Resumo:
Para captar como as juventudes estudantis compreenderam os principais problemas e soluções na pandemia, a pesquisa qualitativa verificou todas as 282 notícias divulgadas entre março de 2020 e setembro de 2021 nas páginas virtuais de duas grandes organizações de estudantes no Brasil e na Argentina: a União Nacional dos Estudantes (UNE) e a Federação Universitária Argentina (Federación Universitaria Argentina, FUA). Os resultados mostraram semelhanças e diferenças na forma como as duas organizações perceberam os temas mais importantes em seus países durante o período. Enquanto na Argentina, mesmo durante a pandemia, as notícias, em sua maioria, versavam sobre o resgate da memória da ditadura, no Brasil a preocupação maior foi com a renda e as vidas ameaçadas pela má condução da pandemia por parte do governo Bolsonaro. No que diz respeito às semelhanças, as duas organizações expressaram preocupação com as desigualdades de gênero, reafirmando a importância dessa agenda nos últimos anos.
Palavras-chave:
Juventude estudantil; Movimento estudantil; Feminismo; Pandemia
Abstract:
To capture how student youths understood the main problems and solutions in the pandemic, qualitative research verified all 282 news published between March 2020 and September 2021 on the virtual pages of two large student organizations in Brazil and Argentina: the National Union of Students (União Nacional dos Estudantes, UNE) and the Argentine University Federation (Federación Universitaria Argentina, FUA). The results show similarities and differences in the way the two organizations perceived the most important issues in their countries during the period. While in Argentina, even during the pandemic, the news was mostly about rescuing the memory of the dictatorship, in Brazil the biggest concern was with income and lives threatened by the poor handling of the pandemic by the Bolsonaro government. In terms of similarities, the two organizations expressed concern about gender inequalities, reaffirming the importance of this agenda in recent years.
Keywords:
Student youth; Student movement; Feminism; Pandemic
Resumen:
Para captar cómo los jóvenes estudiantes entendieron los principales problemas y soluciones de la pandemia, la investigación cualitativa verificó las 282 noticias publicadas entre marzo de 2020 y septiembre de 2021 en las páginas virtuales de dos grandes organizaciones estudiantiles de Brasil y Argentina: la Unión Nacional de Estudiantes (União Nacional dos Estudantes, UNE) y la Federación Universitaria Argentina (FUA). Los resultados muestran similitudes y diferencias en la forma en que las dos organizaciones percibieron los temas más importantes en sus países durante el período. Mientras que en Argentina, incluso durante la pandemia, la noticia se centró principalmente en rescatar la memoria de la dictadura, en Brasil la mayor preocupación fue con los ingresos y las vidas amenazadas por el mal manejo de la pandemia por parte del gobierno de Bolsonaro. En cuanto a las similitudes, ambas organizaciones expresaron su preocupación por las desigualdades de género, reafirmando la importancia de esta agenda en los últimos años.
Palabras clave:
Juventud estudiantil; Movimiento estudiantil; Feminismo; Pandemia
Introdução
A pandemia causada pela COVID-19 se espalhou pela América Latina no início de 2020 atingindo a todos, em especial, as juventudes. Os jovens passaram a trabalhar de forma mais intensa em profissões precárias, sujeitas ao contágio e sem perspectivas de inserção profissional qualificada. Mesmo suas atividades habituais, como estudos e lazer, foram limitadas e precarizadas. Também podemos citar o aprofundamento das desigualdades educacionais, considerando as dificuldades que parte das juventudes tem para acessar as Tecnologias da Informação e Comunicação.
Por outro lado, os jovens vêm se mobilizando politicamente, mesmo nesse período, como mostram estudos mais recentes sobre o impacto da pandemia e das medidas de isolamento social no desenvolvimento de estratégias políticas pelas juventudes (Vázquez et al. 2021Vázquez, Melina, René U. Lara, Jorge Benedicto, Alejandro Cozachcow, Olivia Cristina Pérez, Elisa Guaraná de Castro, Marisa Revilla Blanco et al. 2021. Acciones colectivas durante la pandemia: un estudio comparado sobre repertorios de acción, formas de organización interna y representaciones sobre la política. Argentina, Brasil, Chile, Colombia, Ecuador, España y México, 2020-2021. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: CLACSO. Libro Digital. https://www.clacso.org/wp-content/uploads/2021/08/Observatorio-en-infancias-y-juventudes-A1N1-1.pdf.
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). Representando uma parcela das juventudes, os estudantes, as organizações estudantis tiveram um importante papel na expressão dos problemas e soluções para o período. Mesmo antes da pandemia os coletivos de estudantes ocupavam um lugar de destaque nos processos de mobilização política (Vommaro 2013Vommaro, Pablo. 2013. Las relaciones entre juventudes y políticas en la América Latina contemporánea: una aproximación desde los movimientos estudiantiles. Revista Sociedad 32: 127-44.). O protagonismo das organizações de estudantes antes e durante a pandemia justificam sua escolha para a presente reflexão.
Para captar como as juventudes estudantis compreenderam os principais problemas e soluções na pandemia, analisamos as notícias divulgadas pela União Nacional dos Estudantes (UNE) e pela Federação Universitária Argentina (FUA). Optamos por comparar o Brasil com a Argentina para verificarmos as diferenças e semelhanças nas pautas de organizações sediadas em países com distintas formas de condução da pandemia.
A juventude tem sido objeto de estudo desde o século passado, tendo gerado abordagens conflitantes sobre a definição do que é ser jovem e até qual idade essa faixa etária se estenderia. Adotamos a definição de Boghossian e Minayo (2009), segundo a qual a juventude pode ser compreendida simultaneamente como um momento do ciclo de vida e como um conjunto de condições sociais dos sujeitos. Segundo Dayrell (2003)Dayrell, Juarez. 2003. O jovem como sujeito social. Revista Brasileira de Educação 24: 40-52. https://doi.org/10.1590/S1413-24782003000300004.
