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Pensar o mundo na encruzilhada: mulheres negras e a teoria social

Thinking the world at the crossroads: black women and social theory

Pensar el mundo en la encrucijada: mujeres negras y teoría social

Resumo:

Este artigo propõe-se como ensaio-performance, uma escrita que resulta do diálogo sobre a presença/ausência de mulheres negras na teoria social. Partimos de um diagnóstico de algumas posições-chave sobre como a teoria social tem lidado com as demandas identitárias, e propomos uma discussão centrada na ideia de interseccionalidade como ponto de estofo para pensar a questão. Para tanto, destacamos a importância de recuperar o sentido crítico da ideia de interseccionalidade como expressão intelectual da experiência de mulheres negras, que, mesmo sem nomear o termo, já a enunciavam. Ao final, deslocamos a ideia de interseccionalidade para a ideia de encruzilhada e oferecemos algumas contribuições sobre o sentido e a possibilidade da presença de mulheres negras na teoria social.

Palavras-chaves:
Teoria social; Identitarismo; Mulheres negras; Interseccionalidade

Abstract:

This article is an essay-performance, a piece of writing resulting from a dialog about the presence/absence of black women in social theory. We start from a diagnosis of some key positions on how social theory has dealt with identity demands and propose a discussion centered on the idea of intersectionality as a basis for thinking about the issue. To this end, we point out the importance of recovering the critical sense of the idea of intersectionality as an intellectual expression of the experience of black women, who have enunciated this idea even without naming the term. Finally, we shift the idea of intersectionality to the idea of crossroads and offer some contributions on the meaning and possibility of the presence of black women in social theory.

Keywords:
Social theory; Identitarism; Black women; Intersectionality

Resumen:

Este artículo se propone como un ensayo-performance, un escrito que resulta de un diálogo sobre la presencia/ausencia de las mujeres negras en la teoría social. Partimos de un diagnóstico de algunas posiciones clave sobre cómo la teoría social ha tratado las demandas identitarias y proponemos una discusión centrada en la idea de interseccionalidad como base para pensar el tema. Para ello, señalamos la importancia de recuperar el sentido crítico de la idea de interseccionalidad como expresión intelectual de la experiencia de las mujeres negras, que han enunciado esta idea incluso sin nombrar el término. Finalmente, desplazamos la idea de interseccionalidad hacia la idea de encrucijada y ofrecemos algunas aportaciones sobre el sentido y la posibilidad de la presencia de las mujeres negras en la teoría social.

Palabras clave:
Teoría social; Identitarismo; Mujeres negras; Interseccionalidad

Introdução

Em artigo recente, Stephen Turner (2021)Turner, Stephen. 2021. Epistemic justice for the dead. Journal of Classical Sociology 21 (3-4): 307-22. https://doi.org/10.1177/1468795X2110220.
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caracteriza as tentativas de construção de um cânone clássico mais inclusivo como "justiça epistêmica para os mortos", baseada na substituição de autores consagrados por outros, supostamente negligenciados por sua identidade de classe, de raça ou de gênero. Ao colocar-se na posição de guardião das fronteiras disciplinares da sociologia, Turner radicaliza uma posição relativamente difundida e que merece ser investigada.

A precariedade da identidade disciplinar da Sociologia tem sido historicamente objeto de disputa, e uma das formas de garantir-lhe contornos próprios tem sido, justamente, a manutenção da teoria social como núcleo de sustentação. Conquanto a própria noção de teoria social seja objeto de debate e disputa, aqui a tomamos enquanto designação de uma área de produção intelectual com raiz em múltiplas disciplinas e que desde o século 19 encontrou na Sociologia seu lar disciplinar (Hamlin, Weiss e Brito 2022Hamlin, Cynthia L., Raquel Weiss, e Simone M. Brito. 2022. Por uma sociologia polifônica: introduzindo vozes femininas no cânone sociológico Sociologias 24 (61): 26-59. http://doi.org/10.1590/18070337-125407-PT.
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). Mais especificamente, reservamos esse termo para designar tanto elaborações de ordem ontológica e epistemológica quanto construções logicamente encadeadas que visam oferecer explicações ou problematizações da realidade social.

É precisamente nesse sentido que as críticas que desnudam certos vieses da teoria social e lhe colocam demandas de ordem ética e política podem ter um efeito desestabilizador sobre a própria sociologia, colocando em questão muitos de seus pressupostos. Em vez de seguir o caminho de blindagem às críticas, colocando trancas e grades para proteger fronteiras, partimos da seguinte pergunta: o que pode acontecer se, em vez de blindar a teoria social, abrirmos as portas e aceitarmos a conversa?

Este texto propõe-se como ensaio-performance, pensado pelas autoras como lugar de encontro entre questões de teoria social e temas presentes na luta protagonizada por mulheres negras, em particular por mulheres negras brasileiras, para quem a questão identitária é experienciada de forma complexa, tal como expresso pela ideia de interseccionalidade. Não temos a intenção de oferecer formulações fechadas, mas abrir questões que nos parecem fundamentais. O sofá da teoria social, sempre muito acostumado a conversas acompanhadas com chá inglês (?) e brioches, é o cenário que nos acolhe neste diálogo.

Dos imbróglios do identitarismo para a teoria social

O termo "identitarismo" pode ser disputado (Heinich 2018) e, conforme o sentido que lhe atribuímos, essa relação pode adquirir diferentes contornos. Para efeito de nosso diálogo, o tomamos para designar a posicionalidade de sujeitos que constroem uma identidade coletiva a partir de experiências compartilhadas, cujos efeitos podem traduzir-se tanto em demandas de ordem prático-política quanto em reivindicações da validade de pontos de vista onto-epistêmicos.

