civitas
Civitas - Revista de Ciências Sociais
Civitas, Rev. Ciênc. Soc.
1519-6089
1984-7289
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
Abstract:
In this article, I analyzed the constitution of care in the work of volunteers in an institution that aims to prevent suicide at a distance. I used praxiography (ethnography of practices) inspired by Annemarie Mol. The results achieved pointed to a type of approach in which the relationship between caregivers and users is produced through collaborative actions between them and the artifacts involved. The production of care reflects this inter-influence, aiming to deal with variables that claim political actions during the process. It was observed that the care undertaken does not result from mere instrumentality, but from ingenious dynamics to consolidate it.
Introdução2
O cuidado, na história da disciplina sociológica, não foi priorizado enquanto conceito de relevância no tocante à compreensão da constituição do social (Contatore, Malfitano e Barros 2019). Ainda acerca das Ciências Sociais, é comum na antropologia encontrarmos o cuidado sendo conceitualmente referido em função da sua identidade inconstante e instável (Buch 2015). Nessa direção, as análises antropológicas do cuidado aludem, geralmente, a contextos baseados em complexidades e particularidades, nos quais podem ser mencionados sentidos como a preocupação com algo, ou uma ação movida por sentimentos (Tronto 1994; Ungerson 1990 citado por Buch 2015).
O fato de o termo sugerir-se autoevidente, sendo interpretado sem qualquer embaraço em circunstâncias diversas, instiga ainda mais as análises que o tomam como um objeto menos superficial. Portanto, buscando entender como o cuidado se consolida, direcionamo-nos às práticas no cenário de prevenção do suicídio via telefone operado em uma instituição brasileira, o Centro de Valorização da Vida (CVV). A instituição em questão funciona mediante o trabalho voluntário de seus membros e possui diversas modalidades de atendimento em várias de suas sedes situadas em algumas cidades brasileiras. Nesse artigo, privilegiei a modalidade de atendimento via telefone praticado na sede localizada em Salvador, Bahia.
A prática em questão é fruto do manejo de voluntários: pessoas que participaram de um processo de recrutamento elaborado pela instituição, o qual não há exigência a respeito de formação ou conhecimentos técnico-profissionais associados aos cuidados em saúde. Figura, portanto, enquanto uma prática leiga, que possui um modus operandi próprio na orientação da abordagem empregada. Essa característica é uma condição que não inferioriza o trabalho oferecido pela instituição, pelo contrário, observou-se ao longo dos anos seu destaque no âmbito nacional como mais um recurso voltado ao apoio emocional. Por exemplo, em 2018, ressalta-se o apoio do Ministério da Saúde através de investimento para expansão da linha telefônica utilizada pela instituição, integrando-a nacionalmente e estendendo o atendimento àquelas cidades que não possuíam postos de trabalho, além de possibilitar a gratuidade das ligações.
Entender o processo de produção de cuidado partindo de suas práticas é um recurso teórico-metodológico adotado na presente investigação inspirado nas contribuições de autoras que se interessaram por essa temática, reordenando a prioridade da lente do pesquisador sem o imperativo de partir de um grande conceito de "cuidado" que fosse unificado e generalista (Mol, Moser e Pols 2015). Essa reorientação, portanto, dribla o conceito em tom substantivado e foca no verbo "cuidar", enfatizando aquilo que é empreendido dentro de práticas situadas para constituir isso que se compreende por cuidado no contexto em questão.
Assim, inspirados na premissa de não partir de um conceito geral de cuidado para observar o manejo do sofrimento emocional através do telefone, mantivemo-nos alinhados a tais abordagens teórico-metodológicas. A partir dessa escolha, buscamos lançar um olhar dedicado às minúcias desse serviço, colocando em relevo os efeitos emergentes e os esforços de atores, no intuito de apreender o que é o cuidar nesse espaço para além da mera descrição normativa, apreciando, portanto, a materialização do processo sendo modelado na prática. As contribuições da Teoria Ator Rede contribuíram para a fundamentação do posicionamento em termos teóricos-metodológicos. Sobretudo, pela defesa de uma perspectiva ontológica em que a realidade não é dotada de uma substância e um constructo bem delineado previamente, mas algo feito progressivamente através de esforços práticos de diversos atores.
Mol (2002) denominou de praxiografia o percurso metodológico que fez em seu estudo sobre aterosclerose, no Hospital Z, onde se orientou não por alguns atores específicos apresentando suas opiniões sobre elementos do trabalho, mas pelas práticas que eram operadas e os efeitos que a partir delas puderam ser constatados. Sua sugestão é a de que coloquemos em primeiro plano "praticalidades, materialidades e eventos" que perfazem uma realidade (Mol 2002, 12) para que compreendamos como uma realidade social é ordenada. Sendo assim, defenderá ela, o etnógrafo praxiográfico deve manter o interesse naquilo que está acontecendo como consequência das relações associativas e dissociativas entre diversas entidades (sejam elas humanas ou não humanas). Segundo Mol, dessa maneira, podemos perceber que aquilo que está sendo produzido é parte dessas práticas que o produzem. Diante disso, ressalta-se que o interesse metodológico dessa investigação se localiza mais detidamente na abordagem praxiográfica de Mol, enfatizando não as significações sobre o cuidado nas interpretações dos voluntários neste campo, ou restrito às verdades normativas, mas na produção do cuidado em si, aquilo que está sendo feito e aos acontecimentos imbricados nesse contexto de práticas a fim de efetuar o apoio emocional apresentado na proposta da instituição.
