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Bichos de coturno: a relação entre bicheiros e milicianos da Zona Oeste

Resumo

Este artigo trata sobre as relações entre membros das redes criminais dos Andrade (conhecidas pelo jogo do bicho) e de milícias de Jacarepaguá e Campo Grande, majoritariamente. O período analisado vai de 1993 a 2008, percorrendo continuidades e descontinuidades nas relações entre Castor, seus sucessores, Fernando e Rogério, e três policiais militares que ingressaram eventualmente no que chamo de “primeira geração de milicianos”. Cruzando a teoria das Redes Criminais com a obra de David Harvey e o conceito de Ilegalismos, o artigo tenta apresentar, sinteticamente, a história dos territórios, os mercados que ali são inscritos pelo Estado e pelos agentes da ilegalidade e o cruzamento de relações pessoais e impessoais entre membros das redes criminais e do Estado.

jogo do bicho; milícias; redes criminais; território

Abstract

This article approaches the relationships between members of the Andrade criminal networks and militias, mostly from the Jacarepaguá and Campo Grande neighborhoods. These criminal networks are known for jogo do bicho, an illegal gambling game in Brazil that operates like a lottery in which players bet on numbers that are associated with animals. The analyzed period extends from 1993 to 2008 and covers continuities and discontinuities in the relationships between Castor, his successors, Fernando and Rogério, and three military policemen who joined what I call the “first generation of militiamen”. Intersecting the theory of Criminal Networks with David Harvey’s work and the concept of Illegalism, the article attempts to present, in a synthetic fashion, the history of the territories, the markets that are registered there by the state and the illegality agents, and the intersection of personal and impersonal relations between members of criminal networks and the State.

jogo do bicho; militias; criminal networks; territory

Metodologia

Este artigo sintetiza algumas das reflexões e análises exploradas no meu estudo sobre as relações entre as redes criminais de algumas das primeiras milícias da Zona Oeste do Rio de Janeiro e dos bicheiros da família Andrade, que segue sendo uma das grandes expoentes da contravenção desde o principiar do século passado. A pesquisa tinha por objetivo entender a influência dos atores do jogo do bicho na formação do que se classifica como milícia1 1 O termo segue em disputa, passando por metamorfoses ao longo dos anos, muito por causa da constante renovação nos mercados ilícitos comandados pelos milicianos. Todavia, tomo por base a conceituação de milícia por Cano e Ioot (2008, p. 59): “1) O controle de um território e da população que nele habita por parte de um grupo armado irregular; 2) O caráter em alguma medida coativo desse controle dos moradores do território; 3) O ânimo de lucro individual como motivação principal dos integrantes desses grupos; 4) Um discurso de legitimação referido à proteção dos habitantes e à instauração de uma ordem que, como toda ordem, garante certos direitos e exclui outros, mas permite gerar regras e expectativas de normatização da conduta; 5) A participação ativa e reconhecida de agentes do estado como integrantes dos grupos.” Embora insuficiente para as configurações atuais, a definição dos pesquisadores firma uma noção concreta do que foi a primeira geração de milicianos propriamente ditos, o que se faz apropriado, uma vez que é deles que falo neste artigo. e delimitar as relações entre essas redes, o Estado e os territórios que ocupam ou sobre os quais exercem influência.

Do ponto de vista da técnica de pesquisa, para realizar tal estudo, mobilizei documentos, entrevistas e notícias – que foram utilizadas de forma complementar. Quanto aos documentos, toda a ideia da pesquisa surgiu a partir do processo 0023098-22.1994.8.19.0001, do Tribunal de Justiça, no qual consta a disputa entre o MP e a defesa do bicheiro Castor de Andrade e de outros 44 policiais militares acusados de receber propina da contravenção ao longo de mais de meia década. Os promotores utilizaram como base da acusação a contabilidade da rede criminal dos Andrade, apreendida em 1994 numa operação na dita Fortaleza do Castor – nada menos que a casa de Bangu em que a avó do bicheiro começou a mexer com a jogatina. A partir dos nomes dos 44 agentes da PMERJ, reconstituí a trajetória de três que não apenas sucederam na criminalidade, mas que se tornaram milicianos com posição de destaque em redes criminais fluminenses. Daí segui em busca dos processos judiciais que ajudassem a compreender o caminho traçado por eles e como poderia, com isso, cavucar os detalhes de funcionamento das redes, o que por sua vez me levou à conexão entre jogo do bicho e milícias, a partir da família Andrade, representada por Castor e seus dois sucessores mais ativos, Rogério de Andrade (sobrinho) e Fernando Iggnácio (genro). Para isso utilizei os seguintes processos: TJRJ: 0023098-22.1994.8.19.0001, 0044092-22.2009.8.19.0203, 0166918-69.2012.8.19.0001, 2009.068.00004; TRF2: 2007.02.01.004933-4, 2001.001.082015-3/01. Tudo somado à CPI das Milícias, documento em que constam fatos e personagens que circulam pela investigação sociológica que realizei. Por contar um grande leque de personagens reais interagindo e construindo relações diretas e indiretas, busquei a teoria das redes criminais, explicada por Morselli (2009)MORSELLI, C. (2009). Inside Criminal Networks. Canadá, Springer. como uma rede social em que sigilo e risco (de vida, problemas na justiça, etc.) se tornam condições necessárias para se construir relações de cunho econômico-político nos ilegalismos (Telles, 2009TELLES, V. da S. (2009). Nas dobras do legal e do ilegal: ilegalismos e jogos de poder nas tramas da cidade. Dilemas - Revista de estudos de conflito e controle social. Rio de Janeiro, v. 2, n. 5-6, pp. 97-126.; Foucault, 1997FOUCAULT, M. (1997). Vigiar e Punir. Petrópolis, Vozes.). Vale lembrar que uma rede social é uma malha de conexões entre indivíduos, grupos e instituições (no mais variado sentido) pautadas pelos tipos de relações estabelecidas entre os pares e a densidade dessas relações e o grau de importância dos agentes na dinâmica geral dessas redes.

As entrevistas foram realizadas sob regime de anonimato ou semianonimato (uso de alcunha, mas não do nome real), pois faz-se necessária a proteção da vida e da segurança jurídica dos nativos que se dispuseram a reconstruir, em entrevista, a memória pessoal e, por consequência, parte do que compõe a memória coletiva em disputa sobre os tempos e momentos discutidos (Pollak, 1989POLLAK, M. (1989). Memória, esquecimento e silêncio. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, pp. 3-15.). “Através da entrevista é possível construir histórias de vida, captar experiências, valores, opiniões, aspirações e motivações dos entrevistados, escolhidos segundo os critérios e interesses do tema investigado. É importante lembrar que a fala do entrevistado representa uma autodescrição e uma apresentação de si mesmo” (Lima, 2016LIMA, M. (2016). "O uso da entrevista na pesquisa empírica". In: Cebrap. Métodos de pesquisa em Ciências Sociais: Bloco Qualitativo. São Paulo, Sesc/Cebrap., p. 26) As entrevistas complementam ou contradizem os fatos narrados em autos, os quais também carregam em si versões, vieses e disputas endógenas e exógenas aos próprios membros da justiça que cristalizam suas perspectivas políticas, técnicas e ideológicas (Scheingold, 1975SCHEINGOLD, S. (1975). The politics of rights. Lawyers, public policy and political change. Chicago, The University of Chicago Press.) ao construírem o Direito na ação prática do fazer jurídico e no cotidiano extraoficial (Selznik, 1959SELZNIK, P. (1959). "The sociology of law". In: Merton, R.; Broom, L.; Cottrell, L. (eds.). Sociology Today. New York, Basic Books.; Sylbey, 2005SYLBEY, S. (2005). "Everyday life and the constitution of legality". In: JACOBS, M.; HANRAHAN, N. (orgs.) The Blackwell Companion to the Sociology of Culture. Malden, Blackwell Publishing.).

Por fim, o noticiário aqui serve apenas como um auxílio para a pesquisa. Em outras palavras, as reportagens marcam reações públicas de diferentes atores, como o Estado, os membros de destaque das redes criminais e a população civil num todo.

Esse conjunto de aparatos teóricos e técnicos se justifica também pela perspectiva bourdieusiana. Pois, segundo Bourdieu, Chamboredon e Passeron (2010), a linguagem impõe barreiras, independente se estamos falando dela pelo entrevistado ou entrevistador. E a solução para enfrentar tais barreiras é o confronto metódico e dialético de dois sistemas de pré-construções (entrevista não diretiva e análise de conteúdo). Seja na entrevista, nas análises documentais ou no processo final de escrita, deve-se ponderar a diferença de vozes e de posições sociais para que possamos construir uma pesquisa verossímil e contundente. Nas palavras dos autores recém-citados: “Pressupor que uma pergunta tem o mesmo sentido para sujeitos sociais separados pelas diferenças de cultura, associadas à origem de classe, é ignorar que as diferentes linguagens não diferem apenas pela amplitude de seu léxico ou grau de abstração, mas também pelas temáticas e problemáticas que veiculam” (Bourdieu, Chamboredon e Passeron, 2010, p. 57).