A relação entre identitarismo e teoria social pode ser pensada a partir de diversos ângulos, mas se torna particularmente relevante quando tomada no contexto geral do debate sobre a mais recente crise da Sociologia (Caillé e Vandenberghe 2021Caillé, Alain, e Frédéric Vandenberghe. 2021. Por uma nova sociologia clássica: re-unindo teoria social, filosofia moral e os studies. Petrópolis: Editora Vozes.; Susen 2020Susen, Simon. 2020. Sociology in the twenty-first century: key trends, debates, and challenges. Londres: Palgrave Macmillan Cham.). O debate sobre a teoria social adquire proeminência, pois as críticas identitárias dirigem-se particularmente aos múltiplos vieses das teorias produzidas sobre a sociedade. A questão do cânone e dos clássicos da disciplina tem recebido particular atenção, em virtude de sua importância na definição dos parâmetros gerais que validam a disciplina e por seu papel na formação das novas gerações (Alatas e Sinha 2017Alatas, Syed F., e Vineeta Sinha. 2017. Sociological theory beyond the canon. Londres: Palgrave Macmillan.; Delanty 2022Delanty, Gérard. 2022. Sociology today and the classical legacy. In The future of Sociology. Ideology or objective social science?, organizado por Robert Leroux, Thierry Martin e StephenTurner, 58-66. New York: Routledge.; Hamlin, Weiss e Brito 2022Hamlin, Cynthia L., Raquel Weiss, e Simone M. Brito. 2022. Por uma sociologia polifônica: introduzindo vozes femininas no cânone sociológico Sociologias 24 (61): 26-59. http://doi.org/10.1590/18070337-125407-PT.
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; Susen 2020Susen, Simon. 2020. Sociology in the twenty-first century: key trends, debates, and challenges. Londres: Palgrave Macmillan Cham.). Talvez a melhor forma de resumir a crítica mais recorrente aos clássicos seja evocar o epíteto "homens brancos mortos" (Bancroft e Fevre 2010Bancroft, Angus, e Ralph Fevre. 2010. Dead white men and other important people: Sociology's big ideas. Londres: Palgrave Macmillan.) ou, ainda, a expressão mais genérica que se refere à figura do "cara branco da teoria" (white theory boy) (Burton 2015Burton, Sarah. 2015. The monstrous ‘white theory boy’: symbolic capital, pedagogy and the politics of knowledge. Sociological Research 20 (3): 167-77. https://doi.org/10.5153/sro.37.
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).

Além de circunscrever dimensões analíticas próprias, o identitarismo, tal como entendemos aqui, aposta no fato de que sujeitos com distintas experiências podem produzir outros tipos de conhecimento. A ideia de posicionalidade do saber atinge a teoria social em duas frentes: aponta para injustiças na composição do campo e coloca em questão pretensões de neutralidade e universalidade que, embora não sejam reivindicações unânimes na Sociologia, ainda ocupam lugar proeminente.

Uma das formas possíveis de livrar-se dessas críticas é pela via de certo tipo de discurso da cientificidade, baseado na ideia de que a objetividade do conhecimento equivale à sua neutralidade, e depende apenas do método seguido, cujo resultado é independente dos sujeitos implicados no processo. Vejamos aqui um argumento dessa natureza, trazido em um recente livro, The future of Sociology. Ideology or objective Social Science?

Na introdução, Robert Leroux, Thierry Martin e Stephen Turner (2022) tomam a ideia de posicionalidade como antítese da objetividade, e questionam as críticas aos vários vieses da sociologia em virtude de uma espécie de contradição performativa, isto é, usar os instrumentos da ciência contra a ciência. Os autores utilizam cerca de três páginas para realizar uma reconstrução caricatural de todas as críticas que reivindicam posicionalidade, apontando que todo o problema dessas críticas seria certa insatisfação com qualquer tipo de análise sociológica que não seja comprometida em explicar determinado fenômeno como resultado de opressão. A defesa do caráter científico e objetivo da Sociologia serve, neste caso, como subterfúgio para ignorar a questão da representatividade ou sobre os vieses do conhecimento.

Nossa intenção aqui não é considerar irrelevantes as discussões sobre a objetividade da Sociologia, mas pontuar alguns dos problemas implicados em uma noção não reflexiva de objetividade. Mesmo Max Weber,2 2 Considere-se, por exemplo, que a defesa weberiana da Wertfreiheit (liberdade em relação aos valores) não pode ser dissociada da premissa da Wertbeziehung (relação a valores), tomada como princípio de seleção do objeto do conhecimento sociológico. A este respeito, veja-se o argumento do autor em dois de seus principais escritos metodológicos (Weber 1997, 92; Weber 2001, 183). muitas vezes tomado como porta-voz da neutralidade, pode ser interpretado como um dos precursores de certa versão da posicionalidade do saber. Olhemos, portanto, para esforços mais interessantes no campo da teoria social de tentar compreender o sentido mais profundo dessas críticas. Também a título de exemplo, trazemos dois livros que trazem a contribuição de diversos autores e autoras que procuram pensar a questão identitária de forma mais séria.

