Resumos
Este artigo tem por objetivo apresentar a tradição da teoria crítica em Relações Internacionais. Entende-se que haja uma lacuna nos debates teóricos com a reduzida atenção dedicada a essa tradição no Brasil. O revigoramento dos debates teóricos contribui para o enfraquecimento das tradições teóricas convencionais. O papel da teoria crítica nessa tendência é primordial. A teoria crítica da Escola de Frankfurt é examinada como precursora filosófica e metateórica da teoria crítica em Relações Internacionais. Em seguida, as bases epistemológicas dos desafios da teoria crítica às teorias convencionais são apresentadas, com ênfase especial dedicada ao trabalho de Robert W. Cox. O pensamento neogramsciano é inspecionado à luz da busca pela transformação social nas relações internacionais. A vertente da teoria crítica internacional é vista como fonte de inspiração para muitos autores que trabalham com a emancipação. Examina-se a produção de Andrew Linklater por representar a busca por transformação das comunidades políticas por meio da expansão de suas fronteiras morais. Em seguida, busca-se uma avaliação crítica dos impactos trazidos pela teoria crítica ao campo de estudos das Relações Internacionais. Conclui-se que a teoria crítica tem méritos na guinada das discussões teóricas em direção a questionamentos ontológicos e epistemológicos, debate esse que tem caracterizado esse campo de estudo nas últimas décadas, por meio da exposição das limitações conseqüentes do domínio das teorias convencionais. Não obstante, a associação da teoria crítica ao pós-positivismo epistemológico constitui atitude premeditada.
Teoria das Relações Internacionais; Teoria Crítica; Escola de Frankfurt; Gramsci
This article aims to present Critical Theory in International Relations. It is understood that there has been a lacuna in theoretical debates with little attention paid to this tradition in Brazil. The current revival in theoretical discussions contributes to the weakening of conventional theories. The role of Critical Theory in this trend is fundamental. Frankfurt School Critical Theory is examined as a philosophical and metatheoretical forerunner to its International Relations' counterpart. There follows the epistemological bases for the challenges Critical Theory poses to conventional approaches, with particular regard to the work of Robert W. Cox. Neo-Gramscian thought is thus in the light of concerns for social transformation in International Relations. The Critical International Theory perspective is subsequently scrutinized as a source for emancipatory concerns of IR scholars. The work of Andrew Linklater is presented due to the search for the transformation of political communities by way of the expansion of moral boundaries. A critical assessment of the impacts of Critical Theory to the field of International Relations is thus presented. This article concludes that Critical Theory is largely accountable for the turn towards the ontological and epistemological issues that have distinguished this field of study within the last few decades, by exposing the consequential shortcomings of the predominant conventional theoretical approaches. However, Critical Theory is deliberately associated to post-positivist epistemologies.
International Relations Theory; Critical Theory; Frankfurt School; Gramsci
Teoria crítica em relações internacionais
Critical theory in international relations
Marco Antonio de Meneses Silva
Mestre em Relações Internacionais pela University of Kent at Canterbury (Reino Unido), professor e coordenador do curso de Relações Internacionais do Centro Universitário de Brasília (Uniceub)
RESUMO
Este artigo tem por objetivo apresentar a tradição da teoria crítica em Relações Internacionais. Entende-se que haja uma lacuna nos debates teóricos com a reduzida atenção dedicada a essa tradição no Brasil. O revigoramento dos debates teóricos contribui para o enfraquecimento das tradições teóricas convencionais. O papel da teoria crítica nessa tendência é primordial. A teoria crítica da Escola de Frankfurt é examinada como precursora filosófica e metateórica da teoria crítica em Relações Internacionais. Em seguida, as bases epistemológicas dos desafios da teoria crítica às teorias convencionais são apresentadas, com ênfase especial dedicada ao trabalho de Robert W. Cox. O pensamento neogramsciano é inspecionado à luz da busca pela transformação social nas relações internacionais. A vertente da teoria crítica internacional é vista como fonte de inspiração para muitos autores que trabalham com a emancipação. Examina-se a produção de Andrew Linklater por representar a busca por transformação das comunidades políticas por meio da expansão de suas fronteiras morais. Em seguida, busca-se uma avaliação crítica dos impactos trazidos pela teoria crítica ao campo de estudos das Relações Internacionais. Conclui-se que a teoria crítica tem méritos na guinada das discussões teóricas em direção a questionamentos ontológicos e epistemológicos, debate esse que tem caracterizado esse campo de estudo nas últimas décadas, por meio da exposição das limitações conseqüentes do domínio das teorias convencionais. Não obstante, a associação da teoria crítica ao pós-positivismo epistemológico constitui atitude premeditada.
Palavras-chave: Teoria das Relações Internacionais - Teoria Crítica - Escola de Frankfurt - Gramsci
ABSTRACT
This article aims to present Critical Theory in International Relations. It is understood that there has been a lacuna in theoretical debates with little attention paid to this tradition in Brazil. The current revival in theoretical discussions contributes to the weakening of conventional theories. The role of Critical Theory in this trend is fundamental. Frankfurt School Critical Theory is examined as a philosophical and metatheoretical forerunner to its International Relations' counterpart. There follows the epistemological bases for the challenges Critical Theory poses to conventional approaches, with particular regard to the work of Robert W. Cox. Neo-Gramscian thought is thus in the light of concerns for social transformation in International Relations. The Critical International Theory perspective is subsequently scrutinized as a source for emancipatory concerns of IR scholars. The work of Andrew Linklater is presented due to the search for the transformation of political communities by way of the expansion of moral boundaries. A critical assessment of the impacts of Critical Theory to the field of International Relations is thus presented. This article concludes that Critical Theory is largely accountable for the turn towards the ontological and epistemological issues that have distinguished this field of study within the last few decades, by exposing the consequential shortcomings of the predominant conventional theoretical approaches. However, Critical Theory is deliberately associated to post-positivist epistemologies.
Key words: International Relations Theory - Critical Theory - Frankfurt School - Gramsci
Não podem restar dúvidas quanto ao revigoramento das discussões teóricas em Relações Internacionais, sobretudo nas últimas décadas1 1 . Essa proposição é particularmente verdadeira nas academias européias, principalmente na britânica, e encontra-se respaldada em Burchill e Linklater (1996) e Smith e Booth (1996). Na academia brasileira das Relações Internacionais, há que se registrar o louvável esforço de Rocha (2002). . A bem da justiça, não se afirma que a academia houvesse relegado o campo teórico das Relações Internacionais a uma posição de reduzida relevância, contudo, é razoável supor que as diversas tradições teóricas careciam de um debate real.
A eterna caracterização das relações internacionais como um diálogo meliano perpétuo, isto é, um conflito entre poder e moralidade, entre força e justiça, não condiz à respeitável e diversificada produção teórica2 2 . Trata-se de um episódio relatado por Tucídides (2002) em que a dominadora Atenas pretendia tomar a pequena ilha de Melos, suscitando uma discussão entre ambas as cidades acerca do poder versusa moralidade nas relações entre comunidades políticas. . As tradições realista e liberalista beneficiaram-se imensamente desse stateofaffairs, souberam tirar proveito para se fortalecerem na qualidade de perspectivas predominantes (a realista mais
do que a liberalista), mesmo que disfarçando seu domínio, sugerindo que houvesse um debate com a corrente rival. Quero dizer que, embora seja aceito que majoritariamente os acadêmicos se identificassem com um ou outro protagonista do chamado primeiro debate, tal quadro não pode ser retratado às expensas das demais abordagens que surgiram ao longo do século XX, ainda mais nas décadas finais. Do contrário, trata-se de um desserviço ao estudo da evolução teórica das Relações Internacionais.
