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Coronelismo sem sujeito: ilegalismos coloniais e concentração de poder

Resumo

No curso Em defesa da sociedade, Foucault aborda o trânsito entre políticas que, inventadas nas colônias, retornam à Europa, no que ele chama de “colonialismo interno”. Graham faz disso uma imagem pela qual trata da crescente militarização das grandes capitais do mundo segundo o modelo da ocupação colonial. Mas o que retorna das periferias para os grandes centros mundiais não é apenas militarização, mas um conjunto de relações que escapam às leis e à dimensão oficial, a que Foucault dera o nome de ilegalismos. Embora ele nunca tenha analisado o jogo destas relações entre centro e periferia, estas táticas de contornamento das normas aparecem como matéria de certa tradição crítica brasileira cuja acuidade analítica vamos retomar.

ilegalismos; Michel Foucault; colonização; coronelismo; Victor Nunes Leal

Abstract

In Society Must Be Defended, Foucault approaches the movement between political practices that, originated in colonial territories, return to Europe (“internal colonialism”). Graham makes a metaphor out of this concept, through which he addresses the growing militarization of the world’s great capitals according to the model of colonial occupation. However, what returns from the peripheries to the great world centers is not just militarization, but a whole set of relationships that escape the laws and the official dimension, which Foucault called illegalisms. Although he never analyzed the interplay of these relationships between center and periphery, the tactics of circumventing norms appear as a matter of reflection for a certain Brazilian critical theory, whose analytical acuity we intend to revisit.

illegalisms; Michel Foucault; colonization; colonelism; Victor Nunes Leal

Introdução

Quando o geógrafo britânico Stephen Graham (2013)GRAHAM, S. (2013). Foucault's boomerang: the new military urbanism. OpenDemocracy, 14 Feb. Disponível em: https://www.opendemocracy.net/en/opensecurity/foucaults-boomerang-new-military-urbanism/. Acesso em: 2 jul 2024.
https://www.opendemocracy.net/en/opensec...
, em um texto de intervenção breve e contundente, sugeriu a noção – que, mais tarde, o notabilizou – do “bumerangue de Foucault”, não podia divisar o continente teórico que faria emergir. Graham retoma um comentário de Michel Foucault à importância da conquista colonial para a invenção de formas políticas a serem praticadas no espaço europeu. A partir de Foucault, ele quer enfatizar a situação experimental de zonas coloniais convertidas por suas potências em laboratórios de contenção e guerra interna a populações civis. Mais tarde, essas táticas de forte militarização da vida civil podiam ser aplicadas no próprio território das metrópoles coloniais, a fim de realizar a efetiva contenção de suas populações internas, sempre sob o risco de sedição.

A referência ligeira ao tema deste “colonialismo de retorno”, sempre na relação com a política interna dos Estados europeus, aconteceu na aula de 4 de fevereiro de 1976 do curso no Collège de France que ficou, depois, conhecido como Em defesa da sociedade (Foucault, 2010FOUCAULT, M. (2010). "Aula de 4 de fevereiro de 1976". In: FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo, WMF Martins Fontes.). Trata-se do curso sobre a estatização de um tipo de discurso histórico, aquele que, no rescaldo do romantismo das doutrinas nacionalistas do século XIX, interpreta a origem dos povos por seu antagonismo belicoso com civilizações rivais. É o discurso mitológico da “guerra das raças”, incorporado como matriz do direito público de diversos Estados europeus. Para Foucault, esse discurso será, no decorrer do século XIX, integrado a políticas de Estado que realizam discriminações culturais, políticas, classificatórias e hierarquizantes, no interior das populações nacionais. Ele está no fundamento de uma formação política que Foucault denomina como “racismo de Estado”, que, sob o signo da guerra, atravessaria perpendicularmente toda a política moderna e teria seus epígonos no racismo abertamente exterminista dos totalitarismos do século XX.

Graham (2016)GRAHAM, S. (2016). Cidades sitiadas: o novo urbanismo militar. São Paulo, Boitempo. quer, contudo, fazer aparecer desde aí outra face da genealogia que Foucault empreendera. Instado pela crescente violência que, hoje, os Estados dirigem abertamente contra suas populações nacionais (ou, antes, contra os setores tidos como marginais e “de risco”, segmentos, contudo, cada vez mais ampliados das classes populares), ele enfatiza a emergência dessa permanente militarização da gestão estatal, do convívio civil e da vida urbana, das frações racializadas da população tomadas como alvo no interior das sociedades avançadas do mundo contemporâneo. Violência institucional, antes, só praticável nas periferias mais remotas do sistema mundial de nações (ou além das famigeradas amity lines, teorizadas por Carl Schmitt).1 1 Ver Schmitt (2014). Relativizando a oposição entre centro e periferia do capitalismo mundial, as grandes metrópoles do mundo avançado seriam cada vez mais administradas como territórios fraturados entre “zonas verdes” pacificadas e áreas conflagradas, ocupadas por imigrantes e outras populações desclassificadas, sob extenso e intensivo controle de rastreamentos, vigilância contínua, barreiras e checkpoints (Graham, 2016GRAHAM, S. (2016). Cidades sitiadas: o novo urbanismo militar. São Paulo, Boitempo.; Brown, 2009BROWN, W. (2009). Murs: Les murs de séparation et le déclin de la souveraineté étatique. Paris, Les Prairies Ordinaires.; Das e Poole, 2004DAS, V.; POOLE, D. (orgs.) (2004). Anthropology in the margins of the State. Santa Fe, School of American Research Press.). A agressiva normalidade das margens do sistema, de países e territórios em contenção permanente (sob “guerras de baixa intensidade”) pela estabilização de populações e recursos econômicos e políticos, vai sendo, aos poucos, interiorizada à urbanidade ordinária dos antes pacatos cidadãos do primeiro mundo, atualmente em busca de bodes expiatórios e culpados tangíveis e imputáveis por sua situação financeira e social declinante.

Do “colonialismo reverso” (ou “interno”) de Foucault ao “efeito bumerangue” de Graham, o trânsito entre situações periféricas ou coloniais e os centros decisórios das sociedades avançadas torna-se tema de primeira grandeza no ensaísmo crítico, atravessado ainda pela atualidade da maré epistemológica das lutas por reconhecimento dos grupos subalternizados, da denúncia das dominações de gênero, do antirracismo e da assim chamada decolonialidade.2 2 Entre a grande produção a respeito, ver Segatto (2021); Lugones (2020); Quijano (2001-2002); e Gonzalez (2020). Mas, entre os que vivem ao sul do Equador, este trânsito não é exatamente uma novidade. Há dele indícios, já há bastante tempo, numa sedimentada tradição de pensamento crítico (Schwarz, 2019a e 2019b) que, na análise das então chamadas limitações estruturais para a instalação de uma sociedade moderna em um país de pesado passivo colonial e escravista, fez ver uma pletora de recursos e artifícios que, mesmo sob condições de aberta violência e profunda desconexão administrativa, econômica e política, deu curso a um tipo muito peculiar de dominação. Esses recursos parecem cada vez mais ajustados às realidades disruptivas das sociedades avançadas do mundo desenvolvido em colapso (Arantes, 2004ARANTES, P. (2004). "Fratura brasileira do mundo". In: ARANTES, P. Zero à esquerda. São Paulo, Conrad.).

Como essas análises puderam, ao menos parcialmente, antecipar, para nossa especulação doméstica, desenvolvimentos que só depois teriam assento nas teorizações das principais linhagens críticas do mundo avançado é matéria a ser debatida um pouco adiante. Que a nossa tradição crítica possa, ela também, reverter numa radicalidade renovada para o pensamento social das sociedades avançadas seria um “efeito bumerangue” de segunda ordem que, por muito que seja esperado, contudo, não podemos calcular. Voltemos, então, por ora, à invenção fecunda de Graham. Vejamos mais de perto o que ainda se pode extrair desta iluminação rápida de Foucault, fulguração que, no curso de 1976, cristalizou na imagem que nos deu o geógrafo britânico de uma urgente e, para alguns, oportuna derrocada trágica das formações de integração social do Ocidente.

