugir às visões "hipersistêmicas" de nossos dias, que em tudo enxergam variáveis relevantes de um sistema internacional, propugnava Merquior (contra o que chamou de "fantasma sistêmico") uma concepção de sistema internacional que não estivesse além de "um feixe de aspectos estruturais, por oposição aos conjunturais, da cena internacional" (Merquior, 1993: 65). Nada mais adequado aos propósitos deste estudo.

Convém breve síntese, para efeito de organização de nosso pensamento: por Política Internacional do Brasil pretende-se a norma de conduta brasileira no âmbito do sistema internacional. Seus objetivos, como elencou Araújo Castro, envolvem a "neutralização de todos os fatores externos que possam contribuir para limitar o Poder Nacional" (Amado, 1982: 212). Sobressaem as idéias de assertividade política e, sobretudo, a de uma pretensa responsabilidade internacional do Brasil perante os povos do mundo. Consumada a revisão conceitual, ingressaremos agora em um delicado exercício de tessitura de relações entre PIB, inserção e instituições internacionais no curso histórico de Pedro I aos dias que correm. As referências históricas serão apresentadas de forma tópica e sintética.

PIB, Inserção e Instituições: Conexões Complexas

A Política Internacional do Brasil começa a estender os seus tentáculos ainda no início do século XIX, logo da transmigração da Corte portuguesa. Em um estágio de "baixa dispersão mundial", nossa inserção não poderia deixar de ser periférica e dependente. Abraçamos o liberalismo comercial, por intermédio de seu "sistema de tratados"9 9 . O Brasil firmou tratados bilaterais de preferências comerciais com Inglaterra (1810, 1827), Portugal (1825), França (1826), Áustria, Prússia, Cidades Hanseáticas (1827), Dinamarca, Estados Unidos e Países Baixos (1828), Bélgica (1834) (cf. Cervo e Bueno, 1992; Garcia, 2000). bilaterais, em uma demonstrativa busca de se integrar à sociedade internacional a qualquer custo. Por mais que assentássemos em bases políticas e econômicas precárias, não é nada descartável a nossa contribuição na conformação de uma ordem econômica internacional (Almeida, 1997; 2000; Cervo e Bueno, 1992). Sob Pedro II e a "diplomacia da influência", além de uma notável adesão a alguns dos principais tratados técnicos e econômicos que instaurariam a cooperação entre os Estados10 10 . Tratados sobre direito marítimo, uniões postal e telegráfica, Convenção de Paris sobre propriedade industrial etc. (cf. Almeida, 2000). , participaríamos ativamente de conferências multilaterais, feiras e exposições (as "festas do progresso", na expressão de Lília Schwarcz). Do ponto de vista político-jurídico, um dos mais relevantes expedientes de inserção seria a arbitragem internacional. Pedro II chegou a ser convidado por duas vezes pelas partes em contenda para indicar o terceiro juiz de tribunais arbitrais (ocasiões da Guerra de Secessão dos EUA e da Guerra do Pacífico) (Cervo e Bueno, 1992). Outro mecanismo de inserção via instituições é o recurso às longas viagens de representação do país no estrangeiro (1871, 1876, 1887)11 11 . Lília Moritz Schwarcz nota: "no seu caso [Pedro II] as viagens seriam também estratégicas: ajudariam mesmo que simbolicamente na demarcação das fronteiras desse grande Império, além de contribuir para alargar a recepção da imagem da monarquia interna e externamente. Em suas viagens o monarca tomava posse e unificava a representação" (1998: 357). . A "diplomacia de influência" do Imperador pagava, no entanto, o tributo óbvio: o descolamento entre o Estado e a sociedade. A inserção ensejada por suas ações não refletia as potencialidades de um país, e sim projetava os atributos pessoais de um "monarca-cidadão", afeito aos usos e costumes da "civilização". Não se produzia PIB genuína, senão um enganoso jogo de cena. Afinal, o Brasil-nação estava muito distante daquele feitio que se lhe atribuía. Nas instigantes palavras de Roland Corbisier, "exportávamos o não-ser e importávamos o ser" (apud Fonseca Júnior, 2001: 278).