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, além das condições sociais (classes), há também aspectos culturais, de gênero e de regiões geográficas que diferenciam a experiência do que é ser jovem. Ciente da variação desse período da vida, utilizamos neste texto o termo juventude estudantil, porque a pesquisa aborda somente organizações de jovens estudantes. É importante ressaltar que, mesmo dentre os jovens estudantes, há grupos distintos em seu interior, incluindo grupos partidários com pautas mais amplas, como o fim do capitalismo, até organizações menores e com pautas mais focadas, como coletivos feministas que se organizam em torno de um único evento (Perez 2019Perez, Olivia Cristina. 2019. Relações entre coletivos com as Jornadas de Junho. Opinião Pública 25 (3): 258-56. https://doi.org/10.1590/1807-01912019253577.
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).
O primeiro objetivo da pesquisa foi verificar os problemas pelos quais passaram a juventude estudantil durante a pandemia, conforme expressados nas notícias das organizações de estudantes. O segundo objetivo da pesquisa consistiu na reflexão sobre os elementos situacionais que ajudam a explicar as diferenças e as semelhanças nas pautas das organizações dos dois países analisados. Ao fazer esse apanhado comparativo, a pesquisa também serve como registro do que foi a pandemia entre os jovens estudantes.
Para captar as pautas das organizações de jovens estudantes durante a pandemia, escolhemos instituições que obedecessem aos seguintes critérios: (1) serem formadas por jovens; (2) terem atuado durante a pandemia; (3) possuírem divulgação das suas ações no período de modo sistemático e disponível para ampla consulta; (4) terem importância no cenário das organizações estudantis nos países selecionados.
Com base nesses critérios, escolhemos no Brasil a União Nacional dos Estudantes (UNE), criada em 1937, sendo a primeira grande organização brasileira institucionalizada a propor uma representação dos estudantes em espaços políticos de projeção nacional (Fávero 1995Fávero, Maria de Lurdes. 1995. UNE em tempos de autoritarismo. Rio de Janeiro: Editora URFJ.; UNE3 3 União Nacional dos Estudantes (UNE). 2021. Memória, s. d. Acessado em 19 set. 2021. https://www.une.org.br/memoria. ). Além da sua importância histórica, a UNE hoje é considerada a entidade máxima dos estudantes brasileiros, reunindo outras entidades representativas dos estudantes, tais como diretórios acadêmicos (DAs), centros acadêmicos (CAs), diretórios centrais (DCEs), uniões estaduais de estudantes e executivas nacionais de cursos, representando, assim, cerca de seis milhões de universitários de todos os 26 Estados e do Distrito Federal.3
Na Argentina, escolhemos a Federação Universitária Argentina (Federación Universitaria Argentina, FUA), criada em 1918 para atuar em prol dos direitos dos estudantes das universidades públicas argentinas. A FUA é constituída pelos Centros de Estudantes de cada Faculdade e pelas Federações Universitárias de cada uma das universidades, representando, assim, quase um milhão e meio de estudantes universitários de todo o país distribuídos nas quase 50 universidades do Sistema Universitário Público Nacional.4 4 Federación Universitaria Argentina (FUA). 2021. Quienes Somos. Acessado em 19 set. 2021. http://www.lafua.org/?page_id=137.
A pesquisa qualitativa utilizou a técnica da análise documental. Dois tipos de documentos foram examinados: os históricos de cada organização estudantil, conforme descritos em suas páginas virtuais, e a totalidade dos comunicados emitidos durante a pandemia. Ao todo verificamos todas as 150 notícias disponibilizadas na página virtual da UNE desde meados de março de 2020 (no começo da pandemia) até o encerramento da pesquisa (setembro de 2021). Já a FUA, divulgou 132 comunicados no período analisado.
As informações foram divulgadas nas páginas oficiais da UNE5 5 Site oficial da UNE. https://www.une.org.br. e da FUA.6 6 Site oficial da FUA. http://www.lafua.org. No caso da UNE, as notícias são compartilhadas em seu blog, indicado na página oficial da entidade. No blog da UNE, os informes são divulgados conforme a data em que foram produzidos e de forma decrescente, e neles há uma foto e um título que, ao serem clicados, direcionam à notícia completa. No caso da FUA, as publicações aparecem logo na página principal do seu sítio eletrônico. Tais notícias são precedidas por fotos seguidas de um breve texto explicativo. Optamos pela sistematização das notícias divulgadas no blog da UNE e no site da FUA porque lá era possível encontrar todas as notícias divulgadas no período e de forma mais completa, quando comparada às chamadas divulgadas nas redes sociais das organizações.
Para a presente pesquisa, foram lidas e sistematizadas todas as 282 notícias das duas organizações e elas foram agrupadas conforme o principal tema de que tratavam. Ainda que tenha sido possível organizar as notícias conforme seus temas, não se pode defini-las quantitativamente de modo exato, considerando que, em geral, elas faziam menção a vários temas, como a necessidade de vacinação para mulheres.
Neste texto apresentamos os principais temas de forma comparativa, para que fosse possível entender as semelhanças e as diferenças na percepção sobre a pandemia pela juventude estudantil em países com medidas sanitárias governamentais distintas. Para exemplificar o conteúdo e a forma de divulgação das notícias, reproduzimos trechos representativos delas. Os trechos selecionados ajudam a compreender os principais problemas e soluções referentes à pandemia segundo a juventude estudantil.
A pandemia conforme a UNE e a FUA
A UNE teve participação importante em eventos marcantes no país, tais como: a luta contra a ditadura militar, em meados dos anos de 1960; as grandes passeatas conhecidas como “Diretas Já!”, que pediam eleições diretas para cargos do executivo no período anterior à redemocratização (Santos 2018Santos, Jordana. 2018. O Movimento estudantil na “democratização”: crise da era Collor e neoliberalismo. Tese em Ciências Sociais, Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).); os protestos conhecidos como “caras pintadas” contra a corrupção do governo do ex-presidente Fernando Collor de Mello, em 1992 (Mische 1997Mische, Ann. 1997. De estudante a cidadão: rede de jovens e participação política. Revista Brasileira de Educação 5: 134-50.); em 2013, nas chamadas “Jornadas de Junho”, em que milhares de brasileiros saíram às ruas a favor de direitos sociais e contra o caráter excludente e pouco eficiente da política parlamentar (Perez 2021Perez, Olivia Cristina. 2021. Sistematização crítica das interpretações acadêmicas brasileiras sobre as Jornadas de Junho de 2013. Revista Izquierdas 1 (50): 1-16.); nas ocupações realizadas por estudantes em universidades e escolas do ensino médio, em defesa da educação, em 2016 (Groppo e Oliveira 2021Groppo, Luís Antonio, e Mara Aline Oliveira. 2021. Ocupações secundaristas em Minas Gerais: subjetivação política e trajetórias. Educação & Sociedade 42: e240770. https://doi.org/10.1590/ES.240770.