Grosso modo, a chegada de novas correntes teóricas submete-se a uma lógica. Trata-se de inovações que atingem outros campos de estudo ditos das ciências sociais antes de alcançarem os domínios das Relações Internacionais. Essa observação se baseia na histórica tendência de os acadêmicos manterem a disciplina hermeticamente fechada e rejeitarem questionamentos acerca dos postulados epistemológicos e ontológicos fundamentais das Relações Internacionais. Identificamos nitidamente essa tendência no caso do pós-modernismo e do pós-estruturalismo, assim como na teoria crítica, abordagem ora em voga.
Não pretendo aqui me aprofundar na apresentação do advento de correntes novas antes do início dos anos 1980. Esse momento sinaliza o início de um processo de redescoberta das questões metateóricas. Lembramos que, por metateoria, fazemos alusão aos aspectos ontológicos e epistemológicos na produção de conhecimento. Esse alerta se deu, em grande parte, pela chegada da teoria crítica às Relações Internacionais. Nisso, não há como menosprezar a influência de Robert Cox.
Neste artigo, opto por iniciar examinando os pressupostos históricos da teoria crítica, notadamente o pensamento político e social da chamada Escola de Frankfurt, particularmente o trabalho de Max Horkheimer (1990). Desejo explicitar a estreita relação entre os frankfurtianos em sua busca pela emancipação, e a noção de limite sobre as possibilidades de realização dos ideais modernistas, e a conseqüente distinção entre duas modalidades de teoria: a tradicional e a crítica.
Em seguida, apresento a teoria crítica em Relações Internacionais per se examinando a contribuição de Robert Cox (1995b). Em um artigo que se tornou um marco para a teoria das Relações Internacionais3 3 . Seguramente um dos artigos mais citados em textos desde sua publicação em 1981. O artigo é mais conhecido por ser encontrado em Keohane (1986). , Cox em um só tempo inaugura uma nova época nesse estudo, sobretudo com a incorporação da reflexão sobre a influência do poder e dos interesses na produção intelectual, além de apresentar sua perspectiva teórica particular, fortemente inspirada no pensamento político de Antonio Gramsci - o materialismo histórico. A questão da transformação das realidades social e sobretudo política se apresenta como uma preocupação central da teoria crítica coxiana, bem como de seus seguidores.
A terceira seção deste trabalho se ocupa da apresentação da teoria crítica internacional. Essa vertente teórica contemporânea é precipuamente associada à retomada da discussão sobre a busca da emancipação. O nome central é o de Jürgen Habermas. Embora tenha acabado de chegar aos temas e à agenda internacional, em que a figura central tem sido a de Andrew Linklater, esse debate é cada vez mais influente na produção de muitos acadêmicos.
A Teoria Crítica da Escola de Frankfurt
A teoria crítica nas ciências sociais tem uma extensa tradição intelectual, representando, no princípio, uma variação do pensamento marxista do início dos anos 1920, particularmente vinculada à Escola de Frankfurt. O termo teoria crítica foi usado pela primeira vez em 1937 em um artigo de Max Horkheimer. Entre outros nomes ligados a essa corrente estão os de Theodore Adorno, Herbert Marcuse e Walter Benjamin. Em comum, entre outras coisas, todos eles possuíam uma mesma origem comum no pensamento marxista.
Seguramente, podemos afirmar que a preocupação central da teoria crítica é a emancipação. Esses teóricos despertaram para o fato de que as expectativas geradas em torno da expansão da experiência socialista russa, sobretudo para o ocidente, não se concretizavam. Os temores do mundo ocidental eram de que a revolução ocorrida em outubro de 1917 se alastrasse para outros cantos, o que acabou não ocorrendo. Pelo contrário, no ocidente não havia sinais de que os partidos comunistas e socialistas estivessem próximos de chegar ao poder, pelas vias democráticas ou não.
Concentrando a atenção no trabalho de Max Horkheimer (1990), pode-se dizer que, afora ser talvez a figura mais influente da Escola de Frankfurt, terá grande influência sobre as proposições epistemológicas de Cox.
Para os propósitos deste trabalho, examinaremos uma das idéias principais de sua obra: a dialética do esclarecimento. Horkheimer chamava atenção para o papel da racionalidade restritiva no desenvolvimento da civilização ocidental, no desencantamento do mundo. Findada a era das explicações metafísicas, a racionalidade tomava seu lugar como critério único e absoluto para a validação do conhecimento humano. Acreditava-se no caráter emancipatório desse novo modo de conhecer. A racionalidade instrumental da ciência moderna distanciou-se da busca pela emancipação, passando a prezar a subjugação da natureza pelo homem: conhecer para prever, prever para controlar. Essa contradição precisava ser esclarecida. A busca pelas regularidades do mundo real pouco serviu aos propósitos libertários que a racionalidade moderna advogava. Pelo contrário, o domínio da ciência serviu, por meio do desenvolvimento da técnica, para o domínio do meio ambiente. Qual seria a implicação para o mundo social?
Horkheimer, apropriadamente, identificou um equívoco fundamental aqui. As chamadas ciências sociais não poderiam seguir os mesmos pressupostos epistemológicos das ciências naturais, as que sempre serviram de modelo para as demais, por uma razão muito simples: o mundo social distingue-se do mundo natural em diversos aspectos. Cientistas sociais não poderiam ser como seus colegas naturais, no sentido de se considerarem desinteressados e independentes da sua matéria de estudo porque fazem parte da sociedade que estudam. Repetir os mesmos postulados epistemológicos das ciências naturais impunha pesados custos sobre as ciências sociais.
A conclusão decorrente disso é a constatação da influência que interesses impõem sobre a produção de conhecimento. Afinal, a aplicação indiscriminada de metodologias das ciências naturais, com suas posições epistemológicas subjacentes, tendia à reprodução da ordem existente. Isso é problemático, porque, ao invés de avançar a emancipação, no mundo moderno, constava-se a subjugação da natureza e a dominação do homem pelo próprio homem. É nesse contexto que Horkheimer propõe uma ruptura epistemológica.
É aí que surge a diferenciação entre a teoria tradicional e a teoria "crítica": a primeira enxerga o mundo como um conjunto de fatos que aguardam ser descobertos pelo uso da ciência - positivismo. Horkheimer defendia que teóricos tradicionais estavam equivocados ao propor que o "fato" a ser descoberto pudesse ser percebido independentemente da estrutura social em que a percepção ocorria. Mas a situação era mais grave, já que a teoria tradicional estimulava o aumento da manipulação de vidas humanas. Ela via o mundo social como uma área para controle e dominação, como a natureza, e, portanto, indiferente às possibilidades da emancipação humana.
Horkheimer propunha a adoção da teoria crítica. Esta não enxerga fatos da mesma forma que a teoria tradicional. Para teóricos críticos, fatos são produtos de estruturas sociais e históricas específicas. A percepção de que teorias estão fixadas nessas estruturas permite que os teóricos críticos reflitam sobre os interesses atendidos por uma teoria particular. O objetivo explícito da teoria crítica é promover a emancipação humana, o que significa que a teoria é abertamente normativa, assumindo uma função até no debate político. Nisso, diverge radicalmente da teoria tradicional ou positivista, na qual a teoria deve servir à neutralidade e se preocupar somente com a descoberta de fatos preexistentes e de regularidades em um mundo independente e externo.