Com os tempos republicanos, vem o retraimento da PIB. Durante a "República Velha", duas vertentes de conduta internacional dialogam: no campo econômico, as vultosas dívidas contraídas junto aos europeus (Inglaterra, sobretudo) e a frágil inserção no mundo capitalista resultam em atuação brasileira discreta, restrita ao comércio internacional de açúcar, borracha e, muito especialmente, de café; no campo político, chama a atenção a epopéia por um assento cativo no todo-poderoso Conselho da Liga das Nações (LDN). Após ter participado dos trabalhos preparatórios para a edificação da LDN (com Epitácio Pessoa, presidente recém-eleito) e, ainda, ter integrado o seu Conselho na privilegiada condição de único representante das Américas12 12 . Em face da recusa do Congresso americano em ratificar a entrada dos EUA naquela organização internacional (1920) e a conseqüente indicação do Brasil para o Conselho da Liga, como membro não permanente, pelo presidente americano (e idealizador da LDN), o professor Woodrow Wilson. , o Brasil arroga-se o direito de reclamar para si assento permanente (no referido Conselho), fundamentado na tese da "representação continental das Américas". Para tanto, envia-se Raul Fernandes à Europa, no ano de 1924, com o intuito de granjear simpatias e apoios diplomáticos à pretensão brasileira. Os desacertos dessa ostensiva "campanha" culminam com a retirada do país da Liga, em 1926, uma vez que nossa demanda não logrou ser atendida ("vencer ou não perder", Artur Bernardes). A frustração do Brasil com as instituições internacionais, acrescida dos elementos de uma natural introversão durante o período em tela (marcado por guerras mundiais, crise capitalista, crise das democracias liberais, marcha do Brasil rumo à industrialização, substituição de importações), conduzem à hibernação da PIB, optando-se por um "isolamento pan-americanista", tendência apenas interrompida com o ocaso da Segunda Guerra e a emergência de um novo sistema multilateral (Bretton Woods, ONU etc.).

A fundação da ONU traz consigo novo capítulo de nossa busca por inserção via instituições internacionais. Quando tudo fazia crer que ingressaríamos como membros permanentes da Organização de São Francisco13 13 . A percepção da diplomacia brasileira nutria-se de declarações creditadas a Franklin Delano Roosevelt e Cordel Hull durante os anos da Segunda Guerra e os arranjos conducentes à ONU. Alega-se que Inglaterra e Rússia teriam barrado as pretensões brasileiras (cf. Lampreia, 1999: 101-106). , os vetos de duas potências vencedoras da Segunda Guerra põem ao chão os nossos castelos de areia, e as expectativas naufragam. A herança diplomática da "eqüidistância pragmática" de Vargas/Aranha dissipava-se gradualmente, à medida que os EUA (em boa parte, os regentes da ordem global) passavam a centrar fogo (literalmente!) em questões de segurança internacional, com o foco recaindo sobre a Europa (crise do Mediterrâneo, bloqueio de Berlim) e a Ásia (Guerra da Independência de Israel, Guerra da Coréia). O esperado "Plano Marshall para as Américas" não veio. Dada a relativa calmaria destas plagas, ficávamos relegados à condição de zona não prioritária para as duas potências. Vivíamos uma era de resource diplomacy e, diante de nossas poucas reservas de poder cru, restava a subalternidade. A PIB apequena-se, recobrando a altivez somente quinze anos mais tarde.

Os anos 60 e 70 servem de palco para um dos momentos mais ricos e complexos de nossa PIB. Se entendermos a história da PIB enquanto funcionamento cíclico, com ondas sucessivas de isolamento e de extroversão, é razoável falar-se de uma nova fase de desígnios grandiosos e de tentativa de irradiação internacional. Apesar de distintas, são claras as continuidades entre a Política Externa Independente (PEI) dos anos 60 e o Pragmatismo Responsável (PR) da década seguinte (Fonseca Júnior, 2001). Em uma linha: rompe-se com alinhamentos automáticos, preconiza-se a "autonomia" brasileira na vida internacional. É a época de Quadros e Goulart, Afonso Arinos e Araújo Castro, Geisel e Silveira. Enquanto a "PEI" esteve para a diversificação da política exterior (com a inédita abertura de missões diplomáticas mundo afora), o "PR" teve maior relevo nos termos da política internacional (afinal, já haviam sido semeados os germes de uma norma de conduta do Brasil no cenário internacional). O amadurecimento da PIB era aferível, em meados da década de 70, em pelo menos duas frentes. O Brasil agora valia-se do alto-falante das Nações Unidas para denunciar, no atinente à economia internacional, a irracionalidade do estado de coisas, pugnando por uma Nova Ordem Econômica Internacional (NOEI); no que remete ao campo político-militar, o Brasil fazia coro pela necessidade do desarmamento nuclear. É notável que, durante todo esse período, tenhamos devotado maiores esforços às questões de fundo social e econômico, descurando as grandes questões securitárias internacionais. Justamente em um momento (1976) em que, para Henry Kissinger - professor e homem de Estado a cujas opiniões o mundo parecia curvar-se - gozávamos da condição de "país-chave no mundo ocidental"14 14 . Doutrina dos " key countries", de autoria de Henry Kissinger (cf. Garcia, 2000: 158-159). . Por outro lado, poder-se-á argüir, não sem razão, que praticávamos, talvez pela primeira vez na história, uma PIB genuína. Em que pese a todo o ufanismo - e às distorções decorrentes, gerando mais "calor" que "luz" -, a PIB desse tempo se balizou pela autopercepção de forças e fraquezas do país. Era a PIB legítima, aquela que buscava equilibrar discurso e prática, Estado e nação.