No prefácio ao livro social theory and politics of identity, Craig Calhoun (1994a)Calhoun, Craig J. 1994a. Prefácio. In Social theory and the politics of identity, organizado por Craig J. Calhoun, 1-8. Oxford: Blackwell. oferece uma pista sobre a natureza da relação tensa entre identidade e teoria social, localizando a questão nas transformações estruturais e demandas de legitimidade popular associadas à instauração da democracia. Segundo o autor, a teoria social carrega em sua origem a preocupação com a consolidação do ethos democrático, assentado sobre a emergência do indivíduo como portador de direitos em virtude de seu caráter universal e abstrato como ser humano. Isso fez com que, historicamente, a teoria social estivesse preocupada apenas em olhar para a dimensão universal da identidade, denunciando crenças e mecanismos de poder que colocassem em questão nossa igualdade. A diferença entre sujeitos escapava-lhe. Além disso, em seu artigo no livro em questão, Calhoun (1994b)Calhoun, Craig J. 1994b. Social theory and the politics of indentity. In Social theory and the politics of identity, organizado por Craig J. Calhoun, 9-36. Oxford: Blackwell. reconhece as implicações das lutas identitárias não apenas como tema de investigação, mas como reinvindicação de pluralidade que demanda que a teoria social considere mais seriamente a cultura.

Margaret R. Somers e Gloria D. G Gibson (1994Somers, Margaret, e Gloria Gibson. 1994. Reclaiming the epistemological "other": narrative and the social constitution of identity. In Social theory and the politics of identity, organizado por Craig J. Calhoun, 37-99. Londres: Palgrave Macmillan Cham., 67-68) salientam limites intrínsecos ao modo como a questão vem sendo colocada. Em particular, apontam o problema em uma alternativa crítica que consiste em "não apenas revelar o caráter gendrado, racializado ou classista do ator social moderno ‘geral’", mas em querer propor uma alternativa teórica que consista no novo padrão socialmente valorado. Para as autoras, o principal problema desse tipo de estratégia, quando se procura, por exemplo, apenas positivar o feminino em detrimento do masculino, é que se perde a chance de compreender de modo profundo e crítico as dicotomias teóricas que hierarquizam diferenças reificadas.

Como alternativa, indicam uma abordagem que se coaduna com a perspectiva interseccional que subscrevemos aqui, na medida em que propõe uma historicização radical da própria teoria, mediante uma "narrativa conceitual". Trata-se de uma tentativa de proposta epistemológica na qual conceitos e teorias são narrados historicamente, recuperando o contexto de suas formulações. Embora não sigamos em detalhe a proposta de uma narrativa conceitual, ela informa nosso modo de apresentar o tema da interseccionalidade e, também, nossa escolha por separar, sempre que cabível, a discussão sobre a interseccionalidade da experiência concreta das mulheres negras, para que a questão identitária possa emergir em sua singularidade.3 3 Ainda que frequentemente façamos referência à expressão genérica "mulheres negras", estamos nos referindo em particular às mulheres negras do território latino-americano e norte-americano e, de modo ainda mais específico, às mulheres negras brasileiras.

No livro-manifesto Por uma nova Sociologia Clássica, re-unindo teoria social, filosofia moral e os studies, Alain Caillé e Frédéric Vandenberghe (2021)Caillé, Alain, e Frédéric Vandenberghe. 2021. Por uma nova sociologia clássica: re-unindo teoria social, filosofia moral e os studies. Petrópolis: Editora Vozes. apresentam um diagnóstico sobre a crise da Sociologia, e apontam como a aliança com os Studies é um aspecto central para enfrentá-la. As demandas identitárias em relação à teoria social são contempladas nessa aliança; contudo, a proposta de uma nova teoria social geral – ainda que não enciclopédica, mas sistemática – não explicita em que medida as críticas ao caráter predominante branco e masculino da teoria social seriam efetivamente enfrentadas. Em nosso ensaio, reconhecemos a importância desse diagnóstico e desse convite, e propomos avançar em uma reflexão sobre os principais elementos que obstaculizam a presença de uma presença mais diversa no campo da teoria social, com particular ênfase no caso das mulheres negras. Nosso argumento aponta que a interseccionalidade – não apenas como teoria, mas também como prática – deve ser trazida para o interior da teoria social, contribuindo para repensar os parâmetros que orientam a definição de suas fronteiras e seus modos de operar.

Existir na encruzilhada: potências e cooptações da interseccionalidade

A inscrição canônica da interseccionalidade passa de 30 anos. Desde que Kimberlé Crenshaw (1989, 2013)Crenshaw, Kimberlé. 2013. Mapping the margins: Intersectionality, identity politics, and violence against women of color. In The public nature of private violence, organizado por Martha A. Fineman, 93-118. New York: Routledge. trouxe o termo para o contexto acadêmico, o conceito navegou intensamente, assumindo novos sentidos, sobretudo em virtude de sua contribuição aos estudos de gênero (McCall 2005McCall, Leslie. 2005. The complexity of intersectionality. 30 Signs: Journal of Women in Culture and Society 30 (3): 1771-800. https://doi.org/10.1086/426800.
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). No contexto brasileiro, a percepção a respeito da interseccionalidade está particularmente relacionada à forma com que Crenshaw (2013)Crenshaw, Kimberlé. 2013. Mapping the margins: Intersectionality, identity politics, and violence against women of color. In The public nature of private violence, organizado por Martha A. Fineman, 93-118. New York: Routledge. articulou o conceito; no entanto, conforme discutiremos aqui, trata-se de uma expressão que não tem apenas origem acadêmica, e tampouco se restringe às experiências de mulheres negras estadunidenses. Seu sentido é mais amplo do que a nomeação de um tipo específico de feminismo. Seguindo Patrícia Hill Collins (2019a)Collins, Patricia H. 2019a. Intersectionality as critical social theory: intersectionality as critical social theory. Durham: Duke University Press., consideramos que a interseccionalidade é uma forma importante de conhecimento de resistência produzido para a própria sobrevivência de grupos subordinados pelos diversos sistemas de dominação.