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); e nos protestos de 2019 (os últimos antes da pandemia), quando os jovens estudantes foram às ruas contra o bloqueio de recursos anunciados pelo Ministério da Educação naquele ano, já sob o governo Bolsonaro.7
7
G1 Educação. 2019. Protestos e paralisações contra cortes na educação ocorrem em todos os estados e no DF. G1 Educação, 15 maio de 2019. Acessado em 19 set. 2021. https://g1.globo.com/educacao/noticia/2019/05/15/cidades-brasileiras-tem-atos-contra-bloqueios-na-educacao.ghtml.
Foi nesse contexto de agitação política que a pandemia chegou ao Brasil no início de 2020. Ainda no início da propagação pandêmica (maio de 2020), a UNE8 8 União Nacional dos Estudantes (UNE). 2020. UNE Educação, 12 maio 2020. Entidades lançam nota conjunta pelo adiamento do Enem. Acessado em 31 mar. 2022. https://www.une.org.br/noticias/entidades-lancam-nota-conjunta-pelo-adiamento-do-enem. divulgou um comunicado assinado por outras organizações pedindo para que o Ministério da Educação (MEC) adiasse a prova do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), considerando que grande parte dos jovens brasileiros não teria condições para acessar e aprender os conteúdos exigidos na avaliação.
As demandas da UNE no começo da pandemia foram formalizadas por meio de uma carta dirigida ao Congresso Nacional e à sociedade brasileira, divulgada em 5 de maio de 2020, no seu blog.9 9 União Nacional dos Estudantes (UNE). 2020. Carta da União Nacional dos Estudantes ao Congresso Nacional e à Sociedade Brasileira sobre Auxílio Emergencial aos Estudantes de Universidades Particulares. Une, 4 maio 2020. Acessado em 19 set. 2021. https://une.org.br/wp-content/uploads/2020/07/Carta_AuxilioUNE_Final.pdf. De acordo com os dados expressos nessa carta, uma pesquisa do Instituto Semesp havia revelado que, em abril de 2020, houve um aumento de 11,5% na taxa de evasão e de 71% na inadimplência dos estudantes em relação ao mesmo período no ano de 2019, antes da pandemia. A despeito de o Congresso já ter aprovado o auxílio emergencial (benefício para proteger os mais vulneráveis durante a pandemia), a instituição pedia que essa Casa legislativa nacional aprovasse um auxílio emergencial especialmente destinado aos estudantes que tiveram sua fonte de renda própria ou familiar afetadas pela pandemia.
Em outra carta, divulgada em agosto de 2020, a UNE10 10 União Nacional dos Estudantes (UNE). 2020. Carta ao Congresso Nacional. Acessado em 19 set. 2021. https://www.une.org.br/wp-content/uploads/2021/08/carta-aos-poderes-2.pdf. pediu o comprometimento dos poderes com a defesa da educação e da juventude, enfatizando a demanda por emprego e renda para os jovens. A preocupação com o trabalho precário entre os jovens ou com a falta dele apareceu em outras notícias que ressaltavam as reivindicações dos jovens entregadores que trabalham intermediados por aplicativos que, de sua parte, realizaram, no mesmo período, paralisações reivindicando melhorias nas condições de trabalho.10 10 União Nacional dos Estudantes (UNE). 2020. Carta ao Congresso Nacional. Acessado em 19 set. 2021. https://www.une.org.br/wp-content/uploads/2021/08/carta-aos-poderes-2.pdf.
A necessidade de vacina e de cumprimento dos protocolos determinados pela Organização Mundial de Saúde (OMS) para conter o avanço da doença também foram tema da entidade estudantil. Por exemplo, em dezembro de 2020, a UNE11 11 União Nacional dos Estudantes (UNE). 2020. UNE Educação, 2 dez. 2020. Nota sobre decreto do MEC de volta às aulas presenciais. Acessado em 31 mar. 2022. https://www.une.org.br/noticias/nota-sobre-decreto-do-mec-de-volta-as-aulas-presenciais. criticou o MEC por determinar o retorno às aulas presenciais por meio de portarias, sem consulta prévia aos estudantes e sem a ampla margem de vacinação que poderia viabilizar um acesso mais seguro.
A reivindicação em torno da saúde se tornou uma campanha nacional coletiva organizada pela UNE, pela União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes) e pela Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG), exigindo “Vida, Pão, Vacina e Educação!”.12 12 União Nacional dos Estudantes (UNE). 2021. Vida, Pão, Vacina e Educação: entidades aprovam jornada de lutas. UNE Educação, 17 mar. 2021. Acessado em 19 set. 2021. https://www.une.org.br/noticias/vida-pao-vacina-e-educacao-entidades-aprovam-jornada-de-lutas. Sobre a campanha, Rozana Barroso, presidenta da UBES, declarou: “Não podemos perder uma geração para a desesperança, a fome, o trabalho precário, a evasão escolar. Exigimos urgência para vacinar toda a população, exigimos direito à vida!”.13 13 União Brasileira dos Estudantes Secundáristas (Ubes). 2021. Ubes, 16 mar. 2021. Vida, pão, vacina e educação: estudantes exigem prioridades em jornada de lutas. (2021, 16 março). Acessado em 19 set. 2021. https://ubes.org.br/2021/vida-pao-vacina-e-educacao-sao-exigencias-de-estudantes-em-jornada-de-lutas. A campanha aconteceu em um cenário de recorde de mortes diárias por COVID-19 no Brasil, que chegou a quase 600 mil mortos em setembro de 2021.