A PIB sobrevive à apatia dos anos 80 e à timidez dos anos 90. Fonseca Júnior ensaia uma explicação para o comportamento da diplomacia brasileira no período: "com o esgotamento da Guerra Fria e a consagração liberal, o desafio, para os países sem reserva de poder, é justamente o de redesenhar argumentos de razão, refazer o discurso" (idem: 347)15 15 . Gelson Fonseca Júnior observa que, com as novas configurações sistêmicas dos anos 80 em diante, sobreveio a necessidade de uma adaptação argumentativa da PEB. O raciocínio é igualmente aplicável à dimensão da política internacional. . Sob a batuta de FHC, praticamos uma PEB "idealista" e, descontados possíveis malfeitos, não é exagero conceder que a "diplomacia do prestígio" de FHC devolveu o Brasil ao circuito internacional. A adesão aos tratados de dissuasão nuclear (Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP), Missile Technology Control Regime (MTCR), revisão de Tlatelolco); a aceitação do "liberalismo incrustado" nas instâncias econômico-comerciais (Acordo Geral sobre Tarifas de Comércio [GATT] - OMC, Mercosul); a "opção pela ONU" e, para além, o retorno ao pleito por uma cadeira permanente no Conselho de Segurança (mais hesitante com Lampreia do que com Lafer); a defesa do direito internacional e do multilateralismo ("bilateralismo em declínio") dão cores de "universalismo kantiano" à nossa orientação de política internacional (Cervo e Bueno, 2002). Cabe notar, ainda, que a PIB dos anos 80-90 rejeita a maior parte das teses da geração anterior (congelamento do poder mundial, diplomacia dos 3Ds, autonomia pela distância, NOEI) para excursionar pelas instituições internacionais próprias do status quo16 16 . O pós-Guerra Fria marca a hegemonia do institucionalismo liberal nas Relações Internacionais. O fenômeno é de tal modo marcante que o teórico John Ruggie chega a postular a existência de um "liberalismo incrustado" ( embedded liberalism) no sistema internacional contemporâneo. A esse respeito, concordamos com Amado Cervo, quando este afirma que a gestão diplomática de FHC esteve embebida em doses consideráveis de pensamento liberal. É lícito, assim, supor-se o esmorecimento do ímpeto revisionista da geração itamaratiana anterior em face da desenvoltura com que transitou a diplomacia de Cardoso pelas instituições internacionais do status quo (cf. Cervo e Bueno, 2002). .

Já em seu primeiro ano de governo17 17 . Celso Amorim assume o posto de chanceler pelo segundo termo. O primeiro estendeu-se de 1993 a 1994, sob a presidência de Itamar Franco. , o presidente Lula esboça algo de novo na condução dos affaires estrangeiros do Brasil. Mais operante, pretende a "diplomacia altiva" emoldurar, de uma vez por todas, uma norma de conduta do Brasil na cena internacional? Ao menos, é o que diz Celso Amorim. Reedição do ecumenismo de Geisel? Guardados contextos e proporções, subsiste muito do "pragmatismo responsável" na atual gestão do Itamaraty. Mas há, também, características bastante peculiares, se não tanto no conteúdo, notadamente na forma. Em três instituições internacionais, pelo menos, essa nova orientação da PIB é inegável: na ONU, espaço onde se advoga como nunca antes a ascensão do Brasil ao condomínio dos membros cativos do Conselho de Segurança; na OMC, foro em que, sob a liderança brasileira, defende-se, em bloco, a posição das economias em desenvolvimento (PED) em relação ao temário do comércio mundial; no tocante aos blocos regionais, há a adoção de medidas para a "refundação" do Mercosul, resultando daí peso e dimensão ao subsistema regional da América do Sul na agenda internacional do Brasil18 18 . "No governo Lula, a América do Sul será a nossa prioridade". Passagem extraída do discurso do embaixador Celso Amorim na transmissão do cargo de ministro das Relações Exteriores (Brasília, 1/1/2003). Disponível na internet em < http://www.radiobras.gov.br/integras/03/integraã010103ã2.htm>. . Cabe, porém, questionar: o que há de genuíno na "diplomacia altiva" de Amorim? Ação efetiva ou grandiloqüência? Há adequação entre o dueto potencialidades/interesses nacionais e o que temos defendido nos discursos? Há terreno para uma melhor inserção do país no sistema internacional? Que papel caberia ao Brasil no sistema internacional contemporâneo?

Perto do Porto, Longe do Cais

Revista a Política Externa de Lula em seu primeiro ano de governo e resgatadas as raízes históricas da PIB, é hora de nos debruçarmos sobre duas novas (e derradeiras) tarefas: (a) anotar, com brevidade, aspectos pontuais da PIB no curso do primeiro ano de governo Lula, conferindo destaque às ações empreendidas no âmbito da (i) ONU, (ii) OMC e (iii) América do Sul; (b) propor uma reflexão sobre qual papel caberia ao Brasil na cena internacional, à luz das análises precedentes e de alguns novos apontamentos teóricos.

