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Revisão de Planos Diretores no neoliberalismo avançado: o caso de Porto Alegre/RS

Resumo

No marco dos 20 anos do Estatuto da Cidade, constata-se o fenômeno nacional de revisão de planos diretores. O objetivo, aqui, é investigar os efeitos do neoliberalismo avançado nos planos diretores a partir da experiência de Porto Alegre/RS. A metodologia é de estudo de caso, a partir de observação participante e consulta de documentos e mídias. A sistematização é de reconstrução temporal e análise de conteúdo. O aporte teórico explora o estado e o planejamento neoliberal por projetos. Os resultados apontam: a implementação do estado mínimo; o enfoque na cidade produtiva sob a financeirização; a roupagem socioambiental da Agenda 2030; o autoritarismo; o planejamento de tendência e de facilitação aplicado pelo planejamento por projetos, resultando no fatiamento do plano diretor.

estado neoliberal; planejamento urbano; planejamento neoliberal; plano diretor; Porto Alegre

Abstract

On the 20th anniversary of the City Statute, a national phenomenon is perceived: the review of master plans. The study aims to investigate the effects of advanced neoliberalism on master plans based on the experience of Porto Alegre/Rio Grande do Sul. The methodology is a case study informed by participant observation and consultation of documents and media. Systematization was carried out through temporal reconstruction and content analysis. The theoretical framework explores the neoliberal state and project-based planning. The results indicate the implementation of the minimal state; focus on the productive city under financialization; the socio-environmental tone of the 2030 Agenda; authoritarianism and the planning of trends and leverage applied by project-based planning, producing the fragmentation of the master plan.

neoliberal state; urban planning; neoliberal planning; master plan; Porto Alegre

Introdução

No marco dos 20 anos do Estatuto da Cidade, constata-se o fenômeno nacional de cidades em situação de revisão de Planos Diretores (PDs). Rio de Janeiro, São Paulo, Natal, Florianópolis e Porto Alegre são algumas das capitais que estão em processo ou que concluíram, recentemente, a tarefa. O fenômeno, no entanto, não se resume às capitais e se estende às cidades brasileiras com mais de 20 mil habitantes que compõem o quadro de revisão a cada dez anos.

O Estatuto foi aprovado em 2001, 13 anos após a aprovação da Constituição Federal de 1988 e um ano antes da conclusão do governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), período de afirmação do neoliberalismo como modelo econômico no estado brasileiro. Este momento foi marcado pela adoção de políticas de abertura para o mercado internacional, de desregulação do mercado interno, de contenção de gastos públicos, de privatização de empresas estatais e, ainda, de terceirização e descentralização administrativa. Se, por um lado, a aprovação do Estatuto da Cidade representa uma vitória de movimentos sociais e da sociedade civil, por outro, representa a introdução do ideário neoliberal sob a produção das cidades. Assim, a publicação Cidades em disputa (Silva et al., 2021SILVA, B. et al. (orgs.) (2021). A cidade em disputa, planos diretores e participação no cenário da pandemia. Marília, Lutas Anticapital.) coloca em panorama as dificuldades de implementação de revisão e de elaboração de planos diretores participativos no Brasil atualmente.

No marco do Estatuto, destacam-se duas questões centrais hoje: (1) a descentralização da atribuição de planejamento urbano, que passa a ser competência das administrações municipais; e (2) a figura do plano diretor como instrumento máximo definidor da política urbana local. Nesse quadro, a autonomia dos municípios, uma vez fruto do processo de redemocratização do país, atualmente serve à lógica concorrencial entre cidades, pautada pela atração de investimentos e pela busca de posição favorável no ranking de cidades nacional e mundial.

O momento, no entanto, não é o do estado neoliberal do início do milênio, mas de um estado neoliberal avançado, representado pela expansão e pelo aprofundamento das práticas gerencialista e empreendedoras, assim como pelo aprofundamento da desigualdade social. Diante desse cenário, o objetivo do artigo é investigar os efeitos do ideário neoliberal avançado sob a revisão de planos diretores no Brasil, a partir da experiência de Porto Alegre/RS.

A estratégia da pesquisa adotada foi a de estudo de caso único. Um estudo de caso é “uma investigação empírica que pesquisa um fenômeno contemporâneo dentro de seu contexto real e, especificamente, quando os limites entre o fenômeno e o contexto não são claramente definidos” (Yin, 2002YIN, R. K. (2002). Estudo de caso: planejamento e métodos. Porto Alegre, Bookman., p. 29). Identifica-se Porto Alegre como um caso instrumental (Stake, 1995STAKE, R. E. (1995). The art of case study research. Londres, Sage.), pois, a partir dele, é possível levantar questões referentes ao tema. Nesse sentido, é um caso de interesse secundário, uma vez que tem papel de suporte para a compreensão de um fenômeno que se demonstra para além dele.