Extrapolando os temas relacionados à renda e à vacina, para mitigar os efeitos da pandemia, a UNE continuou durante o período se posicionando contra as atitudes pouco democráticas do presidente Jair Bolsonaro (eleito em 2018 pelo Partido Social Liberal, PSL). Por exemplo, a carta de agosto de 2020 denunciava os ataques à autonomia das universidades públicas brasileiras, considerando que parte dos dirigentes das instituições nomeados pelo governo Bolsonaro não representa os mais votados pela comunidade universitária.14 14 União Nacional dos Estudantes (UNE). 2021. Carta ao Congresso Nacional, 11 set. 2021. Acessado em 19 set. 2021. https://www.une.org.br/wp-content/uploads/2021/08/carta-aos-poderes-2.pdf. O documento expressou a defesa da democracia por parte da UNE, em um contexto de ameaça por parte do presidente que, em diversas ocasiões da crise, revelou seu apreço por regimes autoritários.
Além de se posicionar por meio desses documentos, a UNE também esteve presente nos protestos que ocorreram em diversas cidades durante o primeiro semestre de 2021, como os dos dias 29 de maio, 19 de junho e 24 de julho, que ficaram conhecidos pelas siglas referentes às suas datas, 29M e 19J, por exemplo. A pauta principal desses protestos foi a denúncia das ações do governo Bolsonaro e do modo como o Estado nacional vinha conduzindo a prevenção e o tratamento da COVID-19.
É importante ressaltar que os protestos contrários ao projeto representado pelo presidente Bolsonaro já eram frequentes desde o momento em que sua eleição se tornou uma possibilidade menos remota, como o protesto #EleNão (Perez 2021Perez, Olivia Cristina. 2021. Sistematização crítica das interpretações acadêmicas brasileiras sobre as Jornadas de Junho de 2013. Revista Izquierdas 1 (50): 1-16.), no qual milhares de mulheres saíram às ruas, em 2018, em oposição a sua candidatura e contra os seus posicionamentos machistas e sexistas.
Dando continuidade a esse ciclo de protestos, a última notícia pesquisada no site da UNE,15 15 União Nacional dos Estudantes (UNE). 2021. Entidades estudantis convoca atos pelo impeachment de Bolsonaro. UNE Educação, 11 set. 2021. Acessado em 19 set. 2021. https://www.une.org.br/noticias/entidades-estudantis-convoca-atos-pelo-impeachment-de-bolsonaro. em 11 de setembro de 2021, convocava os estudantes para participarem de um novo protesto em 18 de setembro de 2021, com o objetivo de ampliar as mobilizações que pediam o impeachment do presidente Bolsonaro e em defesa da democracia. Convém lembrar também que, longe de ser apenas uma posição recente, a defesa da democracia é uma pauta antiga da instituição, remetendo à sua luta contra a ditadura militar e, não por acaso, reapareceu com nova força sob o governo Bolsonaro.
Na Argentina, a instituição que escolhemos investigar foi a Federação Universitária Argentina, criada em 11 de abril de 1918 como expressão do movimento conhecido como Reforma Universitária.16
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Federación Universitaria Argentina (FUA). 2021. Quienes Somos. Acessado em 19 set. 2021. http://www.lafua.org/?page_id=137.
Os jovens envolvidos na reforma reivindicavam não só a democratização da universidade pública, mas da sociedade como um todo e de seu país, processos esses intimamente ligados (Marsiske 2018Marsiske, Renate. 2018. “La juventud desinteresada y pura”: el movimiento estudiantil en la Universidad de Córdoba, Argentina, 1918. Perfiles educativos 40 (161): 196-215. https://doi.org/10.22201/iisue.24486167e.2018.161.59079.
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).
Na ditadura militar argentina (1976-1983), a Federação foi um importante ator de resistência contra a intervenção das várias administrações nacionais nos governos autônomos das universidades e contra as práticas autoritárias e violentas, que foram o denominador comum desse período.16
Com a entrada de Carlos Menem, durante a década de 1990, a entidade passou a lutar contra o neoliberalismo e em favor da universidade pública. A despeito dessa luta, foi promulgada a Lei do Ensino Superior em 1995, que manteve a universidade pública gratuita para programas de graduação, mas admitiu taxas para programas de pós-graduação e criou a Comissão Nacional de Avaliação e Credenciamento Universitário (Coneau). A Lei foi considerada pelo movimento estudantil de forma negativa, como um avanço da privatização e mercantilização da universidade. A lei foi modificada em 2015 durante o mandato de Cristina Kirchner, garantindo que o financiamento das universidades públicas deva vir do Estado e proibindo qualquer tipo de cobrança.17 17 Federación Universitaria Argentina (FUA). 2021. Quienes Somos. Acessado em 19 set. 2021. http://www.lafua.org/?page_id=137.
Especificamente no contexto da pandemia, a Federação Universitária Argentina divulgou comunicados relacionados à defesa da vacinação e do sistema de saúde. Em maio de 2021, um desses comunicados exigia a liberação de patentes para a produção de vacinas em todo mundo, em uma escala maior.18 18 Federación Universitaria Argentina (FUA). 2021. FUA Comunicado, 16 maio de 2021. Exijamos que liberen las patentes! Acessado em 19 set. 2021. http://www.lafua.org/?p=2427. Conforme a entidade, para encerrar os prejuízos econômicos e sociais provocados pela pandemia, seria preciso: “vacunar a la mayor cantidad de gente en el menor tiempo posible. Las vacunas ya existen y su eficacia está más que probada”.17 Essa é a primeira semelhança com o contexto brasileiro: a preocupação com a vacinação. No entanto, o foco das notícias é diferente: enquanto no Brasil se clama pela vacinação, na Argentina essas notícias aparecem em número menor e com teor menos combativo.
Tais diferenças têm relação com o modo como ambos os governos conduziram a pandemia. No Brasil, o presidente Jair Bolsonaro se posicionou contra as principais recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS), sobretudo quanto ao distanciamento social. O controle do avanço inicial da doença coube aos estados e municípios brasileiros (Perez e Santana 2020Perez, Olivia Cristina, e Luciana Santana. 2020. Ações do Consórcio Nordeste no combate à pandemia de Covid-19. NAU - Social 11 (21): 259-70. https://doi.org/10.9771/ns.v11i21.41997.