Em uma contribuição significativa ao pensamento das ciências sociais, Horkheimer defendia que haveria uma ligação entre conhecimento e poder. Para ele, dessa relação decorria o fato de que as mais importantes forças para a transformação eram forças sociais, e não a explicação de uma "lógica independente" a ser revelada. Enquanto o conhecimento estivesse associado ao Estado4 4 . Para um exímio relato da proximidade (quase promíscua) entre as disciplinas científicas e o Estado, sua gênese e sua institucionalização, ver Wallerstein (1996), sobretudo o capítulo primeiro. , tenderia a reificar as relações de poder existentes, sendo que qualquer alteração se submeteria aos interesses estatais. Desta forma, os cientistas comporiam uma força social cujo dever principal não poderia deixar de ser a transformação da realidade social de forma a expandir a emancipação humana.
A principal crítica que essa linha de raciocínio recebeu veio dos racionalistas, e se fundamenta sobre a acusação de que o conhecimento científico há que ser imparcial, neutro, não-normativo e puro. Para eles, Horkheimer estava politizando, ideologizando a produção de ciência. Defensores do racionalismo como Popper (1958) e Lakatos (1978) argumentariam que a ciência se desenvolve seguindo critérios racionais.
Percebemos, portanto, que divergências ontológicas se encontram na base da discussão. Respostas distintas às indagações do tipo "o que e como é a realidade social?", "as realidades natural e social divergem fundamentalmente, a ponto de significarem modos igualmente distintos de conhecê-las?" e "o conhecimento é puro, imparcial e neutro?" trazem implicações essenciais à maneira como se percebe o conhecimento. Tais dúvidas não se resolvem de uma forma intrínseca à racionalidade. Elas pressupõem um certo grau de subjetividade explicitado pelos postulados metateóricos do teórico/analista.
Desafios Epistemológicos da Teoria Crítica em Relações Internacionais
O pensamento frankfurtiano imprimiu um impacto profundo sobre a produção científica nas ciências sociais já nas primeiras décadas do século XX. Contudo, as discussões epistemológicas que vieram à tona há muito se mantiveram além das fronteiras das Relações Internacionais. Desde sua gênese5 5 . Como tantas outras questões, também é motivo de debate nesse campo de estudo. Para os britânicos, deu-se com a criação da cadeira Woodrow Wilson na Universidade de Gales em Aberystwyth, no curso de Direito Internacional, em 1919. , as controvérsias que nutriam o desenvolvimento desse campo de estudo eram assaz estreitas, se vistas a partir das questões a serem levantadas pela teoria crítica. O primeiro debate (realismo político versus idealismo) foi protagonizado por correntes que talvez tivessem muito mais semelhanças do que diferenças no que se refere aos fundamentos epistemológicos. O chamado segundo debate (tradicionalistas versuscomportamentalistas/cientificistas), embora também conhecido como um debate metodológico, só fez sentido por apartar metodologias que também traziam similitudes epistemológicas. Por fim, o terceiro debate é ele próprio motivo de debate: para uns, divide neo-realistas e neoliberais; para outros, neo-realistas e globalistas; para outros ainda, epistemologias positivistas e pós-positivistas. Portanto, não seria exagero afirmar que um verdadeiro debate metateórico se inicia com a teoria crítica.
Preliminarmente, convém examinar o ponto de partida de Robert Cox (1995a). Não há teoria propriamente dita dissociada de um contexto histórico concreto. A teoria é a maneira como a mente funciona para compreender a realidade confrontada. É a autoconsciência da mente, a consciência de como a experiência dos fatos é percebida e organizada para ser compreendida. Além disso, a teoria também precede a construção da realidade no sentido de que ela orienta a mente daqueles que, por meio de suas ações, reproduzem ou transformam a realidade.
Para apresentar os desafios da teoria crítica, explorei seus quatro alicerces básicos, a saber: a relação entre o sujeito cognitivo e o seu objeto de estudo; a influência de interesses e valores sobre a teoria; a mutabilidade da realidade social; e os modos de teoria que surgem. Em seguida, examinarei com maior detalhamento esses alicerces.
A relação tradicional do cientista político com seu objeto de estudo é de distanciamento para possibilitar a "descoberta" de leis universais. Esse é um postulado da ciência moderna, aplicável aos demais campos de estudo. Imagina-se uma postura análoga à do cientista natural que analisa seu objeto de estudo por meio de um microscópio. Nada exemplifica melhor o distanciamento. O cientista não acredita que faz parte de seu objeto, muito menos que pode nele interferir de alguma maneira. Sua função se resume a encontrar regularidades que levem à possibilidade de previsão.
Contudo, essa postura é inadequada para as chamadas ciências sociais, por um motivo basilar: o cientista é ele próprio parte de seu objeto de estudo. Lembremos que essa característica já fora identificada pela Escola de Frankfurt. Em vez de reproduzir também suas conseqüências epistemológicas, nesse particular, chamo atenção para a importância que Cox (idem) atribui às ontologias.
A ontologia precede a investigação. Antes de iniciar a tarefa de tentar tornar o mundo que nos cerca mais inteligível, as ontologias já estão presentes, já se fazem evidentes na maneira como enxergamos o que está em nossa volta. Para definir um problema, e esse é o ponto de partida da investigação científica, da pesquisa, urge conhecer e reconhecer as entidades envolvidas, bem como as relações entre elas. Teorias são construídas sobre tais premissas. Os termos que usamos para identificar as entidades e as relações têm significados ontológicos. Estes significados não são resultado de descobertas ou revelações, ou seja, pressupõem a ação do pesquisador. A ontologia central do campo de estudo das Relações Internacionais tem sido o Estado. Contudo, não se pode assegurar que o mesmo conceito signifique coisas idênticas para teóricos distintos. Chama atenção, nesse sentido, a maneira divergente com que Platão e Hobbes conceituam a comunidade política (Cox, 2000).
A teoria segue a realidade, mas também a precede e a modela. Existe um mundo histórico real em que as coisas acontecem. A teoria é feita pela reflexão sobre o que nele aconteceu. Contudo, a separação entre teoria e eventos históricos reflete uma certa maneira de pensar, porque a teoria alimenta também a história, em virtude da forma como aqueles que fazem a história (indivíduos e coletividades) pensam sobre o que fazem, e dão significados às suas ações.
Dessa forma, os limites da ação individual e/ou coletiva são produtos da teoria (e ditados pelos eventos históricos). Existe, portanto, uma teoria dos livros (acadêmica) e uma teoria da vida (sentido comum). A experiência histórica produz a ontologia das pessoas e incorpora-se ao mundo que estas constroem. É assim, portanto, que o entendimento que temos do Estado, desprovido de existência física, apesar de produzir conseqüências reais e físicas, explica-se. As ontologias, por sua vez, são estruturas implícitas (subjacentes) de pensamento e prática.
Elas se tornam problemáticas quando novos problemas que não podem explicar ou resolver certezas ontológicas dão lugar ao ceticismo. Não se procura a construção de um conhecimento universal e absoluto, mas a criação de uma nova perspectiva adequada ao momento atual, isto é, novas ontologias.
Por conseguinte, estabelecemos que, de certa maneira, há um aspecto de eleição subjetiva na maneira como assimilamos o meio em que estamos inseridos. Isso é expresso pelo domínio das ontologias. Por ontologia, entendemos desde a discussão dos conceitos, isto é, o conceito que usamos para designar uma determinada idéia, passando pelos diversos entendimentos que um conceito pode expressar, até chegarmos à questão mais abrangente que entenderá que nossa(s) ontologia(s) é (são) também a representação de nossa visão de mundo. Cox (1995a) afortunadamente aponta a importância que a historicidade exerce sobre essa(s).