Foucault: da guerra ao direito

É fato que Graham deu à noção de “colonialismo interno”, de Foucault, uma atualidade que, embora não fosse diretamente visada ali, em 1976, tem sua pertinência pelo valor de demonstração daquilo que é, hoje, patentemente dramático na segregação de frações inteiras da população e na militarização deliberada que corrobora esta cisão nos grandes centros urbanos. Condição que, se é recente nas cidades globais do primeiro mundo, está desde sempre na paisagem das periferias modernas do Sul. O uso que faz do comentário foucaultiano está, aliás, em afinidade, inclusive, com as recomendações de método da “caixa de ferramentas” que Foucault quis abrir. Mas a referência específica, da qual emerge o comentário de Foucault sobre “toda uma série de modelos coloniais que foram trazidos para o Ocidente e que fez com que o Ocidente pudesse praticar também em si mesmo algo como uma colonização” (Foucault, 2010, pp. 120-121), está menos no presente das relações entre centro e periferia capitalistas que no tempo mesmo em que a colonização se instalara. O efeito retroverso da colonização na organização política dos reinos e impérios europeus é indicado pela referência já do final do século XVI que ele apresenta na aula.

É a citação de um argumento em apoio à centralização do poder na Grã-Bretanha, datado de 1581, que suscita o comentário de Foucault (ibid.). O argumento é peça da enorme controvérsia que tem lugar na Inglaterra quando da difícil sucessão da rainha Elisabeth I, antessala da União das Coroas de Escócia, Irlanda e Inglaterra, de 1603. A ascensão dos Stuarts, na figura do rei Jaime, da Escócia, se fará numa controvérsia sobre os direitos do trono e aqueles do Parlamento. A União das Coroas é o objetivo do rei e a sucessão dá a ocasião para se fazer valer sua intenção de, por força da União, alijar o Parlamento e recuperar as prerrogativas divinas e absolutas da monarquia. Para tal, o argumento de um dos seus apologetas, o escocês Adam Blackwood, vai apelar para “uma estranhíssima, mas importantíssima, analogia” (ibid., p. 120), na correspondência entre três vetores: a então corrente conquista colonial da América, coetânea da sucessão; a velha invasão e conquista normanda da Saxônia, de 1066; e a centralização pretendida pelo rei Jaime.

No texto de Blackwood, o fato da colonização, no século corrente, atualizaria um velho direito de conquista medieval, de garantir ilimitados poderes, que a soberania quer fazer valer sobre seus súditos na metrópole. É de direitos que se está tratando aí, de seu eventual fundamento na conquista e do trânsito desses direitos da colônia para a metrópole.3 3 “E, quando ainda era apenas rei da Escócia, Jaime I dizia que, como os normandos tomaram posse da Inglaterra, as leis do reino são estabelecidas por eles – o que tinha duas consequências. Primeiro, que a Inglaterra fora tomada e, portanto, que todas as terras inglesas pertenciam aos normandos e ao chefe dos normandos, ou seja, ao rei. [...] Segundo o direito não tem de ser o direito comum às diferentes populações sobre as quais se exerce a soberania; o direito é a própria marca da soberania normanda, foi estabelecido pelos normandos e é evidente para eles” (Foucault, 2010, p. 119). A guerra aí comparece como fundamento, não como ameaça. O que está em jogo é uma pretensão de direitos fundada na legitimidade da conquista de um povo por outro que, por força deste ato, ganharia a prerrogativa extraterritorial de impor suas leis. E da transmissão do fundamento de um direito que se constitui assim, de fato, nas colônias, para se resolver os termos de uma complicada sucessão dinástica na metrópole. Não há como não indicar aí a inversão: é no espaço exterior ao direito comum, nas colônias, que se busca o fundamento de uma soberania europeia.

No Parlamento Inglês, surgem contra-argumentos que igualmente historicizam as leis, contudo em termos opostos. Para a maioria dos representantes, a invasão normanda resultou, no fundo, não numa conquista, mas no exercício de uma sucessão dinástica legítima. O rei vitorioso, soberano da Normandia e herdeiro da coroa da Saxônia, ao derrotar seu rival, herdara a coroa do rei morto, e, portanto, submetera a vitória de seu exército à lei do povo (e de seu Parlamento) cujo rei derrotara. Desde então, precisa tomar como suas as leis da Saxônia. Isto válido para os moderados. Para os radicais no Parlamento, levellers e diggers, entretanto, uma nova inversão: Jaime I está certo na narrativa da conquista, mas suas pretensões, com ela, são espúrias: as leis da monarquia são, de fato, leis estrangeiras e, logo, ilegítimas. O Parlamento não pode anuir as leis de conquista sem ameaçar a soberania da Inglaterra. Se o rei assim pretende, deve ser visto como inimigo. A querela opõe direitos contra direitos, ora no fundamento histórico da legitimidade, ora no conteúdo normativo de sua vinculação. No desenrolar da controvérsia, aparece a carta da Conquista da América em curso, como prova da atualidade legítima de uma pretensão que se funda na guerra. O jogo das correspondências entre o poder extraterritorial da conquista colonial e o exercício da soberania no território da metrópole, de toda forma, dizia respeito, na aula de Foucault, a algo mais que as técnicas de controle militar sobre o povo e a terra conquistados.

Do direito aos ilegalismos

Esta enorme problematização histórico-jurídica de uma soberania em causa, entre sua fragmentação por diferentes reinos e sua unificação, é uma das formas primeiras que assume, neste curso de Foucault (2010)FOUCAULT, M. (2010). "Aula de 4 de fevereiro de 1976". In: FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo, WMF Martins Fontes., em 1976, o discurso histórico da “guerra das raças”. Na Inglaterra do final do século XVI, invoca-se e contesta-se o direito de um povo submeter outro a suas leis: o direito público está em suspenso; a legitimidade do poder está em causa; a legalidade das condutas é duvidosa. Tem-se aí o caldo das controvérsias onde fermentarão, a seguir, as revoluções inglesas e todas as suas sedições e banimentos (muitos deles, como sabemos, para o território das colônias americanas, sombra ultramarina que, desde então, paira sobre todas as crises das soberanias europeias). Mas todas essas disrupções de natureza eminentemente política, que têm lugar entre líderes e grupos dirigentes da comunidade, mas que podem evoluir – e, de fato, culminaram – na revolta e na sedição, toda essa criticabilidade do direito, e mesmo as exigências mais radicais de sua derrogação, não são senão os extremos de uma conflitualidade mais difusa e generalizada que atravessa todo o tecido das convenções sociais, mesmo nos momentos de paz, ainda que só alcance os próceres nas situações agudas de crise.

A sedição como recusa absoluta da lei é o extremo de um gradiente que Foucault já apresentara antes como muito mais diferenciado e que recobre toda a gama daquilo que, já em 1973, ele definira como ilegalismos. Práticas de violação sistemática de leis e regulamentos, condutas ora abertamente ilegais ora fazendo das leis um uso puramente instrumental e tático, manipulando seus limites e as tolerâncias dos aparatos de repressão e controle, os ilegalismos atravessam as formações sociais de alto a baixo e, aqui e ali, formam sistemas de relações bastante estáveis, embora sempre circunstanciadas, entre diferentes classes, “por ser quase um modo de funcionamento da sociedade inteira” (Foucault, 2015FOUCAULT, M. (2015). Sociedade punitiva: curso do Collège de France (1972-1973). São Paulo, WMF Martins Fontes., p. 131).4 4 “Tinha-se a junção de ilegalismo popular com o ilegalismo dos comerciantes, ilegalismo dos negócios. Tinha-se também, diante disso, o ilegalismo dos privilegiados que escapavam à lei por estatuto, tolerância ou exceção. Entre esse ilegalismo privilegiado e o ilegalismo popular, havia diversas relações, algumas das quais antagônicas” (Foucault, 2015, pp. 131-132). “Aquilo que foi preciso dominar, que o aparato estatal precisou controlar por meio do sistema penitenciário a pedido da burguesia, foi algo que teve a sedição apenas como caso particular e constituiu um fenômeno mais profundo e mais constante: o ilegalismo popular” (ibid., p. 130).