A PIB de Lula

É algo consensual a alegação de que a condução do Ministério das Relações Exteriores (MRE) durante o primeiro ano de governo Lula trouxe algo de novo. Para o presidente, "é [a política externa, em sentido convencional] um dos maiores motivos de orgulho do próprio governo e do povo brasileiro"19 19 . "Lula defende política externa e diz que ela traz orgulho ao seu povo". Agência Reuters, 18/12/2003, 17h25min. Disponível na internet em < http://www.reuters.com.br>. . Para os analistas, um tanto mais céticos, ainda carecemos de resultados concretos para avaliar positivamente a corrente gestão de Amorim. De todo modo, algumas linhas de ação já se esboçam no horizonte. Com o ocaso da Guerra Fria, Gelson Fonseca Júnior chegou a contemplar uma nova atitude da diplomacia brasileira diante do mundo, caracterizada pelo diplomata como a "autonomia pela participação" (Fonseca Júnior, 2001). Ora, convenhamos: embora seja inegável o ímpeto participativo de nosso país na conformação da ordem pós-Guerra Fria, será dificilmente sustentável que tenhamos logrado alguma "autonomia" no período. Se ela ocorreu, o foi em nível bastante limitado. A dita "autonomia pela participação" do Brasil parece ter seguido uma lógica de adequações, porquanto reativa aos novos traços do sistema internacional - largamente definidos pelos EUA -, e não ativa e propositiva, como se esperaria de um ente verdadeiramente "autônomo". A contribuição brasileira para o novo quadro político, se houve, não passou da marginalidade. Que o Brasil se tenha beneficiado da tal "participação pela adequação", é matéria amplamente discutível. Mas não compete aqui análise detida sobre esse ponto. Buscaremos, a rigor, compreender a mudança de rota de nossa PIB, que se afigura mais clara a cada dia, investigando os indicadores que qualificam a "diplomacia altiva" de Lula como que essencialmente distinta da orientação imprimida à PIB nos anos de Collor a FHC. Acompanhe.

Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU)

Ao longo do ano de 2003, revigorou-se o pleito sobre um lugar cativo para o Brasil no Conselho de Segurança. Os reclamos brasileiros não se dão no vácuo, é bem verdade. A ONU, de forma geral, e o CSNU, em particular, padecem de uma crise de legitimidade sem precedente. As resoluções do CSNU são percebidas pela maior parte dos membros da Organização como não representativas dos interesses dos povos do mundo, a ponto de o secretário-geral Kofi Annan sair em defesa da reforma do Conselho:

"[... ] aos olhos do mundo em desenvolvimento, que sente suas visões e interesses representados de forma insuficiente entre os tomadores de decisão, a composição do Conselho de Segurança das Nações Unidas - inalterada em sua essência desde 1945 - apresenta-se em descompasso com as realidades geopolíticas do século XXI"(Annan apud Sardenberg, 2003).

Para o Brasil, o assento permanente no CSNU é hoje uma questão crítica. Fortaleceria sobremodo a sua posição internacional, credenciando-o a tomar parte nas principais discussões sobre segurança internacional. Acarretaria mais acesso a informações, defesa sem intermediários do interesse nacional, melhor interlocução diplomática e, mais importante, a possibilidade de influenciar a cunhagem das práticas que balizarão a convivência internacional - tomando como premissa que ao Conselho caberá papel maior como instância de legitimação das relações internacionais futuras. Para lastrear o pleito, o Brasil conta com algumas cartas na manga, dentre as quais se citam: a considerável contribuição para o orçamento regular da ONU; a liderança no contexto latino-americano; o apoio diplomático (embora não ostensivo) de Rússia, França e Reino Unido - três dos cinco membros permanentes atuais - às bandeiras reformistas; a participação pregressa em várias missões de paz da ONU ao longo dos anos, ainda que em bases seletivas e não sistemáticas; e, historicamente, o fato de ter conferido à ONU papel sempre destacado em sua orientação política internacional20 20 . Para visões esclarecedoras sobre o pleito do Brasil por um assento permanente no CSNU, cf. Lamazière (1998) e Patriota (1998). .

Os custos existem, e não devem ser negligenciados. Assumir um posto permanente no CSNU sinaliza, em tese, a disposição do país em se engajar (militarmente, se necessário for) em quaisquer conflitos percebidos como ameaçadores à paz e à ordem internacionais, independentemente de interesses estritamente nacionais. Embute, também, maiores dispêndios com a própria ONU - em detrimento dos gastos internos -, o que parece perturbador para um país socialmente carente e economicamente convulsionado como o Brasil. Para além, envolve a habilidade de relacionar-se com o entorno regional de maneira construtiva, sem despertar desconfianças e hostilidades. Não se deve desconsiderar que qualquer mudança a ser operada na Carta da ONU requererá o assentimento dos "cinco grandes" - pressuposto dos mais difíceis de atingir. A missão não é fácil, mas a chancelaria brasileira tem dado mostras de sua determinação de prosseguir com a campanha.