Outra característica definidora do campo de estudo das Relações Internacionais, para Devetak (1995), tem sido a omissão de considerações acerca da relação entre conhecimento e valores. Esta relação somente atraiu atenção por advertir contra os perigos que se apresentam quando valores influenciam a pesquisa. O estado do conhecimento, a justificação de reivindicações da verdade - truthclaims-, a metodologia aplicada, o escopo e o alcance da pesquisa eram questões fundamentais que as Relações Internacionais ignoravam, em seu próprio detrimento (idem).
A teoria é obrigatoriamente condicionada pela influência social, cultural e ideológica, e cabe à teoria crítica a tarefa de revelar os efeitos desse condicionamento. Busca, também, trazer à consciência perspectivas latentes, interesses ou valores que dão origem a, ou orientam qualquer teoria. O conhecimento que a teoria crítica persegue não é neutro; é política e eticamente carregado por um interesse na transformação social e política. Hoffman (apud Devetak, 1995) entende que não é meramente uma expressão das realidades concretas da situação histórica, mas também uma força transformadora dessas condições (Devetak, 1995:151).
É claro que a teoria crítica incorporará nitidamente a dimensão da influência dos interesses na produção teórica. Contudo, o mesmo talvez não proceda na discussão da ação dos valores. A bem da verdade, teóricos críticos têm sido freqüentemente acusados por teóricos normativos de se absterem das discussões normativas substantivas. A acusação fundamenta-se no fato de a teoria crítica defender uma "ordem alternativa", presumivelmente "melhor"; concomitantemente, não indica com clareza o que constitui uma ordem "boa", em se tratando da dimensão ética. Em que medida a ordem que se busca supera a ordem atual? Para a teoria normativa, somente o aprofundamento das discussões sobre a ética e a moral nas relações internacionais poderia oferecer algum tipo de resposta a tais indagações. Nisso, os teóricos normativos aparentam ter razões ao assinalar o curioso silêncio da teoria crítica a esse respeito.
O enfoque da teoria crítica, além de ser seu interesse manifesto, é a transformação da ordem internacional, no que se refere à realidade política, econômica e social. Mais do que isso, para a teoria crítica qualquer perspectiva que parta da premissa de que existam aspectos de tal realidade que sejam permanentes ou imutáveis é falaciosa. Para sustentar essa censura, Cox (1995a) aponta para um equívoco basilar da tradição realista: a suposição de que o Estado é sempre um Estado. Dito de outra maneira, realistas tendem a não problematizar o objeto básico do estudo tradicional das Relações Internacionais. Ao contrário, sugerem que as cidades-Estados helênicas da Antigüidade Clássica (Tucídides, 2002) têm muito em comum com as cidades-Estados da península itálica na Idade Média (Maquiavel, 1982), que, por sua vez, não apresentam maiores disparidades se comparadas aos Estados-nação do início da era moderna (Tratados de Paz de Westfália, 1648), os quais não teriam sofrido mudanças fundamentais até os dias de hoje. Será mesmo que não haveria dessemelhanças entre essas formas de comunidades políticas distanciadas por milhares de anos? Ontologicamente, o conceito de Estado não significa a mesma coisa para os contextos citados.
O pensamento realista procura regularidades no sistema internacional, que lhe permitam prever como as entidades políticas se comportarão. Para isso, interpreta realidades distintas, buscando apontar características que sugerem continuidades. Mas será mesmo que a composição e interação das idéias, a organização material e as instituições que constituíam as comunidades políticas permitem que falemos de um "Estado" que atravessa os tempos e não respeita as particularidades de cada contexto histórico? É aceitável propor que forças sociais e as ordens mundiais geram somente um tipo de comunidade política?
Há um compromisso normativo intrínseco com a manutenção da ordem, e com aqueles que se beneficiam dela. Por exemplo, o mecanismo que regula e distribui poder entre entidades que se motivam pelo mesmo objetivo (conquistar ou aumentar seu poder) é o equilíbrio ou balança do poder. O realismo político é uma perspectiva teórica, portanto, que poderá ser identificada com os interesses do Estado hegemônico.
Para a teoria crítica, por conseguinte, a ordem internacional está em constante transformação. Essa mutação faz com que, por meio da agência humana, se possa guiar alterações em direção à emancipação. A teoria cumpre, portanto, um papel de guia para a ação estratégica, isto é, para a ação transformadora. Muito mais do que um reles instrumento para analisar seu objeto de estudo, a teoria passa a ter uma função nessa ação. Da mesma forma que cientistas não se devem deixar iludir por um véu de pretensa neutralidade - já que eles próprios compõem seu objeto de estudo, carregam e cultivam valores, interesses particulares -, a ciência também não é neutra. Pode haver uma teoria interessada na manutenção da atual ordem das coisas, como pode haver teorias interessadas em sua transformação. Para Cox (1995a; 1995b), essa opção será o divisor de águas das teorias, nos termos abaixo.
Em sua forma de distinguir as teorias, Cox (1995a; 1995b) propõe uma heterogeneidade em três níveis. Entende que teorias devem ser analisadas com base em três dimensões que permitem a comparação e a conseqüente classificação dos modos de teoria: a perspectiva, a problemática e o propósito.
A perspectiva seria a localização espaço-temporal. Em sintonia com a crença de que o contexto social do sujeito influi em suas definições ontológicas, na maneira que elege para interpretar a realidade social, a perspectiva reflete precisamente a extensão dessa função. Por exemplo, o realismo político é intensamente associado a teóricos estadunidenses (Morgenthau, Deutsch etc.) e britânicos (Carr etc.)6 6 . Raymond Aron curiosamente fica às margens dessa caracterização. Isso, contudo, não invalida a proposição. Não se trata de estabelecer uma lei universal. Podemos expandir a proposição para incluir Estados-nação centrais, mas não hegemônicos, sem prejuízo para a validade da proposição (Griffiths, 2004). . A localização espaço-temporal aponta para uma coincidência: trata-se de teóricos de nacionalidade de um Estado-nação hegemônico em decadência (Grã-Bretanha, ao menos no momento em que Carr escreve) e de um Estado-hegemônico em ascensão (Estados Unidos, principalmente no pós-Segunda Guerra Mundial). O fato de que o realismo político principia seu domínio no período auge de domínio estadunidense não pode ser relegado ao acaso. A corrente de pensamento realista parece ter uma ligação clara com uma forma de interpretar as relações internacionais que reflete e atende aos interesses do Estado hegemônico. De forma semelhante, a aplicação do mesmo raciocínio sobre os teóricos dependentistas revela uma característica semelhante: estamos diante, nesse caso, de uma série de pensadores oriundos de Estados periféricos ou semiperiféricos7 7 . Aqui, a tentativa de encontrar falhas torna-se mais custosa. No sentido estrito do dependentismo, não parece haver significativa contribuição de autores que não fossem de países não-centrais: Teotônio dos Santos, Celso Furtado, Raul Prebisch, Caio Prado Jr., Fernando Henrique Cardoso, Enzo Faletto, André Gunder Frank, Said Amin, Giovanni Arrighi - todos tiveram seus nomes associados a essa corrente (Silva, 2002). .
"O mundo é visto de uma posição definida em termos de nação ou classe social; de dominação ou subordinação; de ascensão ou declínio de poder; de um sentido de imobilidade ou de crise atual; de experiências passadas e de esperanças e expectativas para o futuro. Uma teoria jamaiséaexpressão pura e simples de sua perspectiva. Por outro lado, quanto maior a sua sofisticação, mais ela reflete sobre si e transcende sua perspectiva. Por conseguinte, não existe teoria por si só, divorciada de sua posição no tempo e no espaço. Quando uma teoria se apresenta como tal, faz-se necessário examiná-la como uma ideologia, e tentar revelar sua perspectiva" (Cox, 1995a: 87)8 8 . Tradução minha. .