Enquanto técnicas de pesquisa, foram realizadas entrevistas individuais semiestruturadas e um grupo focal com nove participantes. Entre abril e setembro de 2019 foram realizadas entrevistas individuais com 14 dos 34 voluntários da instituição. Sete dos membros entrevistados individualmente se fizeram presente no grupo focal mencionado, que contou com nove participantes. A maioria das entrevistas foram realizadas no posto da própria instituição, e algumas poucas, na residência dos próprios voluntários. As idades dos participantes variaram entre 23 e 79 anos de idade, incluindo membros associados à instituição há alguns meses e outros com até 28 anos de atuação nesse trabalho. Quanto ao gênero dos voluntários envolvidos no processo de produção de dados, estiveram envolvidos seis homens e dez mulheres. Os nomes desses interlocutores foram alterados na escrita deste trabalho a fim de preservar suas identidades reais.
O serviço de prevenção do suicídio
O serviço de prevenção do suicídio vinculado ao Centro de Valorização da Vida (CVV) surgiu em 1962 em São Paulo. O ponto de partida dessa instituição no seu nascimento era o de reunir voluntários que se colocassem à disposição para conversar com pessoas angustiadas interessadas em desabafar (Centro de Valorização da Vida 2017).
Há postos disponíveis em várias cidades brasileiras. Atualmente, existem cerca de 120 postos desse serviço de prevenção do suicídio em funcionamento no Brasil. A presente pesquisa foi realizada com os voluntários da cidade de Salvador, no estado da Bahia.
A instituição sugere que o posto do CVV seja um ambiente discreto e acolhedor, pois, além do cuidado remoto via telefone, será o espaço onde os voluntários poderão receber aquelas pessoas que optam pelo acolhimento presencial, modalidade mais incomum na sede pesquisada.
O prédio onde funciona o posto em Salvador está localizado em uma discreta rua no centro da cidade. Enquanto o térreo possui uma sala em que se realizam os atendimentos presenciais, no segundo andar situam-se duas salas – espaço onde os voluntários permanecem durante o plantão semanal de quatro horas. Cada sala possui um telefone instalado, artefato que possibilita o atendimento distal que, por sua vez, é a principal modalidade de contato entre os voluntários e a outra pessoa (OP). O termo OP, referente ao usuário do serviço, repercute da expectativa da instituição a favor da compreensão empática e não hierárquica na relação entre o voluntário e a pessoa que liga. O primeiro, assim, não assumiria o papel de um especialista ou um substituto deste; já o usuário, por sua vez, não é posicionado enquanto "cliente" ou "atendido", termos que evocam o sentido comercial, ou de passividade, respectivamente.
Na instituição é desenvolvido um processo de formação contínua de seus membros. Os pretensos voluntários, no entanto, iniciam com uma etapa de aperfeiçoamento no chamado processo de seleção de voluntários (PSV), formação que dura em torno de 12 encontros. Nessa etapa, treinos baseados em simulações de atendimentos são realizados entre novatos e membros mais experientes.
Após esse período e com a aprovação do voluntário mais experiente que o orientou, cada membro poderá assumir um plantão de atendimento sozinho. A expectativa é de que as habilidades sejam aperfeiçoadas mediante a expansão do repertório de saberes ao longo dos atendimentos reais operados e das periódicas trocas com o grupo em reuniões contínuas.
Os voluntários assumem plantões individuais distribuídos entre eles para garantir o funcionamento diário, durante 24 horas. Além disso, sendo o trabalho na instituição baseado no sigilo e na discrição, no exercício da função e no momento de reunião, o conteúdo do atendimento não pode ser compartilhado entre os voluntários em qualquer hipótese. Ou seja, o conteúdo da conversa ficará restrito à OP e quem a atendeu. Portanto, nas situações de dificuldades em conduzir um atendimento, o aprendiz precisa elaborar uma história similar para expressar sua dificuldade a outro voluntário mais experiente, caso necessário, sem revelar detalhes reais do diálogo.
Aprendizagens para a relação de ajuda
Denomina-se relação de ajuda a interação envolvendo o voluntário e a OP no atendimento direcionado à mitigação do sofrimento emocional desta última, e que, orientado pelas técnicas de reconhecimento e manejo oferecidos pela instituição, poderá ser alcançada no processo de conversação.
Para favorecer uma interação entre cuidador e OP, consoante ao modelo de cuidado proposto e coordenado à atuação individual de cada voluntário em seus respectivos plantões, o "triângulo das bermudas"3 (Figura 1) sintetiza um esquema estratégico para esses praticantes. Nele, é atribuído à cada ponta, elementos considerados relevantes aos quais o cuidador deve manter-se atento durante o atendimento. A estrutura configura-se da seguinte maneira: nas pontas da base estão localizados o indivíduo de um lado, e de outro, o problema. O indivíduo, nessa classificação, é caracterizado pelos papéis que a OP assume na sua vida cotidiana e as características que permitem a ela ser reconhecida em diversas interações (seu nome, seu endereço, o fato de ser pai ou mãe, sua identidade de gênero, sua profissão, entre outros). O problema, por seu turno, é entendido como o motivo do desespero e das inquietações que assoberbam o indivíduo, explícitos no conteúdo dos fatos por ele narrado. A compreensão é de que as características do indivíduo estão associadas às histórias que a OP desabafa no momento do atendimento. E, por fim, na ponta superior, estará a categoria pessoa, entendida na instituição como o ente possuidor de uma força capaz de projetar a si mesma em direção ao seu próprio desenvolvimento, ou seja, destaca-se nessa dimensão uma tendência inerente à essência humana o interesse genuíno de transformar sua atual situação de sofrimento (Centro Valorização da Vida 2006; Martins 2016).
Figura 1
Modelo "Triângulo das Bermudas" do Centro de Valorização da Vida
Fonte:Centro de Valorização da Vida 2006.
