Resumo:
Este artigo aborda o processo de construção de uma categoria discursiva: povos e comunidades tradicionais de matriz africana. Trata-se de uma expressão adotada para nomear os grupos praticantes das religiões afro-brasileiras no âmbito das políticas públicas ancoradas no debate acerca da diversidade cultural no Brasil. O intuito, assim, é de refletir sobre os caminhos escolhidos pelo movimento afro-religioso para organizar e apresentar sua agenda nesse contexto. A análise apresentada é baseada na leitura dos documentos relacionados, principalmente, à Política de Promoção da Igualdade Racial, entre 2003 e 2014. Busca-se ainda pensar nas consequências da brusca ruptura ocorrida no segundo mandato da presidenta Dilma Rousseff no caso específico analisado, uma vez que se tratam de políticas públicas desenvolvidas não apenas como parte de um governo, mas como um projeto de estado atreladas aos ditames de organismos internacionais.
Palavras-chave: Povos e comunidades tradicionais de matriz africana; Diversidade cultural; Religiões afro-brasileiras
Abstract:
This paper analyses the process of building a discursive category: Traditional People and Communities of African Matrix. This is an expression used to name the Afro-Brazilian religions practitioners on the public policies of cultural diversity in Brazil. The aim of this paper is to think how the Afro-religious movement organizes and presents its agenda in this context. The analysis is based on the official documents produced by the federal government related to the affirmative action in Brazil from 2003 to 2014. It also intends to reflect how the federal government will continue those politics after President Ms. Dilma Rousseff’s impeachment.
Keywords: Traditional people and communities of African matrix; Cultural diversity; Afro-Brazilian religions
Introdução
Neste artigo, analisamos o processo de construção de uma categoria discursiva: povos e comunidades tradicionais de matriz africana. Trata-se de uma expressão adotada para nomear os grupos praticantes das religiões afro-brasileiras no âmbito das políticas públicas ancoradas no debate acerca da diversidade cultural no Brasil. A preservação da diversidade cultural seria uma das armas contra os assombros da globalização, como preconiza a Unesco ao incentivar seus estados membros a desenvolverem ações que favoreçam a inclusão e a participação de todos os cidadãos com vistas a garantir a coesão social, a vitalidade da sociedade civil e, sobretudo, a paz (Organização..., 2002). O Brasil, sendo um desses estados membros, buscou se pautar nessa orientação na criação de certas políticas públicas, especialmente, a partir de 2003.
Mais do que seguir a elaboração das políticas públicas de salvaguarda e promoção da diversidade cultural no Brasil, procuramos refletir sobre os caminhos escolhidos por um determinado movimento social, o afro-religioso, para organizar e apresentar sua agenda nesse contexto. A ideia é pensar como esse movimento mobiliza o debate sobre a diversidade cultural em seu discurso. A categoria povos e comunidades tradicionais de matriz africana é fruto dessa mobilização, daí o foco em seu processo de construção.
O movimento afro-religioso se configurou a partir da criação das primeiras entidades representativas dos umbandistas e/ou dos candomblecistas, na década de 1930. Mas, 70 anos depois, na passagem do século 20 para o 21, ainda mantinha como a principal pauta de sua agenda a defesa da prática religiosa de seus representados. Desde o período colonial, as práticas religiosas vinculadas aos negros são alvo de perseguição por parte da igreja católica e mesmo pelo estado brasileiro.1 No entanto, no início dos anos 2000, essa perseguição advinha também de grupos evangélicos, especialmente, neopentecostais.2
Povos e comunidades tradicionais de matriz africana é uma categoria que surge na elaboração e na execução da Política de Promoção da Igualdade Racial, a partir da articulação dos movimentos afro-religioso e negro. Essa articulação reverberou em outras áreas do poder público, como educação, cultura, saúde, assistência social e meio ambiente. Nosso argumento é de que tal categoria foi forjada como uma estratégia do movimento afro-religioso em sua luta contra a intolerância religiosa num espaço público marcado pelos crescentes embates com grupos evangélicos.