A crítica coxiana não leva a supor que a busca por um conhecimento neutro ou imparcial deva inspirar o teórico. Ao contrário, afirma que todo conhecimento refletirá particularidades de quem o produz, e das quais o teórico não pode se julgar imune. A perspectiva deve ser compreendida como o contexto histórico a partir do qual a produção teórica ocorre. Isso significa examinar de onde emerge o teórico; é o seu ponto de partida fundamental. Sua teoria poderá transcender esse ponto de gênese e adquirir uma percepção histórica, ou poderá se limitar a ele.
Cada teoria também abrange uma problemática, ou mais. A problemática refere-se às premissas da vida social que cada teoria deseja abranger. Cada teoria também elege dentre os múltiplos aspectos da realidade que compõem seu objeto de estudo, quais serão foco de sua preocupação. Sendo assim, não é tarefa árdua identificar a problemática do realismo político: a questão da segurança internacional. A teoria da dependência também apresenta uma problemática claramente distinguível. Trata-se de uma abordagem que busca compreender o motivo que impedia países não-desenvolvidos de evoluírem em direção ao desenvolvimento.
Uma teoria sempre serve a alguém e a algum propósito. É imprescindível conhecer o contexto em que é gerada e usada; igualmente imperativo é conhecer se o objetivo do teórico e de quem se utiliza da teoria é manter a ordem social existente ou mudá-la. Esses dois propósitos levam a duas espécies de teoria. A teoria de resolução de problemas - problem-solving theory- aceita o mundo como um dado, e aponta para a correção de disfunções ou problemas específicos que emergem dentro da ordem existente. O objetivo geral da resolução de problemas é fazer com que as relações e instituições prevalecentes de dominação social e política funcionem bem por meio do enfoque das origens específicas dos problemas. Como o padrão geral das relações e instituições não é passível de crítica, problemas específicos são analisados em relação às áreas especializadas de atividades em que surgem. Portanto, a resolução de problemas representa uma modalidade de teoria que tende a colaborar com a manutenção das relações e instituições sociais e políticas, ou seja, expressa um intento conservador da ordem social e política. Ela se interessa pelas reformas específicas que têm por fim a manutenção das estruturas existentes.
A outra espécie de teoria, a teoria crítica, dedica-se à forma como a ordem existente surgiu e às suas possibilidades de transformação. Ao contrário da teoria de resolução de problemas, a teoria crítica não vê as instituições e relações sociais e políticas como um dado, mas as questiona, procurando entender como surgiram e se podem estar em um processo de transformação. Ela é direcionada justamente para o quadro de ação, ou problemática, que a resolução de problemas aceita como seus parâmetros. Um dos objetivos centrais à teoria crítica é esclarecer a diversidade de alternativas possíveis. Há um elemento de utopia presente, já que se tenta representar um quadro coerente para uma ordem alternativa, embora a utopia sofra as limitações impostas pela compreensão dos processos históricos. A teoria crítica deve recusar alternativas improváveis, além de rejeitar a ordem prevalecente. Desta forma, serve de guia para a ação estratégica por levar à ordem alternativa, enquanto a resolução de problemas serve de guia para a ação tática que, intencionalmente ou não, mantém a ordem existente. Dito de outra maneira, a teoria crítica interessa-se pela exploração do potencial de mudança estrutural e pela construção de estratégias para a transformação.
O Pensamento Neogramsciano nas Relações Internacionais
Uma das vertentes da teoria crítica mais influentes em Relações Internacionais tem sido o pensamento de Antonio Gramsci, sobretudo na economia política internacional. Lembramos que esse cientista político italiano não chegou a produzir um tratado teórico integrado: ao contrário, sua obra capital, Cadernos do Cárcere (2000), é uma coletânea de artigos escritos enquanto esteve encarcerado pelo regime de Mussolini nas décadas iniciais do século XX.
Nesta seção, examinarei algumas das idéias centrais do pensamento gramsciano para, em seguida, observar a sua transposição para as relações internacionais. Observa-se, novamente, o fruto do esforço de Robert Cox (1995b), embora outros autores também nos sirvam de referência (Gill, 1993; 1998; Jardim, 2002).
Gramsci é considerado por muitos o maior teórico neomarxista. Sua preocupação fundamental resume-se em compreender as deficiências nas previsões que Marx havia feito acerca da expansão das experiências revolucionárias socialistas, particularmente nas sociedades capitalistas mais avançadas. Nisso há um paralelo com a primeira geração da Escola de Frankfurt. Enquanto os frankfurtianos identificaram a influência da cultura, a burocracia, a natureza do autoritarismo, a questão da razão e da racionalidade e discussões epistemológicas para explicar o fracasso no alastramento do socialismo, Gramsci buscou elucidar a influência da hegemonia nesse fenômeno. Todos trabalharam uma temática claramente situada na superestrutura.
Há que se ter em mente que o conceito de hegemonia de Gramsci (2000) guarda pouca semelhança com o termo usado habitualmente nas Relações Internacionais e com o conceito derivado do realismo. Para realistas, trata-se do Estado dominante no sistema internacional, ou do Estado mais forte em uma região específica. Gramsci (idem) buscou alargar esse entendimento em decorrência de seu conceito mais amplo de poder.
O desenvolvimento do conceito gramsciano de hegemonia apresenta-se como uma discussão produtiva. A noção de hegemonia como uma ordem política relativamente incontestada, e habitualmente aceita de maneira passiva, isto é, uma combinação da coerção e do consentimento, abre múltiplas possibilidades de reinterpretação da realidade internacional9 9 . Maquiavel já o sugeriu com a analogia ao centauro (metade homem, metade fera). . A hegemonia, exercida por forças sociais que detêm o controle do Estado, tem por finalidade a produção do consentimento nas demais. Gramsci (idem) entendeu que os valores morais, políticos e culturais do grupo dominante são dissipados por meio das instituições da sociedade civil, obtendo o statusde significados intersubjetivos compartilhados, daí a noção de consentimento. As ideologias dominantes proliferam-se de tal maneira que passam à qualidade de senso comum.
O sentido do termo "sociedade civil" aqui empregado diz respeito à rede de instituições e práticas da sociedade que gozam de relativa autonomia do Estado, por meio das quais grupos e indivíduos se organizam, representam-se e expressam-se.
Dessa forma, as possibilidades de mudança surgem da noção de bloco histórico, ou seja, as relações entre a base material (infra-estrutura) e as práticas político-ideológicas que sustentam uma certa ordem. A transformação somente emergirá se a hegemonia for contestada. O lócus para tal seria a sociedade civil, uma vez que iniciativas contra-hegemônicas devem desafiar a hegemonia a fim de que surja um bloco histórico alternativo.
Outra implicação dessas premissas impõe que, se a perpetuação da dominação da classe governante ocorre por meio da hegemonia, a transformação só poderá advir se a hegemonia for contestada. Isso compreende uma luta contra a ordem prevalecente no cerne da sociedade civil, compreende uma contra-hegemonia, em busca de um bloco histórico alternativo10 10 . Para Craig Murphy (1990:25-46), isso não tem acontecido. Pelo contrário, haveria um bloco histórico conservando a dominância em escala global, possivelmente composta por uma classe dirigente "atlântica" ou "trilateral", por classes subordinadas no interior de Estados industrializados e por classes dirigentes nos países em desenvolvimento. Em outro trabalho, Murphy (1994) explora as repercussões da escolha de uma análise gramsciana sobre o tema da organização e governabilidade internacionais, apontando a influência de idéias e valores consolidados nas organizações institucionais e internacionais, visando o bom funcionamento da economia política global. . A fim de transcender determinada ordem, há que se ter em mente que na contra-hegemonia, a legitimidade política e a mudança histórica representam estruturas historicamente limitadas.