Nosso argumento neste ensaio dialoga com a pergunta de partida deste dossiê, acerca das possibilidades de expansão da dimensão crítica do feminismo em sua aliança com a sociologia, a partir da recuperação da dimensão identitária complexa vinculada à interseccionalidade enquanto experiência. Afinal, apesar de todo potencial da interseccionalidade enquanto conceito e teoria, conforme pontuam Collins e Bilge (2021)Collins, Patricia H., e Sirma Bilge. 2021. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo Editorial. e Bilge (2018)Bilge, Sirma. 2018. Interseccionalidade desfeita: salvando a interseccionalidade dos estudos feministas sobre interseccionalidade. Revista Feminismos 6 (3): 67-82., a forma de sua apropriação acadêmica tem diluído seu potencial crítico. James Bliss (2016Bliss, James. 2016. Black feminism out of place. Signs: Journal of Women in Culture and Society 41 (4): 727-49. https://doi.org/10.1086/685477.
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, 730) apresenta uma pista para a compreensão desse processo; segundo o autor, os esforços de institucionalização esbarram em um limite, naquilo a que chama de "um excesso que não pode ser incorporado". Esse excesso não se refere a uma resistência do conceito ou a uma recusa heroica por parte do feminismo negro a adentrar os confins da institucionalidade acadêmica, mas, ao contrário, uma resistência institucional a incorporar plenamente as pessoas que se pretende representar.

A captura do feminismo negro em uma concepção pasteurizada de interseccionalidade contribui ao processo de manter mulheres negras nas margens e, ao deixar de fora o que parece excessivo ou fora de lugar, perde-se a potência da crítica enraizada na experiência e no desejo. O argumento que esperamos sustentar é de que o retorno à raiz da questão identitária e o reconhecimento do pensamento de mulheres negras enquanto esforço de elaboração intelectual constitui a chave para recuperar o potencial crítico da interseccionalidade como conceito e como teoria e, ao mesmo tempo, como cruzamento intelectual e político, local de encontro para o engajamento político e intelectual através de diferenças políticas, substanciais e metodológicas.

Seguimos aqui a perspectiva de Patricia Hill Collins, para quem a interseccionalidade é uma teoria que nos ajuda a entender poder e dominação (Collins, Souza e Nascimento 2022Collins, Patrícia H., Carina Jéssica de Souza, e Elisa D. Nascimento. 2022. A diferença que o poder faz: interseccionalidade e democracia participativa. Sociologias Plurais 8 (1): 11-44. https://doi.org/10.5380/sclplr.v8i1.84497.
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). Embora o debate acadêmico tenda a apresentá-lo como conceito que tem origem apenas na obra autoras negras, é possível e fundamental localizá-lo também em outras gêneses, que transcendem o feminismo negro em sentido estrito. No fim da década de 1960, mulheres de cor se engajaram em ideias e práticas dos direitos civis, do movimento Black Power, de libertação dos chicano, Red Power e movimentos asiático-americanos em bairros racial e etnicamente segregados. Dentro desses movimentos, as mulheres de cor eram, em geral, subordinadas aos homens, apesar da igualdade nominal com eles, o que constituía um problema diferente daquele que vivenciavam com a segregação racial, étnica e de classe. É importante ressaltar que a produção intelectual e o ativismo de mulheres negras, chicanas, asiático-americanas e indígenas não derivaram da chamada segunda onda do feminismo branco, mas eram originais em si (Collins e Bilge 2021Collins, Patricia H., e Sirma Bilge. 2021. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo Editorial.).

Para Collins (2019b)Collins, Patricia H. 2019b. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. São Paulo: Boitempo Editorial., a experiência interseccional é maior do que a soma do racismo e do sexismo e que qualquer análise que não leve em conta a Interseccionalidade não pode abordar suficientemente a maneira particular pela qual as mulheres negras são subordinadas. A partir disso, a autora destaca que as experiências de grupos subordinados não são uma simples combinação de suas identidades. Por exemplo: as discriminações experimentadas por mulheres negras não são meramente uma adição de seu gênero e sua cor, mas uma experiência específica que demanda uma análise distinta, por isso a interseccionalidade cumpre o importante papel de aprofundar a maneira particular pela qual as mulheres negras são subordinadas.

Nos últimos trinta anos, a virada interseccional mudou criticamente a forma como conceituar e interpretar padrões entre categorias analíticas como raça, gênero, classe e sexualidade como mais do que identidades a serem adotadas, rejeitadas ou impostas. Em vez disso, essas categorias são analisadas como construções sociais que, por meio da difusão de relações de poder, têm efeitos vastamente materiais. A interseccionalidade, antes mesmo da sua concepção canônica, constituiu-se enquanto um projeto amplo com intuito de "de entender e explicar a complexidade do mundo, das pessoas e das experiências humanas" (Collins e Bilge 2021Collins, Patricia H., e Sirma Bilge. 2021. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo Editorial.).

Mesmo que existam pontos de partida distintos, movimentos sociais mobilizados por grupos subordinados, em geral, e pelas mulheres negras, em especial, foram catalisadores do surgimento da interseccionalidade, ainda que não utilizassem especificamente essa palavra, e é sobre isso que nos deteremos agora.

Ao explicitar sua condição de gênero, mulheres negras brasileiras propuseram outros paradigmas para o próprio movimento social negro. No que pese terem sido ocultadas ou suprimidas da historiografia do pensamento feminista, essas mulheres sempre tiveram a produção de conhecimento como uma ferramenta de reivindicação de direitos em próprio nome, a partir das suas próprias experiencias e perspectivas. Seguindo Sueli Carneiro (2003)Carneiro, Sueli. 2003. Mulheres em movimento. Estudos avançados 17 (49): 117-33. https://doi.org/10.1590/S0103-40142003000300008.
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, entendemos que a interação entre múltiplas experiências de resistência vividas pelas mulheres negras lhes confere uma identidade e uma subjetivação política e intelectual distinta, que mobiliza um campo de conhecimento e ação que emerge da análise dessas experiências tanto em uma perspectiva individual quanto coletiva.