A análise apresentada aqui é baseada na leitura dos documentos relacionados à Política de Promoção da Igualdade Racial, mas não se restringindo a ela, entre 2003 e 2014, período que corresponde aos dois mandatos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2006; 2007-2010) e o primeiro mandato da presidenta Dilma Rousseff (2011-2014). O artigo está dividido em duas partes. Primeiramente, apontamos como foi mobilizada a presença afro-religiosa no debate sobre a diversidade cultural a partir da articulação com o combate ao racismo no contexto da Política de Promoção da Igualdade Racial. Em seguida, focalizamos o processo de construção da categoria povos e comunidades tradicionais de matriz africana, entendida como uma estratégia discursiva do movimento afro-religioso. Nas notas finais, buscamos pensar nas consequências da brusca ruptura ocorrida no segundo mandato da presidenta Dilma no caso específico analisado, uma vez que se tratam de políticas públicas desenvolvidas não apenas como parte de um governo, mas como um projeto de estado atrelado aos ditames de organismos internacionais.
Transversalidade
Em 21 de março de 2003, data em que se comemora o Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial, foi criada a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), vinculada diretamente à Presidência da República.3 Medidas contra o racismo vinham sendo adotadas aos poucos no Brasil, desde a Constituição Federal de 1988 (Brasil, 1988). No entanto, com a Seppir a luta do movimento negro ampliava-se não só na semântica, mas também na ação política. Eram integrantes do próprio movimento negro que assumiam a direção da secretaria, buscando ir além do enfrentamento ao racismo, pois reclamavam pela igualdade racial.
É por meio da promoção da igualdade racial que a partir de 2003 se apresenta e se implementa, aos poucos, a agenda negra - ou seja, uma gama de demandas de uma pluralidade de entidades que compõem o movimento negro que, a partir dos anos 1970, se reestruturou, acompanhando a frente política que lutou pelo restabelecimento do estado de direito e do respeito às liberdades civis e aos direitos humanos (Guimarães, 2013, p. 1). Ao adotar a expressão promoção da igualdade racial em seu nome, a Seppir não limitava a sua atuação a um grupo social, apesar de indicar na lei que a institui serem os negros o seu principal foco (Brasil, 2003b).
Nota-se ainda, na letra da lei, que a Seppir deveria atuar no intuito de proteger os direitos de “indivíduos e grupos raciais e étnicos” (Brasil, 2003b), no plural. Com isso, seguia-se as prerrogativas da Constituição de 1988, que incorporou em seu texto a ideia do Brasil como uma nação formada a partir de múltiplas matrizes étnicas e culturais. Essa Constituição foi erigida no momento em que a ideia de multiculturalismo já era dominante, tendo refletido também nas reformas constitucionais ocorridas a partir dos anos 1980 em outros países da América Latina. As novas constituições submergiram o ideal fundador de nações mestiças e culturalmente homogêneas, antes pensadas como produto da miscigenação biológica e cultural entre europeus, indígenas americanos e africanos. Essas reformas constitucionais, incluindo a brasileira, foram quase que imediatamente seguidas ou aconteceram em concomitância à introdução de políticas neoliberais, no campo social e econômico (Guimarães, 2006, p. 273).
O debate sobre raça no Brasil, no início dos anos 2000, reflete, mas também faz parte de um movimento global - encampado por organismos internacionais, como a ONU e a Unesco - que envolve políticas identitárias e de reconhecimento, de valorização étnica e racial, para se promover a diversidade cultural. A partir da defesa dos direitos culturais foi se construindo o entendimento de que a diversidade cultural, não só de um país, mas de toda a humanidade, deveria ser respeitada e valorizada. Essa concepção começou a ser formulada no pós-guerra e, desde os anos 1960, vem sendo guarnecida por meio de acordos internacionais.