Confluências biográficas e históricas

A origem do jogo do bicho é um fato já bem documentado em livros e pesquisas acadêmicas (Magalhães, 2007MAGALHÃES, F. (2007). A fuga dos bichos ou a origem da loteria mais popular do Brasil. Rev. do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, n. 15, pp. 53-67.; Chazkel, 2014CHAZKEL, A. (2014). Leis da sorte: o jogo do bicho e a construção da vida pública urbana. Campinas, Editora da Unicamp.; Misse, 2011MISSE, M. (2011). Crime organizado e crime comum no Rio de Janeiro: diferenças e afinidades. Revista de sociologia e política. Curitiba, v. 19, pp. 13-25.; Labronici, 2012). Resumidamente, sabe-se que, em meados da década de 1890, o barão João Batista Viana Drummond, após alguns anos com dificuldade de subsistir seu Zoológico na Vila Isabel, na Zona Norte do Rio, pediu ajuda a um mexicano chamado Manoel Ismael Zevada, que lhe ensinou sobre o jogo das flores, uma forma de loteria hermana que foi transmutada para a realidade carioca como “jogo do bicho”, substituindo assim as flores pelos animais do zoológico. O barão, que antes penava mesmo com uma ajuda financeira do município, logo encontrou prosperidade através das apostas que ocorriam ao fim do dia e em meses se tornou um fenômeno para além das fronteiras do zoológico. Em pouco tempo, esquinas do Centro da capital e de bairros periféricos foram ocupadas com bancas de bicho, tendo como público-alvo, inicialmente, a população proletária e o lumpesinato, à época representados principalmente pelos ex-escravizados, libertos todos desde 1888. O “bicho”, como chamavam nos jornais do século passado, se prolifera Brasil afora e já na primeira metade do século XX era considerado o maior jogo de azar do País todo.

E o que atinge o País todo não poderia ser diferente no bairro então recém-desenvolvido de Bangu, urbanizado à moda inglesa por influência direta da Fábrica de Tecidos Bangu: “O edifício da fábrica foi levantado em terras da Fazenda Bangu, do lado esquerdo da Estrada de Ferro Central do Brasil, cobrindo uma área construída de 18.649 m2 2 Essas informações foram retiradas de entrevistas com familiares de Castor de Andrade. Um dos mais relevantes para a reconstituição da história da família Andrade/Medeiros foi Teco, um primo de Castor, o qual chamarei unicamente pelo apelido, a fim de não expor demasiadamente a identidade dele. Maiores detalhes sobre a entrevista com ele e outros familiares podem ser encontrados em outros trabalhos da minha pesquisa. . Possui linhas típicas inglesas, características do período neoclássico, apresentando arcos romanos, frontões gregos e grandes platibandas, de partido horizontal. Sobre o edifício principal encontra-se um grande relógio de quatro espelhos, com parte da sua base – o telhado 3 em ardósia” (Azevedo Silva, 1989AZEVEDO SILVA, G. A. de (1989). BANGU 100 anos: a fábrica e o bairro. Rio de Janeiro, Sabiá Produções Artísticas., p. 25).

Fundada em 1889, a fábrica descrita construiu ao redor de si um bairro fabril com acesso a uma urbanização de maior qualidade do que outros locais da periferia da capital carioca. A promessa de trabalho e moradia decente atraiu famílias empobrecidas de todas as regiões da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, e, no princípio do século XX, a família Medeiros, encabeçada por Manuel e Eurides e seus quatros filhos, seguiu o caminho da prosperidade. Os homens trabalhavam na fábrica, as mulheres faziam bicos caseiros. Eurides plantava café em seu amplo quintal de fundos em seu lar na rua Fonseca 1040, em Bangu, e com isso vizinhos transitavam com frequência em busca dos grãos que rapidamente ficaram famosos pela região.2 2 Essas informações foram retiradas de entrevistas com familiares de Castor de Andrade. Um dos mais relevantes para a reconstituição da história da família Andrade/Medeiros foi Teco, um primo de Castor, o qual chamarei unicamente pelo apelido, a fim de não expor demasiadamente a identidade dele. Maiores detalhes sobre a entrevista com ele e outros familiares podem ser encontrados em outros trabalhos da minha pesquisa. Isso acabou por chamar a atenção de um banqueiro do jogo do bicho, um português que queria explorar mais da região e viu no fluxo de pessoas na casa dos Medeiros uma oportunidade econômica: fazer do quintal um ponto de jogo, ficando ela com os 12% dos lucros. Feito. Isso ocorreu por volta de 1905. Em pouco tempo, tal como o café, o “bicho” ali também prosperou. O português fugiu do Brasil por questões legais e deixou o ponto de presente para a sócia minoritária, que então virou a chefe única. A filha, Carmem, ajudava assiduamente a mãe a cuidar dos negócios, assim, seu esposo, Eusébio de Andrade, se tornou interessado na gestão da jogatina e, após ser demitido de sua função de maquinista de trens da Central do Brasil, ele tomou a frente do jogo do bicho, prometendo à sogra que manteria a família bem.

Eusébio e Carmem tiveram filhos, dentre eles Castor de Andrade, talvez o bicheiro mais famoso da história do Brasil. A família Medeiros/Andrade, sob a égide da liderança de Eusébio, expandiu os pontos para bairros da Zona Oeste e Norte, tanto pela bala quanto pelo soco e também pela política monetária. Eusébio, relatam os parentes, herdara de outros bicheiros do Rio a tradição de “comprar” policiais para assistir em ações contra rivais e também para sabotar investigações contra sua rede criminal em expansão. O patriarca construiu uma firma rede de mercadorias políticas (Misse, 2010MISSE, M. (2010). Trocas ilícitas e mercadorias políticas: para uma interpretação de trocas ilícitas e moralmente reprováveis cuja persistência e abrangência no Brasil nos causam incômodos também teóricos. Anuário Antropológico. Brasília, v. 35, n. 2, pp. 89-107.) com agentes de segurança pública que abriam caminhos para novas investidas em territórios ainda imberbes quanto à exploração econômica do jogo do bicho e ajudaram a blindar a família e sua rede criminal de investidas violentas de rivais vingativos. Ao mesmo tempo, observam-se as relações imbricadas entre a exploração de mercados legais e ilegais ou informais/ilegítimos. Da venda de grãos caseiros plantados no quintal de uma família de proletários fabris à gerência de uma jogatina perseguida pelas autoridades (mesmo que não exatamente ilegal), até a expansão dos negócios por meio da violência e do suborno, vê-se que desde o princípio o envolvimento da família com essa loteria que muito transitou na zona cinza da legalidade até, por fim, se tornar uma contravenção3 3 “À guisa de exemplo, a autora elucida que no Distrito Federal do Rio de Janeiro, entre 1906 e 1917, os casos relacionados ao Jogo do Bicho tinham uma absolvição de aproximadamente 87%, enquanto os casos de vadiagem tinham uma absolvição de aproximadamente 69%, ou seja, isso permitia aos agentes do Jogo do Bicho uma atuação mais intensa na prática da atividade sem receio de serem punidos. A Lei n. 3.688, de 3 de outubro de 1941 é um marco histórico na atividade do Jogo do Bicho, pela primeira vez a loteria aparece na Lei das Contravenções Penais, especificamente no art. 58º: Explorar ou realizar a loteria denominada jogo do bicho, ou praticar qualquer ato relativo à sua realização ou exploração: Pena prisão simples, de quatro meses a um ano, e multa, de dois a vinte contos de réis.” (Carmo e Medeiros, 2018, p. 49). em 1944 é marcado pela lógica da gestão de ilegalismos. O mercado dito legítimo encontra e fomenta sua faceta dita ilegítima e ilegal na própria produção da realidade urbana, seja pela produção de discrepâncias de poder econômico e de capacidade material de subsistência em decorrência da exploração da mais-valia (Engels e Marx, 2015ENGELS, F.; MARX, K. (2015). O Capital-Livro 1: Crítica da economia política. Livro 1: O processo de produção do capital. São Paulo, Boitempo.), seja pela própria produção ativa de um urbanismo centralizado ao redor da exploração dessa mão de obra no chão da fábrica. As pontes construídas entre Estado e mercado sustentam realmente uma teia mutuamente visível e invisível de relações que, no limite, não distinguem legal e ilegal e operam justamente no campo dos ilegalismos, como observável na própria biografia da família Andrade/Medeiros.

Castor nasce e se constrói no seio de uma família já bem estruturada por conta dessa imersão nos ilegalismos. Não à toa, teve base para ingressar na Faculdade Nacional de Direito, entre 1957 e 1962, à época o mais importante dos cursos do tipo no Brasil, quase inacessível para pessoas oriundas das classes proletárias, como o sistema de ensino superior num todo do período.4 4 “No período 1940-1960 a população do país passou de 41,2 milhões para 70 milhões (crescimento de 70%), enquanto as matrículas no ensino superior triplicaram. Em 1960, existiam 226.218 universitários (dos quais 93.202 eram do setor privado) e 28.728 excedentes (aprovados no vestibular para universidades públicas, mas não admitidos por falta de vagas)” (Martins, 2002, p. 5). Enquanto o patriarca já havia construído uma firme rede de influências e negócios – junto de cunhados e irmãos – Castor, já formado em Direito, ao assumir o comando da família e da rede criminal a esta atrelada, expandiu seu capital social, simbólico e político (Bourdieu, 1980BOURDIEU, P. (1980). Le capital social: notes provisoires. Actes de la Recherche em Sciences. Sociales. Paris, n. 31, pp. 2-3., 1999BOURDIEU, P. (1999). Escritos de educação. Organização de Maria Alice Nogueira e Afrânio Catani. Rio de Janeiro, Vozes. e 2009) de modo a permitir um salto na curva de crescimento da renda e da penetração de sua rede criminal pela malha urbana fluminense e no interior de diferentes setores institucionais estatais (tribunais, polícias, presídios, assembleias, etc.).

Castor e sua geração de colegas e rivais na disputa pelo monopólio da jogatina no território fluminense conseguiram tirar o bicho do estado de violência bruta5 5 “No auge dos anos 1950 e 1960, a violência entre os grupos que dominavam a jogatina era tamanha que, segundo Misse (2008), a imprensa da época comparava a capital fluminense à Chicago dos anos 1920, quando esta última foi tomada pelas máfias do tráfico de bebidas alcoólicas, consequência direta da Lei Seca que vigorou por duas décadas nos EUA. Isso, somado ao contexto do aumento da violência armada num geral e à alta repercussão desses crimes no território carioca – uma vez que os meios de comunicação se concentravam no Rio –, levou à criação do Grupo de Diligências Especiais, ‘comandado por um policial, conhecido como LeCocq, que pertencera à famigerada Polícia Especial da ditadura Vargas’ (Misse, 2008, p. 377)” (Vieira, 2023, p. 34). para, em meados dos anos 1970, construírem um negócio mediado pela diplomacia de uma cúpula na qual os líderes das principais famílias dividiram os territórios de modo a cessar disputas e aumentar lucro ao afastar a repreensão da polícia, sempre pressionada pela imprensa carioca a reagir à violência entre agentes do jogo do bicho. Um dos idealizadores e o líder desse agrupamento, Castor erigiu uma rede complexa de relações sociais que faziam com que acumulasse capital de diferentes formas.