No contexto brasileiro, o movimento de mulheres negras historicamente mobilizou sua condição de raça para demonstrar ao movimento feminista suas insuficiências analíticas acerca das condições sociais enfrentadas pelas mulheres. Por essa razão, intelectuais negras como Lélia Gonzáles, Beatriz Nascimento, Sueli Carneiro e Luiza Bairros vem sendo consideradas percursoras da interseccionalidade no Brasil, no que pese muitas delas não utilizarem esse termo, deliberadamente ou não. Por isso, não se trata de identificar o uso nominal do conceito, mas de reconhecer em suas obras a preocupação com aquilo que, de fato, está implicado na ideia de interseccionalidade e que aparece nomeado de distintas formas: múltiplas discriminações, imbricação, simultaneidade de opressões etc.

Lélia Gonzáles (1984)Gonzales, Lélia. 1984. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje – Anpocs 2 (1): 223-44., por exemplo, é precisa ao demonstrar os efeitos materiais dos sistemas de dominação e localizar a posição sociopolítica de mulheres negras antes mesmo da existência da interseccionalidade enquanto conceito. Na leitura de Barreto, em Gonzáles apreendemos que:

O lugar em que nos situamos determinará nossa interpretação sobre o duplo fenômeno do racismo e do sexismo. Para nós o racismo se constitui como a sintomática que caracteriza a neurose cultural brasileira. Nesse sentido, veremos que sua articulação com o sexismo produz efeitos violentos sobre a mulher negra em particular. (Barreto 2021Barreto, Raquel. 2021. Lélia Gonzalez, uma intérprete (negra) do Brasil. In Recortes do feminino, organizado por Andréa C. N. Maia, 229-45. Rio de Janeiro: Editora Telha., 240).

Luiza Bairros, por sua vez, apresenta a seguinte formulação:

[…] experiência da opressão sexista é dada pela posição que ocupamos numa matriz de dominação onde raça gênero e classe social interceptam-se em diferentes pontos. Assim uma mulher negra trabalhadora não é triplamente oprimida ou mais oprimida do que uma mulher branca na mesma classe social, mas experimenta a opressão a partir de um lugar que proporciona um ponto de vista diferente sobre o que é ser mulher numa sociedade desigual racista e sexista. (Bairros 1995Bairros, Luiza. 1995. Nossos feminismos revisitados. Revista Estudos Feministas 3 (2): 458-63. https://doi.org/10.1590/%25x.
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, 461).

Ao tomar em consideração esses exemplos, procuramos ressaltar a importância de voltar-se ao pensamento das mulheres negras para além da discussão explícita do conceito de interseccionalidade, pois se trata de um pensamento produzido desde um lugar de exterioridade forçada em relação às instituições e que, justamente por isso, permitia-lhes ver outras coisas e de outras formas.

A trajetória de Sojourner Truth, no século 19, exemplifica o primeiro caso. O discurso E eu não sou uma mulher? é um registro intelectual importante que mobiliza raça, gênero e status de cidadania como ferramentas para uma práxis política. Embora nunca tenha aprendido a ler e escrever, seus potentes discursos, palestras e pregações viajaram durante os séculos para exemplificar a potência da experiência vivida de mulheres negras como um saber de resistência.

A carta de Esperança Garcia, escrita no Brasil escravocrata no século 18, é outro exemplo relevante para visualizar a genealogia da inscrição intelectual de mulheres negras. Esperança Garcia, escravizada na província do Piauí, utilizou os recursos à sua disposição para denunciar formalmente a profundidade das violências impingidas nela mesma, em seus filhos e nas mulheres escravizadas na mesma fazenda que ela.

Mulheres negras esforçam-se em mobilizar estratégias para que os múltiplos sistemas de dominação que se articulam para mantê-las em um lugar de subordinação não alcancem na sua totalidade a supressão da subjetividade desse grupo, constituindo um conhecimento de resistência especializado. Para além de suas contribuições às lutas sociais, o ato de nomear a própria experiência deve ser reconhecido como esforço intelectual de produção de sentido e de compreensão das estruturas sociais contra as quais insurgiram-se. Seus esforços e iniciativas revelam a profunda compreensão de que sua condição identitária, enquanto mulheres negras, colocava-lhes em uma posição social distinta, influenciada por marcadores que, articulados, produzem opressões específicas. Por essa razão, é fundamental reconhecê-las como parte fundamental do processo de construção social da interseccionalidade.

Pensar na encruzilhada: contribuições para uma teoria social interseccional crítica

Os dois temas que até agora abordamos em separado – teoria social e interseccionalidade – serão agora alinhavados a partir do endereçamento de duas perguntas que nos parecem fundamentais. Diante de tantos desafios práticos e políticos, há sentido no esforço do engajamento de mulheres negras com o campo da teoria social? Como a presença de mulheres negras pode afetar o campo da teoria social? Cada uma dessas questões é imensa e controversa, e não temos a intenção de esgotá-las, mas apenas de trazer contribuições a partir do entrecruzamento de nossos interesses e experiências.