Os ilegalismos não são tratados no curso de 1976, mas num conjunto de aulas de um curso anterior de Foucault, aquele dos anos de 1972-1973, depois publicado como A sociedade punitiva (ibid.). Ali, essas práticas são descritas como a formação de um espaço estratégico em que a velha nobreza, a burguesia ascendente, os populares e os funcionários do Estado absolutista realizam entendimentos que têm por referência as leis, mas que instauram, entre os sujeitos concernidos por uma regulamentação, um espaço de negociações e acordos extralegais, na maioria provisórios, mas alguns bastante duráveis. Esses acordos estabilizam certos usos da lei que não a vinculação estrita das condutas ao conteúdo das normas. A letra da lei serve de referência para estabelecer, em suas margens, os excessos, eventuais abusos, os escamoteamentos tolerados, as “vistas grossas” e brechas, aquilo que, segundo uma economia dos interesses e valores em jogo, será ou não consentido, ignorado, visado ou reprimido, nas tantas condutas que escapam à norma.

A capacidade de cada uma das classes, ou grupos de interesse implicados nesta negociação, realizarem estas filtragens – ou a “gestão diferencial” dessas práticas – é uma função da influência social desses grupos, ou da sua riqueza material (para comprar ou vender “proteção” e outras “mercadorias políticas”),5 5 O termo não é de Foucault, mas do sociólogo brasileiro Michel Misse (1997), sob forte inspiração do conceito weberiano de “capitalismo político”. sua ascendência moral, do acesso diferencial a mecanismos de sanção, controle e punição. A apropriação desses recursos é alvo de lutas na sociedade. E a aurora do mundo moderno, com a ascensão da classe burguesa, é a ocasião para uma conflagração generalizada dessas lutas; dá lugar a uma enorme desestabilização desses acordos ilegais ou extralegais, e muda o foco daquilo que, daí em diante, será fortemente reprimido ou tolerado, sob a cobertura oficial da igualdade de todos ante a lei. Para Foucault, uma grande crise política, que aparece como crise de legitimidade, ou a reversão completa de uma ordem social, por meio de uma revolução, por exemplo, tem como substrato efetivo uma crise dessa “gestão diferencial dos ilegalismos”.6 6 A noção já está em circulação no curso de 1973 (Foucault, 2015), indicando, inclusive, a centralidade que a classe burguesa imprime à questão, quando assume o aparato judicial-punitivo do Estado. “Por trás de tudo isso, havia a burguesia, que ocupava uma posição ambígua: apoiava essas lutas antilegais desde que elas lhes servissem, dava-lhe as costas quando caíam na criminalidade do direito comum ou quando assumiam a forma de lutas políticas. Aceitava o contrabando, recusava o banditismo; aceitava a recusa aos impostos, mas recusava o saque das diligências” (p. 133). Mas a gestão dos ilegalismos só será apresentada realmente como conceito em Vigiar e punir, publicado em 1975 (Foucault, 2000, pp. 226-227) e em toda a descrição do vis-à-vis entre ilegalismos e a delinquência nas páginas seguintes do capítulo de mesmo nome (ibid., pp. 215-242).

Em perspectiva histórica, Foucault formula a hipótese de que a emergência do encarceramento como punição universalmente aceita, desde o século XIX, apesar de sua absoluta estranheza ao conjunto variado de castigos e sanções pensados e previstos pelo reformismo do direito penal de fins do século XVIII, só se explica pela função que a prisão e a polícia precisam desempenhar numa reformulação generalizada do equilíbrio geral dos ilegalismos entre as diferentes classes. O desequilíbrio das forças – não apenas representadas, mas evidentemente reais e envolvidas em acordos sempre contingentes, ainda que estáveis – é o efeito da assunção da burguesia nas funções produtivas, comerciais, mas também jurídico-políticas.

Por um lado, a riqueza burguesa adquire uma forma física e móvel, de circulação ampla, e não mais restringida às prerrogativas e privilégios especiais, na arrecadação de emolumentos da velha aristocracia, ou na pura riqueza fiduciária dos coletores oficiais e dos erários públicos. A riqueza expressa-se, agora, numa enorme coleção de mercadorias; logo, ao alcance dos trabalhadores que as produzem ou as vendem, mas não as possuem, e delas podem pretender se apropriar, desperdiçar, deixar perecer ou deliberadamente depredar. Mudança, portanto, no objeto dos ilegalismos populares: da fraude aos regulamentos estritos do Antigo Regime (para a qual sempre contou com a cumplicidade dos ilegalismos burgueses), para o roubo e depredação dos bens da própria burguesia.

Enquanto ascende às posições dominantes, a burguesia, por outro lado, toma posse também do aparato estatal de controle jurídico-legal. E o ilegalismo popular, do qual a classe burguesa antes se acumpliciava, no contornamento das legislações do Antigo Regime – no contrabando, na evasão fiscal, na violação dos regulamentos corporativos, naquilo que certa sociologia política atual chama, por referência a Foucault, de “ilegalismos de direitos” (Amicelle e Nagels, 2018AMICELLE, A.; NAGELS, C. (orgs.) (2018). "Les arbitres de l'illégalisme: nouveau regards sur les manières de faire du contrôle social". Champ penal / Penal field. Paris, v. XV. Disponível em: http://journals.openedition.org/champpenal/9774. Acesso em: 14 dez 2023.
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, pp. 8-9) –, na medida em que, agora, este ilegalismo se dirige contra o patrimônio e o investimento desta classe (“ilegalismo de bens”), ele precisa ser duramente combatido. Situações liminares como a do contrabando, com seus registros falsos, a rede de pequenos funcionários já previamente dispostos a fazer vistas grossas (muitos já aliciados e pagos), os receptadores das mercadorias “frias”, etc., foram, muitas vezes, reconvertidas para o roubo deliberado, sem que os ilegalismos populares que operavam a reconversão se dessem conta da mudança do campo estratégico em que operavam. Já não podiam mais contar com o apoio dos ilegalismos burgueses, cujas forças, agora, em sua maioria, estavam engajadas na direção estratégica oposta, passaram para o outro lado, o da repressão às condutas desviantes (curiosa versão foucaultiana da velha tópica da “traição burguesa” vista, aí, entretanto, desde baixo).

A repressão policial e a reclusão carcerária são, desde aí, os instrumentos de uma separação de certas práticas populares que, então, se tornaram intoleráveis. Elas vão participar da invenção de um meio popular segregado: a delinquência (Foucault, 2000FOUCAULT, M. (2000). Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis, Vozes.). Daí o choque dramático na ordem da moralização de condutas gerado pelo súbito desajuste de economias morais inteiras que decorria da mudança de alvo estratégico dos ilegalismos de diferentes classes sociais. E a escalada da prisão como modo de punição à ilegalidade que se define pela segregação de uma fração dos meios populares. A unificação da legislação penal com o aparato coercitivo da polícia e da prisão corresponde a um mais alto grau de centralização de poder político, por comparação à dispersão das forças e ilegalismos do Antigo Regime, operado então pela dominação burguesa em escalada histórica e seus efeitos disruptivos.