A proposta é a de que, durante o atendimento, o voluntário estabeleça o foco na pessoa, a "ponta superior" do triângulo. Nessa dimensão, residem os elementos que possibilitam à OP transformar o sofrimento emocional em direção ao equilíbrio.
Nesse âmbito, embora a instituição esteja centrada na prevenção do suicídio, ela defende que os voluntários estejam atentos à complexidade do sofrimento emocional e dos "não ditos" enlaçados no discurso da OP, não sendo necessário, portanto, que o tema "suicídio" se faça presente no desabafo dela para justificar a acolhida.
A instituição ressalta que as pessoas assoberbadas por sofrimentos que desencadeiam ideações suicidas, geralmente apresentam alguns sinais, como ambivalência, necessidade de atenção, desejo de vingança ou desejo de fuga de uma situação (Centro de Valorização da Vida 2006). Logo, o apoio emocional a distância da instituição orientada pelo modelo triangular tem como objetivo amenizar as aflições de qualquer pessoa que deseje desabafar, independentemente do conteúdo ou da sua identidade, tornando sensível ao voluntário a necessidade particular de expressar alguma angústia, seja ela qual for. O intuito dessa postura é promover, na medida em que a OP desenvolve a autocompreensão, a relação de ajuda, visando o equilíbrio emocional desejado.
A performance do sofrimento emocional: cuidando a distância
O contato com a instituição se inicia a partir da OP, quando esta busca por um atendimento. O voluntário, por sua vez, jamais entra em contato com os usuários do serviço. Ao ligar para a instituição, a OP compartilha alguma situação por ela vivenciada. O conteúdo dessa história permite que o voluntário se situe frente às circunstâncias do estado emocional que aquela pessoa expressa para ele. Em referência ao modelo estratégico da técnica "triângulo das bermudas", este conteúdo envolveria o "problema" da OP, localizado em uma das pontas da base do triângulo (vide Figura 1).
No entanto, o movimento de localizar essas categorias em situações reais de atendimento não é algo tão simples quanto possa soar ao apreciar a ilustração. A consolidação da relação de ajuda, na prática, reivindica esforços habilidosos do voluntário ao rastrear a manifestação das emoções que acompanham aquele conteúdo compartilhado na conversa.
Embora a OP possa comunicar ao voluntário como ela se sente sobre determinada situação compartilhada, quando isso não ocorre, o voluntário busca traduzir elementos do diálogo para tornar conhecido o sentimento/emoção4 do seu interlocutor. Alguns exemplos dos elementos passíveis da apreciação do cuidador durante a comunicação via telefone são o tom de voz, o silêncio reticente durante a conversa, a respiração etc.
Em determinados momentos na condução do diálogo, técnicas utilizadas entre os membros auxiliam os voluntários em suas atuações, como mencionado por Eliana:
A gente usa uma técnica, no CVV, de repetir aquilo que ela está falando, porque, às vezes, você tá tão doído, tão sofrido, que você não consegue se ouvir e quando a gente te dá a oportunidade desse ouvir sem acrescentar nada, tipo: você liga pra mim e diz que odeia seu pai. Eu não repito essa palavra: você "odeia" seu pai. Eu não costumo usar palavras negativas, mas eu falo: "A maneira que você vê seu pai te dói?", e aí, a pessoa para e reflete. Ela faz essa transformação, não sou eu quem faço. O CVV permite que a Outra Pessoa se ouça, por isso, a gente usa essa técnica de repetir o que a Outra Pessoa está falando, porque é a maneira de você se ouvir e quando você se ouve, você consegue entender os absurdos que você mesmo tá falando e eu acho aí que é o diferencial do CVV. (Eliana, comunicação pessoal, maio 2019).
No relato, observa-se que quando Eliana traduz o que foi verbalizado pela OP, a voluntária apresenta uma forma de responder para a OP em correspondência com o que foi exposto. O novo arranjo de palavras selecionadas pela cuidadora pretende estimular nessa OP uma reflexão sobre aquilo que ela mesma comunicou, inferindo a partir do conteúdo apreciado na comunicação.
Como nesse exemplo, o sentimento/emoção que os voluntários identificam na OP, não é fruto de um diagnóstico arbitrário sobre a condição emocional da OP. Em vez disso, aquilo que a OP sente e é interpretado pelos voluntários torna-se conhecido mediante um esforço de participação recíproca. Na medida em que a OP apresenta elementos ela também permite que o voluntário reorganize uma maneira de conduzir a conversa de maneira que facilite ao outro a percepção de si. Essa busca não visa a eliminação do sofrimento, mas o alcance temporário da estabilidade emocional.
Os mais diversos relatos são vistos como de igual importância, sobretudo pelo fato de considerar que, se alguém reuniu esforços para entrar em contato com pessoas desconhecidas na busca por desabafo, isso decorre de algum grau de instabilidade experimentado por ele.
Nesse sentido, o tema do suicídio não precisa ser evocado na conversa para justificar o engajamento e presteza dos cuidadores. Nas falas abaixo, as voluntárias descrevem suas posturas para realizar a relação de ajuda nos seus plantões individuais a fim de conhecer a realidade do sofrimento emocional em cada atendimento mobilizando atitudes consideradas coerentes a respeito da proposta do Triângulo das Bermudas.
Se a pessoa conta o problema e eu fico viajando com ela no problema que ela tá me contando e eu não penso no sentimento dela, então eu vou viajar. Daqui a pouco eu vou tá fazendo perguntas também: "e aí, ele fez o quê, como é que foi o final?"… É o sentimento que ela tá de sofrimento. (Sandra, comunicação pessoal, maio 2019).