A escolha de Porto Alegre justifica-se por sua posição pioneira no cenário nacional, seja pela implementação das pautas oriundas do Movimento Nacional pela Reforma Urbana (MNRU) no período 1989-2004, seja pela consolidação de um planejamento neoliberal a partir de 2005. No primeiro período, destacam-se a experiência do Orçamento Participativo (OP), a realização do Fórum Social Mundial (FSM), a urbanização de favelas em áreas centrais e o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental (PDDUA) de 1999. O PDDUA antecipou o uso de instrumentos fruto das discussões do MNRU e, posteriormente, consolidados no Estatuto da Cidade.

A partir de 2005, especificamente durante os preparativos e a adequação da cidade para receber os jogos da Copa do Mundo de Futebol Fifa 2014, práticas gerencialistas e empreendedoras ganham destaque. A realização do megaevento difundiu a imagem da cidade para o mundo, ao mesmo tempo que foi responsável pela difusão de uma abordagem mercadófila de produção do espaço urbano. De 2014 para cá, houve o cancelamento temporário do OP, o cerceamento da participação social e a revisão do PDDUA que não se consolidou, ainda que caminhos importantes tenham sido conduzidos pela administração municipal, que serão explorados aqui.

A coleta de dados foi realizada a partir de observação participante em reuniões, grupos de trabalho e seminários envolvendo sociedade civil, técnicos da Prefeitura Municipal de Porto Alegre (PMPA) e conselheiros do Conselho Municipal do Desenvolvimento Urbano Ambiental (CMDUA), audiências no Ministério Público do Rio Grande do Sul (MP-RS), consulta a documentos e sites oficiais, mídias e redes sociais. O recorte temporal da pesquisa é de 2016 a 2022.

A sistematização dos dados coletados ocorreu por meio da criação de linha do tempo e da indicação de temas aos quais os fatos se referem. A análise de conteúdo enfocou a caracterização dos eventos bem como sua análise rítmica (Lefebvre, 2007LEFEBVRE, H. (2007). Rhythmanalisys: space, time and the everyday life. Norfolk, Continuum.), definidas por: (a) repetição (de movimentos, gestos, ações, situações, diferenças); (b) interferências entre processos lineares ou cíclicos; e (c) o nascimento, crescimento, auge, declínio e fim.

O artigo é organizado em duas partes, além da introdução e das considerações finais. A primeira apresenta o aporte teórico sobre estado neoliberal, planejamento neoliberal e planejamento por projetos. A escolha de autores estrangeiros se justifica pela compreensão de que se trata de um fenômeno global que incide sobre a escala local. A segunda parte apresenta o estudo de caso, a partir do qual se discutem os efeitos desses ideários aplicados à cidade de Porto Alegre.

Planejamento neoliberal e planejamento por projetos

O estado neoliberal surge da formulação de novas bases para o capitalismo, em oposição ao estado keynesiano de bem-estar. Paulani (2006PAULANI, L .M . (2006). "O projeto neoliberal para a sociedade brasileira: sua dinâmica e seus impasses". In: LIMA, J. C. F.; NEVES, L. M. W. (orgs.). Fundamentos da educação escolar do Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro, Editora Fiocruz., p. 71) argumenta que o receituário formulado “não passaria pelo desenvolvimento e/ou aprimoramento de uma teoria econômica que pudesse ser usada como arma na demonstração da superioridade do mercado e da sociedade que ele forjava”. Segundo Harvey (2008HARVEY, D. (2008). Neoliberalismo: história e implicações. São Paulo, Edições Loyola., p. 75), o estado neoliberal, teoricamente, “deve favorecer fortes direitos individuais à propriedade privada, ao regime de direito e às instituições de mercado de livre funcionamento e do livre comércio. Trata-se de arranjos institucionais considerados essenciais à garantia das liberdades individuais” sob a crença de que o livre mercado seria capaz de eliminar a pobreza tanto em escala local como global.

No entanto, o autor expõe as contradições e tensões entre a teoria e a prática. A primeira delas diz respeito ao fetiche pela tecnologia e inovação: “a crença de que para todo e qualquer problema há um remédio tecnológico” (ibid., p. 79). A competição e o empreendedorismo se baseiam na necessidade constante da criação de novos produtos e novas formas de produção, ainda que a partir da destruição de mercados e formas de organização preexistentes. O ideário das smart cities (Townsend, 2013TOWNSEND, A. M. (2013). Smart cities: big data, civic hackers, and the quest for a new utopia. Nova York, W. W. Norton Inc.), a uberização dos serviços urbanos, considerando o cidadão como cliente, expõem o abismo que existe entre aqueles que detêm os meios financeiros para acessá-los e aqueles que não os têm.

A segunda tensão que merece destaque é a “contradição entre o individualismo possessivo sedutor, mas alienante e o desejo de uma vida coletiva dotada de sentido” (Harvey (2008HARVEY, D. (2008). Neoliberalismo: história e implicações. São Paulo, Edições Loyola., p. 80). A liberdade do pequeno empreendedor o isola, ao mesmo tempo que acompanha o desmonte de sindicatos de trabalhadores e de organizações comunitárias. Nesse sentido, para o projeto neoliberal dar certo, é necessário o desmonte da governança democrática com a atuação de diferentes agentes, sindicatos, entidades, associações de bairro, etc. Essa tensão tem impacto direto no debate sobre a revisão de planos diretores realizados a partir de processos participativos, como estipulado no Estatuto da Cidade.