Nesse ponto, convém afirmar que uma transposição da teoria política de Gramsci acerca da política doméstica italiana nas décadas de 1920 e 1930 para a esfera internacional ou para a política mundial não é tarefa das mais fáceis, nem pode ser feita de maneira direta. Em que pesem essas dificuldades, os autores dessa corrente têm obtido um êxito surpreendente, constatado a seguir.
Podemos creditar também a Robert Cox o mérito de ter introduzido Gramsci no estudo da política mundial, em uma abordagem que compreende o desenvolvimento de uma estrutura alternativa para a análise dessa. Percebemos uma significativa influência do gramscianismo no desenvolvimento do seu entendimento teórico sobre as ordens mundiais, que se apropriam das fontes de estabilidade de um dado sistema, bem como da dinâmica dos processos de transformação. Para tal, Cox (1995b) defende que a hegemonia é um conceito tão central para explicar a manutenção da estabilidade e continuidade no domínio internacional quanto para o nível doméstico. Sucessivos Estados dominantes têm criado e moldado ordens mundiais da forma mais conveniente aos seus interesses, graças às suas capacidades de coerção, bem como ao consentimento generalizado provocado, mesmo entre aqueles que não (ou pouco) se beneficiam.
Cox (idem) procura entender as ordens mundiais como estruturas históricas compostas por três categorias de forças: capacidades materiais, idéias e instituições. As capacidades materiais dizem respeito à esfera econômica da estrutura social. Como tal, incluem o potencial tecnológico e organizacional; portanto, denotam não somente como qualquer sociedade se reproduz em sua base material, mas também a maneira como essa reprodução é planejada, antecipada.
A esfera ideológica subdivide-se em duas partes. Por um lado, encontramos o conceito de significados intersubjetivos, que afetam a conservação de hábitos e subsidiam expectativas quanto ao comportamento social. Cox (idem) afirma que Estados são exemplos notórios na política mundial, uma vez que representam formas generalizadas de comunidade política. Por outro lado, encontramos as imagens coletivas da ordem social. Em sua essência, constituem juízos diversos sobre os significados de justiça e dos bens públicos, sobre a legitimidade das relações de poder presentemente cultivadas. O choque de posições adversárias representa a possibilidade da mudança, o potencial para a produção de uma ordem alternativa. Enquanto significados intersubjetivos tendem a ser largamente generalizados em dado contexto histórico, as imagens coletivas são significativamente mais numerosas e divergentes.
As instituições são fundamentais. Segundo Cox (idem), desempenham função vital na estabilização e perpetuação de uma ordem particular. Originalmente, tendem a reforçar as relações de poder estabelecidas, cultivando imagens coletivas compatíveis. Contudo, no decorrer do tempo, imagens coletivas rivais ou até instituições concorrentes podem ser criadas e lançadas. As instituições refletem, por conseguinte, uma combinação específica de idéias e poder material, entretanto, podem também transcender a ordem original e influenciar o desenvolvimento de novas idéias e capacidades materiais.
Essa posição se clarifica quando se aplicam as estruturas históricas a três níveis: formas de Estado, forças sociais e ordens mundiais. Examinemos as implicações conseqüentes. A interação dos três níveis proíbe qualquer hierarquia determinada aprioridas relações. Além do mais, cada nível é o resultado da luta entre estruturas rivais.
O nível inicial abrange os complexos Estado/sociedade. Chama-se atenção para as formas e estruturas de Estado que sociedades específicas desenvolvem. A historicidade da forma de qualquer Estado é uma derivação da configuração particular das capacidades materiais, idéias e instituições, que é específica de um complexo Estado/sociedade.
A organização da produção, em especial das forças sociais participantes, constitui o segundo nível. À medida que evolui a produção, observamos transformações expressas na gênese, no fortalecimento ou no declínio de forças sociais específicas. Com a forma ainda dominante de um capitalismo hiperliberal, em uma escala global, as forças sociais associadas à economia real em contraposição aos mercados financeiros (como sindicatos) têm sido enfraquecidas, em favor do fortalecimento de investidores privados, por exemplo.
Por fim, o terceiro nível é representado pelas ordens mundiais. Estas seriam a constituição precisa de forças que, em seqüência, determinam a maneira como os Estados interagem. Cada contexto histórico produzirá uma configuração específica das forças sociais, dos Estados, e da inter-relação entre eles que repercutirá como uma ordem mundial particular. A título de exemplo, tem havido bastante discussão acerca de uma nova ordem mundial inaugurada pela resposta de George W. Bush aos ataques de 11 de setembro de 2001, em referência clara ao princípio da ação preventiva (Política Externa, 2002). O impacto gerado pela propagação desse conceito desencadeou a perspectiva de uma mudança fundamental nos padrões atualmente aceitáveis de conduta entre Estados.
Entre os três níveis, no entanto, não encontramos uma relação unilinear. Forças sociais transnacionais têm influenciado Estados por meio da estrutura mundial, conforme evidenciado pelos reflexos do capitalismo expansivo do século XIX sobre o desenvolvimento de estruturas de Estado no centro e na periferia. A conformação conjuntural das ordens mundiais é capaz de exercer influência sobre as formas que assumem os Estados. Em resposta à sensação de ameaça à existência de um Estado soviético, marcado por uma ordem mundial hostil, surgiu o stalinismo. Já o complexo industrial-militar dos países centrais justificou sua ingerência sobre os demais, apoiado sobre um quadro conflituoso da ordem mundial de então. Este quadro se configurou nos países periféricos com a existência de um militarismo repressivo, sustentado pelo apoio externo do imperialismo, assim como por uma peculiar conjunção de forças sociais internas nesses países. Formas de Estado também afetam o desenvolvimento de forças sociais pelos tipos de dominação que exercem, por exemplo, avançando os interesses de uma classe, às expensas dos interesses de outra.
Consideradas em separado, forças sociais, formas de Estado e ordens mundiais podem preliminarmente ser representadas como configurações específicas de capacidades materiais, idéias e instituições. Consideradas conjuntamente e, portanto, em direção a uma representação mais completa do processo histórico, cada uma conterá as demais, assim como será objeto da transformação destas.
Não restam dúvidas de que o pensamento gramsciano em Relações Internacionais encontrou terreno fértil para se reproduzir. Nota-se que a inspiração marxista dessa abordagem facilita a penetração de tais idéias especialmente nos domínios da economia política internacional. Não se deve cometer o equívoco, contudo, de crer na restrição do alcance de Gramsci nas Relações Internacionais a questões claramente econômicas11 11 . Serve como exemplo a aplicação do neogramscianismo na temática da segurança internacional (Lamazière, 1998). .
Teoria Crítica Internacional
A teoria crítica internacional representa uma derivação do pensamento coxiano. Seu expoente cardeal, Andrew Linklater, tem sua trajetória acadêmica marcada por uma sintonia inicial com as idéias de Cox e uma marcante evolução rumo a uma temática alternativa.