Encontramos em bell hooks (2017)Hooks, bell. 2017. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: Martins Fontes. um ponto de partida para endereçar a primeira pergunta, no texto que recebe o sugestivo título de "A teoria como prática libertadora", quarto capítulo de seu livro Ensinando a transgredir. Ali, hooks denuncia a falsa dicotomia entre teoria e prática e discute como a teoria foi, para ela, um lugar de cura, pois permitiu encontrar recursos para nomear sentimentos e angústias, para compreender as estruturas que a faziam sentir dor e também para imaginar novos futuros. Em um trecho provocativo, aponta como a recusa à teoria tem consequências negativas para a praxis transformadora e, um pouco mais adiante, indica como o esforço de argumentação e elaboração intelectual de mulheres negras acaba sendo tolhido por todos os lados:

Dentro dos círculos feministas, muitas mulheres, reagindo à teoria feminista hegemônica que não fala claramente conosco, passaram a atacar toda teoria e, em consequência, a promover ainda mais a falsa dicotomia entre teoria e prática. (hooks 2017Hooks, bell. 2017. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: Martins Fontes., 91, grifos nossos).

Um pouco mais adiante, a formulação da autora ajuda a pensar de que forma o princípio da interseccionalidade imprime sua marca no tipo de obstáculo experienciado por mulheres negras em sua relação com a vida intelectual:

Há um elo entre a imposição de silêncio que experimentamos, a censura e o anti-intelectualismo em contextos predominantemente negros que deveriam ser um lugar de apoio (como um espaço onde só há mulheres negras), e aquela imposição de silêncio que ocorre em instituições onde se diz às mulheres negras e de cor que elas não podem ser plenamente ouvidas ou escutadas porque seus trabalhos não são suficientemente teóricos. (hooks 2017Hooks, bell. 2017. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: Martins Fontes., 95, grifos nossos).

O comprometimento com a teoria aparece como recurso subversivo a um duplo sistema de controle e como convite generoso para que a elaboração teórica seja tomada como possibilidade de poder: poder de nomear, de compreender, de tecer relações entre aspectos invisíveis da realidade, de construir discursos e conceitos. Contudo, hooks não faz esse convite de forma ingênua, pois sua trajetória por espaços acadêmicos mostrou-lhe que esse potencial emancipatório da teoria não lhe é inerente.

Embora ainda não tenhamos dados precisos sobre a presença de mulheres negras em espaços institucionais de teoria no Brasil, a participação sistemática de uma das autoras deste artigo nos grupos de teoria da Anpocs e da SBS permite afirmar que a presença de mulheres não brancas – em particular, mulheres negras e indígenas – é ínfima. Do mesmo modo, a experiência da outra autora, enquanto parte do movimento de mulheres negras e, também, como acadêmica, serve como subsídio para pensar o impacto do meio institucional universitário na produção de formas específicas de exclusão e sofrimento (Bueno e Anjos 2022Bueno, Winnie de C., e José Carlos dos Anjos. 2022. Da interseccionalidade à encruzilhada: operações epistêmicas de mulheres negras nas universidades brasileiras. Civitas 21 (3): 359-69. https://doi.org/10.15448/1984-7289.2021.3.40200.
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). Se o anti-intelectualismo dos espaços de militância mencionado por hooks pode constituir uma hipótese plausível, outra parcela da explicação deve ser buscada em dinâmicas internas ao campo da teoria social, o que nos conduz diretamente à segunda pergunta.

A melhor formulação da pergunta seria se algo deveria mudar na teoria social com a presença de mulheres negras, afinal, as considerações de hooks apontam para o fato de que o campo da teoria é também um espaço de sofrimento, algo compartilhado por outras autoras (Ahmed 2012Ahmed, Sara. 2012. On being included: racism and diversity in institutional life. Duke: Duke University Press.; Collins 2016Collins, Patricia H. 2016. Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro. Sociedade e Estado 31 (1): 99-127. https://doi.org/10.1590/S0102-69922016000100006.
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). Olhemos por um instante para algumas das características da teoria social para tentar entender as razões pelas quais esse lugar de cura e emancipação pode ser também um lugar de sofrimento.

A construção da teoria social como esforço de compreensão sistemática das sociedades modernas a partir do conhecimento produzido pela Sociologia, uma ciência com raízes na filosofia iluminista, está associada a um processo de distanciamento das formas de saber não inscritas nessa linhagem. Muito embora a legitimação da Sociologia enquanto ciência no período clássico tenha pressuposto um debate crítico com a Filosofia – especialmente com Kant, Hegel e com os filósofos utilitaristas – há o reconhecimento de uma filiação, exigindo do neófito o conhecimento dos meandros dessa história sobre as quais a teoria social constrói suas bases. Nesse processo, toda cosmologia e toda forma de pensar o mundo que não esteja inscrita nessa linhagem figura como resíduo, como não moderno, como não racional, como mito ou qualquer outra forma de designar uma compreensão do mundo não alicerçada sobre essa forma específica de definir a racionalidade.

Se essa trajetória da teoria social lhe permitiu uma autonomização frente a compreensões dogmáticas da realidade, também é fato que esse movimento se deu à custa de silenciamentos epistêmicos. No caso do Brasil, tanto as populações indígenas quanto as comunidades negras permaneceram como esse outro cujos princípios éticos, ontológicos e epistêmicos são alheios à teoria social, como já pontuado há décadas por Guerreiro Ramos (1957)Ramos, Alberto G. 1957. Patologia social do "branco" brasileiro. In Introdução crítica à sociologia brasileira, 171-92. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ..

Ademais, a teoria social tem como escopo a produção de explicações de caráter mais geral sobre as dinâmicas sociais, o que supõe conhecer um grande número de teorias que competem entre si. Há, também, a exigência de sistematicidade, de uma articulação lógica e coerente entre conceitos e argumentos e uma forma específica de lidar com as referências. A legitimidade de alguém como parte do campo da teoria social pressupõe a capacidade de transitar com maestria por diferentes tradições teóricas, que preferencialmente tenha conhecimento de literatura, música, que domine vários idiomas e assim por diante. Não nos esqueçamos de uma das virtudes fundamentais: ser um bom pugilista com as palavras.