A terceira tensão também explora a relação entre democracia e autoritarismo. Segundo Harvey (ibid., p. 80) os neoliberais preferem apoiar-se em “instituições não democráticas e que não prestam contas a ninguém (como o Banco Central Norte-Americano e o Fundo Monetário Internacional) para tomar as decisões essenciais”. As agências internacionais como o FMI desempenham papel importante na difusão das práticas neoliberais para o mundo, em especial para os países periféricos. No que diz respeito ao desenvolvimento urbano, destacam-se a ação do Banco Mundial, do Banco Ibero-Americano de Desenvolvimento (BID), do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), entre outros.

Destaca-se, por fim, a relação entre estado mínimo, estado fraco e estado forte. Segundo o receituário, para o livre mercado e o livre comércio operarem, o estado deve deixar o caminho livre de amarras e imposições, deve, igualmente, diminuir a máquina pública e os gastos públicos com infraestrutura e corpo técnico, afinal o estado mínimo tem sua atuação regulatória diminuída. No entanto, para que o livre comércio e, por conseguinte, a restauração do poder de classe aconteçam, o estado não deve ser fraco. Um estado fraco causa instabilidades política e econômica nada favoráveis aos negócios e à acumulação flexível (Harvey, 2011HARVEY, D. (2011). Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo, Edições Loyola.) no atual estágio do capitalismo. Estado forte é, portanto, um estado que tem uma máquina de repressão às vontades democráticas ao seu dispor e, também, a capacidade financeira de socorrer bancos e grandes empresas que podem vir a falir devido ao seu apetite especulativo de crescimento econômico (Harvey, 2008HARVEY, D. (2008). Neoliberalismo: história e implicações. São Paulo, Edições Loyola.).

Não por acaso, Harvey (ibid., p. 92) aponta para o neoconservadorismo como a resposta para o estado neoliberal, uma vez que este seja “compatível com o programa neoliberal de governança pela elite, desconfiança da democracia e manutenção das liberdades de mercado”. É este o movimento que pode ser percebido em diversos países, com a ascensão de uma extrema-direita associada ao neoconservadorismo que busca restaurar:

[...] os valores morais centrados no nacionalismo cultural, na retidão moral, no cristianismo (de uma certa modalidade evangélica), nos valores familiares e em questões de direito à vida, assim como no antagonismo a novos movimentos sociais como o feminismo, os direitos homossexuais, a ação afirmativa e o ambientalismo. (Ibid., p. 94)

As palavras de Harvey (2008)HARVEY, D. (2008). Neoliberalismo: história e implicações. São Paulo, Edições Loyola. parecem a descrição precisa da propagação dos valores morais que o bolsonarismo apresenta à sociedade brasileira. No entanto, o autor formulou tais questões a partir das alianças estabelecidas pelo governo Reagan na década de 1970, nos EUA.

Foi também nos anos 1970 que a administração pública passou a adotar práticas empresariais, denominadas gerencialismo,1 1 Para Murphy (2008, p. 154), o gerencialismo transforma “temas da vida social e de organizações em séries de problemas discretos que podem ser resolvidos através da aplicação da perícia técnica”. Para Parker (2002), o gerencialismo é a ideologia generalizada do management que, por sua vez, possui múltiplos significados. Esse conceito pode ser relacionado a um grupo de executivos; a um processo ou a um ato de gestão; ou a uma disciplina acadêmica relacionada à gestão e à administração. por meio do movimento Reinventando o Governo, que tem Osborne e Gaebler (1993)OSBORNE, D.; GAEBLER, T. (1993). Reinventing government: how the entrepreneurial spirit is transforming the public sector. Nova York, Plume. como principais autores.2 2 Não se ignora a disseminação e diferenças pontuais com o movimento pós-burocrático, com a New Public Management nos países anglo-saxões e com a Administração Pública Gerencial no Brasil. No entanto, para os fins deste trabalho, o movimento de reinvenção do governo é o mais relevante.

Destacam-se, de acordo os autores, algumas características necessárias para a reinvenção dos governos: (1) governo catalisador; conduzir e orientar em vez de prestar serviços – privatizações, terceirizações e parcerias público-privadas (PPPs); (2) governo competitivo, por introduzir a competição na prestação de serviços, estimular a inovação e a qualidade, bem como fortalecer as organizações; (3) governo orientado por missões, flexibilizações e planejamento estratégico; (4) governo de resultados, financiando resultados (e não recursos); (v) governo empreendedor, gerando receitas, e não despesas; e (6) governo orientado para o mercado, induzindo mudanças através do mercado, já que as cidades são agregados vastos e complexos de pessoas nas quais cada indivíduo se ajusta ao comportamento do outro com base em incentivos e informações; portanto, devem ser estruturadas como mercados (ibid.).