O ilegalismo no espelho

Nas aulas sobre os ilegalismos, suas crises e reconversões estratégicas, nenhuma referência às práticas da política colonial. Há apenas indicações muito ligeiras, nas notas de preparação manuscritas (mas não referenciadas em aula)7 7 O tema dos ilegalismos associado ao tema das colônias só comparece neste comentário de Colquhoun, citado por Foucault no manuscrito, referente a pequenas oportunidades que surgiam no cais, por meio de um “conluio feito entre os contramestres das embarcações das Índias Ocidentais e os receptadores vizinhos da margem, que tinham o costume de assediá-los, pretextando a compra daquilo que era chamado de refugo, ou restos e migalhas de açúcar que ficavam na estiva ou nas entrecobertas, depois da retirada da carga. Uma parte dos contramestres reivindicavam esse refugo, como se lhes pertencesse, embora essa pretensão fosse contrária às regras expressas e reiteradas, estabelecidas pela comissão de negociantes” (Colquhoun apud Foucault, 2015, p. 141, n. 15). a alguns de seus efeitos: ao enorme influxo de riqueza móvel que a exploração colonial propiciou e que se faz presente nos portos da Inglaterra, suscetível aos desvios e contrabandos dos populares do cais, trabalhadores das docas, funcionários de navios, estivadores e outros empregados de ocasião, em permanente contato com a enormidade material da afluência das companhias de comércio ultramarinas. Mas nenhuma referência direta à grande produção instalada ou ao assombroso mercado internacional de mão de obra escravizada que, aliás, no século XIX, ganhava novo fôlego8 8 Ver Marquese e Parron (2011). e abria grandes oportunidades para o roubo, o contrabando, o desvio de finalidade e o descumprimento de leis e regulamentos (Chalhoub, 2012CHALHOUB, S. (2012). A força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil oitocentista. São Paulo, Companhia das Letras.). Nenhuma menção ao drama das incongruências patentes entre estruturas econômicas, interesses políticos, ordenações administrativas, exercício dos poderes de justiça, todos em desconformidade com as intenções originárias dos planos da colonização, e com pouca sinergia para articular, na própria Colônia, caminhos e soluções novos; toda a inadequação das normas às coisas que configuram a condição ordinária da vida colonial, com enormes aberturas para “condutas de ofício”, e desafios mesmo para domar o território e submetê-lo a alguma ordem dos interesses dos homens de mando.

Colônias e a escravização modernas não foram, de fato, assunto das preleções de Foucault.9 9 Como aliás adverte, em pesquisa tão filiada às abordagens de Foucault quanto implicada na revisão dos efeitos da colonização e da escravidão brasileiras, Sueli Carneiro em sua tese de doutoramento, recém-publicada (Carneiro, 2023). E, entretanto, alguns de seus temas são patentes nos escritos de historiadores brasileiros (alguns mais antigos que os dele) que têm por objeto os dilemas da exploração colonial. Disso não podemos avançar aqui senão uma breve amostra. Desde os mais clássicos e que escreveram sobre tais dilemas muito antes dele, como Caio Prado Jr. em seu mais notório trabalho, Formação do Brasil contemporâneo (Prado Jr., 1994), ainda na década de 1940, nos primórdios da organização, por aqui, da pesquisa historiográfica profissional – ao mesmo tempo, já crítica, por suposto –, dava fé aos leitores das dificuldades no trato com documentos oficiais da Colônia que versassem sobre a ordem administrativa instalada e seus desenvolvimentos. Essas dificuldades com os documentos não se faziam por motivos outros que os da própria realidade visada, donde a irritação do autor com uma “legislação administrativa” que lhe aparecia como completamente “desconexa” e refém de particularismos ad hoc. Casuística que não é contida nem pelas Ordenações Filipinas, mas, ao contrário, depois delas, “decorreram, até o momento que nos ocupa, século e meio de cartas de lei, alvarás, cartas e provisões régias, ordens, acórdãos, assentos e que mais, formando todo o conjunto embaralhado e copioso da chamada legislação extravagante”. Ao que acrescenta que a “desorganização” é maior no que toca à administração da Colônia, pois, aqui, as Ordenações sequer foram capazes de revogar legislações mais antigas que, aqui e ali, seguiram em vigência, de tal modo que “é todo este caos imenso de leis que constitui o direito administrativo”. E o resultado é que “as leis não só não eram uniformemente aplicadas no tempo e no espaço, como frequentemente se desprezavam inteiramente, havendo sempre, caso fosse necessário um ou outro motivo justificado para a desobediência” (ibid., pp. 300-301).

Os tais ilegalismos – ainda que evidentemente sem o termo que corresponde ao conceito – comparecem nas descrições de Prado Jr., em algumas das modalidades só muito mais tarde apresentadas por Foucault, por exemplo, naquilo que o filósofo veio a chamar, em 1973, por “ilegalismos do poder” (Foucault, 2015FOUCAULT, M. (2015). Sociedade punitiva: curso do Collège de France (1972-1973). São Paulo, WMF Martins Fontes.). Caio Prado, trinta anos antes, afirmando o caráter intermitente da precária administração dos negócios coloniais pelo Império Português, denuncia que a intervenção da Coroa só é eficaz no alcance curto da imediata arrecadação dos tributos. Ele argumenta, por exemplo, que, na Real Extração, o sistema que visa bloquear quaisquer intervenções do governador da capitania de Minas Gerais (que deveria coordenar a extração do ouro), como até do governador-geral, e mesmo antes, já no regime da Intendência dos Diamantes, “não é ditado por um espírito superior de ordem e método, mas reflexo da atividade de desconfiança generalizada que o governo central assume com relação a todos seus agentes, com presunção muito mal disfarçada de desleixo, incapacidade, desonestidade mesmo, em todos eles” (Prado Jr., p. 309).

O historiador denuncia a impossibilidade de vigorar, no interior destas disposições, as condições mínimas para uma organização racional do poder: “A confiança com outorga de autonomia, contrabalançada embora por uma responsabilidade efetiva, é coisa que não penetrou nunca nos processos da administração portuguesa” (ibid.). Ao que, contraditoriamente, acrescenta, como atenuante das suspeições da Coroa, que tal intento de controlar diretamente as regiões mais ricas de forma insular, na mais absoluta desconfiança de sua própria organização de controle, como dos poderes dos colonos, por ela mesma instaurados, justifica-se, por outro lado, pelo “espírito de indisciplina que reina por toda parte e em todos os setores”. Tal “espírito reinante” entre os colonos é, nas admoestações de Prado, aquilo que (no exercício do anacronismo deliberado que realizo neste texto como primeira aproximação da questão) Foucault chamaria de “ilegalismos dos privilegiados”, forma acabada do exercício de contornamento das leis que vige entre a aristocracia europeia e o monarca, tanto quanto, aqui, entre a oligarquia patrimonialista, e cuja “consequência mais flagrante, e que se reflete diretamente no terreno da administração, é a do solapamento da autoridade pública, a dissolução de seus poderes que se anulam muitas vezes diante de uma desobediência e indisciplina sistemáticas” (ibid.).

A exasperação de Prado Jr. – por comparação com o que, não o historiador, mas o político acreditava dever ser a norma de organização moderna da sociedade brasileira – deixa patente aquilo que, bem mais tarde, Foucault precisará de uma viravolta teórica para fazer ver: na colônia, é pacífico que os tais ilegalismos precedem, de longe, a norma e o direito.10 10 Viravolta na qual, aliás, Foucault também não fora pioneiro. A ideia de que o crime precede a lei é, de acordo com Anders, um tópico da criação de Franz Kafka. Ver Anders (2007). Não se trata de uma perversão colonial, mas de uma perspectiva que escancara o que, na Europa, talvez não estivesse visível a olho nu. Se a visada de Caio Prado Jr. inaugura esta perspectiva, sua exasperação com nossa própria condição talvez não o deixasse dar o passo seguinte: os ilegalismos que ele vê como deficiências, embora também os reconheça como estruturais na formação periférica, assumirão papéis decisivos na conformação política do país. São indícios do soerguimento de uma ordem, mesmo que não oficial, mais que da desordem. Desde logo, nas dissidências que levariam, a seguir, ao caldo da insatisfação das elites coloniais locais contra a administração do Império ultramarino, e que irromperá, por exemplo, na Inconfidência, como em outras lutas e rebeliões anticoloniais que, desde aí, tomarão curso. Pesquisas bem mais recentes sobre o quadro institucional de relativa fragmentação política, sobretudo (e não à toa), em Minas Gerais, insistirão justamente aí.