Por meio da contabilidade pessoal de Castor e também de sua rede criminal6 6 À qual tive acesso por meio de um pedido de desarquivamento de processo judicial no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. (com anotações de 1987 a 1994), é possível observar as estratégias de expansão e manutenção de poder a partir da forma como ele gastava dinheiro. Os investimentos eram diversificados, mas com o mesmo foco de agradar ao máximo de pessoas possível, fossem seus funcionários, fossem artistas, esportistas e moradores de bairros, fossem agentes da lei e de outros setores do Estado que poderiam, se insatisfeitos, obstruir o funcionamento do mercado ilegal tocado por Castor e colegas da cúpula.

No livro número um do caderno denominado Movimento de Caixa, podemos encontrar gastos de agrados que ultrapassam o mero exercício de poder pela propina, a qual costuma beneficiar apenas determinados subgrupos ou indivíduos, e se expandem para um investimento generalizado sobre grupos maiores, independente da conivência dos agentes. Por exemplo, em março de 1993, ficou anotado o gasto com almoço para todos os agentes presentes no 14º Batalhão de Polícia Militar, circunscrito na região de Bangu e adjacências, na Zona Oeste da capital fluminense. O valor de R$871,407 7 Todos os valores relativos à contabilidade foram convertidos para moeda e inflação dos tempos de hoje a partir da ferramenta disponibilizada pelo Banco Central do Brasil, no endereço on-line: https://www3.bcb.gov.br/CALCIDADAO/publico/corrigirPorIndice.do?method=corrigirPorIndice. O parâmetro inicial é a data de referência do gasto discernido na caderneta de contabilidade enquanto a data final, para correção inflacionária, foi, à época deste escrito, o mês de junho de 2023. serviu para bancar refeições para os oficiais do batalhão, sem discernimento de quem se relaciona diretamente com a rede de Castor ou não. Dessa forma, a agradabilidade do líder dos bicheiros constrói um entrave nos impulsos de repressão por parte daqueles que preferem se distanciar minimamente. Gasto de cunho idêntico é encontrado no quarto livro de Movimento de Caixa, R$478,65, em outubro de 1993, que, no caso, refere-se ao almoço do pessoal do 19º BPM, que abrange Copacabana.

Outros tipos de gastos expressam mais detalhadamente o investimento financeiro na construção de confiança com funcionários diretos e indiretos. Vale ressaltar que Castor foi chefe do time de futebol Bangu F.C., da escola de samba Mocidade e da Liga de Escolas Independentes de Samba do Rio de Janeiro, a Liesa, a qual cofundou. Por mais que oficialmente fosse um exercício de poder tecnicamente independente do seu ofício como chefe de uma família do jogo do bicho, na prática as coisas se tornam indissociáveis, o dinheiro ilegal circula por esses âmbitos legítimos tanto para lavagem quanto para construção ativa de uma infraestrutura melhor para tais instituições. O ilegalismo, em suas dicotomias entre o legal e ilegal, legítimo e ilegítimo, se manifesta, aqui, na transitividade de diferentes formas de capitais (ao mesmo tempo no sentido marxista e bourdieusiana) entre as expressões esportivas e culturais populares como futebol e carnaval. O agrado e o respeito por funcionários diretos e indiretos de Castor enquanto bicheiro acaba por reforçar o laço de confiança não violento no qual Castor tanto investiu ao longo da vida.8 8 Com inúmeros inquéritos nas costas, Castor é lembrado em mídia, por moradores de bairros de sua influência (Bangu e Realengo) e por alguns entrevistados e conhecidos meus, como um diplomata em primeiro lugar, especialmente se comparado com outros pares ou sucessores que utilizam violência como uma ferramenta mais recorrente do que o capo utilizava. Essa forma de relação se expressa explicitamente em gastos como os R$227,89 despendidos com um funcionário de ponto de bicho adoecido, em junho de 1993; ou o fato de que, segundo Teco, o primo de Castor, o chefe da família sustentava uma farmácia para que atendesse gratuitamente seus funcionários adoecidos, etc. Do mesmo modo, há também os agrados para os jogadores do Bangu, que bebiam, comiam e até se relacionavam sexualmente com prostitutas com o dinheiro de bicheiro de Castor – vide os R$4.433,65 pagos ao clube do Taco de Copacabana em maio de 1993, referente ao usufruto do espaço pelos jogadores do Bangu.

Castor faleceu em 1997, sofreu um ataque fulminante durante um jogo de cartas exclusivo que decorria num apartamento no Leblon. Sua herança foi dividida entre três: em torno de 40% para seu filho Paulinho; 30% para sua filha Carmem (representada pelo marido Fernando Iggnácio); e 30% para seu sobrinho Rogério de Andrade, o qual, junto dos dois irmãos, Renato e Rinaldo.

Paulinho [...] detinha pouca senão nenhuma afeição pela labuta. Reconhecido como uma figura expansiva e carismática, o sucessor direto do capo amava a noite, mas odiava as obrigações do dia, o que começou a gerar atritos internos na família quando a herança, na visão de Rogério e seus irmãos, parecia ter sido injustamente delegada em maioria para quem pouco saberia usufruir desta. Tanto entre os que tomam as dores do atual capo quanto entre os que o detestam, a versão que parece mais precisa do que ocorreu é a de que Rogério teria mandado matar o primo sem que este tivesse, realmente, disposição para um embate, tornando a morte ainda mais cruel aos olhos dos parentes. Esse fato foi o marco do fim da imagem pública de playboy festeiro da Zona Oeste para criminoso de alta periculosidade. Fernando Iggnácio, genro de Castor e gestor da herança de Carmen, tomou as dores do cunhado e iniciou contra Rogério uma guerra que perdurou de 1998 até 2020. (Vieira, 2023VIEIRA, M. L. (2023). Do bicho à milícia: uma análise das relações entre milicianos e bicheiros no começo do século XXI. Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro., p. 53)

Continuidades relacionais

A contabilidade pode revelar muitas coisas do modus operandi de uma rede tão complexa e longínqua quanto a da família Andrade, mas, para os fins deste artigo e deste objeto de pesquisa em específico, um dos fatos de maior destaque é o ganho mensal de propinas por alguns policiais militares que se tornaram milicianos conhecidos nos anos 1990 e 2000, quando a própria noção de milícia se forjou entre práxis de dominação armada paramilitar e discursos difusos circulando por diferentes esferas sociais (imprensa, sociedade civil, política, etc.).

Major Dilo, Capitão Cunha e Álvaro Lins, em especial, compuseram um “azarado” grupo de policiais militares expostos ao terem o nome atrelado à lista9 9 Lista esta que fora apreendida na batida policial que raptou todo o booking de contabilidade da rede de Castor relativo aos anos 1987 e 1994. Esse material foi anexo do processo n. 0023098-22.1994.8.19.0001, ao qual, como citado, tive acesso concedido pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. de propinas mensais pagas por Castor. Eles também tiveram o “azar” de, alguns anos após o escândalo da propina, virarem réus em processos que os acusavam de incorporarem diferentes milícias do Rio de Janeiro, num período em que esse tipo de rede criminal havia recém se moldado em algo reconhecido por tal nome e com características propriamente cristalizadas em reportagens e pesquisas (Abreu, 2019ABREU, A. de (2019). A metástase. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/materia/a-metastase/. Acesso em: 10 dez 2023.
https://piaui.folha.uol.com.br/materia/a...
; Werneck, 2015WERNECK, A. (2015). "O ornitorrinco de criminalização: a construção social moral do miliciano a partir dos personagens da 'violência urbana' do Rio de Janeiro". Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social. Rio de Janeiro, v. 8, n. 3, pp. 429-454.; Cano e Duarte, 2012CANO, I.; DUARTE, T. (2012). No sapatinho. A evolução das milícias no Rio de Janeiro (2008-2011). Rio de Janeiro, Henrich Boll Stiftung.). Os batalhões aos quais pertenciam enquanto teriam recebido propina constavam na contabilidade como ambientes beneficiados diretamente por investimentos de Castor e sua rede, demonstrando que a relação supraindividual se tornou muito relevante na construção de capital do bicheiro.

Os três indivíduos em questão mantiveram contato direto (indivíduo-rede ou indivíduo-indivíduo)10 10 A noção de contato direto e indireto entre redes é perceptível em autores dessa teoria, mas a explicitação nesses termos vem de mim. Conceituo aqui “indivíduo - rede” como aquela relação em que um agente está em contato direto com outros agentes de uma rede, representando ele mesmo a rede à qual pertence enquanto interage com os outros da correlata. Assim como “rede - rede” como sendo relações em que diferentes indivíduos de mais de uma rede se relacionam de modo a relação entre as redes ser mais explícita. ou indireto (indivíduo-rede ou rede-rede) com a rede de Rogério de Andrade e Fernando Iggnácio, construindo ou sustentando continuidade de relações pessoais com as derivações da rede de Castor e expandindo essas relações para benesses de suas redes milicianas, como evidenciarei em breve.

A seguir a lista de propinas relacionadas a esses três.