Note-se que a transição do sistema fordista para o capitalismo avançado, com sua economia baseada em capital flutuante e em atividades do setor terciário, transforma o papel das cidades: não mais são apoios para o desenvolvimento de atividades produtivas, mas são matérias-primas para a acumulação de capital (Harvey, 2006HARVEY, D. (2006). A produção capitalista do espaço. São Paulo, Annablume Editora.). Na mesma direção, Logan e Molotch (1993)LOGAN, J. R.; MOLOTCH, H. L. (1993). "The city as a growth machine". In: FAINSTEIN, S. S.; CAMPBELL, S. Readings in urban theory. Oxford, Blackwells. consideram que o espaço é matéria-prima para a produção de riqueza e de poder para quem o detém, sob a lógica de uma máquina de crescimento capaz de aumentar a renda agregada e assegurar riquezas para as elites que utilizam o consenso do crescimento para eliminar qualquer visão alternativa de organização. A financeirização das cidades, associada ao modelo de acumulação flexível (Harvey, 2011HARVEY, D. (2011). Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo, Edições Loyola.), indica ainda outras formas de investimento e de geração de mais-valia a partir do espaço urbano.

Para Harvey (2006HARVEY, D. (2006). A produção capitalista do espaço. São Paulo, Annablume Editora., p. 174), o governo empreendedor adota uma postura que gere um ambiente favorável aos negócios, levando a cabo o receituário de que “os benefícios positivos são obtidos pelas cidades que adotam uma postura empreendedora em relação ao desenvolvimento econômico” (ibid., p. 176). Vale destacar que a afirmação do autor acerca da fórmula de sucesso é compreendida, consensualmente, em ambientes de partidos políticos e ideologias distintas.

Assim, é necessário refletir sobre o planejamento urbano no contexto do estado neoliberal. É possível falar em planejamento urbano neoliberal ou estaria o planejamento urbano em processo de crise e perda de relevância? Para pensar sobre estas questões, recorre-se à definição de planejamento definida por Matus, em entrevista a Huertas:

[...] planejar significa pensar antes de agir, pensar sistematicamente, com método; explicar cada uma das possibilidades e analisar suas respectivas vantagens e desvantagens; propor-se objetivos. [...]. O planejamento é a ferramenta para pensar e criar o futuro [...] serve como suporte de decisões de cada dia: os pés no presente e o olhar no futuro. É, portanto, ferramenta vital. Ou sabemos planejar ou estamos condenados à improvisação. É a mão visível que explora possibilidades em circunstâncias nas quais a “mão invisível” é incompetente, ou não existe. (Huertas, 1996HUERTAS, F. (1996). O método PES: entrevista com Matus. São Paulo, Fundap., p. 12; grifo nosso)

Nessa passagem, Matus posiciona o planejamento claramente como a mão visível, em oposição à mão invisível do mercado defendida pelos neoliberais. Desse ponto de vista, no neoliberalismo não se planeja, mas se organiza o mercado para a maximização dos lucros, relacionada às práticas especulativas que vêm, usualmente, acompanhadas das garantias de segurança para o setor privado.

Baeten (2018)BAETEN, G. (2018). "Neoliberal planning". In: GUNDER, M.; MADANIPOUR, A; WATSON, V. (eds.). The Routledge Handbook of Planning Theory. Nova York, Routledge. destaca que planejamento urbano neoliberal significa compreender as formas regulatórias relacionadas ao estado neoliberal, sendo estas inclusive o desmantelamento das regulações urbanísticas impostas ao mercado da construção civil. O autor recorre a diferentes autores para buscar uma definição do que seria este planejamento neoliberal, sintetizado aqui como uma ideologia hegemônica que promove a superioridade das soluções do mercado e, para tanto, opera na reestruturação da relação entre os donos do capital privado e o estado, priorizando o desenvolvimento urbano vinculado ao crescimento econômico, baseando-se na crença das virtudes do mercado e dos limites de intervenção do estado.

Ao tratar dessas questões, Souza (2010)SOUZA, M. L. (2010). Mudar a cidade: uma introdução crítica ao planejamento e à gestão urbano. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil., baseando-se em Brindley, Rydin e Stoker (2004), refere-se ao planejamento mercadófilo, dividindo-o em três subtipos: planejamento de tendência, planejamento de facilitação e planejamento de administração privada, conforme sintetizados no Quadro 1.

Quadro 1
– Subtipos de planejamento mercadófilo

Para Souza (2010SOUZA, M. L. (2010). Mudar a cidade: uma introdução crítica ao planejamento e à gestão urbano. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil., p. 136):

[...] todos os três rompem com o espírito regulatório ainda francamente hegemônico nos anos 1970, na medida em que deixam de tentar domesticar ou disciplinar o capital, para, pelo contrário, melhor ajustarem-se aos seus interesses, inclusive imediatos.

Ocorre a participação do setor privado em parceria com o setor público e a diminuição da participação social e da presença do estado no planejamento e na gestão urbana.