Nesse contexto, Claude Lévi-Strauss teve um relevante papel, a começar por contribuir na afirmação de um patrimônio comum formado a partir dos diferentes grupos étnicos que compõem a humanidade. Essa afirmação consta dos trabalhos que ele elaborou a pedido da própria Unesco, como Raça e história de 1952 (Lévi-Strauss, 2012). Em 2005, na conferência proferida por ocasião do 60º aniversário da Unesco, Lévi-Strauss acentuou a preocupação com a diversidade cultural e o risco de seu desaparecimento com o processo de globalização em curso. Embora afirme que o temor da Unesco com certa uniformização cultural decorrente da globalização tenha motivo, o autor tem esperança de que no seio da própria globalização possam surgir novas diversidades (Lévi-Strauss, 2007, p. 8).
Em 2002, portanto três anos antes da referida conferência de Lévi-Strauss, a Unesco já havia publicado a Declaração Universal da Diversidade Cultural, onde esta é afirmada como um patrimônio comum da humanidade:
A cultura adquire formas diversas através do tempo e do espaço. Essa diversidade se manifesta na originalidade e na pluralidade de identidades que caracterizam os grupos e as sociedades que compõem a humanidade. Fonte de intercâmbios, de inovação e de criatividade, a diversidade cultural é, para o gênero humano, tão necessária como a diversidade biológica para a natureza. Nesse sentido, constitui o patrimônio comum da humanidade e deve ser reconhecida e consolidada em benefício das gerações presentes e futuras (Organização..., 2002, s/p).
Essa declaração foi publicada um ano após uma das grandes expressões públicas desse movimento global: a Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e as Formas Correlatas de Intolerância, conhecida como a Conferência de Durban, ocorrida em setembro de 2001. O Brasil teve ativa participação nesse encontro, enviando a Durban uma delegação de cerca de 500 pessoas, entre representantes do governo brasileiro e da sociedade civil, que incluíam integrantes dos movimentos negro e afro-religioso.
Não se pode dizer que a delegação brasileira tivesse um discurso consensual. De um lado, os representantes do governo apontavam os avanços do país no que tange à superação de uma injustiça histórica para com a população negra. De outro lado, representantes da sociedade civil realçavam que ainda havia muito por fazer num país marcado pela ausência de políticas públicas para lidar com a questão racial (Thomaz; Nascimento, 2003). Ao final da Conferência, o estado brasileiro se comprometeu em adotar medidas condizentes com os acordos firmados durante o encontro, dispostos na Declaração de Durban e no seu programa de ação (Conferência..., 2001).
Ao assumir a Presidência da República em 2003, Luiz Inácio Lula da Silva tinha que cumprir esse compromisso firmado durante o mandato de seu antecessor, Fernando Henrique Cardoso. Lula havia de honrar, também, o apoio recebido durante sua campanha eleitoral por parte do movimento negro que reivindicava, como uma das medidas para se promover a igualdade racial, a efetiva liberdade religiosa aos praticantes das religiões afro-brasileiras. No entanto, ao mesmo tempo em que selou acordos com o movimento negro, o presidente Lula se comprometera politicamente com os evangélicos, autores dos mencionados ataques àquelas religiões. Se o movimento negro atuava, nessa ocasião, como um mediador dos religiosos afro-brasileiros, os evangélicos, que já contavam com uma estrutura partidária, “negociavam” diretamente com o governo ou, na época da campanha eleitoral, com quem almejava o cargo de presidente.
Foi, sobretudo, a partir da década de 1980 que integrantes do movimento negro se aproximaram dos terreiros e passaram a incluir o universo afro-religioso no discurso da construção de uma identidade negra e de sua politização.4 Esta articulação se estendeu às décadas seguintes, quando se observou uma intensificação dos ataques neopentecostais. Os praticantes das religiões afro-brasileiras buscavam enfrentar essas agressões, ensaiando algumas reações pela via judicial ou saindo às ruas em passeata. O preceito constitucional da liberdade de crença passou a ser evocado com frequência pelos religiosos afro-brasileiros que, de certa forma, afirmavam a sua prática como religião no combate aos ataques neopentecostais. Mas também recuperavam o entendimento das religiões afro-brasileiras como cultura e buscavam associar o racismo e a intolerância a essas religiões, em uma estratégia conjunta com o movimento negro.