Essa descrição um tanto caricatural busca explicitar por quais razões o sujeito idealmente talhado para essa área precisa trazer na bagagem um enorme capital cultural e estar disposto a incorporar esse ethos beligerante. Indagar sobre a ausência de mulheres – sobretudo de mulheres negras e indígenas – nesses espaços, requer entender que aquilo que chamamos de teoria não é uma práxis desencarnada, mas um modo de fazer e uma constelação de questões possíveis. Voltemos ao tema da interseccionalidade. Ao formular esse lugar de encruzilhada no qual raça, gênero e classe se entrelaçam em um sistema singular de opressão, essa perspectiva permite vislumbrar por quais razões é tão difícil a uma mulher negra adentrar e suportar esse lugar que o tempo todo lhe diz da insuficiência de sua formação, da inadequação de seu modo de agir e pensar e que reduz suas origens ao plano do mito, daquilo que não é sério.

É possível uma teoria social na qual mulheres negras – e, também, indígenas – possam existir, pensar e colaborar com a construção de explicações sobre o mundo social, na qual possam sentir alegria em aprender as muitas teorias já produzidas, dialogar com elas e construir suas próprias formulações, inclusive sobre a realidade nas quais estão inseridas? Apostamos que sim, e trabalhamos nessa direção. Para tanto, indicamos algumas premissas que nos parecem fundamentais para que essa possibilidade possa advir.

Em primeiro lugar, propomos pensar a teoria social como território, no qual diferentes experiências, formações e perspectivas podem coexistir e interagir. Não se trata de suprimir conflitos, mas de substituir a lógica do nocaute pela lógica do confronto construtivo. Talvez algo que se pareça mais com capoeira do que com boxe.

Em segundo lugar, o pensamento na encruzilhada demanda abdicar da pretensão de sistematização e totalidade como exigência necessária para caracterizar uma teoria, ou mesmo como marca de superioridade. Não sugerimos que se deva abrir mão dos esforços de construção de teorias gerais, mas que esta não seja uma condição para reconhecer a relevância de múltiplas formas de elaboração intelectual. Defendemos a importância de uma teoria "esburacada", pois muitas vezes aceitar o vazio e a ausência de encadeamentos sistemáticos é a condição para que uma ideia potente possa ser compartilhada. Reiteramos: não se trata de recusar esforços de construção sistemática, mas de reconhecer a contribuição a ser oferecida por formulações fragmentárias e atribuir valor a essas construções, reconhecendo seu direito a pertencer a esse espaço.

Em terceiro lugar, recorremos à ideia de escrevivência, talhada por Conceição Evaristo,4 4 Essa prática permeia as diversas obras ficcionais da autora, tendo recebido formulação teórica sobretudo no âmbito de entrevistas; para uma visão sistemática a esse respeito, veja-se seu artigo em livro organizado em homenagem a sua obra (Evaristo 2020). como modus operandi que permite articular modos distintos de construir e fundamentar uma formulação teórica. Embora esse conceito tenha sido formulado para o universo literário, há uma grande potência em trazê-lo para a teoria. Para além do sentido mais direto de referir-se a uma escrita assentada na própria experiência, a escrevivência também é uma forma de conceber uma escrita que opera na fronteira da oralidade e que, ao mesmo tempo, evoca o ato de pensar e escrever não como processo isolado, mas como expressão de pertencimento coletivo. Essas dimensões são fundamentais para legitimar outras matrizes para a produção teórica para além daquelas inscritas na tradição filosófico-científica ocidental e, ao mesmo tempo, outras formas de transmissão e construção do conhecimento.

No artigo "Aprendendo com a outsider within", Patrícia Hill Collins (2016Collins, Patricia H. 2016. Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro. Sociedade e Estado 31 (1): 99-127. https://doi.org/10.1590/S0102-69922016000100006.
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, 111) oferece indicações valiosas sobre aquilo a que chama de "cultura de mulheres negras", para referir-se, por exemplo, ao tipo de relação interpessoal baseada no princípio de sororidade (sisterhood), um vínculo de cooperação, afeto e lealdade que resulta "de um sentimento compartilhado de opressão", que encontra uma formulação ainda mais precisa na ideia de "dororidade", de Vilma Piedade (2018)Piedade, Vilma. 2018. Dororidade. São Paulo: Editora Nós.. Embora Collins atribua essa prática às condições materiais impostas pela escravidão e suas decorrências e Piedade (2018)Piedade, Vilma. 2018. Dororidade. São Paulo: Editora Nós. ressalte o potencial de se reconhecer o vínculo produzido pela dor compartilhada, sobretudo a dor do racismo, podemos acrescentar ainda um novo aspecto, que permite um diálogo com as mulheres indígenas da América Latina. A trajetória de mulheres negras latino-americanas e caribenhas guarda diferenças importantes em relação às mulheres negras do contexto norte-americano e mesmo europeu. Mesmo a partir da construção de sincretismos, a forte presença da religiosidade Africana se manteve como um recurso de resistência identitária, e a importância da existência coletiva em contraposição às práticas individuais é um de seus elementos centrais.

Portanto, propomos tomar a ideia de escrevivência como possibilidade de construção teórica que reconhece a validade de argumentos construídos coletivamente e, ao mesmo tempo, que autoriza referências a fontes não acadêmicas – como saberes transmitidos oralmente – e mesmo experiências pessoais como fonte para a produção de teorias.