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). Daí que as pautas da UNE tenham se direcionado ao governo federal, cobrando dele mais atuação na pandemia, como auxílio aos estudantes e vacinação.
Situação bem diferente foi aquela conduzida pelo governo Argentino que, desde o início da pandemia, despontou como uma referência por decretar rapidamente uma quarentena obrigatória, em 20 de março, além de oferecer respostas nos níveis econômico e social para enfrentar a pandemia.19 19 Carmo, Márcia. 2020. Covid-19: como a Argentina se tornou um dos cinco países com mais casos no mundo. BBC News, 16 out. 2020. Acessado em 18 abr. 2022. https://www.bbc.com/portuguese/internacional-54576548. Nos primeiros meses, as medidas contaram com a adesão de grande parte da população e governadores e prefeitos seguiram as orientações do presidente, mesmo aqueles que faziam oposição ao seu governo.19 Logo o foco da FUA não foi especificamente para derrubar o governo, como no caso do Brasil, dado que lá houve ações mais enérgicas no sentido de conter a doença.
No entanto, a FUA denunciou os cortes promovidos pelo governo, acusados de estarem alinhados às diretrizes neoliberais. As notícias mostravam, por exemplo, que os gastos das universidades públicas não seriam supridos pelos orçamentos fornecidos pelo governo.20 20 Federación Universitaria Argentina (FUA). 2021. FUA Comunicado, 09 jun. 2021. Faltan muchos millones en el presupuesto a los hospitales universitarios. Acessado em 19 set. 2021. http://www.lafua.org/?p=2462. As críticas aos cortes têm relação com o contexto da pandemia, tendo em vista que uma das soluções cogitadas pelo governo argentino seria o ajuste fiscal, ao passo que, conforme os estudantes, o contexto demandaria mais investimento público em educação. Nesses termos, a crítica ao modelo neoliberal, sempre forte na juventude estudantil da Argentina, continuou a ser uma das tônicas durante a pandemia, justamente em um período em que a entidade percebia a necessidade de haver mais gastos sociais – ao contrário da redução proposta pelos governos.
No Brasil, de forma semelhante, uma síntese das notícias divulgadas pela UNE durante a pandemia (de março de 2020 até setembro de 2021) revela que os principais problemas da juventude estudantil poderiam ser parcialmente amenizados com políticas que garantissem o controle da pandemia, além de políticas de emprego, renda, educação e ampla vacinação. Nesse sentido, no Brasil, assim como na Argentina, a aposta para mitigar os efeitos da pandemia estaria na ampliação dos gastos sociais. Com efeito, ambas as instituições combatem um modelo de estado mínimo defendido pelos governos neoliberais que ocuparam e ocupam cargos centrais nos dois países. A diferença é que na Argentina os governos neoliberais não defendem a volta de governos autoritários, como no caso do Brasil atual.
A terceira grande semelhança nas pautas dos movimentos estudantis no Brasil e na Argentina está na ênfase nas desigualdades relacionadas ao gênero. Por exemplo, no Brasil, durante a pandemia a UNE defendeu em diversas postagens a igualdade de gênero, além do combate às discriminações sofridas pela população LGBTQIA+ (iniciais para as palavras lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, queer e intersexuais, sendo que + se refere a outras possibilidades dentro desse universo, como os assexuados e pansexuais). Há inclusive na instituição uma Diretoria LGBTQIA+ que já organizou quatro encontros, sendo que o último ocorreu em julho de 2021, em plena pandemia. Conforme a diretoria LGBTQIA+ da entidade, “apesar da pandemia, dos milhares mortos, do aumento da violência, da fome e do desemprego, nós ainda celebramos nossos amores”.21 21 União Nacional dos Estudantes (UNE). 2021. Um novo tempo há de vencer: diretoria lança 4° Encontro LGBT da UNE. UNE Educação, 28 jun. 2021. Acessado em 19 set. 2021. https://www.une.org.br/noticias/um-novo-tempo-ha-de-vencer-diretoria-lanca-4o-encontro-lgbt-da-une.
Assim como no Brasil, na Argentina o movimento estudantil tem lutado a favor dos direitos das mulheres. Nos anos mais recentes, a FUA teve importante atuação no histórico protesto #NiUnaMenos de 2015 pelo fim da violência contra a mulher, que deu visibilidade à luta feminista em todo o país. A defesa dos direitos para as mulheres na Argentina – expressa em grandes protestos – ocorreu quase na mesma época dos protestos feministas brasileiros em 2018 e do chamado #EleNão. Ou seja, em ambos os países, destaca-se, no início do século 21 a agenda dos direitos para as mulheres.
Inclusive as mobilizações feministas de 2015 na Argentina foram a plataforma para a revitalização dos debates sobre a legalização do aborto, que deram origem a outras grandes manifestações, como as que aconteceram na Argentina em 2018 (#QueSeaLey) durante o debate parlamentar sobre a Lei de Interrupção Voluntária da Gravidez. As mobilizações para a legalização do aborto de 2018 se replicaram em 2020, por conta da apresentação de um novo projeto de lei do Poder Executivo. No final de 2020, a lei pela despenalização e legalização do aborto e pela atenção pós-aborto foi aprovada pelo parlamento argentino.22 22 Centenera, Mar e Federico R. Molina. 2020. Argentina legaliza o aborto e se põe na vanguarda dos direitos sociais na América Latina. 2020. El País, 29 dez. 2020. Acessado em 18 abr. 2022. https://brasil.elpais.com/internacional/2020-12-29/votacao-historica-no-senado-de-projeto-para-legalizar-aborto-na-argentina.html.