O discurso do movimento negro absorve, assim, parte do discurso do afro-religioso e vice-versa. Mas, conforme pontua Santos (2005, p. 169), por parte do movimento afro-religioso, essa articulação não implica em uma filiação partidária.
Eles [praticantes das religiões afro-brasileiras] não buscam uma racialização à la movimentos negros, mas enfatizam, com base no discurso religioso, a autenticidade e a origem africana de seus terreiros, ao mesmo tempo que deploram as condições de vida dos negros no Brasil. É um discurso em que, se reduzido a uma expressão, eu diria que os terreiros tanto legitimam quanto reforçam simbolicamente a sua religião através de novos conteúdos políticos (Santos, 2005, p. 169).
A reivindicação do movimento negro pelo cumprimento do direito à liberdade religiosa estava vinculada, dessa forma, ao combate ao racismo. Uma ideia sustentada não apenas pelo discurso dos movimentos afro-religioso e negro, no Brasil, mas também pelo debate que se fazia em nível global. Na Conferência de Durban, por exemplo, lê-se na declaração final assinada pelos estados participantes:
Reconhecemos que racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata ocorrem com base na raça, cor, descendência, origem nacional ou étnica e que as vítimas podem sofrer múltiplas ou agravadas formas de discriminação calcadas em outros aspectos correlatos como sexo, língua, religião, opinião política ou de qualquer outro tipo, origem social, propriedade, nascimento e outros (Conferência..., 2001, p. 3).
Ou seja, constava em um documento oficial a associação defendida pelos movimentos negro e afro-religioso. Essa associação era reforçada em outros pontos da declaração, que conferiu destaque aos africanos e a seus descendentes na diáspora, como apontado no trecho a seguir:
Reconhecemos que os povos de origem africana têm sido secularmente vítimas de racismo, discriminação racial e escravidão e da negação histórica de muitos de seus direitos, e afirmamos que eles devem ser tratados com justiça e respeito por sua dignidade e não devem sofrer discriminação de nenhum tipo. Reconhecimento deve, portanto, ser dado aos seus direitos à cultura e à sua própria identidade; de participarem livremente e com iguais condições da vida política, social, econômica e cultural; de se desenvolverem no contexto de suas aspirações e costumes; de manterem, preservarem e promoverem suas próprias formas de organização, seu modo de vida, cultura, tradições e expressões religiosas; de manterem e usarem suas próprias línguas; de protegerem seu conhecimento tradicional e sua herança artística e cultural; de usarem, gozarem e conservarem os recursos naturais renováveis de seu habitat e de participarem ativamente do desenho, implementação e desenvolvimento de programas e sistemas educacionais, incluindo aqueles de natureza específica e característica; e, quando procedente, o direito à sua terra ancestralmente habitada (Conferência..., 2001, p. 17).
A citação traz em detalhes o entendimento acordado na Conferência de Durban sobre o reconhecimento que deveria ser concedido aos negros. Estavam expressas naquele documento muitas das reivindicações do movimento negro no Brasil, demonstrando como a sua agenda se estruturava em diálogo com o debate de âmbito global sobre a questão da raça. Essas reivindicações, então, estavam amparadas também em um acordo internacional que reforçava ditames constitucionais brasileiros - especificamente a criminalização do racismo e a garantia da liberdade de crença.5 O documento final de Durban e a Constituição de 1988 eram a base legal não apenas para a instituição do novo órgão federal que se voltava para a questão racial, a Seppir, mas também para a proposição da Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Brasil, 2003c).
No esteio da implementação dessa política pública, criada em 2003, foram se abrindo outros canais de interlocução entre o governo federal e os religiosos afro-brasileiros, além dos já instituídos pela via da política de patrimônio. Canais que não se restringiam ao órgão gestor da Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial, pois, tendo por princípio a transversalidade, essa política pressupunha “o combate às desigualdades raciais e a promoção da igualdade racial como premissas e pressupostos a serem considerados no conjunto das políticas de governo” (Brasil, 2003c). As religiões afro-brasileiras começaram a figurar como conteúdo e mesmo objeto de políticas públicas de diferentes áreas, como saúde, educação, assistência social, cultura e meio ambiente.