Major Dilo e Rio das Pedras

Preâmbulo

A gênese das milícias no Rio de Janeiro segue em disputa nas ciências sociais (Zaluar e Conceição, 2007ZALUAR, A.; CONCEIÇÃO, I. S. (2007). Favelas sob o controle das milícias no Rio de Janeiro. Perspectiva. São Paulo, v. 21, n. 2, pp. 89-101.; Misse, 2008MISSE, M. (2008). Sobre a acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Civitas: Revista de Ciências Sociais. Porto Alegre, v. 8, n. 3, pp. 371-385.; Souza, 2020; Cano e Ioot, 2008CANO, I.; IOOT, C. (2008). "Seis por meia dúzia? Um estudo exploratório do fenômeno das chamadas 'milícias' no Rio de Janeiro". In: JUSTIÇA GLOBAL (org.). Segurança, tráfico e milícia no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Fundação Heinrich Böll.). Os autores discordam principalmente em dois pontos correlatos: quanto a se se trata de um fenômeno orgânico ou um projeto político e se o território mais relevante para a análise foi a Baixada ou a Zona Oeste. As obras de Zaluar e, em parte, a de Misse, por exemplo, tendem a seguir o caminho da análise das milícias como uma evolução social orgânica do processo de acumulação social da violência, no qual as afinidades eletivas entre diferentes fenômenos, como políticos, econômicos e territoriais, fazem com que, dentro da linha histórica do Brasil, as milícias se tornem possíveis a partir de grupos de policiais matadores, como o grupo de seguidores do inspetor Milton Le Cocq. A linha teórica das milícias como fruto de um projeto político derivado da ditadura militar e com gênese na Baixada Fluminense tem por autor José Cláudio Souza Alves, que defende uma continuidade da dominação racista e de classe da ditadura militar na forma como os grupos de extermínio se constroem na baixada e, lentamente, instituem domínios armados sobre territórios. Apesar disso, é possível extrair uma síntese de toda essa discussão infindável e ainda apaziguá-la (ou não): podemos tirar dela que tanto a Baixada Fluminense quanto a Zona Oeste, em todas suas convergências e divergências nas construções históricas urbanísticas, foram palco de longos processos sociais envolvendo recorrentes manifestações de dominação de classes com recorrentes ciclos de despossessão – com gênese na escravidão e no colonialismo – e de novas facetas do extrativismo capitalista (Harvey, 2003HARVEY, D. (2003). O novo imperialismo. São Paulo, Loyola.), tudo interligado ao que cunho como extrativismo do terror.11 11 O termo “extrativismo do terror” é mais bem explicado em um artigo ainda a ser publicado nos anais do 3º Congresso de Segurança Pública da Redes da Maré. Complementarei a citação com nome, data e página, porém, para fins de respeito ao anonimato da submissão, segue apenas a citação: “A esse processo de formação de capital político por meio da produção do pânico moral darei o nome de ‘extrativismo do terror’. Para compreender o que pretendo por isso, preciso explicar minimamente a teoria de David Harvey (2003), que num avanço da formulação de Marx e Engel no capítulo XXIV de O Capital, e tendo outros pensadores como Gago e Mezzadra (2017) continuando sua linha teórica, pensou o extrativismo e a despossessão no capitalismo contemporâneo, em especial na América Latina. A discussão parte do princípio da sobreacumulação de capital e as questões quanto ao tratamento desse excedente para que dinheiro e capacidade produtiva não fiquem ociosos e, com isso, possa acabar freando o aumento de capital. [...] A despossessão, neste caso, é uma das traduções possíveis para expropriação, ou seja, o ato de retirar alguém de algum lugar ou de tirar de alguém algo que já lhe pertence. De modo similar o extrativismo, no sentido mais restrito, era um termo referente ao fazer econômico de extrair matéria prima para produção de bens de consumo. Harvey e os seguidores de sua filosofia enxergam como esses processos se dão na escala global, onde o capital sobreacumulado é aplicado em países periféricos, na exploração de recursos e na expropriação e no surrupiamento de mãos de obra locais para fins externos, num emaranhado de relações que cruza estados-nações, grupos privados de legais, ilegais, etc. Ao reobservar as microrregiões de um mesmo estado ou país, podemos deduzir que os processos de cunho macro explicados por Harvey se repetem no interior do território circunscrito ali. ‘Nesse sentido, as lógicas extrativistas se cruzam com o governo dos pobres, produzindo violência e criando formas híbridas com as mesmas lógicas e retóricas de inclusão propostas pelo discurso da cidadania. Esta perspectiva conduz a uma leitura dos novos conflitos sociais que permite mapear o entrelaçamento do agronegócio, das finanças, das economias ilegais (das drogas ao contrabando) e dos subsídios estatais, segundo lógicas complementares e competitivas. Essas lógicas também nos permitem escapar ao imaginário vitimizador que tende a ser enfatizado pela narrativa de desapropriação’ (Gago e Mezzadra, 2017, p. 580). A repetição do macro no micro é o sinal de como as dinâmicas são produzidas pelos mesmos estruturantes. Dentro da periferia do mundo, há periferias de seu próprio mundo limitado, e nelas as desapropriações se repetem por agentes internos e externos ao território. A teoria de Harvey permite que enxerguemos, por fim, como as marcações violentas do capital estão em todas as instâncias de vida sob a égide do capitalismo. O extrativismo do terror entra aqui. Trata-se de uma forma de extração material de vida e simbólica de paz tanto no nível coletivo quanto no individual, no qual o estado produz terror – tido aqui como produção de constante tensão retroalimentada pela violência e a própria ameaça de sê-lo, é o sequestro da paz para um viver cotidiano desnaturalizado da violência física estruturalizada pelo estado e/ou entidades privadas – determinado territórios para conseguir promover a circulação de ideias que possam ser capitalizadas posteriormente para fins de eleição ou de oferta de serviços públicos (mais operações, que permite gastar mais com segurança) e privados (quando grupos particulares, compostos por agentes públicos ou não, disponibilizam seu trabalho de proteção, etc.)”. Ambas as regiões foram antes divididas em enormes engenhos e fazendas escravistas e têm sua ocupação intensificada no século XX, a Baixada já a partir da primeira metade do período, enquanto grande parte da Zona Oeste teve uma ocupação sistemática a partir de um processo mais recente, oriundo de uma imigração massiva de nordestinos para o Rio de Janeiro a partir das décadas de 1950 e 1960 (Burgos, 2002BURGOS, M. B. (2002). Utopia da comunidade: Rio das Pedras uma favela carioca. Rio de Janeiro, Loyola.) e de processos violentos de desocupação de moradores de áreas pobres da Zona Sul e realocamento nos bairros afastados durante essa mesma segunda metade do século. Seguindo a lógica de Milton Santos (1999)SANTOS, M. (1999). O dinheiro e o território. GEOgraphia. São Paulo, v. 1, pp. 7-13., Zona Oeste e Baixada tornam-se propriamente territórios usados em momentos diferentes, o que também realoca suas especificidades de formas distintas, pois a temporalidade modifica as nuances de fatores que compõem vivamente as relações sociais que moldam o urbano. De qualquer forma, pode-se entender que as milícias são fruto tanto do acúmulo social da violência (Misse, 2008MISSE, M. (2008). Sobre a acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Civitas: Revista de Ciências Sociais. Porto Alegre, v. 8, n. 3, pp. 371-385.), construído sob a égide de um Estado que executa uma intricada e complexa rede de gestão de ilegalismos – rede esta desenvolvida a partir do processo escravocrata que inaugura o Brasil enquanto Estado-Nação moderno – quanto de projetos políticos de dominação das classes pobres e descendentes de ex-escravizados, como descrito por Alves (2020)ALVES, J. C. S. (2020). Dos barões ao extermínio: uma história da violência na Baixada Fluminense. Rio de Janeiro, Consequência. ao falar sobre a continuidade do projeto ditatorial na berlinda da redemocratização como um dos fatores essenciais para entender o aumento exponencial da violência urbana na Baixada Fluminense e, com isso, o surgimento das milícias.

Esse longo preâmbulo serve de justificativa para a escolha de observar os milicianos da Zona Oeste em detrimento daqueles da Baixada como forma de entender a ligação da gênese desse tipo de rede criminal e o jogo do bicho. As milícias parecem ser frutos de um imbricado processo sócio-histórico que se desenvolve de forma convergente e divergente em ambas as localidades, tendo em comum também a concomitância temporal do surgimento desse modo de organização em que agentes de segurança exercem uma dominação armada relativamente coesa sobre um território. Rio das Pedras, se não for a primeira favela a sofrer tal tipo de dominação, é, com certeza, uma das primeiras e talvez, em parte por isso, detenha o título informal de “berço das milícias” (Lima, 2023LIMA, B. (2023). Berço da milícia no RJ foi alvo de apenas oito operações em três anos. Metrópoles. Disponível em: https://www.metropoles.com/colunas/guilherme-amado/berco-da-milicia-no-rj-foi-alvo-de-apenas-oito-operacoes-em-tres-anos. Acesso em: 10 dez 2023.
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).

A milícia toma conta de tudo

Apesar da “polêmica” de ter o nome envolvido na lista de propinas de Castor de Andrade, Major Dilo colheu bons frutos em sua carreira enquanto policial militar, tendo já em 1999 se tornado um dos chefes da Força-Tarefa de Combate ao Crime Organizado, criada pelo governo de Anthony Garotinho em 1999, para combater o crime organizado. Dilo conseguiu um papel de tamanho destaque por sua proximidade com Lenine de Freitas, então subsecretário de Planejamento Operacional. Embora mantivesse uma sólida ascenção no meio policial, o homem que outrora aparecera na lista de propinas figurava, em 2001, nos jornais com uma nova associação a um crime: a coordenação do sequestro do taxista Sérgio Couto em julho de 2001, na Zona Norte do Rio de Janeiro.

Liderando um grupo de policiais também associados à Força-Tarefa, Dilo organizou que o motorista fosse raptado em troca de 500 mil reais, aos quais suspeitava que o homem teria acesso por supostamente ser chefe do Morro de São Carlos, Zona Norte do Rio. Sérgio, que não era a cabeça do morro como acreditavam seus sequestradores, não possuía as fortunas que pediam para seu resgate. Embora tivesse sido investigado por relações com o jogo do bicho, sua única associação com o tráfico era o fato de ser primo de Alex André “Dedé” Gomes, o verdadeiro chefe da favela. Este último foi assassinado no começo de 2002, também após ser sequestrado por PMs que, suspeita-se, seriam do mesmo grupo que raptou o taxista.