Nesse sentido, observa-se a mudança de uma forma de planejamento, por um planejamento por partes, por meio do desenvolvimento de projetos urbanos na busca de resultados específicos e especulativos. Segundo Avitabile (2005)AVITABILE, A. (2005). La mise en scène du projet urbain: pour une structuration des démarches. Paris, L'Harmattan., o planejamento por projeto se associa, progressivamente, à noção de estratégia urbana e PPP, porque busca resultados imediatos e valoriza a capacidade de empreender, contando com um projeto de cidade ao qual é agregada uma abordagem que integra formas urbanas e paisagem, categorias ausentes no planejamento regulatório. Ou seja, mesmo existindo um projeto de cidade mais amplo, os projetos urbanos (ou Grandes Projetos Urbanos) são desenvolvidos para áreas específicas da cidade, na expectativa de que seus efeitos abranjam o território como um todo ou parte dele.

Entende-se projeto urbano como uma prática de intervenção urbana central para a produção da cidade neoliberal, pois renova e cria meios para ampliar a instrumentalização do espaço a serviço da acumulação de capital. Assim, a expectativa de benefícios para além do seu território específico integra um campo totalmente especulativo, uma vez que não são previstas atividades de monitoramento, controle e redução de danos durante a sua elaboração (Oliveira, 2018OLIVEIRA, C. M. (2018). Projetos urbanos: uma crítica ontológica. Tese de doutorado. Porto Alegre, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/186158. Acesso em: 15 nov 2022.
https://lume.ufrgs.br/handle/10183/18615...
).

Ascher (1992)ASCHER, F. (1992). Projet publics et réalisations privées: le renouveau de la Planification des villes. Les Annales de la Recherche Urbaine. Paris, n. 51, pp. 4-15. aponta para o planejamento de resultados sob o qual se pensa a cidade aos pedaços e para períodos curtos, uma vez que projetos concebidos a longo prazo podem entrar em descompasso com os interesses do mercado. Da mesma forma, Borja e Castells (1997)BORJA, J.; CASTELLS, M. (1997). Local and global: the management of cities in the information age. Abingdon, Routledge. criticam instrumentos de planejamento urbano rígidos como os planos reguladores, que não correspondem mais às necessidades econômicas e sociais dos novos tempos. Os autores identificam que o papel do Estado é o de promover a realização de projetos urbanos que acelerem processos de aprovação de projetos urbanísticos-arquitetônicos, por meio de estratégias como a flexibilização de normas, não desperdiçando as oportunidades apontadas pelo mercado. Sob esse ideário:

[...] o neourbanismo privilegia os objetivos, os resultados a serem obtidos, e incentiva os atores públicos e privados a encontrar modalidades de realização desses objetivos, os mais eficientes para a coletividade e para o conjunto de agentes. Isso demanda novas maneiras de formular projetos e de regulamentação. (Ascher, 2010ASCHER, F. (2010). Os novos princípios do urbanismo. São Paulo, Romano Guerra., p. 94)

A noção de planejamento por projetos ou de resultados é, portanto, contraditória à noção de planejamento compreensivo e integral, que tem, no seu núcleo duro, a busca pelo equilíbrio do desempenho do território, das suas infraestruturas, densidades e ocupações, de modo a propiciar uma vida justa e igualitária nas cidades.

O caso de Porto Alegre

A descrição e a análise do estudo de caso de Porto Alegre se organizam nas seguintes partes: ciclos de início da revisão do PDDUA; participação de universidade e agências internacionais; dificuldades de participação social; e planejamento por projetos.

Ciclos de início da revisão do PDDUA

Porto Alegre apresentou sucessivas tentativas frustradas de deflagrar o processo de revisão do PDDUA. O Quadro 2 apresenta o ritmo cíclico com periodicidade anual (com exceção de 2018), identificado a partir de momentos que indicaram para a sociedade o início dos trabalhos: a realização de seminários públicos, consultas on-line, Instruções Normativas (INs), assinaturas de memorandos e carta acordo com Pnud, chamada da sociedade civil para composição de Grupos de Trabalho (GTs), contratação de consultoria.

Quadro 2
– Ciclos de início da revisão do PDDUA (2016-2022)

Apesar da quantidade de eventos ao longo dos últimos seis anos, pouco avanço pode ser percebido, uma vez que seminários, consultas on-line e formações de GTs aconteceram sem metodologia de encadeamento de resultados, perdendo-se os acúmulos de participação social no processo. O ciclo de nascimento, crescimento, auge e fim das etapas de revisão não se realizam; nem mesmo a etapa de diagnóstico foi concluída.

Destacam-se os anos de 2019 e 2022 como períodos de maior volume de esforços que causaram a sensação de que a revisão, de fato, sairia do papel. No ano de 2019, houve a promessa do processo de revisão em até um ano, de modo a garantir a aprovação pelos vereadores em exercício, uma vez que a gestão se encerraria em 2020. No entanto, no início de 2020, casos de covid-19 são detectados em Porto Alegre, sendo as atividades presenciais suspensas.