Como observa Rios (2012), a luta antirracista fez-se em diálogo - mas também em concorrência - com diversas tendências políticas e sociais. Muitas delas foram incorporadas ao repertório do movimento negro devido às trajetórias, trânsitos e identidades sociais de seus militantes, que circulavam em diferentes espaços políticos, ampliando o alcance de sua ação e incorporando ideias e valores ao ideário de igualdade (Rios, 2012, p. 47). A transversalidade como um princípio da política pública racial que estava sendo fundada no Brasil em 2003 tinha, assim, uma base teórica, mas também prática. Esse princípio refletia o próprio processo de constituição da agenda negra.
Assim como foi destacado o direito à liberdade religiosa, tanto por legislações nacionais quanto por acordos internacionais, também a defesa dos direitos culturais estava evidenciada por organismos internacionais com os quais o estado brasileiro mantinha-se alinhado. A ideia da diversidade cultural pensada como um patrimônio da humanidade passou a nortear no Brasil não apenas políticas públicas culturais, mas também as políticas sociais, como saúde, educação, assistência social e mesmo a política racial. Promover a igualdade racial ia, então, além do combate ao racismo, pois garantia também o respeito à diversidade cultural. Uma vez que estava posto o entendimento de que o preconceito racial era transferido para as religiões afro-brasileiras, era preciso adotar medidas contra a intolerância religiosa, fazendo valer o direito à liberdade de crença. No entanto, dado o embate político que já se delineava com os evangélicos, novas estratégias foram necessárias para buscar atender os objetivos da Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial. E, ao que parece, entender as religiões afro-brasileiras como práticas de “povos e comunidades tradicionais”, foi uma estratégia dos movimentos negro e afro-religioso, pois aqui a crença aparece no seu vínculo estreito com a identidade; é o discurso identitário, condição sine qua non para a diversidade cultural, que é colocado em relevo.
Estratégias discursivas
No momento em que crescia a valorização das culturas tradicionais na busca pela preservação da diversidade cultural, as religiões afro-brasileiras consideradas repositórios da tradição ora africana, ora negra, ora afro-brasileira - a depender dos atores que as reivindicam -, também figuravam como conteúdo e mesmo objeto de políticas públicas, passando a ser acionadas sob o termo povos e comunidades tradicionais, entendidos como
grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição (Brasil, 2007a, s/p).
A definição acima consta no Decreto 6.040, assinado em 7 de fevereiro de 2007 pelo presidente Lula, e pelos então ministros Patrus Ananias, do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, e Marina Silva, do Meio Ambiente. Esse decreto institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, que se baseia em normas de organismos internacionais, como a Unesco e a Organização Internacional do Trabalho (OIT), inscritas no contexto da valorização da diversidade cultural. Observa-se que a expressão comunidades tradicionais é acrescida da palavra povos. O uso desse termo é observado desde a Convenção 169 sobre Povos Indígenas e Tribais da OIT, de 1989. E, como Montero (2012) chama a atenção, tal termo designa uma forma de pertencimento subnacional.
Mas há ainda outra norma instituída também em 1989, a Recomendação da Unesco sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular, que incide no processo de construção da expressão povos e comunidades tradicionais. Sendo o Brasil um dos estados signatários dessa recomendação, comprometeu-se a desenvolver ações voltadas para a identificação, a conservação, a difusão e a proteção da denominada cultura tradicional e popular, definida assim:
A cultura tradicional e popular é o conjunto de criações que emanam de uma comunidade cultural fundadas sobre a tradição, expressas por um grupo ou por indivíduos e que reconhecidamente respondem às expectativas da comunidade enquanto expressão da sua identidade cultural e social; as normas e os valores que transmitem oralmente, por imitação ou por outros meios. Suas formas compreendem, entre outras, a língua, a literatura, a música, a dança, os jogos, a mitologia, os rituais, os costumes, o artesanato, a arquitetura e outras artes (Organização..., 1989).