Para não deixar de, ao menos, mencionar o mais emblemático desses estudos, o de Laura de Mello e Souza, é preciso dizer que a historiadora reconstrói, no final da década de 1990 (Souza, 1999SOUZA, L. M. (1999). Norma e conflito: aspectos da História de Minas do século XVIII. Belo Horizonte, Ed. UFMG.), sua pesquisa pioneira da década anterior (Souza, 2017SOUZA, L. M. (2017). Os desclassificados do ouro: a pobreza mineira no século XVIII. São Paulo, Ouro Sobre Azul.), quando aporta indicações sobre a difícil aplicação das leis no território relativamente urbano, heterogêneo e povoado de escravizados, grandes e médios senhores, funcionários régios e trabalhadores livres pobres das Minas, para a garantia dos direitos da Coroa sobre a exploração e circulação de grandes volumes de riqueza em moeda bruta. A historiadora versa sobre outras tantas intervenções de pesquisa, dela e de outros colegas, sobre assuntos que ela mesma julga tangenciar, a partir de suas explorações nos arquivos das Devassas da Arquidiocese de Mariana, as rebeliões nas minas, alguma conivência dos próprios administradores locais com garimpos irregulares e faiscadores (alguns mesmo escravizados), o estatuto ambíguo dos negros coartados, e contrabando, muito contrabando até mesmo de diamantes, sob a cobertura, ao mesmo tempo, da férrea legislação de repressão ao roubo no Tejuco.

A partir daí, o livro fornecia um prisma para as controvérsias que, a propósito de pesquisas aprofundadas e então recentes nos arquivos mineiros, colocavam a questão da fragmentação do poder, dos regulamentos rígidos e restritivos na exploração dos minérios, o alto custo da transgressão destes códigos, da complexa subordinação dos colonos ao Império Português ou sua renitência nos pequenos desvios, na insubordinação ou mesmo nas revoltas como a trágica Inconfidência. Tudo isso com muita sensibilidade para as dissensões que práticas de ilegalismos bastante frequentes faziam sedimentar e aparecer como resistências, mais ou menos renitentes, à dominação colonial. E, entretanto, talvez pelas questões prementes do tempo em que foram escritos, estes estudos não têm a mesma atinência para os nódulos e pontos de ancoragem em que estas divergências poderiam fazer acumular novos centros de controle e filtragens, nova administração hierarquizante de práticas legais ou ilegais dentro do país em formação. A ênfase, nestas pesquisas, não está aí.

Interessa enfatizar dois movimentos por elas apresentados. Nas Minas do XVIII, esses ilegalismos representavam o interesse de administradores menores e seus prepostos, associados a contratadores irregulares que, em alguma medida, feriam o monopólio do Império Português e, logo, mesmo que em pequena monta, pretendiam rivalizá-lo, na dispersão de autoridades e comissionados autárquicos e semidissidentes cuja irredutibilidade podia ser, até certo ponto, mesmo estimulada pela coroa portuguesa, em vista das necessidades de expansão ou povoamento. Em outro momento, mais a frente, já sob o regime imperial brasileiro do século XIX, em plena capital do Rio de Janeiro, o contrabando massivo de escravizados que exasperava o chefe de polícia Euzébio de Queiróz, ilegalidade flagrante de grande monta e soma de recursos financeiros, dentre os negócios talvez mais rentáveis da jovem nação, era operação centralizada pelos grandes potentados rurais que, a um só tempo, passaram também a fazer figura de grandes capitães do comércio de exportação e senhores absolutos da economia da Fazenda Nacional (Chalhoub, 2012CHALHOUB, S. (2012). A força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil oitocentista. São Paulo, Companhia das Letras.).

A história brasileira em retalhos vai fazendo emergir formas de concentração desses ilegalismos, instrumentos de acumulação de poder de uso generalizado, dadas as oportunidades alimentadas por uma economia quase que integralmente oficiosa, frequentemente apoiada nos interstícios de uma regulamentação esparsa em que as “zonas de sombra” são mais extensivas que aquelas recobertas pela lei. Toda a gama de orientações, condutas e valores que escapam às normas oficiais e legais constitui, por efeito deste enorme passivo colonial e periférico que nos define, um manancial para pesquisas que busquem os nós e os entroncamentos capazes de realizar a acumulação de sentidos, instrumentos e forças que, a partir destas “zonas de sombra”, sustentam uma ordem social ou uma dominação cujos lastros não coincidem com a lei. Numa sociedade que se reproduz em condições de semiclandestinidade, as ocasiões para a acumulação de poder, concentração de forças e eventual centralização política são, ao menos, tão frequentes nas regiões onde se concentram os ilegalismos quanto podem ser as expressões de revolta genuína ou insubordinação.11 11 Uma agenda de pesquisas por aí orientada pode certamente também fornecer indícios originais para se compreender a concentração de forças que emerge dessas economias paralegais também nos centros do capitalismo mundial financeirizado, cada vez mais clandestino, de hoje. Ver Godeffroy e Lascoumes (2004); um dos estudos pioneiros dentre tantos outros que o sucederam na esteira daquilo que Ruggiero (2005), pela mesma época, chamava “os delitos dos poderosos”. A tradição crítica brasileira é, mais uma vez, uma fonte donde enfeixar a direção estratégica geral que estas táticas locais já tomaram em seu caminho para a centralização de esquemas de poder contingentes, embora bastante sedimentados e eficientes na conformação de poderosos grupos políticos. Ela pode fornecer auspiciosas indicações para nosso fecundo presente, aqui, como alhures. O inventário dos recursos de interpretação que esta tradição pode aportar para pesquisas com este corte também precisa ser começado.

Estratégia coronelista

Victor Nunes Leal (2012)LEAL, V. N. (2012). Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. São Paulo, Companhia das Letras. foi certamente um dos primeiros autores que, estudando as famigeradas incongruências da formação social brasileira, viu nelas bem mais que deformações, incompletudes ou insaturação das instituições. Ele lida, ainda no final da década de 1940, e partindo dos dados do Censo, com um dos mais dramáticos quadros de desajuste da realidade nacional: quase dois terços da população reside, por esta época, ainda no campo, sem praticamente nenhum acesso à terra ou, pelo menos, sem nenhuma capacidade de garantir sua sobrevivência a partir dela; desta população espoliada que vive de favor em terra alheia exige-se autonomia dos interesses e capacidade de isenta autorrepresentação por um sistema político então razoavelmente moderno, dotado de eleições periódicas e acirrada competição entre grupos políticos baseados nos municípios. Os quadros empíricos da pesquisa confirmam a enormidade do abismo social em que o Brasil figura, entre a modernidade quimérica de certas pretensões institucionais e legais e o chão batido das condições reais de sua impossibilidade.

No que concerne à perspectiva construída, esta pode ser considerada em duas direções. Por um lado, a interpretação alia-se às visões tradicionais do pensamento social que veem as classes populares como meramente subordinadas no sistema político, “massa de manobra” encabrestada ao mando pessoal dos potentados rurais (coronéis), mesmo sob a modernização das instituições e a vigência da regra moderna da disputa eleitoral. Mas, por outro, para além da visão tradicional das classes populares subordinadas, Victor Nunes descobre, nas articulações do arcabouço político-eleitoral que descreve, algum espaço para os engajamentos voluntários e seus agenciamentos estratégicos. Nisso, ele é não apenas pioneiro de uma análise “moderna” das instituições, como visionário de um campo de reflexão sobre a dimensão estratégica da política brasileira.

É o historiador José Murilo de Carvalho12 12 Para Carvalho (2012, p. 12), a originalidade de Victor Nunes está “[n]o enfoque do coronelismo como sistema, como caracterização da rede nacional de poder desenvolvida no período histórico que correspondeu à primeira experiência do federalismo. O coronelismo, nessa visão, não é simplesmente um fenômeno da política local, não é mandonismo. Tem a ver com a conexão entre municípios, Estado e União, entre coronéis, governadores e presidente, num jogo de coerção e cooptação exercido nacionalmente”. (2012) quem adverte, nas várias homenagens que prestou ao autor, para o primeiro dos sentidos desse pioneirismo. A tese é, para os acanhados padrões acadêmicos de seu tempo, temerária: ele não faz uma monografia, embora, até então, o estudo de caso parecesse ser o único método para elucidar as vicissitudes do mando pessoal e do poder privado sobre a administração pública nas localidades. Mas é aí mesmo que reside sua ambiciosa originalidade. O objeto da tese não é o que parece: não se vai descrever, mais uma vez, as idiossincrasias de certo coronel e as peculiares relações de dependência que engendra entre seus subalternos, ou das quais ele é também refém; mas o “sistema coronelista”, um arcabouço de relações de dependência mútua e troca de favores que estrutura o aparato eleitoral e todo o trânsito de influência e privilégios que faz do pleito uma peça na conservação, em condições adversas porque formalmente democráticas, dos poderes já estabelecidos.