Para Devetak (1995), a tarefa da teoria crítica internacional, consoante Linklater (1996), seria fornecer uma teoria social da política mundial. Trata-se do alargamento do escopo tradicional das Relações Internacionais, não mais limitado por obsessões "estatocêntricas". Em comunhão com as preocupações atinentes à transformação da realidade social e política, essa corrente deve muito às tentativas de reconstrução do materialismo histórico, em particular ao trabalho de Jürgen Habermas.
Encontramos, novamente, paralelos com o intuito gramsciano de buscar compreender melhor o papel que idéias, valores, ideologias, isto é, a superestrutura, desempenham na construção e manutenção das estruturas sociais e políticas. A crítica intrínseca remete-nos a uma sobrevalorização da dimensão material e das forças de produção. Marx tendeu a imaginar a relação entre infra-estrutura e superestrutura de maneira automática, ao passo que Habermas (1993) procura entender a relevância das estruturas normativas, chegando a sugerir que a última se sobrepõe à primeira. Devetak (1995) decifra a questão como uma mudança paradigmática, do paradigma da produção e consciência em direção ao paradigma da linguagem. Subjaz à transformação o esforço de diferenciar entre formas de racionalidadeeode compreender a racionalidade comunicativa (ou agir comunicativo), tendo em vista as formas da razão moral-prática na vida social.
Habermas (1993) propõe que o conhecimento guarda relação com a idéia de interesses. O interesse técnico procura entender e controlar o meio ambiente; o interesse prático guarda relação com entender outros sujeitos; e o interesse emancipatório busca a mudança. Sua teoria da ação comunicativa é uma tentativa de combinar interesses práticos e emancipatórios.
Para Habermas, a razão não existe dentro do indivíduo isolado. Ela requer o diálogo. Ele reforça a noção do sujeito como entidade racional, mas condiciona o surgimento da racionalidade a um quadro, uma comunidade. Há normas constitutivas para o entendimento comunicativo que devem ser acatadas pelos sujeitos para surgir uma situação de "discurso ideal".
Essa situação requer uma certa dose de tolerância no diálogo. Todos os participantes devem ter oportunidades iguais de participar. Devem exercer o direito de afirmar, defender ou questionar qualquer posição normativa. Essa interação não deve ser impedida por papéis ativos ou diferenças de status. Além disso, os participantes devem se inspirar no desejo de atingir um consenso sobre a verdade das afirmações e a validade das normas. Habermas não afirma prover uma prescrição para dilemas éticos. O agir comunicativo é mais um procedimento, em que a validação ocorre por meio de um processo de diálogo.
A Linklater (1998) devemos o reconhecimento de ter introduzido e avançado as idéias de Habermas nas Relações Internacionais12 12 . O próprio Habermas (1993) tem dedicado atenção crescente ao universo das relações internacionais, fazendo-o, porém, a partir de uma perspectiva que tende a empobrecer e restringir por demais o alcance de suas idéias. A porta de entrada de Habermas nos domínios da política internacional tem sido a noção da construção de consensos por meio da firmação de tratados e convenções entre Estados. . Seus esforços estão em sintonia com a defesa da noção de que a emancipação no domínio internacional deva ser apreciada na forma da expansão das barreiras morais entre comunidades políticas. A emancipação constitui a perda de significado moral e ético das fronteiras dos Estados. O foco passa a ser as múltiplas formas de inclusão e exclusão promovidas pela política mundial, dentre as quais se destaca o Estado enquanto comunidade moral. Linklater (idem) defende o universalismo moral sem exclusão.
Esta pode ser compreendida de duas formas. Uma se refere àquilo de que se tenta evadir-se (participação, recursos) intencionalmente (discriminação visível) ou por meio das estruturas de poder ocultas, como os discursos que negam, escondem ou marginalizam a diferença. Outro sentido entende exclusão como simplesmente o oposto da inclusão.
Segundo Linklater, um relato compreensivo sobre a política mundial requer a análise e múltiplas formas de exclusão. O autor defende que a exclusão decorre de nós designarmos relevância moral a certas barreiras entre pessoas (tais como fronteiras nacionais, de gênero, de raça, de classe etc.).
A tarefa que temos adiante é (1) normativo-filosófica - refletir sobre os critérios que determinam a legitimidade dos modos de inclusão e exclusão -; (2) histórico-sociológica - examinar as origens, a reprodução e potencial transformação das barreiras morais -; e (3) política - almejar atingir um equilíbrio justo entre o universal e o particular.
O argumento de Linklater (idem) é amplo e complexo, e não poderá ser adequadamente resumido aqui. Está centrado no conceito de comunidade, revendo a separação entre as posições comunitarista e cosmopolitista13 13 . Trata-se da divisão doutrinária dentro da chamada teoria normativa em Relações Internacionais. Ver Hoffman (1994) e Frost (1994). e a natureza das barreiras moralmente relevantes de inclusão e exclusão da comunidade.
Sua idéia de comunidade política adota a forma de uma comunidade dialógica: todos estão convidados a participar e qualquer posição moral está propensa ao questionamento. Já que todos têm voz, e as regras dizem respeito somente ao procedimento e não ao conteúdo do diálogo, essa seria a forma mais adequada de determinar os melhores arranjos para a ordem social e de evitar a exclusão enquanto se celebra a diferença. O diálogo, dessa forma, expressa um valor por si só, e seu objetivo é estabelecer o consenso. Está claro que estamos di-ante de uma noção habermasiana de diálogo ou de ética do discurso.
Linklater (1998) acredita que o problema não é universalismo em si, mas as versões em que se supõe que a razão individual possa descobrir um ponto de vista arquimediano que transcende as distorções e limitações do tempo e do espaço. É possível uma moralidade reflexiva que reconhece (1) que a construção da identidade requer que se evite a representação negativa dos outros e (2) que o direito à autodeterminação comunitária há de ser exercido de maneiras que aceite o princípio moral cosmopolita segundo o qual é legítimo que estrangeiros também reivindiquem bem-estar. A universalidade passa a ter a forma de responsabilidade de engajamento com outros indivíduos (independente de suas características raciais ou nacionais) em um diálogo aberto sobre assuntos que comprometem seu bem-estar. A questão para Linklater (idem), portanto, não é que a exclusão deixasse de existir, mas que, por meio do diálogo, a comunidade decidiria sobre como e quem excluir ou incluir, por dar uma voz a todos. A exclusão não seria "injusta", mas legitimada. Adiante, comunidades dialógicas assim concebidas seriam, por definição, sempre abertas e dispostas à expansão para incluir mais estrangeiros, e de fato seria sua responsabilidade incluí-los, sempre que envolvesse o bem-estar desses. Isso implicaria que as fronteiras não seriam fixas porque não mais teriam relevância moral, visto que apriorinão haveria razão para excluir ninguém.
O aspecto complicado do esforço admirável de Linklater (idem) é a tentativa de reconciliar "a celebração da diferença" com um projeto universalista. Ele escreve abertamente a partir de uma perspectiva liberal-democrática kantiana-hegeliana, o que gera sérios problemas em sua argumentação. Acreditamos que essas dificuldades tornam suas idéias no final das contas incapazes de realizar sua tarefa. Sem nos referirmos a todas as críticas a Linklater (seu viés União Européia e a ausência de indicações quanto à institucionalização dos arranjos políticos pós-westfaliano), alguns problemas são relevantes à nossa argumentação.