Numa trama com muitas idas e vindas na justiça, Sérgio acabou morto, suspeita-se, pelos subalternos de Major Dilo, o que lentamente empurrou o caso para o ostracismo, até parar nos arquivos do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, onde acessei os autos para fins de compreender melhor a trajetória do policial. É sabido que a transição de século foi marcada por muitas notícias de sequestros praticados por policiais. Na verdade, esse período aparenta ser de uma transição do policial coadjuvante para o policial protagonista de redes criminais de destaque. Esses três anos como uma das frentes da Força-Tarefa12 12 Com o destaque desse caso na imprensa, o subsecretário que ajudou Dilo a alcançar o alto escalão da Força Tarefa se viu pressionado a começar uma desvinculação pública de sua imagem junto ao policial: “Ele sempre foi o melhor, como o Romário da seleção. Mas, se for verdade o que se diz, serei o primeiro a pedir sua expulsão”, afirmou em entrevista ao Jornal do Brasil em 17 de julho de 2001. foi, para Dilo, também muito importante noutra empreitada: o ingresso na incipiente milícia de Rio das Pedras.

A milícia foi fundada por volta de 1995 pelo inspetor da Polícia Civil do Rio de Janeiro Félix Tostes junto a Nadinho de Rio das Pedras, liderança comunitária que em meados dos anos 2000 se elegeu vereador da capital fluminense com a base eleitoral formada na região sob seu comando. “Com a saída de Brizola do governo, a polícia retomou o papel de hiperviolência que havia sido parcamente segurada pelo então governador” (Vieira, 2023VIEIRA, M. L. (2023). Do bicho à milícia: uma análise das relações entre milicianos e bicheiros no começo do século XXI. Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro.). Rio das Pedras era uma comunidade distante, povoada a partir da década de 1960 por retirantes nordestinos e urbanizada pela própria prefeitura, que delegava à associação de moradores funções públicas de organização do espaço e acesso a direitos.

O estudo do processo de ampliação do território de Rio das Pedras revela que, movido pelo pragmatismo político e pela total falta de planejamento, o poder público acabou patrocinando a construção da favela. Nessa estranha lógica, a favela não surge como decorrência da falta de política habitacional, mas como resultado de uma política habitacional deliberada, que delegava à associação e moradores o papel de organizar uma nova ocupação e regular o espaço. (Burgos, 2002BURGOS, M. B. (2002). Utopia da comunidade: Rio das Pedras uma favela carioca. Rio de Janeiro, Loyola., p. 45)

Esse poder demasiado nas mãos da associação foi explorado por Tostes, policial que começou oferecendo à região uma forma de segurança comunitária/privada, o que manteve traficantes afastados do bairro, chamando a atenção de Burgos e equipe (2002) para o fato de ser uma favela desprovida de características que consideramos hoje comuns, como a presença explícita de mercados ilegais e ruas mal pavimentadas – quando o são. Rio das Pedras se apresentava como uma favela quase utópica, como o título do livro que reúne as pesquisas de Burgos dá a entender (A utopia da comunidade: Rio das Pedras, uma favela carioca). Os serviços de segurança privada rapidamente se tornaram uma forma própria de exercer poder, baseada na extorsão de moradores, no implemento de uma agiotagem centralizada e na expropriação de casas e empresas. Práticas antes cometidas de modo avulso por diferentes agentes dos mercados ilegais agora passavam a ser concentradas numa mesma rede criminal hierarquizada, mas com flexibilidades para exercício de negócios, estabelecendo um modelo de gestão de ilegalismos replicado de modo a se tornar uma coisa própria. Aqui a gestão de ilegalismos também ganha outro contorno. Pois o Estado não é apenas um agente indiscreto que, por meio da própria legitimidade e legalidade, cria e gerencia mercados ilegais, agora compõe o topo de uma rede criminal que exerce dominância armada sobre um território, borrando ainda mais os limites entre a estrutura oficial estatal e a estrutura do grupo armado. Se o policial e, eventualmente, o político do município são os “donos do bairro” e, com o advento dos meios oficiais e burocráticos, tanto conseguem mais avanços no progresso da infraestrutura do bairro quanto conquistam uma blindagem ainda maior contra possíveis denúncias, etc., como diferenciar o que é e o que não é Estado?

Dilo adentrou a milícia direto na área de agiotagem, configurando o chefe desse tipo de atividade econômica. Ele figurava o segundo escalão de poder do grupo, alçando-se ao topo a partir da morte de Félix Tostes, assassinado em 2007 por miliciano do grupo Liga da Justiça, criado em Campo Grande (Zona Oeste do Rio) quase ao mesmo tempo que a milícia de Rio das Pedras. Os processos consultados para esta pesquisa e a CPI das Milícias mostram que Nadinho encomendou a morte do sócio, firmando um acordo de paz com a milícia rival, que, até então, se mantinha em disputas com o pessoal de Jacarepaguá. Apesar de bem-sucedida a execução, Nadinho foi rapidamente descoberto pelas autoridades, ao mesmo tempo que, em Rio das Pedras, sofreu um contragolpe, pois Estado e todo o segundo escalão se mantiveram fiéis à memória de Tostes, expulsando-o de qualquer posição executiva dentro da rede criminal. Os irmãos Dalmir e Dalcemir fizeram a frente da retomada de poder, pondo na primeira instância outros sócios, dentre eles Dilo, que se tornou ainda mais respeitado, uma vez que alçou a uma posição de relevância máxima.

A disputa entre a Liga da Justiça e a Milícia de Rio das Pedras carregava também os laços da família Andrade, a essa altura fraturada pela guerra entre Fernando Iggnácio e Rogério de Andrade. De um lado, o genro de Castor exercia sua influência sobre a região de Campo Grande e parte de Bangu; do outro, o sobrinho fazia o mesmo em Jacarepaguá. As milícias sustentavam laços diretos e indiretos com os bicheiros responsáveis por seus respectivos territórios.

Há algumas formas de se observar isso. A primeira seria pelos indivíduos que constituem conexões históricas entre as redes. Em Rio das Pedras, Dilo continuou a manter relações com Rogério, tanto é que parte dos caça-níqueis do contraventor eram explorados na região da milícia com anuência da rede que exercia domínio armado no local e mediação de agentes policiais da rede criminal de Álvaro Lins, sobre o qual falarei mais em breve. Em Campo Grande, o policial militar Róscio, ex-segurança de Castor, coordenava a segunda linha de comando da milícia da Liga da Justiça, mediando relações com outras redes, como a de Fernando. Outra forma de observar essas relações é pela divisão de votos em eleições.

Do outro lado da corrida eleitoral, Fernando Iggnácio, segundo as investigações, não permitira a entrada de Lins, Itagiba e afiliados em suas zonas de influência na Zona Oeste. Assim, os policiais civis da rede ligada a Rogério não podiam fazer campanha em bairros como Campo Grande etc., demarcando bem o território e as alianças invisíveis impostas neles. Binho, um dos chefes de segurança do sobrinho de Castor disse, numa ligação com um homem desconhecido, que Jacarepaguá era garantido para o “Dr. Álvaro”. (Vieira, 2023VIEIRA, M. L. (2023). Do bicho à milícia: uma análise das relações entre milicianos e bicheiros no começo do século XXI. Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro., p. 99)

A divisão de influências fica mais visível no mapa retirado do processo 2009.068.00004, onde consta uma lista de eleitores que divide bem que quem se elege em Rio das Pedras e Jacarepaguá, não se elege em Campo Grande e Santa Cruz, salvo, basicamente, por Itagiba, um policial civil que sucedeu Álvaro Lins13 13 Itagiba ora antagonizava, ora se aproximava de Lins, numa relação ambivalente que, apesar das divergências políticas relativas aos rumos da Secretaria de Segurança Pública e do usufruto das relações com os bicheiros, pareceu se manter progredindo em ganhos de capitais simbólicos e econômicos para ambos. no cargo de secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro. A possibilidade de trânsito de Itagiba em algumas partes de Santa Cruz pode se explicar pela dimensão geográfica do bairro, com 125 km2 de extensão e mais de 200 mil habitantes, um bairro que, tal como Campo Grande, na época não era dominado unicamente por Liga da Justiça, permitindo trânsitos de diferentes redes a depender da parte no bairro. Um mapa produzido pelo Ministério Público em um processo judicial contra Jorge Babu e sua milícia mostra com precisão a divisão territorial de votos na Zona Oeste. Os grupos com alguma ligação a Rogério de Andrade se elegiam com votos da região de Jacarepaguá enquanto os conectados a Fernando Iggnácio se elegiam pela região de Campo Grande e arredores.

Coronel Cunha e o outro lado da Zona Oeste

Na outra ponta da Zona Oeste, como o mapa mostra, há um nome que se repete em inúmeros locais de votação: Jorge Babu. Inspetor da Polícia Civil envolvido com rinha de galo e depois deputado estadual eleito pelo PT, Babu foi sócio de uma milícia que tinha territórios em Pedra de Guaratiba e Campo Grande. Ao seu lado na liderança estava Coronel Cunha, antigo capitão Cunha da lista de propinas de Castor. Babu era a frente política e Cunha a frente bélica da rede. A milícia foi se estabelecendo em três territórios entre 2005 e 2006: no conjunto habitacional situado em Inhoaíba (Campo Grande), no conjunto habitacional Cesarinho (Paciência) e na comunidade da Foice (Guaratiba). Para sustentar esses três pontos em bairros diferentes, Babu e Cunha firmaram aliança com a Liga da Justiça.