No “sistema coronelista”, o coronel é apenas o nível mais imediato na distribuição de poder, aquele do mando direto, numa cadeia de relações que, partindo deste, sobe para os diferentes níveis em que atuam os astuciosos chefes partidários; vereadores e prefeitos em dívida moral com estes chefes; deputados estaduais, federais e senadores, com sua influência para nomeações, provisões e cargos na administração do município ou do Estado; o Presidente da República, sua “base” a ser contemplada e o cardápio das vantagens de que dispõe para ampliá-la; como também os governadores estaduais, principais núcleos de poder numa ordem na qual os circuitos econômicos, fortemente regionalizados e diretamente conectados aos centros de negócios estrangeiros, se fazem muitas vezes mais importantes que o próprio governo da República.

E, entretanto, é do mais elementar senão também o mais arcaico, autoritário e informal desses líderes, o provinciano coronel, que, intrigantemente, se tolerarão toda sorte de insolências e pretensões descabidas, abusos mesmo e violências; a fraude, a corrupção, o aberto descumprimento da lei, como a afronta pública às autoridades, que não se admitirá de mais ninguém. Dos desmandos e ilegalismos do coronel dependerá, aliás, muitas vezes, o poder efetivo do governo nas localidades, o exercício da repressão policial, a cobrança dos impostos e o credenciamento aos benefícios e subvenções públicos. Aos excessos e corrupções opulentas desses mandões irredutíveis do sertão, as autoridades farão “vistas grossas”; crimes cujos efeitos a institucionalidade oficial vai corroborar.

E, ao contrário do que parece, contudo, a carta branca concedida ao prepotente coronel, se ela o coloca muitas vezes fora do alcance das leis, não faz dele o potentado soberano que se supõe outrora ter sido o estamento inteiro dos senhores escravistas da Colônia. Fazendo com que o exercício de seu poder resvale sempre para o arbítrio, em desconformidade à conduta legal, ou, antes, pondo para fora da alçada da lei a autoridade dos coronéis – entretanto, quase sempre afiançada em benefício da ordem corrente –, as autoridades estaduais os mantêm suscetíveis a uma eventual, embora incomum, sanção, apenas nos casos que não lhes convenham em termos de influência política. Logo, fazem dos insolentes coronéis parte da clientela cujo poder – na aparência desmesurado, mas, de fato, bastante limitado – é, no fundo, uma concessão dos governadores e de outros influentes políticos da órbita estadual.

Nessas circunstâncias, não há espaço para oposições. Desaplica-se a lei, mas de forma seletiva e diferencial, aos aliados, e fazem-se os extravagantes recursos efetivos de centralização do poder nos Estados da Federação (“excessos” que, nas mãos dos coronéis, contornam os adversos caminhos legais numa ordem formalmente republicana) passar por rebeldia prepotente de velhos donos de terras, bravateadores afrontosos, endividados e ora falidos, residuais numa ordem republicana em progresso cujos paladinos ainda não lhes puderam impor o derradeiro ocaso.

O mecanismo que mantém os coronéis e sua jurisdição sempre fora da legalidade – e, logo, sob a tácita ameaça, tão poucas vezes realizada, de reduzi-lo à lei – força-lhes o alinhamento ao partido político do governo. Sucesso de uma ousada estratégia, poder-se-ia dizer “termidoriana”, de reversão do reformismo democrático. Essa verdadeira “externalização de custos” da centralização política – genuína indirect rule à brasileira – é estendida dos coronéis para seus próprios municípios e às administrações, cujas receitas oficiais são mantidas na míngua. Com o que prefeitos e vereadores – quando não os próprios coronéis, seus protegidos e dependentes – estão sempre “com a corda no pescoço”, e, sem provisões para as necessidades mais imediatas da administração, em tudo dependem de repasses e subscrições do governo estadual ou dos influentes parlamentares de seu partido que, não raro, cinicamente denunciam a politicagem local de munícipes pernósticos e coronéis opulentos.

Uma enorme máquina governamental e sua força centrípeta galvanizam os quadros do sistema político desde suas zonas de sombra mais remotas, corrilhos e capangas renegados, aos mais luminosos próceres oficiais da Nação. Um irresistível e potente governismo, cujo empuxo aniquila quaisquer plataformas da oposição e, contudo, ao contrário de violar a regra democrática da competição eleitoral, torna os pleitos locais ainda mais renhidos entre coronéis e candidatos, funcionários e jagunços, parentelas e clubes, numa disputa férrea pela confiança dos governadores de turno e seus líderes partidários. Sob tal injunção, regiões não oficiais do poder constituído proliferam ao arrepio da lei, mas em favor da acumulação de poder que garante a preservação da ordem. A democracia política é falseada desde o interior de seus próprios métodos e, sob a aparente fragmentação do poder, os insulamentos dos potentados decadentes são, de fato, as colateralidades de uma ordem que se centraliza na opacidade de meios ilegais e métodos extraoficiais.

Aí, a autêntica modernidade não só da pioneira análise de Victor Nunes, como da realidade por ele estudada. O mandonismo não é a manifestação particular de uma realidade pretérita, em vias de desaparição, que sobrevive residualmente, enquanto resiste à ordem da lei e do governo que, entretanto, cedo ou tarde, lhe aniquilarão. É a forma local de um sistema fortemente centralizado de relações estratégicas. Embora acreditasse e mesmo apostasse no declínio dos coronéis, ainda mais, diante da auspiciosa democratização da década de 1940, Nunes apresentava a atualidade renitente do sistema de poder que os velhos potentados e os políticos citadinos engendraram. Revelava, ainda na década de 1940, a legalidade capciosa de uma ordem política “nacional por subtração” (Schwarz, 2019c). O sistema coronelista por ele descrito antecipa desenvolvimentos que o ambiente intelectual crítico do capitalismo avançado só conhecerá pelo menos um quarto de século mais tarde.

Considerações finais: ilegalismos e acumulação de poder

O que a fulgurante modernidade de Vitor Nunes Leal antecipou, em 1949, foi nada menos que a “gestão diferencial dos ilegalismos” que, por primeiro, desenvolveu Foucault em Vigiar e Punir de 1975. Nele, sobretudo nos capítulos finais, Foucault está novamente às voltas com a questão dos ilegalismos. Mas o foco aí é menos no espaço contingente das táticas de diferentes classes sociais que na centralização política que o recurso tático da delinquência, produto do dispositivo carcerário, aporta à dominação burguesa no século XIX europeu.

A administração diferencial da punição legal, em um tecido social recoberto de tipificações de crimes (logo, submetido a uma grade de inteligibilidade criminogênica), é o terreno fértil para dispositivos de centralização de poder porque põe uma enorme variedade de condutas (devidamente incriminadas e normatizadas) à disposição dos mecanismos repressivos. É a opacidade mesma da condição de ilegalismo que, convertida em ilegalidade administrada, vai ser instrumentalizada pelas autoridades, por um reinvestimento daquilo que escapa à lei e às normas pelos mecanismos de reprodução da ordem e da acumulação de poder. É este o “dispositivo da delinquência” descrito por Foucault, no último capítulo do inventário das normas ortomórfico-disciplinares das mais diferentes instituições modernas – o “arquipélago carcerário”.

Não se trata necessariamente da prisão, do quartel, do colégio interno, do hospital psiquiátrico ou do encarceramento em massa, aplicações por demais literais do poder disciplinar, onde a assimetria das forças é patente e a disciplina, embora impessoal, revela a morfologia abertamente coerciva da ordem. A delinquência convertida em dispositivo de poder, resultante da normatividade das disciplinas, mas vinculante também em “meio aberto”,13 13 “A delinquência, com os agentes ocultos que proporciona mas também com a quadriculagem que autoriza, constitui em meio de vigilância perpétua da população: um aparelho que permite controlar, através dos propósitos delinquentes, todo o campo social. A delinquência funciona como um observatório político” (Foucault, 2000, pp. 233-234). Para uma análise das relações entre as disciplinas que vigem em um meio fechado e seus efeitos na ordem de fluxos em meio aberto, ver Magalhães Jr. e Hirata (2017). fará também a regulação dos fluxos ilegais, dos interesses escusos, das transitividades oficialmente proibidas entre bairros distintos e os de má fama, classes sociais, hábitos prestigiosos e vícios, mercadorias genuínas e suas falsificações, trânsito franqueado para indivíduos devidamente subalternizados porque postos fora da lei ou da formalidade das normas oficiais, mas sempre em nome e a serviço da preservação da ordem.