O quarto ponto que defendemos é incluir a tradução cosmológica como atividade própria ao campo da teoria social. Dialogar com saberes produzidos fora do contexto acadêmico pode representar uma tarefa difícil para quem não domina a lógica inerente a outras formas de articular a experiência social. Por outro lado, a teoria social possui um repertório conceitual e uma fundamentação epistemológica que permite – ao menos potencialmente – ampliar os sentidos desses saberes e inseri-los em uma rede ampla de conhecimento. Uma teoria social comprometida com essa abertura demanda esforços de tradução, para que seja possível avançar na compreensão do mundo social, a partir da articulação entre formas mais canônicas e bem estabelecidas no campo acadêmico com outros conjuntos de questões e de formas de pensar e expressar-se. A construção de alianças entre pessoas que dominam plenamente os códigos e a lógica da teoria social e pessoas que historicamente estiveram fora desse campo é fundamental para que se possa fazer avanços e efetivamente construir uma teoria social crítica disposta a ser afetada pelos sujeitos que até agora foram considerados um outro.

Finalmente, sustentamos que, em ampla medida, uma tarefa importante para a teoria social, com consequências diretas para a prática sociológica, refere-se à revisão do cânone, nos termos gerais da ideia de cânone polifônico sustentada por Hamlin, Weiss e Brito (2022)Hamlin, Cynthia L., Raquel Weiss, e Simone M. Brito. 2022. Por uma sociologia polifônica: introduzindo vozes femininas no cânone sociológico Sociologias 24 (61): 26-59. http://doi.org/10.1590/18070337-125407-PT.
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, processo que permite fazer pensar a relação entre passado e futuro da sociologia, em um diálogo com o diagnóstico crítico Collins (1998)Collins, Patricia H. 1998. On book exhibits and new complexities: reflections on sociology as science. Contemporary Sociology 27 (1): 7-11. https://doi.org/10.2307/2654698.
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diante dos argumentos sobre a falsa ideia de que um cânone enxuto seria sinal de uma disciplina estável. Nesse sentido, o reconhecimento da contribuição de mulheres negras enquanto parte da história da sociologia, desde pioneiras como Ida B. Wells e Anna Julia Cooper (Daflon e Campos 2022) até sociólogas que atuaram nas primeiras décadas da sociologia, como a brasileira Virgínia Bicudo, é um mecanismo fundamental, na medida em que permite apontar caminhos que já começaram a ser trilhados no interior da própria sociologia.

Considerações finais

Neste ensaio, procuramos mostrar algumas implicações da recuperação do potencial crítico da interseccionalidade e a importância de tomá-lo como dimensão identitária complexa que permite incidir sobre a própria área da teoria social. Ao propor este texto como expressão de um diálogo entre pesquisadoras oriundas de trajetórias distintas e que compartilham inquietações semelhantes, esperamos mostrar a potência criadora que pode resultar desse encontro entre teoria social e a experiência de mulheres negras no Brasil.

Para além de um comprometimento com a prática de reparação de injustiças epistêmicas que possibilitam examinar as consequências do racismo e do sexismo no âmbito da teoria social, a presença efetiva de mulheres negras – assim como de outros grupos subalternizados – pode trazer consequências importantes para as formas de fazer teoria e mesmo para a compreensão de aspectos invisibilizados da realidade social. Para que isso seja possível, contudo, é preciso que a resistência às críticas seja substituída por uma escuta séria, pela disposição – nada fácil – de abrir mão de privilégios e pelo esforço reflexivo.

Convidamos os muitos sujeitos que estiveram de fora do universo propriamente acadêmico da teoria social a adentrar esse clube, ainda tão restrito. Não apenas porque precisamos que ele seja mais diverso, mas porque acreditamos que esforços sistemáticos e ancorados em pesquisas rigorosas são fundamentais compreensão da realidade social e chave para sua transformação. Em outras palavras, a dimensão crítica do identitarismo protagonizado por mulheres negras não é tomado como proposta de dissolução disciplinar, mas como introdução de uma dissonância que abre a possibilidade de tornar a teoria social não apenas mais justa, mas também mais complexa e muito, muito mais interessante.

  • 2
    Considere-se, por exemplo, que a defesa weberiana da Wertfreiheit (liberdade em relação aos valores) não pode ser dissociada da premissa da Wertbeziehung (relação a valores), tomada como princípio de seleção do objeto do conhecimento sociológico. A este respeito, veja-se o argumento do autor em dois de seus principais escritos metodológicos (Weber 1997Weber, Max. 1997. A "objetividade" do conhecimento nas ciências sociais. In Coleção Grandes Cientistas Sociais: Weber, organizado por Gabriel Cohn, 79-127. 6. ed. São Paulo: Ática., 92; Weber 2001Weber, Max. 2001. Estudos críticos sobre a lógica das ciências da cultura. In Metodologia das Ciências Sociais, vol. 1, 155-210. São Paulo: Cortez Editora., 183).
  • 3
    Ainda que frequentemente façamos referência à expressão genérica "mulheres negras", estamos nos referindo em particular às mulheres negras do território latino-americano e norte-americano e, de modo ainda mais específico, às mulheres negras brasileiras.
  • 4
    Essa prática permeia as diversas obras ficcionais da autora, tendo recebido formulação teórica sobretudo no âmbito de entrevistas; para uma visão sistemática a esse respeito, veja-se seu artigo em livro organizado em homenagem a sua obra (Evaristo 2020Evaristo, Conceição. 2020 A escrevivência e seus Subtextos. In Escrevivência: a escrita de nós: reflexões sobre a obra de Conceiçã o Evaristo, organizado por Constância Lima Duarte e Isabella Rosado Nunes, 26-46. Rio de Jnaeiro: Mina Comunicação e Arte.).
  • Os textos deste artigo foram revisados pela SK Revisões Acadêmicas e submetidos para validação das autoras antes da publicação.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Dec 2024

Histórico

  • Recebido
    28 Ago 2023
  • Aceito
    23 Out 2023
  • Publicado
    05 Abr 2024
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