Esse documento foi uma das bases para a Convenção da Unesco para a Salvaguarda do Patrimônio Imaterial, de 2003. No entanto, ele não incidiu apenas na política patrimonial brasileira, haja vista a formulação da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, que teve a participação de representantes do movimento afro-religioso em seu desenvolvimento. Povos e comunidades tradicionais foi uma expressão cunhada no âmbito de uma política pública vinculada a dois ministérios: um que trata de questões relativas à assistência social e outro que lida com o meio ambiente. O decreto 6040 ampliou o entendimento legal de povos e comunidades tradicionais, antes restritos aos povos indígenas e aos quilombolas. Fato que possibilitou ao movimento afro-religioso também se apropriar dessa expressão como uma estratégia discursiva na construção de sua identidade, no momento em que a pauta da diversidade cultural estava em voga.
Essa expressão passou a ser adotada, pouco a pouco, por entidades do movimento afro-religioso que tomam parte das instâncias de participação popular criadas pela Seppir, como as Conferências Nacionais de Promoção da Igualdade Racial, realizadas nos anos de 2005, 2009 e 2013, em que havia um encontro específico para o segmento religioso afro-brasileiro. Em paralelo à criação dessas instâncias de participação popular, a Seppir foi, paulatinamente, desenvolvendo ações que envolviam as religiões afro-brasileiras, sendo a principal delas a distribuição de cestas básicas para os terreiros, iniciada em 2005, por meio de uma parceria com o Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome.
Com a distribuição das cestas, o movimento afro-religioso passou a acionar outra política pública. Por terem o alimento como um dos principais elementos de seus rituais, e os terreiros, locais da prática religiosa, situarem-se, majoritariamente nas periferias da cidade, as religiões afro-brasileiras puderam ser integradas nas ações do Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome, o mesmo que é responsável pela Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais. Foi esse ministério, inclusive, que realizou uma pesquisa em quatro capitais brasileiras, Belo Horizonte, Belém, Porto Alegre e Recife, com o objetivo de mapear os espaços onde são praticadas as religiões afro-brasileiras.
Essa pesquisa, financiada pela Unesco, ocorreu em 2010. Em 2011, já no primeiro ano do mandato da presidenta Dilma Rousseff, foi publicado como resultado da pesquisa o livro Alimento: direito sagrado - pesquisa socioeconômica e cultural dos povos e comunidades tradicionais de terreiro, onde os terreiros são entendidos “não apenas como locais de culto religioso, mas também instrumentos de preservação das tradições ancestrais africanas e de luta contra o preconceito e de combate à desigualdade social” (Brasil, 2011, p. 15). As ministras do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), Tereza Campello, e de Política de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República, Luiza Bairros, na apresentação do livro, reforçam:
Dada a centralidade do alimento nas tradições africanas, no cotidiano dos terreiros, é prática central a distribuição de comida, o que levou as lideranças dessas comunidades tradicionais a demandarem do MDS o acesso às políticas públicas específicas e estruturantes que atendam à comunidade de praticantes desta tradição e do entorno de suas casas, que se encontram em situação de insegurança alimentar (Brasil, 2011, p. 15).
As religiões afro-brasileiras foram, assim, deixando de se nomear como religião para se afirmarem como povos e comunidades tradicionais, como demonstram os documentos da própria Seppir. Desde 2003, variadas foram as formas adotadas para fazer menção às religiões afro-brasileiras nos documentos referentes à Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial. Na lei que institui tal política pública, consta a expressão religiões de matriz africana. No relatório de gestão de 2003 a 2006 da Seppir (Brasil, 2007b), a expressão muda para comunidades de terreiro, definidas como: as comunidades “que cultuam religiões de matriz africana e ocupam espaços nas cidades, não apenas com a prática religiosa, mas também com o desenvolvimento de projetos sociais”. A religião passa a ser apenas uma das práticas das “comunidades de terreiro”.