Se você começa a me contar um problema seu, e eu começo a me ligar no seu problema, eu vou me ligar na história que você tá me contando e vou esquecer de acompanhar você no que você mais precisa, que é o seu sentimento. Às vezes você tá me contando a história, mas o que importa é o sentimento que você tá me trazendo. (Eliana, comunicação pessoal, maio 2019).
Muitas vezes essa pessoa diz: "eu tou triste", geralmente você quer saber o porquê, o que aconteceu e aí se valoriza o problema… Aqui a gente não quer saber o que aconteceu, mas o que essa tristeza causa nela, qual a repercussão disso. Se ela diz que perdeu alguém, eu não quero saber por que ela perdeu, se ela terminou o relacionamento, ou se a pessoa morreu, ou de que forma, viajou, brigou e tal. Eu quero saber de como ela tá em relação àquela perda. Então, é diferente, você não valoriza o problema, você valoriza a pessoa, de como ela está. (Valéria, comunicação pessoal, maio 2019).
Observa-se que a comunicação com a OP através do telefone é composta por elementos que são importantes no diálogo, embora nem todos com a mesma relevância a respeito da mobilização dos voluntários ao tentarem identificar os aspectos emocionais presentes na ligação.
Conforme relatado, ao apreciar o conteúdo das histórias compartilhadas pela OP no momento do diálogo, as voluntárias priorizam sua atenção menos nesse conteúdo alinhado aos problemas verbalizados pela OP e mais nos elementos que as guiam no entendimento de como aquela pessoa se sente diante daquilo que foi dito.
A atuação das voluntárias evidencia a destreza em privilegiar os elementos fundamentais que tornam possível conhecer o sentimento/emoção que está causando algum tipo de sofrimento na OP. Para elas, ao adotar atitudes que privilegiam os problemas em detrimento da forma como a OP se sente afetada por eles, pode gerar efeitos distintos da relação de ajuda que buscam estabelecer.
O termo "solidão", por exemplo, é muito comum entre os voluntários quando estes explicam um dos principais motivos das ligações das OP que atendem. No entanto, ao caracterizarem as circunstâncias que os ajudam a conhecer a solidão em um contexto, nem sempre se justifica pela explícita menção da OP acerca da existência desse sentimento, nesse caso, o reconhecimento dessa modalidade de sofrimento surge da apreciação do voluntário aos elementos na atitude da OP durante o contato.
Sandra: Nem todo mundo que liga é porque tá com esse "pensamento suicida" […] É muita gente que liga por solidão também. Muita gente sofre, percebe que tem muita gente sozinha, muita gente que não tem com quem conversar, muita gente liga pra compartilhar uma alegria, compartilhar uma coisa boa que aconteceu e sente necessidade de botar isso pra fora e liga pro CVV.
Silvio: Se fez uma poesia e não tem a quem mostrar essa poesia, ligou e falou comigo, mostrou a poesia que ela fez.
Eliana: Eu acho que é solidão, tem um universo de… Mas a solidão é sempre o foco, até mesmo pra dizer que só tem a gente aqui. Tem com quem conversar, mas não tem atenção.
Mário: Muita gente classifica o CVV como uma família.
Paula: É a questão da solidão, eu digo sempre, o que faz a pessoa ligar pro CVV é a solidão, porque se você tiver alguém com quem conversar, você não vai ligar pra um desconhecido. Então, a questão do sigilo, do anonimato, de não tá olhando no olho… Isso tudo facilita pra que a pessoa ligue pro CVV. (Sandra, Silvio, Eliana, Mário e Paula, comunicação pessoal, set. 2019).
Nesse trecho do grupo focal, podemos notar a solidão sendo concebida em diversas versões. Em cada uma delas trazidas pelos voluntários, alguns elementos surgem com um certo protagonismo para justificá-la, como a necessidade de procurar o CVV mesmo compartilhando de alegrias ou conquistas em sua vida pessoal, ou pelo fato de ligarem ainda que estejam integradas ao convívio com outras pessoas.
Com o exemplo da solidão, destaca-se que o modo como os voluntários reconhecem a realidade do sofrimento emocional durante o atendimento não está restrito apenas à atribuição de significado ao conteúdo verbal da OP, mas sim ao resultado da articulação e sobreposição de alguns elementos que constituem o processo comunicativo gerado entre eles.
A respeito dessa dinâmica de reconhecer e manejar o sofrimento, o telefone também deixa de ser apenas um mero intermediário da comunicação entre cuidador e usuário do serviço. Em vez disso, ele opera como aquilo que Latour (2012) chamou de mediador. Um artefato mediador, transforma, traduz, distorce e/ou modifica os significados e elementos que veicula, em contraste com um intermediário que, por sua vez, "é aquilo que transporta significado ou força sem transformá-lo" (Latour 2012, 65). Enquanto uma ferramenta mediadora, o telefone influencia significativamente as intervenções dos voluntários. O tipo de acolhimento objetivado e os elementos de referência para o cuidador conhecer um sofrimento em determinado atendimento só são possíveis da maneira apresentada por eles, devido às condições instauradas pela atuação desse objeto material.
No atendimento mediado pelo telefone, vimos que algo como a solidão é reconhecido pelo voluntário a partir da face do desespero, mas também em outras nuances, como através da manifestação de uma alegria compartilhada.
Nos atendimentos, os voluntários, no intuito de conhecer e cuidar do sofrimento emocional da pessoa que liga, não priorizam igualmente tudo aquilo que está sendo dito para conduzir a relação de ajuda. Em vez disso, eles articulam este conteúdo a outros elementos que compõem a prática. Apesar de entrar em cena juntos na conversação, os cuidadores precisam ser habilidosos para estabelecer critérios de prioridade entre os elementos daquele conteúdo exposto pela OP. Investida que lhes permitirá rastrear o sofrimento a cada atendimento, com o propósito de organizar suas atuações.