Organização Mundial do Comércio (OMC)

No primeiro ano de governo Lula, a frente em que mais ecoou a voz internacional do Brasil talvez tenha sido a do comércio. E a OMC foi, desde logo, nicho privilegiado para a observação fenomenológica. Em Cancún, esteve o Brasil a liderar mais de vinte países em desenvolvimento (incluindo-se Índia, África do Sul, Indonésia, Egito), pugnando contra o protecionismo comercial dos Estados Unidos e da União Européia (especialmente nas questões relativas à agricultura). A postura despertou a ira de uns, a simpatia de outros, a dúvida de muitos. Afinal, a que levaria tal endurecimento senão a perdas óbvias de receita para os países (como demonstraram alguns estudos da Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Econômicos (OCDE) e da Conferência das Nações Unidas sobre o Comércio e o Desenvolvimento [UNCTAD])? As razões para o impasse residem, ao que faz saber o ministro Celso Amorim, não em nacionalismo oco, e sim no mais apurado senso de pragmatismo. Assegura Amorim:

"A questão aqui não é se um resultado modesto teria sido melhor do que a ausência de resultados. O verdadeiro dilema que muitos de nós tivemos de enfrentar é se é sensato aceitar um acordo que essencialmente consolidaria as orientações políticas das duas superpotências que praticam os subsídios e, então, ter de esperar por outros 15 ou 18 anos, até o lançamento de uma nova rodada, depois de ter desperdiçado os nossos preciosos recursos de barganha" (2003a).

De concreto fica o movimento por revisão dos termos do comércio internacional (pretensamente liberalizado). Não se trata de advocacia por uma "nova ordem". As regras do jogo estão postas. Fazê-las cumprir é o desafio. Quando nada, a atitude de endurecimento, patrocinada pelo Brasil e demais países em desenvolvimento, logra denunciar as falsas promessas do liberalismo comercial praticado hodiernamente. A "diplomacia altiva" não nega as características sistêmicas, tampouco o papel da OMC; contrariamente, reafirmando-os, quer apenas eliminar contradições.

Os trunfos do país são escassos em face de sua representatividade no comércio internacional. Não contabilizamos sequer 1% do fluxo comercial mundial. Mas não tão escassas são as nossas potencialidades. Afinal, somos a nona economia (em paridade de poder de compra - PPC) e a quinta maior população do planeta. Global trader; gigante urbano e industrial; ao mesmo tempo, grande exportador de commodities agrícolas e minerais. O Brasil tem, sim, peso inegável. Note-se, contudo, as represálias de que poderemos ser alvo, nos mais diversos foros, a persistir a guerra de nervos na OMC. Para auferir qualquer sucesso nesta frente comercial, impende a tão necessária "calibragem" entre o interesse nacional e a capacidade de ação internacional do Brasil.

Subsistema Regional da América do Sul

Nova ênfase recaiu sobre a América do Sul neste primórdio do governo Lula. A bem da verdade, trata-se de trajetória já retomada com Celso Lafer e FHC, sendo ilustrativa a reunião de chefes de Estados sul-americanos que se realizou em Brasília no ano de 2000. As razões da guinada são patentes: somos um país sul-americano e não podemos fugir de nossas circunstâncias históricas e geográficas. Se nos compete um papel no ordenamento internacional hoje, esse papel é desempenhado regionalmente. Caso seja interesse diplomático projetar a liderança regional do Brasil em termos globais, é fundamental que se reafirme uma presença forte na América do Sul. Além disso, os interesses econômicos e estratégicos de tal investida são maiúsculos.

Não é absurdo se supor que a legação do subsistema da América do Sul em níveis secundários de priorização, isto sim, implicaria graves custos à inserção internacional brasileira. No entanto, uma presença que seja percebida positivamente por nossos vizinhos deverá contornar alguns persistentes entraves. Nesse quesito, o trunfo maior com que conta o Brasil é o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, líder carismático, de grande apelo popular e ótimos relacionamentos pessoais com os seus homólogos por toda a América. O desafio, portanto, é não inspirar medo e desconfiança em nuestros hermanos sudamericanos (e o bom relacionamento que vem sendo cultivado com a Argentina é fundamental para tal propósito), à medida que fortaleçamos os vínculos regionais.

A Inserção Internacional do Brasil: Imagem e Realidade

Permitam-nos, à guisa de conclusão, algumas poucas considerações sobre a inserção internacional do Brasil.

A imagem de um país não corresponde integralmente à sua essência. A rigor, não pode haver a coincidência absoluta. Uma imagem de um objeto forma-se exteriormente ao objeto propriamente dito. Logo, a correlação espelhar entre imagem e essência é condição inatingível per se. A simples constatação de que é possível um tal descompasso (entre o ser e o parecer) introduz a nossa primeira dúvida: será credível a projeção de uma imagem internacional do Brasil superestimada quanto aos seus recursos efetivos para o exercício do poder?