Mesmo no contexto da pandemia, a FUA não deixou de apontar a necessidade de combate às desigualdades relacionadas ao gênero. Em dezembro de 2020, no contexto de protestos #QueSeaLey para a legalização do aborto, a entidade externou a seguinte demanda: “lxs estudiantes de todo el país exigimos que miren hacia afuera del recinto y reconozcan a lxs miles que luchamos por el derecho al Aborto legal, seguro y gratuito”.23 23 Federación Universitaria Argentina (FUA). 2021. #Abortolegal2020. FUA Comunicado, 10 dez. 2020. Acessado em 19 set. 2021. http://www.lafua.org/?p=2295. Em meados de dezembro de 2020, quase todas as postagens da Federação dirigiam-se à importância da legalização do aborto que foi conquistada, conforme a própria identidade: “gracias a una lucha incansable y una militancia histórica”.23
A denúncia do feminicídio também continuou sendo uma pauta forte da Federação no contexto da pandemia. Em comunicado divulgado em fevereiro de 2021, a entidade denunciou um caso de uma mulher morta por seu parceiro e reivindicou políticas públicas concretas que assegurassem que as mulheres não fossem mortas por uma questão de gênero.24 24 Federación Universitaria Argentina (FUA). 2021. Justicia por Úrsula. Acessado em 19 set. 2021. Justicia por Úrsula Bahillo. Basta de feminicidios. Fua Comunicado, 10 fev. 2021. http://www.lafua.org/?p=2331. Esses informes revelam a preocupação com as desigualdades de gênero, especialmente no contexto da pandemia.
A FUA também noticiou durante o período da pandemia a falta dos direitos para a população LGBTQIA+: uma notícia comemorava o Dia do Orgulho Gay e a outra relembrando o dia Internacional contra a Homofobia, a Transfobia e a Bifobia. Vale destacar que algumas ações do movimento estudantil universitário argentino ajudaram na conquista de direitos para a população LGBTQIA+. Uma dessas ações foi a promoção de banheiros inclusivos para ambos os sexos ou “sem gênero” e, anos antes, o acompanhamento da luta pela aprovação da chamada Lei do Casamento Igualitário.
A importância do combate às desigualdades relacionadas ao gênero e em defesa da diversidade sexual tem relação com a entrada de demandas de movimentos sociais na agenda governamental em ambos os países.
No Brasil, em 2002, Luís Inácio Lula da Silva foi eleito presidente pelo Partido dos Trabalhadores (PT), intensificando a aproximação do Governo Federal com os movimentos sociais (Santos, Perez e Szwako 2017Santos, Gustavo G. da C., Olivia Cristina Perez, e José L. Szwako. 2017. Gêneros da participação: refletindo sobre limites e possibilidades da participação social na promoção da equidade de gênero e da diversidade sexual em âmbito estatal. Estudos de Sociologia 2 (23): 19-74.). O PT permaneceu no poder por quase treze anos (Lula foi reeleito em 2006 e foi seguido por Dilma Rousseff, também do PT, eleita nos dois pleitos seguintes e retirada do cargo após processo de impeachment, em 2016).
O PT ampliou as Instituições de Participação, como as Conferências de Direitos, eventos que congregavam delegados escolhidos entre atores da sociedade civil para discutir e propor encaminhamentos das políticas públicas em diversas áreas, como juventudes, idosos, afrodescendentes, indígenas, mulheres e LGBTs (Santos, Perez e Szwako 2017Santos, Gustavo G. da C., Olivia Cristina Perez, e José L. Szwako. 2017. Gêneros da participação: refletindo sobre limites e possibilidades da participação social na promoção da equidade de gênero e da diversidade sexual em âmbito estatal. Estudos de Sociologia 2 (23): 19-74.). Houve também importantes avanços legislativos, como a aprovação da Lei Maria da Penha (Lei n.° 11.340/2006), de combate à violência doméstica de gênero, e da Lei do feminicídio (Lei n.° 13.104/2015), que converteu em crime hediondo o assassinato de mulheres em virtude de seu “sexo”.
De forma semelhante à vivida pelo Brasil, embora com algumas singularidades, desde o início do século 21 a Argentina vive um processo de ampliação de direitos e de crescente reconhecimento da diversidade social. Em 1999 foi eleito Fernando de la Rúa, pela União Cívica Radical, partido de centro-esquerda e mais afinado com o horizonte dos movimentos sociais. No último pleito, os movimentos sociais apoiaram Alberto Fernández (presidente eleito em 2019 pelo Partido Justicialista) e o chefe de Estado os incluiu em espaços de poder. Dentro do conjunto de leis que foram aprovadas nas primeiras décadas do século 21, destacamos os chamados “Matrimonio igualitário” (2010) e a Identidade de Gênero (2012).
A preocupação com as desigualdades sociais relacionadas a gênero e à sexualidade nos movimentos estudantis dos dois países e, no caso do Brasil, à raça, também tem relação com a ampliação do acesso às universidades, alterando, assim, os temas de reivindicação dos movimentos estudantis.
No Brasil, em 2007, foi criado o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni). Ele tinha entre seus objetivos principais ampliar o acesso à educação superior e a permanência na mesma e, por conta dessas orientações, foram criados novos campi no interior do país.25 25 Brasil. 2012. Análise sobre a Expansão das Universidades Federais 2003 a 2012. Portal do Ministério da Educação (MEC): Brasília. Acessado em 19 set. 2021. http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=12386-analise-expansao-universidade-federais-2003-2012-pdf&Itemid=30192. Além da expansão das universidades e da ampliação de vagas, as chamadas políticas de ações afirmativas – também conhecidas por cotas – passaram a ser discutidas e implementadas no Brasil a partir de 2001, resultando na inclusão de estudantes pobres e negros nas universidades. A Pesquisa Nacional por amostra de Domicílio contínua26 26 Pesquisa Nacional por amostra de Domicílio contínua (Pnad). 2019. IBGE, Educação – 2019. Acessado em 19 set. 2021. https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101736_informativo.pdf. mostrou que, no ano de 2019, pela primeira vez na história do país, estudantes pretos e pardos em conjunto passaram a compor maioria nas instituições de ensino superior da rede pública do país (50,3%).