Esse movimento de estabelecer prioridades entre aspectos integrantes do contexto prático foi observado por Mol em seu estudo no Hospital Z a partir de critérios de indicação. A ideia dos critérios de indicação, presente no estudo de Mol (2002), enfatiza que, em uma prática, realidades distintas podem ser produzidas e se tornar reais em diferentes versões, pois eventos e atuações estão sendo modelados seguindo critérios de relevâncias específicos acerca do que colocar em evidência, do que priorizar ou sobrepor em uma intervenção, possibilitando que uma entidade seja conhecida, mobilizada e apreciada de um modo e não de outro. Nessa direção, o que privilegiar em determinado momento, mostra-se, portanto, como parte importante da realidade que é performada, ou seja, que é produzida, instaurada, instituída, tornada real. Para Mol (2002), enquanto os critérios de indicação informam a prática, a pragmática (agenciamento) dos atores envolvidos nesse contexto em vias de consolidar, molda a realidade que é ordenada.
Embora os problemas relatados pelo usuário do serviço possam auxiliar o cuidador na compreensão da sua realidade emocional, outros aspectos além do conteúdo da fala e os sinais que demonstram para o voluntário acerca de como a OP se sente diante do que foi relatado assumem a função de critérios de indicação. Estes critérios, por sua vez, são articulados pelo cuidador permitindo que cada voluntário conheça a realidade do sofrimento emocional de cada OP de um modo bastante particular em atendimentos específicos.
Escolher o que é relevante para manter no foco da atenção do voluntário, reflete não apenas a compreensão daquilo que a pessoa está sentindo, mas consequentemente produz efeitos no modo de intervir em um contexto. A importância da destreza desse processo se baseia no fato de que a realidade performada através da pragmática operada, o conduz a um entendimento mais ou menos próximo do sofrimento que acomete a OP.
O modo como os voluntários selecionam os critérios que indicam a realidade do sofrimento emocional leva esses cuidadores, em cada atendimento específico, a performarem a dor de determinada maneira. O voluntário agencia sua ação conduzindo tarefas como, por exemplo, propor o encerramento de uma ligação cuja manifestação do sofrimento demonstra que a relação naquele instante foi o suficiente, não seguindo uma restrição temporal oferecida pela norma, mas nos termos performativos imbricados na própria emoção atuada e conhecida por eles.
Diante disso, observamos que o sofrimento emocional não preexiste como algo pronto para ser descoberto, em vez disso, é um conhecimento alcançado através da atuação e habilidade de cada cuidador ao apreciar uma determinada realidade transmitida pela OP e orientar sua ação em cada atendimento.
As emoções do cuidador e o equilíbrio na prática
A relação entre os voluntários e a OP pode ser comparada a um jogo de espelhos, segundo a descrição dos interlocutores. Isso porque, durante o diálogo, o voluntário visa compreender e nomear emoções identificadas no conteúdo verbalizado e devolvê-las para a OP em forma de questionamento, para aferir se o que ele interpretou corresponde ao mais próximo do que ela está experimentando emocionalmente.
A pretensão, nesse sentido, é fazer com que a OP faça uma escuta de si com o auxílio desse voluntário que, por sua vez, não é movido por qualquer interesse em diagnosticar potenciais suicidas a partir do emprego dessa técnica conversacional. Deseja-se, nesse caso, promover a mitigação do sofrimento emocional baseada na autocompreensão através de uma intermediação não diretiva, ou seja, da devolutiva das impressões emotivas contidas no conteúdo da fala da OP que foi interpretada pelo voluntário no intuito de reorganizar as inquietações apuradas no desabafo.
O principal elemento é eu tá prestando atenção no que ela tá me dizendo, eu aceitar o que ela tá falando, eu respeitar e devolver isso de uma forma que ela compreenda o sentimento que ela tá sentindo. Que às vezes ela tá ali tão envolvida numa dor, num mar revolto de tanta decepção, que ela mesma não percebe os sentimentos que estão dentro dela e no momento que ela percebe isso, fica mais fácil dela tratar. Ela sabe as palavras, ela tá trazendo para a gente as palavras e a gente tenta focar no sentimento, eu não vou me focar nas coisas que ela tá me dizendo, mas naquele sentimento que tá movendo ela, naquela hora. (Sandra, comunicação pessoal, maio 2019).
Como expressado por Sandra, o interesse dos voluntários na prática é acolher a pessoa em sofrimento, auxiliando o alcance de um equilíbrio que será buscado nesse modelo de intervenção a partir da relação de ajuda não diretiva. Isso consiste também no esforço do cuidador em desviar-se do conteúdo conversado e vislumbrar a dor emocional que está ancorada nesse desabafo.
Diante disso, concernente ao fato de que nenhuma ligação é semelhante à outra para o voluntário, nesse tópico buscamos elucidar fatores presentes na prática em questão que, a partir dos elementos que repercutem de uma conversa, geram desafios inesperados ao voluntário durante a ligação.
O manual da instituição, ao distinguir a prática da conduta especialista no modo de intervir na prevenção do suicídio, registra que os voluntários e a OP "são semelhantes em essência" (Centro de Valorização da Vida 2017, 22), apenas diferindo a situação emocional de cada um no instante do atendimento. Assim, espera-se que o voluntário esteja cônscio da sua aptidão emocional para tornar possível apreender o sentimento do outro com destreza.