É certo que sim. Vários são os exemplos históricos de sobreavaliação (ou subavaliação) das capacidades de um ente, normalmente o Estado, no plano das relações internacionais. Para ficarmos apenas nos domínios da ONU: era claro em 1945, e continua a ser em 2004, o hiato entre o discurso de potência e os recursos de poder da França. O gaullismo provavelmente desempenhou força determinante no processo que culminou em fazer do espectro francês algo consideravelmente maior que a sua realidade ontológica. Como cita, com muita felicidade, o jornalista Elio Gaspari (2004), "diferente tivesse sido a história e hoje a França poderia estar reduzida a uma Espanha".

Imagem e realidade, como dois gêmeos univitelinos, apenas aparentam igualdade. Contudo, há nuanças para "cima" e para "baixo" que as diferenciam. Sobre a lógica das imagens nas relações internacionais, ensina o professor Robert Jervis:

"Muitos fatores a respeito do Estado, que contribuem pesadamente para a formação de sua imagem, são permanentes ou semipermanentes e, portanto, estão além do controle de seus tomadores de decisão. A geografia e a história e, em larga medida, os sistemas político, econômico e social de um Estado, não podem ser manipulados [...]. Enquanto os elementos básicos de uma imagem são difíceis de se alterar, detalhes desta imagem, que podem influenciar fortemente a maneira como o receptor [da imagem] age, são mais suscetíveis à mudança" (1989: 13-15).

Jervis classifica as imagens das RIs como pertencentes a duas modalidades distintas: os índices e os sinais. Índices são imagens mais ou menos duradouras. Não admitem rupturas (ou incorreríamos em outros índices ou em outras imagens), mas sim evoluções e involuções. Índices costumam ser imagens tanto mais diretamente acessíveis quanto menos manipuláveis. Não que impossibilitem sofismas - longe disso! -, mas geralmente guardam uma relação mais simétrica e impessoal com o mundo empírico. Os índices nacionais só terão interesse para os estudos sobre inserção internacional de um país se perfilados em uma série histórica, ou quando em uma comparação direta com outros países. O Brasil tem, hoje e sempre, bons e maus números. Índices que impressionam muito positivamente, assim como os que estarrecem.21 21 . Comecemos pela economia: temos, a um só tempo, a nona maior economia do mundo (Produto Nacional Bruto (PNB) em Paridade do Poder de Compra (PPC)) e a nona maior produção industrial do planeta. Estamos, não obstante, apenas no 65ºlugar quando o assunto é o desenvolvimento humano (Índice de Desenvolvimento Humano (IDH)/Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD)). Quanto à distribuição de renda, ostentamos o título de campeões mundiais em desigualdades sociais (coeficiente de Gini =~0,6). No comércio internacional, há dados reveladores: apesar de comerciarmos commodities agrícolas como poucos no mundo, estamos também entre os países com menor ratio comércio internacional/PIB. O somatório do volume que importamos/exportamos é equivalente a 6,5% de nosso PNB. Somos um gigante, sim, mas um "gigante autista", voltado para dentro. E essa introversão nos tem custado caro. Politicamente, estamos entre as três maiores democracias do mundo; contudo, índices acentuados de corrupção e de violência urbana teimam em ofuscar a nossa vocação democrática. Temos mais de 500 anos de "vida internacional", pouco mais de 180 anos de independência política, somos a quinta maior população do mundo, o quinto maior território, a quarta maior metrópole do planeta. Somos, de fato, um país de contrastes ( The Economist - Pocket World in Figures, 2002).

A dimensão dos sinais é, no entanto, mais sensível às mudanças de curto prazo. Logo, interessam mais aos propósitos deste estudo. Sinais são afirmações ou ações cujos sentidos se estabelecem tácita ou explicitamente entre os atores. Não são tão evidentes como os índices, não contêm "credibilidade inerente". Para avaliar os sinais, o receptor deverá fazer inferências em dois níveis: primeiro, decifrar o que o remetente quer transmitir; segundo, estimar se o sinal corresponde às intenções do ator no futuro (idem: 24).

Resta saber: no jogo das nações, quem, afinal, somos? Qual a imagem que se projeta a nosso respeito? E como tem sido a relação da diplomacia brasileira com índices e sinais nesse período inicial de gestão Lula/Amorim?

Importantes sinais foram dispensados por nossa diplomacia no curto espaço de um ano. E tais sinais, se bem os depreendemos, trazem indicações valiosas sobre a orientação da PIB nos anos por vir. Em primeiro lugar, é digna de nota a subversão retórica no que respeita à relação Brasil/mundo. Passamos a nos valorizar mais, nos detalhes, sem perder o senso de realismo. Vale citar, por exemplo, o argumento do ministro Amorim quando indagado sobre a reforma do CSNU: "como eu costumo dizer, não é uma aspiração principalmente do Brasil. A reforma é uma necessidade das Nações Unidas" (2003b). Um segundo aspecto, não menos relevante, é o capital diplomático de que usufrui o nosso presidente. Contrariando muitas das expectativas, Lula transformou-se em importante "ativo" para a promoção internacional do país. É uma liderança que agrada por seu compromisso com a democracia, com os direitos humanos e, por que não dizer, com o livre mercado. A diplomacia presidencial é uma marca inegável de sua gestão22 22 . A recente matéria da revista americana Time (2004), conferindo a Lula a condição de "nova voz do mundo", é também sugestiva a esse respeito. . Um terceiro e último sinal é o retorno à voga de um projeto geopolítico para o Brasil. Nesse bojo, inserem-se a epopéia pela reforma do CSNU, os planos de integração da infra-estrutura (e até da macroeconomia) na América do Sul, a busca por saídas marítimas para o Pacífico etc. Diante desses sinais, sobrevém a hipótese de que, em vez da "participação pela adequação", praticada ao longo dos anos dos governos Collor e FHC, existe a expectativa, sob Lula, de uma "participação pela influência".