No Plano Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Brasil, 2009), lançado em 2009, uma outra expressão é apresentada: comunidades tradicionais de terreiro. A inclusão da palavra tradicionais à expressão comunidades de terreiro indica um reflexo da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. Mas ainda há a palavra terreiro, uma referência às religiões afro-brasileiras. Finalmente, em 2013, é aforada a expressão povos e comunidades tradicionais de matriz africana, no Plano Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana, desenvolvido no âmbito da Seppir. Aqui é explícita a relação com o decreto 6040, mencionado como um dos marcos legais para a elaboração do Plano, que apresenta a seguinte definição para povos e comunidades tradicionais de matriz africana:
grupos que se organizam a partir dos valores civilizatórios e da cosmovisão trazidos para o país por africanos para cá transladados durante o sistema escravista, o que possibilitou um contínuo civilizatório africano no Brasil, constituindo territórios próprios caracterizados pela vivência comunitária, pelo acolhimento e pela prestação de serviços à comunidade (Brasil, 2013, p. 12).
Nesse último termo, a palavra religião desaparece, inclusive na sua definição. No entanto, se faz presente a ideia de Roger Bastide (1995) de que os terreiros constituem uma pequena África. E mesmo a interpretação de Abdias do Nascimento (1980, p. 101), para quem os terreiros funcionam como efetivos centros de resistência cultural africana. Destacamos também que não há menção alguma à palavra religião em todo o Plano, o que pode sugerir uma nova mudança na estratégia do movimento afro-religioso, somado ao fato de adotarem, mas não sem disputas e entraves, a expressão povos e comunidades tradicionais, pelo menos no que diz respeito às políticas públicas aqui mencionadas. Uma estratégia para se precaver dos embates políticos com parlamentares evangélicos e também com o próprio movimento negro.6
No I Plano Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana, como dito acima, não consta nenhuma menção à palavra religião em seu texto. Conforme a justificativa de representantes do movimento afro-religioso, uma vez que se trata de um estado laico, não se pode ter políticas públicas voltadas para uma denominação religiosa, mas o estado deve garantir que todas as denominações sejam respeitadas e que seus adeptos tenham condições de manter suas práticas religiosas. Essa concepção não era expressa nos primeiros anos da referida política, haja vista o uso do termo “religiões de matriz africana”. No entanto, essa estratégia foi aos poucos sendo construída, a partir de uma interlocução entre representantes do movimento afro-religioso e do poder público, especificamente da Seppir, que, entre 2003 e 2014, manteve o entendimento de que as religiões afro-brasileiras, como detentoras de uma herança africana, haviam de ser contempladas na política pública com vistas a promover a igualdade racial.
Notas finais
O cenário projetado durante os mandatos de Luiz Inácio Lula da Silva e de Dilma Rousseff foi bruscamente rompido em 2016 com o impeachment sofrido pela presidenta no transcurso de seu segundo mandato, e com a posse de Michel Temer como presidente da República. A Seppir, vinculada diretamente à Presidência quando de sua criação, passou a integrar a estrutura do Ministério da Justiça e Cidadania. Mas, desde fevereiro de 2017, quando Temer criou o Ministério de Direitos Humanos, parece que a Secretaria migrou para este último, uma vez que Luislinda Valois, então secretária especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial do Ministério da Justiça e Cidadania, se tornou a ministra dos Direitos Humanos.7 Após essas mudanças, segundo um integrante do movimento afro-religioso, em conversa informal em 2016, o debate constante que existia entre esse movimento e o órgão gestor da política racial arrefeceu.
Ainda não é possível chegar a conclusões fechadas a esse respeito. Mesmo que o trânsito de integrantes do movimento afro-religioso na Seppir tenha diminuído, não se pode ter clareza em relação às consequências deste fato. É importante levar em conta, ainda, que só conversamos com uma pessoa sobre o assunto e que sua opinião não necessariamente representa a opinião geral. Mas, além disso, embora possa haver dúvidas em relação à continuidade das políticas públicas voltadas para a promoção da igualdade racial e diversidade cultural, no governo atual, alguns fatos devem ser levados em conta. Em primeiro lugar, a importância da diversidade cultural para a humanidade está posta em acordos internacionais, assinados também pelo Brasil, e encampados pela Unesco, organização da qual o Brasil é membro. Desse modo, desenvolver ações que visam à preservação da diversidade cultural, não deve ser vista como uma política atrelada a um ou outro governo, mas, como política de estado. Ainda mais no caso brasileiro, que tem um comprometimento com essas questões, reconhecido, inclusive, por diferentes organismos internacionais.