Dentro da instituição, aspira-se a um ambiente de honestidade, onde voluntários podem admitir não se sentirem habilitados após os treinamentos iniciais para assumirem os plantões. Isso é motivado para que reconheçam em si possíveis incômodos que possam vir causar-lhe alguma instabilidade, uma vez que entendem ser da natureza humana hesitar diante de algumas interações delicadas.
Comumente, os voluntários destacam que nenhuma ligação se assemelha à outra, mesmo que o atendimento envolva uma OP já atendida. Cada interação é vista por eles como única
Levando em consideração a contingência das conversas, fatos imprevisíveis podem emergir em qualquer relato e influenciar a dinâmica da relação de ajuda, que tem como premissa a compreensão empática daquele que está do outro lado da linha.
A compreensão empática enquanto premissa fundamental nessa interação não se refere a um mimetismo, mas a uma aproximação do outro desvinculada das ideologias e pressupostos pessoais do voluntário no momento da escuta atenta e na comunicação acolhedora.
A descoberta de alguma inquietude identificada em si pelo próprio voluntário não é condenada pela instituição, em vez disso, é entendida como uma seta para que ele busque mais do seu autoconhecimento. Um suposto de neutralidade não é defendido nessa situação, pelo contrário, é compreensível que essa interferência se manifeste para que os voluntários percebam a necessidade da busca constante por aprimoramento, mesmo os mais experientes.
É um pouco difícil quando a gente atende uma Outra Pessoa que tá com uma situação idêntica à nossa. A gente tem que ter muito cuidado pra não dizer uma frase perigosa: "poxa, já passei por isso.". Aí acabou o atendimento, aí a pessoa vai passar a ser um voluntário e você a Outra Pessoa. Então ela vai ficar: "então, o que você sentiu?"; "como você saiu disso?". Aí acabou. A gente tem que, numa situação dessa, quando ocorre, que você é impactado com alguma coisa que vem de lá pra cá e tá dentro de você também, é você respirar e arranjar meios de não passar pra essa pessoa que você tá com o mesmo problema. (Orlando, comunicação pessoal, jul. 2019).
Na medida em que eu comecei ouvir o outro, aprendi a me ouvir, e aí eu comecei a aprender a me controlar, porque vou percebendo que aquilo que o outro sente, eu sinto também. Então, determinado sentimento que eu achava que não tinha. Então, aquilo que me incomodou é porque eu tenho aquilo e preciso trabalhar aquilo. (Júlio, comunicação pessoal, maio 2019).
Para alguns voluntários, apesar da interação distal, a semelhança entre a experiência de vida entre a OP e a sua própria é passível de ocorrer e provocar embaraços no fluxo do atendimento, já que pode dispersar o voluntário do foco pretendido: a emoção do outro, e não o conteúdo compartilhado pela OP.
Sendo assim, compreender empaticamente requer um autoexame que será progressivamente empregado pelo voluntário dentro das práticas reais que operam. Concluindo o atendimento que suscitou desconforto, o cuidador investe na busca por aperfeiçoamento nos atendimentos simulados em contextos de treinamento, podendo, então, contar com a ajuda dos voluntários mais experientes.
Os eventos que podem suscitar algum nível de instabilidade nos voluntários são de diversas ordens, desde uma história similar à vida pessoal do voluntário até outras situações que possam deixar o cuidador contrariado quanto à sua expectativa de bem-estar do outro. Isso pode ocorrer quando a OP enfatiza interesse pelo suicídio demonstrando uma postura irredutível, faz confissões/intenções criminosas, ou mesmo durante diálogos envolvendo conteúdo sexual, o que pode suscitar algum nível de constrangimento devido à forma como é abordado na interação. Essas ocasiões exigem mais esforços para o voluntário estabelecer a ajuda pretendida.
Você não pode se desmoronar. Igual o médico, o médico vê sangue… Ele tem que saber que o papel dele é de ajuda e se ele se desmoronar, ele não vai conseguir ajudar a pessoa. Mesmo que aquilo ali me doa, vou ter que me manter na minha pra ajudar aquela pessoa, porque se eu desmaiar, a pessoa não vai ter uma relação de ajuda, se eu chorar, a pessoa não vai ter uma relação de ajuda… Tem que ter esse equilíbrio. (Silvio, comunicação pessoal, maio 2019).
Quando se desencadeia uma dificuldade na prática envolvendo aspectos emocionais do voluntário, tais variáveis não se apresentam para ele como a perda irreversível do atendimento. Nesse caso, traz à tona um esforço particular para lidar melhor com aquilo que é tido como prioridade, o acolhimento, adiando para um momento posterior a análise minuciosa da sensação incômoda que foi experimentada durante a conversa.
Portanto, para tornar possível o movimento de assumir uma postura acolhedora e empática, os voluntários operam a distinção entre "aceitar" e "concordar" para tentar desobstruir suas dificuldades pessoais na direção da acolhida esperada pela OP.
Quando eu aceito, eu não posso costurar de um lado, costurar de outro: "eu aceito, mas tem que tá assim, mas tem que tá assado". É aceitar de forma incondicional. É diferente de concordar, eu posso aceitar, eu posso não concordar, mas eu vou aceitar a pessoa do jeito que ela vier. Eu vou aceitar o que ela tá me dizendo, ela pode ter feito a maior atrocidade, o maior absurdo na vida ali, uma coisa tremenda, mas eu tenho que aceitar, porque eu me propus a isso, porque dentro da filosofia que eu me enxergo, que eu adotei, que eu aderi, aceitar o outro faz parte da relação de ajuda. (Sandra, comunicação pessoal, maio 2019).