As reuniões do CMDUA passaram a ser realizadas de forma remota. O MP emite recomendação de suspensão das atividades que envolvem a participação social, destacando a continuidade do trabalho por parte do Executivo Municipal (Rio Grande do Sul, 2020RIO GRANDE DO SUL (2020). Recomendação: Suspensão temporária do processo de revisão do plano diretor – enquanto perdurar o estado de emergência e calamidade sanitária declarados em razão da pandemia do coronavirus (covid-19), de 23 novembro. Porto Alegre, RS, Ministério Público do Rio Grande do Sul, Promotoria de Justiça de Habitação e Defesa da Ordem Urbanística.). Levantamentos e análises técnicas para elaboração do diagnóstico poderiam ser realizados com menor prejuízo ao calendário da revisão, entretanto, não aconteceram. Nos anos de 2020 e 2021, as atividades promovidas pelo executivo foram quase nulas, uma vez que a estratégia foi de concentrar esforços na elaboração de outros planos e projetos, como se verá a seguir. Finalmente, em 2022, renovaram-se as expectativas de deflagração da revisão, marcada, principalmente, pela contratação da consultoria internacional da Ernest Young (EY).

É possível identificar diversas razões para os sucessivos atrasos no início da revisão: falta de motivação política, uma vez que a gestão 2017-2020 demorou dois anos para deflagrar o processo e extinguiu a Secretaria de Urbanismo, reorganizada em Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Smams) e Secretaria de Infraestrutura e Mobilidade Urbana (Smim); desvalorização dos técnicos na gestão 2017-2020 e aplicação dos preceitos do estado mínimo (Harvey, 2008HARVEY, D. (2008). Neoliberalismo: história e implicações. São Paulo, Edições Loyola.); a equipe da prefeitura envolvida nos trabalhos de revisão do plano era composta por apenas sete técnicos; houve a priorização de recursos para contratação de consultoria internacional e de cargos comissionados em vez de investimentos públicos alocados na reestruturação do corpo técnico da municipalidade; por fim, a pandemia tem parte na desestruturação no processo, porém, 2020 deveria ter sido o ano de finalização, e não de início do processo.

Ao final de 2024, o prefeito anuncia o adiamento da conclusão da revisão do PDDUA para o ano de 2025, sem mês definido. A justificativa foi a realização das eleições municipais.

Participação de universidades e agências internacionais

Em 2017, ao final do primeiro ano de gestão municipal e de vereança, a Cosmam da Câmara de Vereadores convida o Executivo para debater a revisão do PDDUA. Na ocasião, o secretário em exercício apresentou a possibilidade de alinhamento da revisão aos ODS da Agenda 2030, desenvolvida pela ONU, como estratégia de acesso às linhas de investimento.

Após um ano e meio de tratativas, o financiamento, no valor de R$ 10,64 milhões, foi aprovado pelo Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul (BRDE). Os recursos foram destinados para a Cooperação Técnica Internacional (CTI), assinada com o Pnud/ONU, consolidada poucos meses antes (Carneiro, 2020CARNEIRO, C. (2020). BRDE aprova financiamento do Plano Diretor de Porto Alegre. Disponível em: https://prefeitura.poa.br/gp/noticias/brde-aprova-financiamento-do-plano-diretor-de-porto-alegre. Acesso em: 15 nov 2022.
https://prefeitura.poa.br/gp/noticias/br...
). O projeto – intitulado POA 2030, Inovadora, Integrada, Resiliente e Sustentável – foi firmando entre: PMPA, Agência Brasileira de Cooperação (ABC) e Ministério de Relações Exteriores (MRE) e Pnud-ONU, tendo como objetivos:

[...] dar subsídios para aperfeiçoar a gestão do planejamento urbano e para promover o desenvolvimento integrado e sustentável do município, com base nos princípios da Nova Agenda Urbana e dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), em especial o ODS 11 – Cidades e Comunidades Sustentáveis. (Ministério das Relações Exteriores, 2019a)

Segundo o embaixador brasileiro Rui Pereira, “o Pnud é um dos principais, se não o principal parceiro do Brasil em cooperação internacional do Brasil” (Fala..., 2019). Ele complementa:

a ONU-Habitat é a agência especializada das Nações Unidas em temas urbanos. Seria muito difícil para qualquer área metropolitana brasileira, encontrar parceiros de melhor qualificação para o desenvolvimento desse projeto. (Ibid.)

Na ocasião, o embaixador expôs que Porto Alegre adota uma posição inovadora em face de outras áreas metropolitanas do Brasil ao alinhar a Agenda 2030 com a revisão do PDDUA, afirmando: “a incorporação da Academia através da UFRGS é também um elemento de garantia de qualidade dos trabalhos que se vão realizar” (Ministério das Relações Exteriores, 2019b).

A menção à Universidade se dá no fato de o PCTI, assinado entre PMPA e Pnud, prever a UFRGS como responsável por subprodutos que correspondiam a 30% do valor total (Brasil, 2019BRASIL (2019). Projeto de Cooperação Técnica Internacional PoA 2030, Inovadora, Integrada, Resiliente e Sustentável. Brasília, DF, United Nations Development Programme.). Na ocasião, a UFRGS apresentou duas propostas de equipes de professores distintas. A equipe rejeitada pela PMPA contava com profissionais com experiência em participação social e leitura técnica da cidade, enquanto a equipe vencedora era composta, na sua maioria, por professores que integram o Pacto Alegre,3 3 O Pacto Alegre é um “acordo entre instituições de ensino, governo, iniciativa privada e sociedade civil para estimular o empreendedorismo colaborativo” (Pacto Alegre, 2022). cujo coordenador também coordenava a equipe vencedora, tornou-se secretário de inovação meses antes do cancelamento da Interação Acadêmica (IAP) entre Pnud e UFRGS.