Se as análises de Foucault recaem sobre o penal e o punitivo-carcerário, é por motivos históricos, porque no horizonte das lutas em curso, na década de 1970, a prisão parece o ponto mais sensível e instável politicamente (do que dá notícia a escalada de motins e rebeliões prisionais do período e seu próprio engajamento com o Grupo de Informação sobre as Prisões). Mas ele adverte que “a produção da delinquência e seu investimento pelo aparelho penal devem ser tomados pelo que são: não resultados definitivos, mas táticas que se deslocam na medida em que nunca atingem inteiramente seu objetivo” (Foucault, 2000FOUCAULT, M. (2000). Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis, Vozes., p. 236). O caráter tático dessas formas políticas impele a análise até mesmo para além dos objetos tratados por Foucault. O sistema que implica a polícia, a prisão, a justiça e a delinquência não é a única via para a concentração de poder em quaisquer formações sociais. Não são essas formas que, necessariamente, se generalizam, mas a gestão dos ilegalismos, que pode se valer de outros instrumentos.

Daí que o sistema coronelista de Victor Nunes Leal, mesmo sem analisar o direito penal ou as práticas punitivas a ele associadas, bem como seus eventuais efeitos, pôde ainda assim ter demonstrado, nos marcos do problema que se propôs: o da relação entre o poder privado nos municípios, a administração pública e o sistema eleitoral; certa integração sistêmica entre ilegalismos e seus efeitos estratégicos de centralização política. Em Leal, a ordem oligárquica mais cerrada, cujas forças acumularam-se em toda a colonização e que, sobretudo, se adensaram e convergiram mais ainda com a Independência; que, ainda no século XIX, desdobrava-se na absoluta ilegalidade, por exemplo, do tráfico negreiro; estas forças oligárquicas que configuravam uma ordem “meio nas sombras” (Foucault, 2000FOUCAULT, M. (2000). Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis, Vozes.), de poderosos senhores de terras e de homens, elas chegam finalmente ao século XX – na medida em que, entretanto, reflui a influência particular dos coronéis e de seus corrilhos – plenamente institucionalizadas.

Mas esta institucionalização não se confunde com a legalidade. Daí o paradoxo: ao contrário do que se devia esperar de um arcabouço jurídico-político que avança em sua institucionalização, o que, no século XIX, sedimentava de forma clandestina, em vez de desaparecer, autonomizou-se dos agentes que o criaram e institucionalizou-se em um sistema paraoficial de fachada moderna e democrática, manietado, agora, por políticos profissionalizados. Donde a expressão polêmica: Victor Nunes descobrira, antes de Foucault, a face de uma dominação estratégica que, de primeiro, forma e orienta as condutas subjetivas que lhe dão esteio. Só assim, o coronelismo que descreve pode prescindir dos coronéis e, até mesmo, sobreviver a eles, e sucedê-los.

O efeito dessas diferentes estratégias que tomam impulso nos ilegalismos é o de sempre pôr à disposição e em proveito de certos grupos a conduta de outros. Como realizam acumulações de poder mesmo, por vezes, às cegas, correspondem à mais fidedigna descrição da constituição de uma condição de classe numa sociedade em que os interesses nunca transparecem a si mesmos. Logo, se, de um lado, fazem concertar interesses nem sempre convergentes, mas cujo entendimento sustenta uma dominação social, por outro, põem em disponibilidade uma classe social inteira cujos expedientes de vida são submetidos a um ajuizamento moral estrito e, dessa forma, postos para fora da jurisdição oficial, para, uma vez assujeitados, serem mais bem aproveitados no interesse dos poderosos de ocasião.

É desta classe em disponibilidade que parecem estar tratando tantas pesquisas contemporâneas14 14 Para a referência mais atualizada no debate internacional, ver o dossiê organizado por Amicelle e Nagels (2018). e da maneira pela qual as estratégias de poder dominantes na atualidade reinvestem condutas de transgressão ou mesmo resistências regionais em benefício do reforço de normas dominantes. Em texto que repercutia pesquisas de campo realizadas na década de 2000, Rizek (2012)RIZEK, C. (2012). Trabalho, moradia e cidade. Zonas de indiferenciação? Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo, v. 27, n. 78. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/QJj9jwcRBCbJsgmnKMfFqVq/. Acesso em: 14 dez 2023.
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indicava a maneira pela qual novos circuitos de valorização da riqueza em escala global reconfiguravam a normatização de mercados populares, políticas sociais, identidades vinculadas a condições de trabalho e emprego, serviços informais ou comunitários, ocupações na fronteira dos estatutos legais ou formais. Toda uma administração das normas que orientam o juízo moral e prático das condutas populares tornara-se alvo de múltiplas regulações e, em cada uma destas, surgira a ocasião para novas subordinações e relações assimétricas de poder, a extração e apropriação diferencial de conhecimentos e recursos populares, normas em disputa sedimentando novas posições de poder e influência.

Nesses centros informais (ora ilegais) de normatização e regulação dos excessos da vida ordinária em condições adversas,15 15 A expressão é de Hirata (2018). tomam assento novas e velhas autoridades; não mais os coronéis, por certo, mas tantas outras formas autárquicas do poder político e corporativo, até mesmo internacional. A explosão das informalidades; das “virações” e “bicos” nos mercados de trabalho; das “gambiarras” e “acertos” da expansão urbana nas fronteiras das cidades, como no interior mesmo de bairros antes consolidados; nos “arregos” e violências que atravessam circuitos e mercados ilegais, onde policiais e outros agentes de segurança se beneficiam das ilegalidades que reprimem; toda a sorte de exceções a normas oficiais vigentes que, conectadas em escala global com circuitos financeiros internacionais, fazem da velha conhecida fratura social brasileira o horizonte das sociedades avançadas e de suas “elites”, reduzidas também ao rent-seeking mundial da liquidez de curto prazo que, outrora, qualificara a situação particular dos exploradores em territórios coloniais de ultramar.

Nota de agradecimento

Agradeço a Lucas Jannoni Soares as importantes sugestões historiográficas sem as quais eu não teria podido traçar este tortuoso percurso, pelo qual sou, evidentemente, o único responsável.

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  • SCHWARZ, R. (2019a). "Cuidado com as ideologias alienígenas". In: SCHWARZ, R. Seja como for: entrevistas, retratos e documentos. São Paulo, Duas Cidades/Editora 34. (Coleção Espírito Crítico)
  • SCHWARZ, R. (2019b). "Encontros com a Civilização Brasileira". In: SCHWARZ, R. Seja como for: entrevistas, retratos e documentos. São Paulo, Duas Cidades/Editora 34. (Coleção Espírito Crítico)
  • SCHWARZ, R. (2019c). "Que horas são?". In: SCHWARZ, R. Seja como for: entrevistas, retratos e documentos. São Paulo, Duas Cidades/Editora 34. (Coleção Espírito Crítico)
  • SCHMITT, Carl (2014). O nomos da Terra no direito das gentes do jus publicum eropaeum. São Paulo, Contraponto.
  • SEGATTO, R. (2021). Crítica da colonialidade em oito ensaios e uma antropologia por demanda. São Paulo, Bazar do Tempo.
  • SOUZA, L. M. (1999). Norma e conflito: aspectos da História de Minas do século XVIII Belo Horizonte, Ed. UFMG.
  • SOUZA, L. M. (2017). Os desclassificados do ouro: a pobreza mineira no século XVIII. São Paulo, Ouro Sobre Azul.