Naquele momento que ele liga pra cá falando de um crime, eu tenho que conversar com ele como um ser humano, porque ele precisa botar aquilo pra fora, assim como uma pessoa que tá tentando praticar o suicídio, ela precisa botar aquilo pra fora. Então eu tenho que aceitar a pessoa como ela é. Eu posso até não concordar com o que ela tá fazendo, não aprovar, mas ela é aquilo que ela tá dizendo, eu tenho que respeitar o jeito dela ser (Júlio, comunicação pessoal, maio 2019).
De uma forma geral a gente compreende, mas é claro que vêm os desafios, porque tem quadros que, putz… Se eu tou aceitando, você mesmo se sente culpado: "como é que eu vou aceitar uma coisa dessa?" Mas assim, aceitar não significa apoiar ou concordar, aceitar significa acolher. (Nelma, comunicação pessoal, jun. 2019).
Todos os esforços empreendidos pelos voluntários em sua prática, mesmo quando se sentem constrangidos ou contrariados, costumam manter o foco da situação no que consideram mais importante: o bem-estar da OP. Ao entender suas próprias limitações, não as apagar, mas administrá-las, evidencia-se que a busca por alinhamento à norma idealizada no trabalho da instituição não é algo que está dado de uma vez por todas, mas que, frequentemente, precisa ser instaurado com mais ou menos esforços. A distinção entre o que é passível de concordância e o que é passível de aceitar é uma estratégia a fim de que as práticas prosperem e não se percam ao serem impregnadas por elementos viscosos, aqueles que não sucumbem às expectativas dos praticantes que desejam contê-las (Mol 2002), como as variáveis que escapam do controle de cuidadores e indivíduos em estado de sofrimento associado ao comportamento suicida (Costa Jr. 2021).
Nessa incursão, observa-se que os cuidadores em prática não são tomados por mero automatismo de estarem refém de um rigor normativo hermético. Pelo contrário, a instituição estimula o fato como a oportunidade de eles compreenderem mais sobre si para tornar possível facilitar o equilíbrio emocional da OP posteriormente com maior facilidade.
Em uma de suas análises, Latour (2008) se valeu do termo "articulação" para analisar a atuação de aprendizes em processo de habilitação. Para o autor, a noção de articulação não significa a capacidade para falar com autoridade e eloquência, mas aprender a ser afetado por diferenças.
A principal vantagem do termo articulação não é a sua associação, em certa medida ambígua, a capacidades linguísticas ou sofisticação; é antes a sua capacidade para trazer a lume os componentes artificiais e materiais que permitem progressivamente adquirir um corpo. (Latour 2008, 43, grifos no original).
Nesse aspecto, a ideia de articulação empregada pelo autor aponta não para um corpo que responde às influências ao redor de uma mesma maneira para todos os casos, mas que está em pleno movimento, sendo continuamente afetado por elementos diversos que os estimulam na direção de sua constituição através do aperfeiçoamento progressivo em relação à interação com outras entidades. O processo produtivo desse corpo apreende recursos que o auxiliarão a reinventar-se constantemente a partir dos eventos que emergem e o modo como o influencia no decorrer de uma tarefa.
Os voluntários em prática, ao privilegiarem a relação de ajuda, sem destituir das suas emoções e fragilidades no ato de aceitar, se posicionam enquanto sujeitos articulados. A descoberta da presença de dificuldades na aceitação genuína, levando-os a separar o que se "aceita" do que se "concorda" é uma tentativa de empreender ajuda à OP de maneira engenhosa visando calibrar suas próprias emoções, sem negá-las.
Assim como Latour, outros autores problematizam a perspectiva de teorias reducionistas a respeito das emoções. Despret, concordando com as contribuições filosóficas de William James (1912 citado por Despret 2011), assumiu uma postura crítica ao dualismo corpo-mente, base da filosofia cartesiana, que, para ela, contribuiu para o entendimento hegemônico de corpos emocionados como expressão de mera reatividade e descontrole, reflexão que impregnava a análise de fatos envolvendo emoções humanas.
Ao se distanciar desse dualismo, Despret posiciona as emoções como "disposições que cultivamos" (James 1912 citado por Despret 2011, 56), tomando-as não como aspecto corruptível da pureza racional, mas como fator contribuinte de possibilidades criativas, inclusive para resistir a elas. Logo, essa perspectiva visa analisar as emoções observando aquilo que se é feito mesmo diante da presença delas.
No trabalho de Mol (2002), a autora ressalta a recorrência dos momentos de escolhas na configuração das práticas, por exemplo, quando cirurgiões precisavam deliberar sobre um tratamento invasivo ou não, seu foco mudava de interesse para o que pretendia operar, diziam: "Não tratamos vasos aqui, tratamos pacientes" (Mol 2002, 122). Mol utilizou o foco enquanto metáfora para mostrar como, nesse momento, não era apenas uma "visão" que variava de uma prática para outra, mas uma nova ontologia (realidade) se constituía ao mobilizar prioritariamente um elemento e não outro.
Podemos entender que os voluntários da instituição recorrem a estratégia de enfoque para situar-se acerca da realidade que prioritariamente desejam interagir de modo mais enfático, mantendo a observância de si quanto à influência de outras variáveis importantes para o contexto, mas que não deve estar no centro da sua intervenção. Esse processo é moldado ao passo em que é atravessado por essas variáveis, demonstrando como as emoções não são deterministicamente um elemento que deteriora as práticas e as direcionam à perda. Em vez disso, aprender a ser afetado é uma possibilidade auxiliada por artefatos e estratégias que permitem desenvolver uma postura articulada para lidar com instabilidades conciliando regras reconhecidas e esforço criativo.
Nessa direção, os voluntários recorrem à estratégia de priorizar alguns elementos em detrimentos de outros, mobilizando aquilo que desejam colocar no centro de sua intervenção. Mesmo afetados emocionalmente, eles aprenderam a desenvolver uma postura articulada às premissas da instituição para lidar com as tensões durante o atendimento.