A Liga e a milícia de Babu mantinham boas relações, pelo que se sabe, também por conta de um primo do político que, certa vez, a pedido dele, solicitou que Jerominho, em Campo Grande, desse uma lição no homem que se tornou o denunciante da milícia de Guaratiba. A fim de agradar o amigo, o chefão da Liga deu um tapa tão forte nesse delator que acabou perfurando o tímpano dele. (Vieira, 2023VIEIRA, M. L. (2023). Do bicho à milícia: uma análise das relações entre milicianos e bicheiros no começo do século XXI. Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro., p. 102)

Os caça-níqueis daquela região pertenciam em sua maior parte a Fernando Iggnácio, logo, para usufruto desse meio de arrecadação num território, era necessário negociar com a rede de Fernando. Consta no processo que o ponto de encontro dos milicianos era a padaria da rua Francisco Brusque e que, aos fundos do estabelecimento, encontravam-se quatro máquinas de caça-níquel de tema Halloween, ou seja, um lastro de uma possível relação econômica com a rede de Fernando. Outro laço possível se mostra no fato de que Cunha conheceu ou afinou laços com quatro homens de sua rede miliciana na escola de samba Unidos da Ilha do Governador, para a qual ele teria trabalhado como chefe da segurança. A escola em questão pertence à Liga das Escolas de Samba (Liesa) desde quando os bicheiros a criaram.

A Liga era apresentada como uma empresa cujo objetivo seria comercializar o desfile, o que incluía o direito de transmissão de imagens, então nas mãos da Riotur. Com o desligamento da Associação, as intituladas dez grandes escolas – Beija-Flor, Caprichosos de Pilares, Imperatriz Leopoldinense, Salgueiro, União da Ilha e Vila Isabel, a maioria controlada pela contravenção – passaram a negociar com o poder público separadamente, isolando as 34 agremiações menores (Jupiara e Otávio, 2016, p. 213).

Babu e Cunha conseguiram estabelecer uma milícia com maior facilidade e noção quanto ao modus operandi a partir do modelo já estabelecido pelos colegas de Campo Grande e Rio das Pedras. Logo, a atuação era mais precisa, por exemplo, para dominar a Comunidade da Foice, fizeram primeiro um reconhecimento de terreno, depois, segundo o depoimento de um comerciante revoltado por ter perdido seu estabelecimento para a milícia, um grupo de 25 homens, a pé e em carros particulares, adentraram a favela apoiados por veículos com o logo da PMERJ, sem, porém, identificar qual o batalhão. Em poucas horas expulsaram os traficantes e desfizeram as bocas de fumo. Não precisaram de uma aproximação lenta dos moradores para então ir “mostrando as garras”, como ocorreu com a pioneira rede que dominou Rio das Pedras. Essa distinção é relevante de ser denotada para explicitar o tanto que a dominação armada de cunho miliciano se profissionalizou e se tornou um modelo a ser copiado por outros agentes de Estado com intenção de maximizar lucros financeiros e simbólicos. Uma reportagem da Folha de S.Paulo (Fantti, 2023FANTTI, B. (2023). 'Só me arrependo de não ter ficado mais rico', diz ex-miliciano. Folha de S.Paulo. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2023/12/so-me-arrependo-de-nao-ter-ficado-mais-rico-diz-ex-miliciano.shtml. Acesso em: 8 out 2023.
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/...
) mostra que os policiais da Liga da Justiça, em Campo Grande, fizeram também uma visita aos colegas de Rio das Pedras antes de se firmarem milicianos de fato; é nessas trocas de know-how que se observa o firmamento de modelos palpáveis e reproduzíveis.

Lins: o conector

Para que as relações entre os atores da família Andrade e os das milícias citadas tenham um sentido mais pleno e explícito, é necessário voltar a análise para uma pequena rede que, a fim de satisfazer seus próprios interesses, mediava as redes macro e de maior dependência de territórios delimitados. Olhemos então para a rede de Álvaro Lins, o broker14 14 “Brokers não são clientes nem patrões. Eles jogam no meio de campo, e o que pesquisas passadas tem mostrado é que indivíduos capazes de manter tal posição são bem respeitados, conquistadores de objetivos e participantes estratégicos nas redes que integram” (Morselli, 2009, p. 17; tradução minha). das redes criminais do Rio nos anos 2000. Um dos militares a ter o nome atrelado à recepção de propinas pela rede de Castor, Lins mudou de carreira assim que se viu ocupando as páginas de jornal pelos motivos “errados”. O nome sujo em 1993 foi ressignificado quando em 1997 passou para o concurso de delegado da PCERJ e tão logo ocupou cargo, apesar dos receios do então Governador Marcelo Alencar quanto à imagem da corporação ao aceitar a entrada de Lins. O policial em apenas três anos se tornou chefe da Polinter, um dos setores mais relevantes para o trabalho de inteligência e comunicação interna da Polícia Civil. Em 2001, com o Estado tendo Anthony Garotinho como governador, Lins virou chefe da PCERJ e, em 2003, com Rosinha Garotinho sucedendo o marido na governadoria, galgou ao representante máximo da Secretaria de Segurança Pública.

Durante o período chefiando a Polinter, o policial construiu uma rede de contatos extensa e firmou um pequeno grupo de subalternos na rede criminal que vinha consolidando, chamava-se Grupo dos Inhos: Fabinho, Jorginho e Helinho. Com seu trio de policiais fiéis embaixo do braço, Lins passou a conectar diferentes grupos: a família Garotinho e Rogério de Andrade; candidatos às eleições e milícias; Rogério e candidatos. Seu papel então se tornou o de mediador dessas relações. Isso lhe relegava uma importância específica, pois, sem Lins, as redes ficam temporariamente fragilizadas e novos laços precisam se reforçar para que os mercados ilegais possam continuar fluindo sem tantos atravancos. Lins respondia aos interesses de Rogério em sustentar influência no alto escalão e assim Rosinha e Anthony Garotinho teriam recebido,15 15 Em 2006, um contador de Rogério teve seu pen drive apreendido e, nele, constavam balanços da contabilidade, discernindo pagamentos de propina aos Garotinho, inscritos pelos codinomes Madame e Príncipe. Esse material bruto da contadoria de Andrade virou um dos processos utilizados nesta pesquisa. entre 2004 e 2006, R$9.320.000 e R$4.001.142, respectivamente, o que, em valores atualizados,16 16 Todos os valores relativos à contabilidade foram convertidos para moeda e inflação dos tempos de hoje à partir da ferramenta disponibilizada pelo Banco Central do Brasil, no endereço on-line: https://www3.bcb.gov.br/CALCIDADAO/publico/corrigirPorIndice.do?method=corrigirPorIndice. O parâmetro inicial, no caso dos ganhos dos ex-governadores, é o mês de junho de 2006 enquanto a data final, para correção inflacionária, foi, à época deste escrito, o mês de junho de 2023. equivale a R$30.659.797 e R$13.162.468. Lins também teve a soma de seus valores recebidos por Rogério destacada: R$437.357, que hoje equivaleriam a R$1.438.763. É notável aqui que há um abismo entre os valores que Lins recebia antes, quando se relacionava com Castor, e anos depois quando continuou a partir do sobrinho do capo. Essa mudança evidencia o quanto Lins passou de um personagem terciário nas relações entre os Andrade e o Estado para então ocupar um lugar de relevância, no qual seus trânsitos dentro e fora do Estado estão conectados à sua capacidade de conciliar ambos a uma confluência. No passado, os policiais da lista de propinas de Castor recebiam para repassar informações de inquéritos e fabricar atos de repressão, assim se criava uma impressão de combate ao crime, basicamente a fabricação de mentiras sistematizadas de modo a se constituírem como verdade no meio social. Lins pertencia a esse grupo com funções de baixo clero.

Alçado a chefe de Segurança Pública e, depois, a deputado federal, ele conseguia forjar inclusive operações contra Fernando Iggnácio, sob encomenda de Rogério. Iggnácio, diga-se de passagem, era visto sendo escoltado por viaturas da Delegacia de Repressão ao Crime Organizado (Draco)17 17 Delegacia... (2006). pelas ruas do Rio, demonstrando que a influência de Lins era limitada dentro das fragmentações internas da própria polícia em relação à guerra fratricida da família Andrade. Jorginho e Helinho, em interceptações pelo MPF, discorreram sobre o assunto, afirmando que teriam recebido de Rogério uma quantia superior a um milhão de reais para executar o serviço de prender Fernando. Tal fato fica explícito também na seguinte conversa entre Tande, o braço direito na campanha política de Lins para Deputado Federal em 2007, e Fabinho:

Fernando: O doutor (Lins) comentou contigo? O pessoal do Jorginho meteu o Fernando esta madrugada. Tá sabendo?

Tande: Não, ele me ligou aqui mas aí começou a dar ocupado, aí eu não consegui falar.

Fabinho: Mas meteu de madrugada. Os caras me avisaram... o Zé tentou me ligar era 7 horas da manhã. Eu não atendi. Aí o Zé me chamou agora e me falou. Meteram o Fernando Iggnácio e o Marquinho sem cérebro. Marquinho sem cérebro é aquele que ficava com o Disk Denúncia do Chefe e tal... meteram o Sem Cérebro e o Fernando Iggnácio. E lá o ADULT GAMES, empresa do Fernando Iggnácio, diz que tem uns 15 PMs agarrado. PM, Bombeiro, Desipe, bandido, bandido, polícia, polícia, bandido, filho-da-tudo agarrado. E o Fernando Iggnácio rodou em São Conrado. Já passaram para a imprensa. O chefe já deve estar sabendo.

[...]

Fabinho: Ele não tinha Mandado de Prisão, aí o pessoal trabalhou o Mandado de Prisão para ele ontem. Aí trabalhou... Aí ontem às nove horas da noite saiu o MP para ele. Nas nove da noite saiu o MP para ele. Aí os caras pegaram no sapatinho. Ficaram entocadinhos esperando Fernando Iggnácio. Aí hoje, 4 horas da manhã já bateram na casa dele. Chegaram na casa dele 6. Dizem que ele não entendeu porra nenhuma. Sete horas da manhã ele não entendeu nada. O que está havendo? MANDADO DE PRISÃO. Tá.

T: É! Maneiro!