Esse reconhecimento pode ser percebido na própria história da Unesco que, desde o seu início, no pós-guerra, tem o Brasil como referência. Nos anos 1950, por exemplo, o país serviu de parâmetro para a discussão racial proposta pela Organização, a partir da reflexão iniciada por Gilberto Freyre sobre a chamada democracia racial.8 Nessa ocasião, foi desenvolvido o Projeto Unesco, que financiou pesquisas sobre a temática no Brasil. Se nos anos 1950, a preocupação da Unesco era com a integração entre as raças, no final do século 20, o interesse se voltava para a pluralidade das culturas. E, mais uma vez, o país figurava como referência. Nesse caso, a valorização das iniciativas brasileiras voltadas para a preservação do patrimônio cultural imaterial é que ganham relevo, já que elas seriam a efetivação da diversidade. Os diferentes casos de bens imateriais registrados como patrimônio cultural da humanidade pela Unesco, revelam essa valorização.
Por fim, vale destacar que embora as políticas públicas voltadas para a promoção da igualdade racial e da diversidade cultural, mencionadas neste artigo, sejam formuladas no âmbito federal, muitas vezes, sua execução é realizada via estados e/ou municípios. Portanto, a mudança, ainda que brusca, no governo federal, não impede que haja o debate entre os movimentos e o poder público, ou seja, sempre pode haver um espaço para a negociação.
Referências
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1
Ainda hoje são registrados casos de invasão policial em terreiros (Acabaya, 2007; Governador..., 2010).
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2
Muitos estudos têm mostrado como as religiões neopentecostais se apropriam das práticas religiosas afro-brasileiras, aproximando essas religiões que, devido aos constantes ataques, parecem antagônicas. Para uma apresentação de parte da literatura sobre o assunto, bem como para uma reflexão sobre a reação dos afro-brasileiros aos ataques neopentecostais, ver Silva (2007).
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3
A Seppir foi instituída por meio da Medida Provisória 111 (Brasil, 2003a), e convertida na Lei 10.678, em 23 de maio do mesmo ano (Brasil, 2003b).
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5
Em 1980, a Assembleia Geral da ONU promulgou a Declaração sobre a eliminação de todas as formas de intolerância e discriminação fundadas na religião. Esse documento é uma das bases para a defesa da liberdade religiosa e a luta contra a intolerância religiosa. No entanto, a Conferência de Durban associa a intolerância religiosa ao racismo.
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6
Selka (2005) mostra como tem se organizado o movimento evangélico antirracista, que é contrário ao discurso que relaciona as religiões afro-brasileiras à identidade negra. Para esse grupo, existem outros referenciais para se constituir a identidade negra, como, por exemplo, o protestantismo negro norte-americano.
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7
De todo modo, há uma inconsistência no site da Seppir em relação ao seu vínculo. Na página inicial do site, a secretaria aparece vinculada ao Ministério dos Direitos Humanos <http://www.seppir.gov.br> (31 mar. 2017), mas em Sobre a Secretaria lê-se que ela está vinculada ao Ministério da Justiça e Cidadania <http://www.seppir.gov.br/sobre-a-seppir/a-secretaria> (31 mar. 2017).
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8
Na verdade, embora tenha se disseminado a ideia de que a expressão democracia racial seja de Gilberto Freyre, ele adota, em Casa Grande e Senzala, de 1933, a expressão harmonia racial. De acordo com Guimarães (2001), a expressão foi usada antes por Roger Bastide, sendo incorporada por Freyre apenas em 1962.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
May-Aug 2017
Histórico
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Recebido
31 Mar 2017 -
Aceito
07 Jul 2017