Primeiro, a dimensão do poder - a noção de comunidade dialógica levanta questões do tipo: e se não houver consenso dentro da comunidade? Quem terá a autoridade de arbitrar a decisão a ser tomada? Quem definirá as regras do jogo? Parece que a comunidade dialógica de Linklater (idem) está aberta apenas àqueles que aceitam as regras do jogo. Que todos irão aceitá-las é uma questão à parte. Sua visão procedimental sobre a ética obscurece as relações de poder existentes entre os participantes. Como seria uma esfera pública aberta, livre, não-manipulada? Como seria o acesso? Seria possível?
Em segundo lugar, a visão habermasiana de Linklater (idem) parte do pressuposto de que as metas e valores das pessoas não seriam fundamentalmente incompatíveis, em outras palavras, que somos todos essencialmente "iguais", na verdade. Essa é uma visão particularmente liberal. Considera, também, o indivíduo pré-social, abstraído de todos os "outros" aspectos, como a cultura. No entanto, a cultura não pode ser usada como vestimenta, a ser descartada a qualquer momento. Nossos discursos (raciocínio, linguagem) são eles próprios culturalmente situados e constituídos - assim como os de Linklater (idem).
Análise
Fica evidente que não se deve menosprezar a força do impacto que teóricos críticos causaram nas Relações Internacionais, estendendo-se à economia política internacional. Essa repercussão, como vimos, fundamenta-se sobre uma visão inovadora das discussões epistemológicas no âmbito das Relações Internacionais. Contudo, houve quem recebeu a teoria crítica e sua vertente neogramsciana com menos entusiasmo. Se não, vejamos os argumentos.
Um dos traços que mereceu censura diz respeito ao pessimismo que teóricos críticos, em geral, têm demonstrado no que diz respeito aos agentes da transformação social pretendida, particularmente quando se trata de organizações não-governamentais (ONGs) e intergovernamentais (OIGs).
De maneira semelhante, há críticas imbuídas de excesso de otimismo, ou de utopia, quanto à mudança estrutural tão preconizada.
Observamos um curioso paradoxo no que se refere ao Estado. Há desde aqueles que consideram os teóricos críticos por demais obcecados pelos Estados, o que constitui o já citado "estadocentrismo", até aqueles que diagnosticam a ausência de uma atenção apropriada ao Estado.
O tema da globalização trouxe à tona as contribuições singulares dos neogramscianos para a economia política internacional. Nesse caso, trata-se da crítica quanto à despersonalização dos fenômenos. Tais autores preferem enxergá-la como um processo conduzido por alguns Estados.
Em suas discussões, autores contemporâneos descendentes das tradições marxistas, principalmente aqueles que têm devotado atenção às problemáticas da identidade, aliados aos antropólogos, queixam-se da subestimação das forças culturais, em favor de um reducionismo fundado sobre a produção, sobre o materialismo.
O neogramscianismo14 14 . O dilema remete inclusive à noção de "consciência de classe" marxiana. Como verificar se essa consciência se encontra presente? pressupõe que haja uma "verdadeira consciência", ou interesses objetivamente identificáveis. Este postulado se encontra presente até mesmo na divisão epistemológica da teoria crítica, ao assegurar que não é possível conhecer a realidade a não ser por um conjunto específico de valores. Segundo Griffiths (2004), a eleição da emancipação enquanto valor supremo acaba exigindo uma verdadeira conscientização - sem que indivíduos estejam conscientes da opressão, não poderão ser emancipados. Não seria tarefa singela, tampouco aberta às interpretações subjetivas, ao relativismo, revelar as forças sociais e materiais que evitam que indivíduos alcancem seus interesses reais. Ainda consoante Griffiths (idem), essa posição assevera uma identificação da teoria crítica com o positivismo epistemológico, posição esta que diverge do refletivismo comumente identificado por outros autores na teoria crítica.
Conclusão
Como reflexões finais, convém ressaltar o êxito obtido pela teoria crítica, em suas diversas abordagens aqui apresentadas.
Preliminarmente, cabe rememorar os impactos profundos sobre as discussões teóricas em Relações Internacionais que podem ser identificados como tendo origem nas indagações apresentadas por Robert Cox (1995a; 1995b; 2000). Esse ponto não deve ser menosprezado. Se hoje há um vibrante debate metateórico, para o regozijo de alguns e tristeza de outros, isso se deve em grande parte aos teóricos críticos e às perspectivas teóricas que se aproveitaram das questões propostas. Entendemos que a teoria crítica representa uma guinada importante, em uma nova direção, diante da encruzilhada em que se encontrava o campo de estudos no início dos anos 1980.
Outra implicação observada remonta à diversificação do escopo teórico das Relações Internacionais, que expandiu significativamente seus horizontes, conduzindo tal escopo rumo a novas conceituações dos fenômenos da política mundial. Expuseram-se as limitações epistemológicas das tradições de pensamento convencionais das Relações Internacionais. Diversas abordagens mais recentes podem, por conseguinte, ter suas origens identificadas na teoria crítica, como a teoria normativa, o pós-modernismo, algumas correntes do feminismo, o construtivismo, e daí por diante.
Há outros pontos importantes a serem ressaltados nessa análise sobre as realizações da teoria crítica. Linklater (1996) aponta-nos quatro principais. Uma se atém aos desafios impostos ao positivismo epistemológico (racionalismo), uma vez que para a teoria crítica o conhecimento não surge do engajamento neutro do sujeito com uma realidade objetiva; ao contrário, reflete propósitos e interesses sociais preexistentes.
A segunda grande realização seria a contestação da posição segundo a qual as estruturas sociais atuais são imutáveis, já que essa noção sustenta as iniqüidades estruturais de poder e riqueza que são por princípio alteráveis. A preocupação recorrente com a emancipação nas diversas correntes vistas aqui se sustenta sobre uma concepção que deve apreciar a possibilidade de transformação da ordem social, a despeito daquela posição epistemológica que defende uma posição muito mais contemplativa.
É inegável, por outro lado, a influência do marxismo sobre a teoria crítica. Esta representa uma tentativa de superação de debilidades inerentes àquela ao rejeitar que a luta de classes é a forma fundamental de exclusão social, e que a produção é o determinante fundamental da sociedade e da história.
As vertentes mais recentes, particularmente o que chamamos de teoria crítica internacional, julgam arranjos sociais pela sua capacidade de abraçar diálogos abertos com todos e visualizar novas formas de comunidade política que rejeitam a exclusão injustificada. Essa é a quarta grande realização da teoria crítica segundo Linklater (1998).
Por fim, cabe afirmar que, consoante o nosso entendimento, não estamos diante de abordagens que poderão ser nitidamente classificadas dentro da epistemologia pós-positivista. Aqui há um largo e (pantanoso) terreno para debate. Pelo que entendemos, a teoria crítica pode ser acusada consistentemente de carregar características híbridas15 15 . Há quem afirme que tal hibridismo é compartilhado pelo construtivismo social. Para um exame aprofundado da matéria e suas implicações para as Relações Internacionais, ver novamente Rocha (2002). . Se, por um lado, é responsável pela incorporação do refletivismo, da incerteza sobre o alcance da racionalidade, por outro, a teoria crítica não leva essa intenção adiante. Afinal, se teorias servem a alguém e a algum propósito, como sustentar a defesa pela emancipação? Se há uma posição normativa da teoria crítica rejeitando a ordem social atual, como pode afirmar que a ordem almejada seria "melhor"? A tarefa caberá ao pós-modernismo em Relações Internacionais, vertente essa que produzirá uma censura consistente sobre os limites auto-impostos da teoria crítica.
Notas
Artigo recebido em julho e aprovado para publicação em setembro de 2005.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
13 Ago 2010 -
Data do Fascículo
Dez 2005
Histórico
-
Aceito
Set 2005 -
Recebido
Jul 2005