Já na Argentina as políticas públicas voltadas para o combate às desigualdades sociais na educação superior implantadas entre 2003 e 2015 podem ser organizadas em dois tipos, conforme Beltrán e Obeide (2021)Beltrán, Natacha, e Sergio Obeide. 2021. Políticas universitarias de inclusión social en la Argentina durante los gobiernos kirchneristas. Una lectura desde la producción académica y el discurso oficial. Revista de la educación superior 50 (197): 19-39. https://doi.org/10.36857/resu.2021.197.1577.
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: a criação de novas universidades e o auxílio financeiro aos estudantes. Ambas as políticas cresceram nesses anos. Por exemplo, o número de bolsas e apoios a estudantes universitários multiplicaram-se por 28 entre 2000 e 2012, enquanto entre 2003 e 2015 foram inauguradas dezessete novas universidades nacionais (Beltrán e Obeide 2021Beltrán, Natacha, e Sergio Obeide. 2021. Políticas universitarias de inclusión social en la Argentina durante los gobiernos kirchneristas. Una lectura desde la producción académica y el discurso oficial. Revista de la educación superior 50 (197): 19-39. https://doi.org/10.36857/resu.2021.197.1577.
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).
As políticas públicas e as novas leis foram expressão de um processo de mobilização e de visibilidade pública no qual os jovens implantaram propostas que buscaram produzir igualdades a partir do reconhecimento da diversidade (Vommaro 2019Vommaro, Pablo. 2019. Desigualdades, derechos y participación juvenil en América Latina: acercamientos desde los procesos generacionales. Rev. Direito Práxis 10 (2): 1192-1213. https://doi.org/10.1590/2179-8966/2019/40829.
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). Segundo Blanco e Spataro (2019)Blanco, Rafael, e Carolina Spataro. 2019. Con/contra las estrategias institucionales: percepciones de estudiantes universitarios ante iniciativas contra violencias sexistas. Revista Nómada 51: 173-89. https://doi.org/10.30578/nomadas.n51a10.
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, a mobilização das juventudes foi expressa nas universidades argentinas por meio das seguintes práticas e ações: demanda por ferramentas institucionais para enfrentar a violência sexista no ambiente universitário; crescimento das “questões de gênero” nas causas militantes do ativismo universitário; teorização sobre a violência a partir de uma perspectiva situada nos diferentes contextos em que ela ocorre; implementação de diferentes instrumentos e estratégias institucionais visando a sua erradicação. Na Universidade de Buenos Aires, por exemplo, foi aprovado em 2015 o “Protocolo de Ação Institucional para a prevenção e intervenção em situações de violência ou discriminação com base no gênero ou orientação sexual” (Blanco e Spataro 2019Blanco, Rafael, e Carolina Spataro. 2019. Con/contra las estrategias institucionales: percepciones de estudiantes universitarios ante iniciativas contra violencias sexistas. Revista Nómada 51: 173-89. https://doi.org/10.30578/nomadas.n51a10.
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, 174).
Essa expansão da politização juvenil em um processo geracional que se desdobra nas dimensões de gênero, diversidade e sexualidade também foi abordada por Silvia Elizalde (2019Elizalde, Silvia. 2019. Hijas, hermanas, nietas: genealogías políticas en el activismo de género de las jóvenes. Revista Ensambles en Sociedad, Política y Cultura 4: 86-93., 90), que afirma:
las jóvenes imprimen un sello temático, estético-expresivo y generacional específico a los activismos de género que protagonizan. Recuperan temas “clásicos” del feminismo (el aborto y la autodeterminación de los cuerpos de las mujeres; la denuncia contra la violencia y los femicidios) pero incluyen tópicos propios de su experiencia vital, como el acoso sexual y callejero, los “micromachismoos” y el “lenguaje inclusivo”. Asimismo dotan de una dimensión espectacularizada a sus acciones y performances públicas – las llaman también “la generación glitter” –, y articulan fluida y constantemente sus interacciones cotidianas y de praxis política con una variedad de lenguajes, soportes y mediaciones tecnológicas. En este sentido, su activa participación en la escena política asociada a derechos está marcada tanto por el diálogo y la complicidad intergeneracional con las mayores, como con cierta variabilidad de posicionamientos frente a los feminismos organizados.
Como resposta a essas demandas das juventudes, foram criadas algumas políticas públicas que reconhecem o caráter multidimensional das desigualdades sociais. Por exemplo, em agosto de 2021, a Secretaria de Políticas Universitárias da Argentina lançou a convocação para a criação e o fortalecimento de espaços institucionais de gênero nas universidades públicas a partir do diagnóstico de assimetria dessas relações nas universidades.
Se a percepção argentina sobre a necessidade de combater desigualdades relacionadas ao gênero no início do século 21 assemelha-se ao processo que está em curso no Brasil, por outro lado, as pautas expressas pelo movimento estudantil argentino contêm diferenças importantes em relação ao debate brasileiro. Enquanto no Brasil, por questões históricas, há uma preocupação com a questão racial interseccionada com gênero, o movimento estudantil argentino dedica parte de suas postagens a lembrar os desaparecidos durante a ditadura militar, o que é realizado por meio da hashtag #MemoriaVerdadyJusticia.
Explicando melhor essas diferenças, durante a pandemia (em julho de 2021) a UNE noticiou a vitória da primeira presidente negra da história da instituição. A possibilidade de que estudantes negros passassem a presidir a organização foi atribuída pela entidade ao sistema de cotas que possibilitou a entrada de estudantes negros e pobres nas universidades públicas brasileiras nos últimos dez anos. Conforme a instituição, “agora, fruto da transformação do ensino superior no Brasil e das políticas de democratização pelas quais a UNE tanto luta, uma mulher negra e nortista chega ao posto máximo da entidade, representando milhares de outras brasileiras por todo o país”.27 27 União Nacional dos Estudantes (UNE). 2021. UNE Educação, 9 ago. 2021. 84 anos da UNE e cinco marcos recentes na história da entidade. Acessado em 19 set. 2021. https://www.une.org.br/noticias/84-anos-da-une-e-cinco-marcos-recentes-na-historia-da-entidade. A nova gestão da UNE seria efeito e ao mesmo tempo um catalisador desse processo. As questões racial e de gênero são tão importantes para a organização que já foram criadas nove edições dos Encontros de Mulheres Estudantes da UNE e sete Encontros de Estudantes Negros, Negras e Cotistas da UNE. Vale lembrar que o Brasil tem a maior população negra fora da África e a segunda maior do planeta: conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística28 28 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). 2019. Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil. Acessado em 19 set. 2021. https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/25844-desigualdades-sociais-por-cor-ou-raca.html?=&t=resultados. a maioria da população brasileira é negra (os pretos correspondem a 9,3% e os pardos a 46,5%), enquanto as mulheres brancas recebem 70% a mais que mulheres negras. Logo as desigualdades de gênero, etnia e classe social estão inter-relacionadas.