Considerações finais
Nesse artigo, analisou-se o contexto de intervenções empreendidas por voluntários que promovem apoio emocional a distância em prol da prevenção do suicídio. Nos plantões individuais, eles interagem com usuários que buscam o serviço e, durante o atendimento, empenham-se investindo esforços a fim de produzir ajuda oportuna.
Nesse contexto, através do telefone, os voluntários elaboram contínuas estratégias para conduzir a conversação atentos à particularidade de cada história, à natureza complexa e oscilante das variáveis que o sofrimento emocional e o comportamento suicida veiculam e às possibilidades de intervenções alinhadas às regras da instituição. Estando as modelações artesanais do cuidado investido pelo voluntário condicionado às possibilidades permitidas pelo telefone, o artefato evidencia sua influência na produção do cuidado, destacando-se não como elemento neutro, mas enquanto instaurador de efeitos diferenciais na prática da qual participa.
Essas observações foram possíveis a partir do desenvolvimento da investigação concebendo o cuidado, primeiro, enquanto verbo, para, a partir disso, percebê-lo enquanto substantivo. Ou seja, a consolidação deste resulta dos esforços e das interações que o ordenam de maneira singular a cada situação de atendimento novo empreendida nos espaços em que ele ocorre. Portanto, entende-se que o cuidado é produzido a partir dessas práticas e não anterior às mesmas.
Para tanto, a apreciação do conteúdo do relato, a participação da OP durante a conversa, a sensibilidade do cuidador quanto às emoções da OP e a gestão das suas próprias são alguns dos aspectos presentes nesse trabalho, implicadas na conformação do cuidado mediante as estratégias de ajuda que o voluntário perfaz ao conduzir o atendimento distal.
Em direção a isso, o cuidado produzido pelos voluntários assume um delineamento que pode ser entendido à luz da noção de política ontológica de Mol (2008). Ela destaca que a realidade não está dada na ordem das coisas, mas que precisa ser feita mediante processos de decisão que envolvem a mútua implicação entre as escolhas políticas instauradas e a conformação dessa realidade. Devido à complexidade que a escolha inspira nos momentos em que é necessário definir o que será feito em uma tarefa que não está dada de antemão, repercute em uma questão política da performance dos participantes envolvidos na referida prática deliberando no estabelecimento de uma realidade mediante decisões engendradas (Mol 2002; Souza 2015). Assim, no interior de práticas situadas, são elaboradas intervenções, a partir das quais, a realidade que passa a existir assume uma forma de ordenamento próprio, fruto da combinação dos esforços das entidades envolvidas no seu processo de efetivação.
Inspirado nessa perspectiva teórico-metodológica, o cuidado pôde ser observado de modo a não ser posicionado como uma categoria autoevidente, generalizada, ou algo que se executa unilateralmente isento de intercorrências. Desse modo, foi possível observar que, na busca para que o atendimento prospere, os voluntários reinventam e readaptam suas performances constantemente, ainda que orientados pela norma local, fazendo o cuidado destacar-se enquanto uma realidade passível de assumir múltiplas faces.
Logo, o ato de cuidar, nesse contexto, não consiste em mero automatismo, mas é composto pela apurada atenção às variáveis complexas emergentes no atendimento e pelo empenho de coprodução integrado por diversos agentes humanos e não humanos ao contribuírem na gestão do acolhimento. Considerando, sobretudo, as nuances que tornam singular cada novo atendimento, o reconhecimento das diversas manifestações do sofrimento emocional e sua mitigação através das possibilidades de intervenção a distância.
2
Este trabalho contou com o financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (Fapesb).
3
O Triângulo das Bermudas é uma área geográfica situada no Oceano Atlântico entre algumas ilhas da Região Central da América, famosa pelo desaparecimento quase que misterioso de embarcações e aviões. Ao nomear esse modelo estratégico de cuidado como "Triângulo das Bermudas", o CVV buscou destacar o caminho do cuidado em que o voluntário deveria se orientar: "se navegarmos nele, desaparecerão as ansiedades, as tensões e os medos". (Centro de Valorização da Vida 2006, 34).
4
Na atuação dos interlocutores, as palavras sentimentos e emoções são utilizadas como sinônimos em referência à expressão de como as OP se sentem diante de algo. Podemos considerar uma linguagem topográfica (própria) da instituição (Mol 2002).
Os textos deste artigo foram revisados pela SK Revisões Acadêmicas e submetidos para validação do autor antes da publicação.
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Authorship
Pedro Fragoso Costa Júnior
Pedro Fragoso Costa Júnior
Mestre e doutorando em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal da Bahia (Ufba), em Salvador, BA, Brasil. pedrofragosojr@hotmail.com
Universidade Federal da Bahia (Ufba), Salvador, BA, Brasil.Universidade Federal da BahiaBrasilSalvador, BA, BrasilUniversidade Federal da Bahia (Ufba), Salvador, BA, Brasil.
Universidade Federal da Bahia (Ufba), Salvador, BA, Brasil.Universidade Federal da BahiaBrasilSalvador, BA, BrasilUniversidade Federal da Bahia (Ufba), Salvador, BA, Brasil.
Costa, Pedro Fragoso. Suicide prevention in practice: the production of care at a distance. Civitas - Revista de Ciências Sociais [online]. 2024, v. 24 [Accessed 22 April 2025], e-45078. Available from: <https://doi.org/10.15448/1984-7289.2024.1.45078>. Epub 21 Mar 2025. ISSN 1984-7289. https://doi.org/10.15448/1984-7289.2024.1.45078.
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