Diz-se porto o constructo arquitetônico com função de "oferecer abrigo a embarcações"; diz-se cais a "parte do porto onde se efetua o embarque e o desembarque de passageiros e cargas". O embaixador Roberto Abdenur costumava dizer, nos primeiros anos da década de 90, que padecíamos de "síndome de exclusão". Por pouco crermos em nossas potencialidades, grassava na sociedade brasileira a descrença e o pessimismo em relação ao país (Abdenur, 1994). Hoje, diferentemente, sentimo-nos mais próximos do "porto" nas relações internacionais. As portas para o progresso parecem-nos convidativamente entreabertas. Mas esse porto, como bem sabemos, não é seguro. Aportar no século XXI como membro cativo do CSNU, porta-voz dos países em desenvolvimento, líder regional, player global, não nos fará infensos aos reveses sistêmicos. Mais importante: chegar ao "porto" não é chegar ao "cais". Não nos iludamos: ingressar em organizações internacionais prestigiosas e remeter sinais de assertividade diplomática não acarretarão automático acesso ao clube das potências, ao condomínio das nações que deliberam sobre os rumos das relações internacionais. Nunca é demais lembrar as elucidativas palavras de Lester Thurow: "In the twentieth century the rich man's club let in only one new industrial member - Japan. It would not be a great surprise if no new members were to join during the twenty-first century" (apud Abdenur, 1994). Se não nos sentimos, hoje, excluídos como outrora, há de se ter em conta que apenas iniciamos uma trajetória (quiçá) de tentativa de maior influência na cena política internacional. Se houve avanços relativos, permanece a nossa vulnerabilidade externa e a distância dos centros de decisão. Perto do porto, longe do cais.

Notas

Artigo recebido em junho e aceito para publicação em outubro de 2004.