O Pacto Alegre conta com dois projetos em desenvolvimento que se relacionam diretamente ao plano diretor. O primeiro, Licenciamento Expresso POA, trata da digitalização do processo de licenciamento da construção de edificações, propondo uma inversão de valores, pois prevê a liberação para construção e posterior fiscalização, delegando as responsabilidades exclusivamente para o empreendedor. O segundo projeto, Diretrizes Urbanas Inovadoras – Interação com o Plano Diretor, visa dar suporte técnico para a revisão do PDDUA (Pacto Alegre, 2022PACTO ALEGRE (2022). Disponível em: https://pactoalegre.poa.br/. Acesso em: 15 nov 2022.
https://pactoalegre.poa.br/...
).

Desse modo, é possível afirmar que o Pacto Alegre representa a Universidade na coalizão para o crescimento (Logan e Molotch, 1993LOGAN, J. R.; MOLOTCH, H. L. (1993). "The city as a growth machine". In: FAINSTEIN, S. S.; CAMPBELL, S. Readings in urban theory. Oxford, Blackwells.) em que estado, elites, mídia e universidade se unem para adotar uma postura empreendedora diante do desenvolvimento econômico. A PMPA previa, desde o início, a parceria com este grupo em específico da UFRGS, o Pacto Alegre. Os trâmites e o cancelamento evidenciam essa intenção e indicam como a gestão municipal quer focalizar o novo plano diretor.

Como demonstrado no Quadro 3, após trâmites entre UFRGS e PMPA, o Executivo optou pelo cancelamento do acordo. A justificativa da PMPA foi a morosidade da Universidade, no entanto, o cancelamento ocorreu logo após o Conselho Universitário (Consun) ter reprovado a IAP proposta pela equipe escolhida pela PMPA. A reprovação se deu pela falta de isonomia no tratamento aos professores proponentes e pela falta de representação de profissionais de diversas áreas do conhecimento na composição da equipe vencedora, conforme esperado para uma ação de planejamento urbano (Brasil, 2022BRASIL (2022). Parecer de vista do Conselheiro Rafael Pavan dos Passos para o processo nº 23078.450147/2021-81, de 1º de abril. Porto Alegre, Conselho Universitário da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.).

Quadro 3
– Tramitações entre PMPA-PNUD-UFRGS-EY

Uma vez encerradas as tratativas entre Pnud-PMPA-UFRGS, o Pnud busca a contratação de equipe apta a prestar consultoria. O órgão contrata empresas pré-qualificadas: Accenture, Ove Arup and Partners International, Atos IT Services, Derloitte Touche Tohmatsu, Ernest & Young et Associates, Everis, KPMG Advisory, PrincewaterhouseCoopers. Segundo apresentação do Pnud no Seminário da Revisão do PD, em 2022, essas empresas trabalham com as seguintes áreas: consultoria em gestão no setor público; gestão de mudança organizacional; licitação e cadeia de fornecedores; gestão de programas e projetos; saúde; meio ambiente; finanças; auditoria e garantias.

A EY foi a única candidata. No site da empresa sediada na Inglaterra, não há o serviço de planejamento urbano. O que mais se aproxima dele é a linha de “governo e setor público: construindo um mundo melhor para o governo e cidadãos” (Ernst Young, 2022). A coordenadora da Planejamento Urbano afirma que “a contratação de uma empresa com renome internacional, com experiência em trabalhos semelhantes em complexidade e dimensão, aponta para um caminho de sucesso e boas perspectivas para o planejamento urbano de Porto Alegre” (Bisol, 2022BISOL, C. (2022). Plano Diretor da Capital terá suporte de consultoria internacional. Disponível em: https://prefeitura.poa.br/smamus/noticias/plano-diretor-da-capital-tera-suporte-de-consultoria-internacional. Acesso em: 26 dez 2022.
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).

Durante o 1º Seminário PoA 2030, o ATUA POA – TODXS NÓS, coletivo de entidades organizado para discutir a revisão do PDDUA, entregou à EY e ao Pnud um conjunto de documentos contendo as demandas e as propostas da sociedade civil organizada e mobilizada de Porto Alegre. No momento da entrega – depois publicamente – foi anunciado que tanto Pnud quanto EY não teriam contato com a sociedade porto-alegrense. O cenário do palco (Figura 1) era composto por cubos que representam os ODSs da Agenda 2030, no entanto, a tônica das falas focou o plano diretor como base para criação de uma cidade produtiva e com valorização do mercado imobiliário.

Figura 1
– 1º Seminário POA 2030

Ao ser questionado sobre o que seria a cidade produtiva na periferia, a resposta da EY foi dada com base na experiência da renovação dos centros históricos com inclusão de habitação social por meio do mercado imobiliário. No discurso de abertura do Seminário, o prefeito expõe as necessidades de apenas uma entidade da sociedade civil, o Sindicato da Construção Civil (Sinduscon), deixando claro o setor da sociedade que valoriza e com quem dialoga. Ou seja, todos os caminhos passam pela produção de um ambiente favorável para o setor – enquanto, para a periferia, não há respostas.