Notas

  • 1
    Ver Schmitt (2014)SCHMITT, Carl (2014). O nomos da Terra no direito das gentes do jus publicum eropaeum. São Paulo, Contraponto..
  • 2
    Entre a grande produção a respeito, ver Segatto (2021)SEGATTO, R. (2021). Crítica da colonialidade em oito ensaios e uma antropologia por demanda. São Paulo, Bazar do Tempo.; Lugones (2020)LUGONES, M. (2020). "Colonialidade e gênero". In: BUARQUE DE HOLLANDA, H. (ed.). Pensamento feminista hoje: perspectivas decolonais. São Paulo, Bazar do Tempo.; Quijano (2001-2002); e Gonzalez (2020)GONZALEZ, L. (2020). Por um feminismo afro-latino-americano. Organização de Flavia Rios, Marcia Lima. Rio de Janeiro, Zahar..
  • 3
    “E, quando ainda era apenas rei da Escócia, Jaime I dizia que, como os normandos tomaram posse da Inglaterra, as leis do reino são estabelecidas por eles – o que tinha duas consequências. Primeiro, que a Inglaterra fora tomada e, portanto, que todas as terras inglesas pertenciam aos normandos e ao chefe dos normandos, ou seja, ao rei. [...] Segundo o direito não tem de ser o direito comum às diferentes populações sobre as quais se exerce a soberania; o direito é a própria marca da soberania normanda, foi estabelecido pelos normandos e é evidente para eles” (Foucault, 2010FOUCAULT, M. (2010). "Aula de 4 de fevereiro de 1976". In: FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo, WMF Martins Fontes., p. 119).
  • 4
    “Tinha-se a junção de ilegalismo popular com o ilegalismo dos comerciantes, ilegalismo dos negócios. Tinha-se também, diante disso, o ilegalismo dos privilegiados que escapavam à lei por estatuto, tolerância ou exceção. Entre esse ilegalismo privilegiado e o ilegalismo popular, havia diversas relações, algumas das quais antagônicas” (Foucault, 2015FOUCAULT, M. (2015). Sociedade punitiva: curso do Collège de France (1972-1973). São Paulo, WMF Martins Fontes., pp. 131-132). “Aquilo que foi preciso dominar, que o aparato estatal precisou controlar por meio do sistema penitenciário a pedido da burguesia, foi algo que teve a sedição apenas como caso particular e constituiu um fenômeno mais profundo e mais constante: o ilegalismo popular” (ibid., p. 130).
  • 5
    O termo não é de Foucault, mas do sociólogo brasileiro Michel Misse (1997)MISSE, M. (1997). As ligações perigosas: mercado informal ilegal, narcotráfico e violência no Rio. Revista Contemporaneidade e Educação. Rio de Janeiro, ano II, n. 1, pp. 93-116., sob forte inspiração do conceito weberiano de “capitalismo político”.
  • 6
    A noção já está em circulação no curso de 1973 (Foucault, 2015FOUCAULT, M. (2015). Sociedade punitiva: curso do Collège de France (1972-1973). São Paulo, WMF Martins Fontes.), indicando, inclusive, a centralidade que a classe burguesa imprime à questão, quando assume o aparato judicial-punitivo do Estado. “Por trás de tudo isso, havia a burguesia, que ocupava uma posição ambígua: apoiava essas lutas antilegais desde que elas lhes servissem, dava-lhe as costas quando caíam na criminalidade do direito comum ou quando assumiam a forma de lutas políticas. Aceitava o contrabando, recusava o banditismo; aceitava a recusa aos impostos, mas recusava o saque das diligências” (p. 133). Mas a gestão dos ilegalismos só será apresentada realmente como conceito em Vigiar e punir, publicado em 1975 (Foucault, 2000FOUCAULT, M. (2000). Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis, Vozes., pp. 226-227) e em toda a descrição do vis-à-vis entre ilegalismos e a delinquência nas páginas seguintes do capítulo de mesmo nome (ibid., pp. 215-242).
  • 7
    O tema dos ilegalismos associado ao tema das colônias só comparece neste comentário de Colquhoun, citado por Foucault no manuscrito, referente a pequenas oportunidades que surgiam no cais, por meio de um “conluio feito entre os contramestres das embarcações das Índias Ocidentais e os receptadores vizinhos da margem, que tinham o costume de assediá-los, pretextando a compra daquilo que era chamado de refugo, ou restos e migalhas de açúcar que ficavam na estiva ou nas entrecobertas, depois da retirada da carga. Uma parte dos contramestres reivindicavam esse refugo, como se lhes pertencesse, embora essa pretensão fosse contrária às regras expressas e reiteradas, estabelecidas pela comissão de negociantes” (Colquhoun apud Foucault, 2015, p. 141, n. 15).
  • 8
    Ver Marquese e Parron (2011)MARQUESE, R.; PARRON, T. (2011). Internacional escravista: a política da Segunda Escravidão. Topoi, v. 12, n. 23, pp. 97-117. Disponível em: https://www.scielo.br/j/topoi/a/WrGBYmrDBXfPS3S4HTr558L/. Acesso: 14 dez 2023.
    https://www.scielo.br/j/topoi/a/WrGBYmrD...
    .
  • 9
    Como aliás adverte, em pesquisa tão filiada às abordagens de Foucault quanto implicada na revisão dos efeitos da colonização e da escravidão brasileiras, Sueli Carneiro em sua tese de doutoramento, recém-publicada (Carneiro, 2023).
  • 10
    Viravolta na qual, aliás, Foucault também não fora pioneiro. A ideia de que o crime precede a lei é, de acordo com Anders, um tópico da criação de Franz Kafka. Ver Anders (2007).
  • 11
    Uma agenda de pesquisas por aí orientada pode certamente também fornecer indícios originais para se compreender a concentração de forças que emerge dessas economias paralegais também nos centros do capitalismo mundial financeirizado, cada vez mais clandestino, de hoje. Ver Godeffroy e Lascoumes (2004)GODEFFROY, T.; LASCOUMES, P. (2004). Capitalisme clandestin - L'illusoire régulation des places offshore. Paris, Les Découvertes.; um dos estudos pioneiros dentre tantos outros que o sucederam na esteira daquilo que Ruggiero (2005)RUGGIERO, V. (2005). Delitos de los débiles y de los poderosos: ejercicios de anticriminologías. Buenos Aires, Editorial Ad-Hoc., pela mesma época, chamava “os delitos dos poderosos”.
  • 12
    Para Carvalho (2012CARVALHO, J. M. (2012). "Prefácio". In: LEAL, V. N. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. São Paulo, Companhia das Letras., p. 12), a originalidade de Victor Nunes está “[n]o enfoque do coronelismo como sistema, como caracterização da rede nacional de poder desenvolvida no período histórico que correspondeu à primeira experiência do federalismo. O coronelismo, nessa visão, não é simplesmente um fenômeno da política local, não é mandonismo. Tem a ver com a conexão entre municípios, Estado e União, entre coronéis, governadores e presidente, num jogo de coerção e cooptação exercido nacionalmente”.
  • 13
    “A delinquência, com os agentes ocultos que proporciona mas também com a quadriculagem que autoriza, constitui em meio de vigilância perpétua da população: um aparelho que permite controlar, através dos propósitos delinquentes, todo o campo social. A delinquência funciona como um observatório político” (Foucault, 2000FOUCAULT, M. (2000). Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis, Vozes., pp. 233-234). Para uma análise das relações entre as disciplinas que vigem em um meio fechado e seus efeitos na ordem de fluxos em meio aberto, ver Magalhães Jr. e Hirata (2017).
  • 14
    Para a referência mais atualizada no debate internacional, ver o dossiê organizado por Amicelle e Nagels (2018)AMICELLE, A.; NAGELS, C. (orgs.) (2018). "Les arbitres de l'illégalisme: nouveau regards sur les manières de faire du contrôle social". Champ penal / Penal field. Paris, v. XV. Disponível em: http://journals.openedition.org/champpenal/9774. Acesso em: 14 dez 2023.
    http://journals.openedition.org/champpen...
    .
  • 15
    A expressão é de Hirata (2018)HIRATA, D. V. (2018). Sobreviver na adversidade: mercado e formas de vida. São Paulo, EdufSCar, Fundação de Apoio Inst. ao Desenv. Cient. e Tecnológico..

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2024

Histórico

  • Recebido
    18 Dez 2023
  • Aceito
    4 Abr 2024
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