Já no caso da FUA, durante o período da pandemia, a maior parte dos comunicados poderia ser classificada como pertencente ao âmbito das políticas de memória, na medida em que celebram datas, eventos e líderes importantes, sobretudo os que foram mortos durante a ditadura e os que, mediante participação no movimento estudantil, contribuíram para a luta pela igualdade e pela justiça social na Argentina. Os comunicados lembram, por exemplo, os quinze anos do desaparecimento de Jorge Julio Lopez, vítima do ex-policial Miguel Etchecolatz, que trabalhou na Polícia Provincial de Buenos Aires durante os primeiros anos da ditadura militar, na década de 1970.29 29 Federación Universitaria Argentina (FUA). 2021. ¿A qué te podés acostumbrar? FUA Comunicado, 18 set. 2021. Acessado em 19 set. 2021. http://www.lafua.org/?p=2533. Outro comunicado com preocupações de mesma ordem lembrava os estudantes rio-platenses que defendiam a educação e que foram sequestrados e torturados pela ditadura militar 45 anos atrás.30 30 Federación Universitaria Argentina (FUA). 2021. Los lapices siguen escribiendo. FUA Cominicación, 16 set. 2021. Acessado em 19 set. 2021. http://www.lafua.org/?p=2524. O que se nota, assim, é que esse debate acompanha a instituição que, assim como no caso brasileiro, teve um importante papel na luta contra a ditadura.
Percebe-se, então, que a repulsa à ditadura é mais forte no caso Argentino e isso pode ser mais bem compreendido pela trajetória dos regimes e adesão à democracia. Um estudo feito por Pérez-Liñán e Mainwaring (2014)Pérez-Liñán, Aníbal, e Scott Mainwaring. 2014. La supervivencia de la democracia en América Latina (1945-2005). América Latina Hoy 68:139-68. https://doi.org/10.14201/alh201468139168.
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reforça esse argumento ao demonstrar a existência de uma forte adesão normativa à democracia na Argentina. Já no Brasil persiste um certo apoio a valores não democráticos. Em estudo comparando países do Cone Sul, Gallo e Souza (2013)Gallo, Carlos A., e Bruno M. Souza. 2013. Legados culturais do autoritarismo na Argentina e no Brasil. VI Seminario Internacional Políticas de la Memória. Buenos Aires: Universidade de Buenos Aires. constataram que os brasileiros apresentavam percentual menor do que os vizinhos no que tange à preferência pela democracia.
No entanto, ainda que a UNE não tenha divulgado nenhuma notícia que resgate a memória dos mortos e desaparecidos durante a ditadura, a preocupação com a volta do regime está expressa em suas denúncias e participação em atos contra o viés autoritário do governo Bolsonaro. Nesse sentido, a luta contra o governo Bolsonaro é também uma luta contra os regimes autoritários e a favor da democracia.
Em suma, por conta da trajetória dos dois países, o debate racial tem forte apelo no Brasil, enquanto as políticas de memória são uma das principais tônicas na Argentina. Mas, de forma semelhante, as duas entidades divulgaram durante a pandemia notícias relacionadas às desigualdades de gênero, mostrando a importância e a relação desse tema com o período da pandemia. Por fim, conforme se desprende das notícias divulgadas das duas instituições, a pandemia agravou as desigualdades sociais e daí a tônica das entidades na importância de políticas sociais democráticas.
Considerações finais
A pesquisa mostrou as diferenças nas pautas de movimentos estudantis conforme notícias divulgadas pela UNE e pela FUA no Brasil e na Argentina durante o período da pandemia (de meados de março de 2020 até setembro de 2021). É possível perceber algumas semelhanças nessas pautas, como a defesa da igualdade de gênero. Para explicar esse resultado, mostramos avanços nas políticas públicas dirigidas a esses grupos que passaram a incorporar demandas de movimentos sociais.
Quanto às diferenças, apontamos a crítica ao neoliberalismo por parte da organização Argentina, enquanto no Brasil há uma defesa da democracia e uma forte crítica ao governo autoritário de Bolsonaro, que teria sido negligente no combate e na prevenção ao COVID-19. Outra diferença importante nas pautas das entidades dos dois países diz respeito à preocupação com a questão racial, muito mais presente no Brasil do que na Argentina. Já na Argentina, a memória em relação ao período ditatorial é central. Essas diferenças têm relação com o contexto, formação, magnitude e importância dadas aos fatos históricos nos dois países.
O estudo contribui para as pesquisas sobre juventude estudantil, na medida em que faz um apanhado histórico do que aconteceu nesse período, mas também ao explicar diferenças e similitudes entre as pautas das organizações da juventude nos dois casos.
Apesar das conjunturas nacionais distintas e das diferentes histórias da UNE e da FUA, acreditamos que as semelhanças em suas pautas atuais se devem a configurações de agendas geracionais marcadas por causas e questões emergentes em âmbito nacional e regional. Assim, no que se refere a um direcionamento futuro para as pesquisas, apostamos na explicação geracional para uma melhor compreensão das semelhanças entre as pautas dos movimentos sociais nos diversos países da América Latina.
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Os textos deste artigo foram revisados pela Poá Comunicação e submetidos para validação do(s) autor(es) antes da publicação.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
18 Ago 2023 -
Data do Fascículo
Jan-Dec 2023
Histórico
-
Recebido
16 Nov 2021 -
Aceito
19 Jan 2022 -
Publicado
21 Jul 2023