(…)

F: Pelo outro, o que que ele vai dizer? O que que FERNANDO...? Entendeu? Ele também é poderoso. Tem juízes e desembargadores do lado dele. O que que de repente ele pode sair falando? Ele não tinha mandado de prisão. Por que que correram atrás de mandado de prisão para ele?” (Processo n. 2007.02.01.004933-4).

Parte do trabalho que Lins não executava diretamente era relegado ao Grupo dos Inhos. Eles inclusive eram os mediadores diretos da rede com as milícias de Jacarepaguá. Jorginho, por exemplo, se tornou o gerente dos caça-níqueis de Rogério em Jacarepaguá, isso a partir de 2002, quando foi o carcereiro do bicheiro na Polinter,18 18 Vale destacar que a Polinter recebeu inúmeros investimentos de Castor enquanto em vida; foi lá que foi instalado o primeiro ar-condicionado da Polícia Civil, segundo Ramir, nome falso para um policial que entrevistei em anonimato e que se relacionava diretamente com Castor. Todos os inúmeros investimentos do bicheiro foram úteis eventualmente quando este foi posto na carceragem de lá. O sobrinho seguiu o mesmo caminho. Ramir foi carcereiro também de Rogério e explica que este se diferenciava do tio por receber prostitutas com frequência, enquanto Castor evitava esse tipo de movimentação na carceragem, a qual dominava, diga-se. fato que os aproximou a ponto de permitir que tivesse um papel tão relevante na rede de Rogério. As máquinas alugadas por traficantes, estabelecimentos e milicianos de toda Jacarepaguá,19 19 Rio das Pedras está subscrito na região de Jacarepaguá. então, ficavam sob tutela de Jorginho.

Também residente dessa região da Zona Oeste do Rio, Fabinho, numa ligação interceptada com um interlocutor não identificado, dialogava sobre como as incursões de campanha política de Lins às favelas de milícia em Jacarepaguá estavam garantidas e que ele, Fabinho, já havia contatado todo mundo desses cantos, pois era conhecido na região e tinha um contato que fazia mediações onde não tinha penetração. Esse contato era um cabo da PM que, desde a época de Félix Tostes, trabalhava para a milícia de Rio das Pedras fomentando ataque às milícias rivais. Chama-se Jorsan e realizava também a segurança de Rogério de Andrade no bairro Bangu. Com trânsito pelas redes de Rio das Pedras, Lins e Rogério, Jorsan era ao mesmo tempo bem relacionado e um elo frágil. Assim, foi assassinado em fevereiro de 2007, alvejado no banco de motorista de seu Audi. O motivo? Pretendia delatar o esquema de caça-níqueis de Lins e Rogério de Andrade à Polícia Federal, com a qual iniciara contato no mês anterior. No fim daquele mesmo mês, seu colega e contratante, Félix Tostes foi também executado. Tostes tinha uma conexão ainda mais direta com a rede de Lins; em 2006, ele era membro da escolta de Ricardo Hallack, o sucessor de Lins no cargo de chefe da Polícia Civil.

Conclusão

O jogo do bicho constitui relações contínuas com policiais que se tornaram milicianos embora com descontinuidades no tipo de relação. Isso porque, num primeiro momento, muitos dos policiais ocupavam posições de baixa relevância individual para atores do topo das redes criminais do Bicho; todavia, no suceder da morte de Castor, determinados agentes que se embrenharam no mundo da então incipiente formação miliciana de domínio territorial armado se posicionaram de tal modo em suas respectivas redes criminais que os bicheiros, partindo aqui da análise feita da família Andrade, tiveram de construir novos laços com os agora milicianos, modificando o tipo de simetria. Ou seja, num primeiro momento, agentes policiais estavam numa relação profundamente assimétrica com os bicheiros, depois essa assimetria foi sendo minimizada, embora não seja possível afirmar que ela tenha sido eliminada de vez, até pelo fato de que em determinadas relações mercantis, como o aluguel de máquinas caça-níqueis, quem detinha o poder de posse sobre a mercadoria alugada eram os bicheiros, criando então uma relação de dependência com os agentes estatais milicianos.

Outro ponto relevante de se observar é que, embora os milicianos das gerações aqui analisadas fossem concomitantemente policiais e milicianos, ou seja, pudessem usufruir da infraestrutura estatal de forma mais livre do que rivais do tráfico, por exemplo, os bicheiros tinham tanta ou até mais facilidade de acessar os mesmos atores do Estado. Bem ou mal, naquela época, não se sabia de nenhuma relação direta entre os governadores e as milícias, enquanto com os bicheiros, como ficou evidenciado neste artigo, fora construída uma relação financeira densa e conectada por intermédios de longa data (Álvaro Lins conectava Rogério aos Garotinhos sem que se precisasse de encontros físicos entre eles, ao menos até onde se sabe). Isso parece se dar pela forma como as milícias tendem a acumular e construir capitais simbólicos e a forma como bicheiros o fazem. Os Andrade, tomando de exemplo, sempre sustentaram relações de longa data com seus pares e uma lógica de manter certa agradabilidade aos correlatos que não relacionam diretamente com a rede, como é o caso dos policiais que recebiam as benesses dos investimentos de Castor nos batalhões mesmo que não tivessem contato com ele. Esse aprendizado deriva dos tempos de Castor e está relacionado à construção de uma cultura política baseada em manter diplomacia como um pilar essencial na execução de negócios, sendo esse o lema basilar da Cúpula do Bicho. Enquanto isso, os milicianos, pela própria natureza expropriadora da atividade econômica que os configura como milicianos, agiam instrumentalizando a violência e o medo de uma eventual reação violenta. Isso em suas relações interpessoais e em suas relações com moradores, algo que por si só deverá render outro artigo.

Por fim, as relações entre essas redes criminais e o Estado mostram-nos que as mercadorias materiais e simbólicas que sustentam as economias do jogo do bicho e das milícias só podem circular sob a circunscrição territorial de um Estado que, de diferentes formas, gere os ilegalismos. O mercado privado legal e legítimo e os mercados ilegais se misturam o tempo inteiro nesses casos, o Estado participa dessas misturas desde o princípio, a partir de leis e repressão que servem também para regular o próprio agir ilegal dentro de um espectro de ações possíveis e aceitáveis. Isso tudo não é para dizer que o Estado controla os fluxos de ilegalismos e os atores que formam esses mercados. Há simetrias e assimetrias de poder e nuances em como esses atores se desenvolvem junto ao Estado e ao mercado legitimado. Todavia, nada disso muda que a própria noção de território e construção urbanística da cidade só é possível sob a circunscrição de uma legitimidade jurídica, parcial que seja, de um Estado-Nação moderno, composto normalmente por fragmentações internas e divisões territoriais previstas por lei. Nesse contexto, as redes criminais se constroem junto do desenvolvimento econômico e político do Estado brasileiro. Há confluências biográficas observáveis entre as histórias dos Andrades, das milícias e do Rio de Janeiro em si.