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  • WORLD BANK INDICATORS. (2002), Disponível na internet em <http://www.imf.org>
  • 1
    . "O Brasil não nos quer! Está farto de nós! / Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil. / Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?" (Carlos Drummond de Andrade
    apud Rocha, 2003: 17).
  • 2
    . Celso Lafer, em comentário à tipologia dos "países monstros", de George Kennan, afirma que o Brasil é "um monstro que não assusta". A sua estratégia de inserção internacional não preza pelo incremento do poder militar "persuasivo".
  • 3
    . Segundo Cervo e Bueno, "[..] a busca de maior liberdade de movimentos no concerto internacional foi acompanhada de um componente de frieza nas relações com os Estados Unidos. Isto foi ressaltado como um aspecto negativo da PEI, pois não podia o país prescindir da colaboração norte-americana e mesmo porque o relacionamento com a União Soviética apresentava poucas vantagens econômicas em razão do pequeno volume do seu comércio com o Brasil" (1992: 279).
  • 4
    . A expressão é do sociólogo alemão Ulrich Beck.
  • 5
    . O que é, em certa medida, compreensível, uma vez que as populações dos países ricos já desfrutam de um nível de bem-estar material bastante satisfatório, fazendo-se menos premente o seu crescimento econômico.
  • 6
    . O vigor potencial das relações comerciais entre Índia e China e o salto qualitativo ocorrido nos relacionamentos comerciais bilaterais entre Brasil/México, Brasil/Índia e Brasil/China dão mostras em suporte à tese.
  • 7
    . A tipologia é de Ignacy Sachs e serve aos propósitos do presente ensaio (ver Sachs, 1997).
  • 8
    . Cabe ao leitor notar que a leitura de mundo de Araújo Castro não está infensa a condicionalidades espaço-temporais, tampouco a idiossincrasias e constrangimentos funcionais/profissionais. Um lembrete da conjuntura pode ser útil: vivíamos o sonho do "Brasil-potência", sob os auspícios de um governo militar. Dados estatísticos dão conta de que, entre 1960 e 1975, o Brasil passou de 70 para 110 milhões de habitantes; o Produto Interno Bruto (PIB)
    per capita, de US$ 320 para US$ 1.000; a participação brasileira no PIB mundial, de 1,5% para 2,5%; a participação no comércio mundial, de 1,25% para 1,72%. A defesa de um "salto de poder" do Brasil não é, portanto, injustificada.
  • 9
    . O Brasil firmou tratados bilaterais de preferências comerciais com Inglaterra (1810, 1827), Portugal (1825), França (1826), Áustria, Prússia, Cidades Hanseáticas (1827), Dinamarca, Estados Unidos e Países Baixos (1828), Bélgica (1834) (cf. Cervo e Bueno, 1992; Garcia, 2000).
  • 10
    . Tratados sobre direito marítimo, uniões postal e telegráfica, Convenção de Paris sobre propriedade industrial etc. (cf. Almeida, 2000).
  • 11
    . Lília Moritz Schwarcz nota: "no seu caso [Pedro II] as viagens seriam também estratégicas: ajudariam mesmo que simbolicamente na demarcação das fronteiras desse grande Império, além de contribuir para alargar a recepção da imagem da monarquia interna e externamente. Em suas viagens o monarca tomava posse e unificava a representação" (1998: 357).
  • 12
    . Em face da recusa do Congresso americano em ratificar a entrada dos EUA naquela organização internacional (1920) e a conseqüente indicação do Brasil para o Conselho da Liga, como membro não permanente, pelo presidente americano (e idealizador da LDN), o professor Woodrow Wilson.
  • 13
    . A percepção da diplomacia brasileira nutria-se de declarações creditadas a Franklin Delano Roosevelt e Cordel Hull durante os anos da Segunda Guerra e os arranjos conducentes à ONU. Alega-se que Inglaterra e Rússia teriam barrado as pretensões brasileiras (cf. Lampreia, 1999: 101-106).
  • 14
    . Doutrina dos "
    key countries", de autoria de Henry Kissinger (cf. Garcia, 2000: 158-159).
  • 15
    . Gelson Fonseca Júnior observa que, com as novas configurações sistêmicas dos anos 80 em diante, sobreveio a necessidade de uma adaptação argumentativa da PEB. O raciocínio é igualmente aplicável à dimensão da política internacional.
  • 16
    . O pós-Guerra Fria marca a hegemonia do institucionalismo liberal nas Relações Internacionais. O fenômeno é de tal modo marcante que o teórico John Ruggie chega a postular a existência de um "liberalismo incrustado" (
    embedded liberalism) no sistema internacional contemporâneo. A esse respeito, concordamos com Amado Cervo, quando este afirma que a gestão diplomática de FHC esteve embebida em doses consideráveis de pensamento liberal. É lícito, assim, supor-se o esmorecimento do ímpeto
    revisionista da geração itamaratiana anterior em face da desenvoltura com que transitou a diplomacia de Cardoso pelas instituições internacionais do
    status quo (cf. Cervo e Bueno, 2002).
  • 17
    . Celso Amorim assume o posto de chanceler pelo segundo termo. O primeiro estendeu-se de 1993 a 1994, sob a presidência de Itamar Franco.
  • 18
    . "No governo Lula, a América do Sul será a nossa prioridade". Passagem extraída do discurso do embaixador Celso Amorim na transmissão do cargo de ministro das Relações Exteriores (Brasília, 1/1/2003). Disponível na internet em <
  • 19
    . "Lula defende política externa e diz que ela traz orgulho ao seu povo". Agência Reuters, 18/12/2003, 17h25min. Disponível na internet em <
  • 20
    . Para visões esclarecedoras sobre o pleito do Brasil por um assento permanente no CSNU, cf. Lamazière (1998) e Patriota (1998).
  • 21
    . Comecemos pela economia: temos, a um só tempo, a nona maior economia do mundo (Produto Nacional Bruto (PNB) em Paridade do Poder de Compra (PPC)) e a nona maior produção industrial do planeta. Estamos, não obstante, apenas no 65ºlugar quando o assunto é o desenvolvimento humano (Índice de Desenvolvimento Humano (IDH)/Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD)). Quanto à distribuição de renda, ostentamos o título de campeões mundiais em desigualdades sociais (coeficiente de Gini =~0,6). No comércio internacional, há dados reveladores: apesar de comerciarmos
    commodities agrícolas como poucos no mundo, estamos também entre os países com menor
    ratio comércio internacional/PIB. O somatório do volume que importamos/exportamos é equivalente a 6,5% de nosso PNB. Somos um gigante, sim, mas um "gigante autista", voltado para dentro. E essa introversão nos tem custado caro. Politicamente, estamos entre as três maiores democracias do mundo; contudo, índices acentuados de corrupção e de violência urbana teimam em ofuscar a nossa vocação democrática. Temos mais de 500 anos de "vida internacional", pouco mais de 180 anos de independência política, somos a quinta maior população do mundo, o quinto maior território, a quarta maior metrópole do planeta. Somos, de fato, um país de contrastes (
    The Economist - Pocket World in Figures, 2002).
  • 22
    . A recente matéria da revista americana
    Time (2004), conferindo a Lula a condição de "nova voz do mundo", é também sugestiva a esse respeito.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Ago 2010
    • Data do Fascículo
      Dez 2004

    Histórico

    • Aceito
      Out 2004
    • Recebido
      Jun 2004
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