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Notas

  • 1
    O termo segue em disputa, passando por metamorfoses ao longo dos anos, muito por causa da constante renovação nos mercados ilícitos comandados pelos milicianos. Todavia, tomo por base a conceituação de milícia por Cano e Ioot (2008CANO, I.; IOOT, C. (2008). "Seis por meia dúzia? Um estudo exploratório do fenômeno das chamadas 'milícias' no Rio de Janeiro". In: JUSTIÇA GLOBAL (org.). Segurança, tráfico e milícia no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Fundação Heinrich Böll., p. 59): “1) O controle de um território e da população que nele habita por parte de um grupo armado irregular; 2) O caráter em alguma medida coativo desse controle dos moradores do território; 3) O ânimo de lucro individual como motivação principal dos integrantes desses grupos; 4) Um discurso de legitimação referido à proteção dos habitantes e à instauração de uma ordem que, como toda ordem, garante certos direitos e exclui outros, mas permite gerar regras e expectativas de normatização da conduta; 5) A participação ativa e reconhecida de agentes do estado como integrantes dos grupos.” Embora insuficiente para as configurações atuais, a definição dos pesquisadores firma uma noção concreta do que foi a primeira geração de milicianos propriamente ditos, o que se faz apropriado, uma vez que é deles que falo neste artigo.
  • 2
    Essas informações foram retiradas de entrevistas com familiares de Castor de Andrade. Um dos mais relevantes para a reconstituição da história da família Andrade/Medeiros foi Teco, um primo de Castor, o qual chamarei unicamente pelo apelido, a fim de não expor demasiadamente a identidade dele. Maiores detalhes sobre a entrevista com ele e outros familiares podem ser encontrados em outros trabalhos da minha pesquisa.
  • 3
    “À guisa de exemplo, a autora elucida que no Distrito Federal do Rio de Janeiro, entre 1906 e 1917, os casos relacionados ao Jogo do Bicho tinham uma absolvição de aproximadamente 87%, enquanto os casos de vadiagem tinham uma absolvição de aproximadamente 69%, ou seja, isso permitia aos agentes do Jogo do Bicho uma atuação mais intensa na prática da atividade sem receio de serem punidos. A Lei n. 3.688, de 3 de outubro de 1941 é um marco histórico na atividade do Jogo do Bicho, pela primeira vez a loteria aparece na Lei das Contravenções Penais, especificamente no art. 58º: Explorar ou realizar a loteria denominada jogo do bicho, ou praticar qualquer ato relativo à sua realização ou exploração: Pena prisão simples, de quatro meses a um ano, e multa, de dois a vinte contos de réis.” (Carmo e Medeiros, 2018, p. 49).
  • 4
    “No período 1940-1960 a população do país passou de 41,2 milhões para 70 milhões (crescimento de 70%), enquanto as matrículas no ensino superior triplicaram. Em 1960, existiam 226.218 universitários (dos quais 93.202 eram do setor privado) e 28.728 excedentes (aprovados no vestibular para universidades públicas, mas não admitidos por falta de vagas)” (Martins, 2002MARTINS, A. C. P. (2002). Ensino superior no Brasil: da descoberta aos dias atuais. Acta Cirúrgica Brasileira. São Paulo, v. 17, pp. 4-6., p. 5).
  • 5
    “No auge dos anos 1950 e 1960, a violência entre os grupos que dominavam a jogatina era tamanha que, segundo Misse (2008)MISSE, M. (2008). Sobre a acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Civitas: Revista de Ciências Sociais. Porto Alegre, v. 8, n. 3, pp. 371-385., a imprensa da época comparava a capital fluminense à Chicago dos anos 1920, quando esta última foi tomada pelas máfias do tráfico de bebidas alcoólicas, consequência direta da Lei Seca que vigorou por duas décadas nos EUA. Isso, somado ao contexto do aumento da violência armada num geral e à alta repercussão desses crimes no território carioca – uma vez que os meios de comunicação se concentravam no Rio –, levou à criação do Grupo de Diligências Especiais, ‘comandado por um policial, conhecido como LeCocq, que pertencera à famigerada Polícia Especial da ditadura Vargas’ (Misse, 2008MISSE, M. (2008). Sobre a acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Civitas: Revista de Ciências Sociais. Porto Alegre, v. 8, n. 3, pp. 371-385., p. 377)” (Vieira, 2023VIEIRA, M. L. (2023). Do bicho à milícia: uma análise das relações entre milicianos e bicheiros no começo do século XXI. Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro., p. 34).
  • 6
    À qual tive acesso por meio de um pedido de desarquivamento de processo judicial no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.
  • 7
    Todos os valores relativos à contabilidade foram convertidos para moeda e inflação dos tempos de hoje a partir da ferramenta disponibilizada pelo Banco Central do Brasil, no endereço on-line: https://www3.bcb.gov.br/CALCIDADAO/publico/corrigirPorIndice.do?method=corrigirPorIndice. O parâmetro inicial é a data de referência do gasto discernido na caderneta de contabilidade enquanto a data final, para correção inflacionária, foi, à época deste escrito, o mês de junho de 2023.
  • 8
    Com inúmeros inquéritos nas costas, Castor é lembrado em mídia, por moradores de bairros de sua influência (Bangu e Realengo) e por alguns entrevistados e conhecidos meus, como um diplomata em primeiro lugar, especialmente se comparado com outros pares ou sucessores que utilizam violência como uma ferramenta mais recorrente do que o capo utilizava.
  • 9
    Lista esta que fora apreendida na batida policial que raptou todo o booking de contabilidade da rede de Castor relativo aos anos 1987 e 1994. Esse material foi anexo do processo n. 0023098-22.1994.8.19.0001, ao qual, como citado, tive acesso concedido pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.
  • 10
    A noção de contato direto e indireto entre redes é perceptível em autores dessa teoria, mas a explicitação nesses termos vem de mim. Conceituo aqui “indivíduo - rede” como aquela relação em que um agente está em contato direto com outros agentes de uma rede, representando ele mesmo a rede à qual pertence enquanto interage com os outros da correlata. Assim como “rede - rede” como sendo relações em que diferentes indivíduos de mais de uma rede se relacionam de modo a relação entre as redes ser mais explícita.
  • 11
    O termo “extrativismo do terror” é mais bem explicado em um artigo ainda a ser publicado nos anais do 3º Congresso de Segurança Pública da Redes da Maré. Complementarei a citação com nome, data e página, porém, para fins de respeito ao anonimato da submissão, segue apenas a citação: “A esse processo de formação de capital político por meio da produção do pânico moral darei o nome de ‘extrativismo do terror’. Para compreender o que pretendo por isso, preciso explicar minimamente a teoria de David Harvey (2003)HARVEY, D. (2003). O novo imperialismo. São Paulo, Loyola., que num avanço da formulação de Marx e Engel no capítulo XXIV de O Capital, e tendo outros pensadores como Gago e Mezzadra (2017)GAGO, V.; MEZZADRA, S. (2017). "A Critique of the Extractive Operations of Capital: Toward an Expanded Concept of Extractivism". Rethinking Marxism. St. Mary's City, v. 29, n. 4, pp. 574-591. continuando sua linha teórica, pensou o extrativismo e a despossessão no capitalismo contemporâneo, em especial na América Latina. A discussão parte do princípio da sobreacumulação de capital e as questões quanto ao tratamento desse excedente para que dinheiro e capacidade produtiva não fiquem ociosos e, com isso, possa acabar freando o aumento de capital. [...] A despossessão, neste caso, é uma das traduções possíveis para expropriação, ou seja, o ato de retirar alguém de algum lugar ou de tirar de alguém algo que já lhe pertence. De modo similar o extrativismo, no sentido mais restrito, era um termo referente ao fazer econômico de extrair matéria prima para produção de bens de consumo. Harvey e os seguidores de sua filosofia enxergam como esses processos se dão na escala global, onde o capital sobreacumulado é aplicado em países periféricos, na exploração de recursos e na expropriação e no surrupiamento de mãos de obra locais para fins externos, num emaranhado de relações que cruza estados-nações, grupos privados de legais, ilegais, etc. Ao reobservar as microrregiões de um mesmo estado ou país, podemos deduzir que os processos de cunho macro explicados por Harvey se repetem no interior do território circunscrito ali. ‘Nesse sentido, as lógicas extrativistas se cruzam com o governo dos pobres, produzindo violência e criando formas híbridas com as mesmas lógicas e retóricas de inclusão propostas pelo discurso da cidadania. Esta perspectiva conduz a uma leitura dos novos conflitos sociais que permite mapear o entrelaçamento do agronegócio, das finanças, das economias ilegais (das drogas ao contrabando) e dos subsídios estatais, segundo lógicas complementares e competitivas. Essas lógicas também nos permitem escapar ao imaginário vitimizador que tende a ser enfatizado pela narrativa de desapropriação’ (Gago e Mezzadra, 2017GAGO, V.; MEZZADRA, S. (2017). "A Critique of the Extractive Operations of Capital: Toward an Expanded Concept of Extractivism". Rethinking Marxism. St. Mary's City, v. 29, n. 4, pp. 574-591., p. 580). A repetição do macro no micro é o sinal de como as dinâmicas são produzidas pelos mesmos estruturantes. Dentro da periferia do mundo, há periferias de seu próprio mundo limitado, e nelas as desapropriações se repetem por agentes internos e externos ao território. A teoria de Harvey permite que enxerguemos, por fim, como as marcações violentas do capital estão em todas as instâncias de vida sob a égide do capitalismo. O extrativismo do terror entra aqui. Trata-se de uma forma de extração material de vida e simbólica de paz tanto no nível coletivo quanto no individual, no qual o estado produz terror – tido aqui como produção de constante tensão retroalimentada pela violência e a própria ameaça de sê-lo, é o sequestro da paz para um viver cotidiano desnaturalizado da violência física estruturalizada pelo estado e/ou entidades privadas – determinado territórios para conseguir promover a circulação de ideias que possam ser capitalizadas posteriormente para fins de eleição ou de oferta de serviços públicos (mais operações, que permite gastar mais com segurança) e privados (quando grupos particulares, compostos por agentes públicos ou não, disponibilizam seu trabalho de proteção, etc.)”.
  • 12
    Com o destaque desse caso na imprensa, o subsecretário que ajudou Dilo a alcançar o alto escalão da Força Tarefa se viu pressionado a começar uma desvinculação pública de sua imagem junto ao policial: “Ele sempre foi o melhor, como o Romário da seleção. Mas, se for verdade o que se diz, serei o primeiro a pedir sua expulsão”, afirmou em entrevista ao Jornal do Brasil em 17 de julho de 2001.
  • 13
    Itagiba ora antagonizava, ora se aproximava de Lins, numa relação ambivalente que, apesar das divergências políticas relativas aos rumos da Secretaria de Segurança Pública e do usufruto das relações com os bicheiros, pareceu se manter progredindo em ganhos de capitais simbólicos e econômicos para ambos.
  • 14
    Brokers não são clientes nem patrões. Eles jogam no meio de campo, e o que pesquisas passadas tem mostrado é que indivíduos capazes de manter tal posição são bem respeitados, conquistadores de objetivos e participantes estratégicos nas redes que integram” (Morselli, 2009MORSELLI, C. (2009). Inside Criminal Networks. Canadá, Springer., p. 17; tradução minha).
  • 15
    Em 2006, um contador de Rogério teve seu pen drive apreendido e, nele, constavam balanços da contabilidade, discernindo pagamentos de propina aos Garotinho, inscritos pelos codinomes Madame e Príncipe. Esse material bruto da contadoria de Andrade virou um dos processos utilizados nesta pesquisa.
  • 16
    Todos os valores relativos à contabilidade foram convertidos para moeda e inflação dos tempos de hoje à partir da ferramenta disponibilizada pelo Banco Central do Brasil, no endereço on-line: https://www3.bcb.gov.br/CALCIDADAO/publico/corrigirPorIndice.do?method=corrigirPorIndice. O parâmetro inicial, no caso dos ganhos dos ex-governadores, é o mês de junho de 2006 enquanto a data final, para correção inflacionária, foi, à época deste escrito, o mês de junho de 2023.
  • 17
    Delegacia... (2006).
  • 18
    Vale destacar que a Polinter recebeu inúmeros investimentos de Castor enquanto em vida; foi lá que foi instalado o primeiro ar-condicionado da Polícia Civil, segundo Ramir, nome falso para um policial que entrevistei em anonimato e que se relacionava diretamente com Castor. Todos os inúmeros investimentos do bicheiro foram úteis eventualmente quando este foi posto na carceragem de lá. O sobrinho seguiu o mesmo caminho. Ramir foi carcereiro também de Rogério e explica que este se diferenciava do tio por receber prostitutas com frequência, enquanto Castor evitava esse tipo de movimentação na carceragem, a qual dominava, diga-se.
  • 19
    Rio das Pedras está subscrito na região de Jacarepaguá.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2024

Histórico

  • Recebido
    13 Dez 2023
  • Aceito
    15 Abr 2024
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