Constatam-se, portanto, as seguintes questões: (1) os ODSs, ainda que parte do cenário, não são incorporados no discurso e objetivos reais do plano, servindo como justificativa de acesso à recursos; (2) a PMPA, ao firmar acordo com Pnud e EY, apoia-se em instituições não democráticas que não prestam conta à sociedade (Harvey, 2008HARVEY, D. (2008). Neoliberalismo: história e implicações. São Paulo, Edições Loyola., p. 80), em um processo que deve ser essencialmente participativo; (3) as evidências de planejamento neoliberal (Baeten, 2018BAETEN, G. (2018). "Neoliberal planning". In: GUNDER, M.; MADANIPOUR, A; WATSON, V. (eds.). The Routledge Handbook of Planning Theory. Nova York, Routledge.), pois preveem a superioridade das ações de mercado, priorizando o desenvolvimento urbano vinculado ao crescimento econômico de parceiros selecionados.

Dificuldades de participação social

As dificuldades de participação social são anteriores à entrada do Pnud e EY. Oliveira, Marx e Oliveira Filho (2021) destacam os atrasos da revisão, o cerceamento de participação social e de atores sociais que se mobilizaram na luta pelo direito à cidade, com destaque para o coletivo ATUA POA – TODXS NÓS e para a realização dos Planos Populares de Ação Regional (PPARs).4 4 Realizados pelo Instituto de Arquitetos do Brasil – Departamento Rio Grande do Sul (IAB-RS), em parceria com Cidade em Projeto – Laboratório de Pesquisa, Ensino e Extensão (CPLAB-UFRGS), com patrocínio do Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU-RS).

Em 2019, por pressão dos PPARs, a PMPA realizou apenas uma oficina territorial por RGP. Após a retomada dos processos participativos, pós-pandemia, foram realizadas exposições itinerantes nas regiões, com cartazes que demostraram os resultados obtidos.

Em maio de 2022 foram anunciadas a realização de 24 oficinas entre agosto de 2022 e março de 2023 (Czarnobay, 2022CZARNOBAY, A. (2022). Prefeitura apresenta novo cronograma de atividades para a revisão do Plano Diretor. Disponível em: https://prefeitura.poa.br/smamus/noticias/prefeitura-apresenta-novo-cronograma-de-atividades-para-revisao-do-plano-diretor ). Acesso em: 2 dez 2023.
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). A PMPA considera os eventos de exposição como parte de oficinas participativas. Foram realizadas oficinas temáticas e territoriais nos GTs, organizadas por recomendação do Ministério Público (MP) (Suptitz, 2022b).

Esses GTs foram divididos em duas categorias: Consultivo Técnicos (GT-CT) e Grupo de Trabalho das Regiões de Planejamento (GT-CR). Ambos, originalmente, com formação de conselheiros do CMDUA, mas com abertura para novas representações. A ação resulta na perda de relevância dos conselheiros, por ocuparem o mesmo espaço que pessoas sem atribuição representativa e pela redução do seu papel de deliberativo para consultivo. Sobre a condução dos GTs, são feitas as seguintes críticas: formato on-line em horário de trabalho; repetição sistemática das apresentações; carência de metodologia participativa para as reuniões; ausência de indicação de sistematização dos resultados.

Retoma-se o envolvimento de Pnud e EY. Originalmente, o PCTI entre PMPA e Pnud previa atividade de estruturação dos processos participativos com estratégias de comunicação para mobilização social; elaboração de metodologia; organização e relatoria de oficinas (territoriais, técnicas, temáticas e internas); consulta on-line; audiências públicas e conferência (Brasil, 2019BRASIL (2019). Projeto de Cooperação Técnica Internacional PoA 2030, Inovadora, Integrada, Resiliente e Sustentável. Brasília, DF, United Nations Development Programme., p. 10). Estes subprodutos estavam a cargo da UFRGS antes da suspensão do acordo. Atualmente, são de responsabilidade da equipe técnica da PMPA.

Após EY anunciar que não teria contato com a sociedade, os conselheiros do CMDUA são chamados para conhecer os especialistas contratados. Na ocasião, foi anunciada a agenda de trabalho da EY com técnicos da PMPA, investidores e influenciadores. Os conselheiros da Região de Planejamento 1, do IAB-RS e do CAU-RS solicitaram agenda de encontro com os especialistas, sem haver retorno. Destaca-se que o encontro com o CMDUA teve papel de informação, não configurando um encontro que fornecesse subsídios para a revisão. No dia seguinte, EY se encontra com representantes da indústria e do setor da construção civil (Smamus POA, 2022a) e divulgam que:

[...] dentre as visitas técnicas e reuniões com entidades e órgãos públicos municipais foi possível estabelecer uma relação de cooperativismo para a realização do Plano. Agora a empresa irá reunir todas as informações necessárias para produzir o instrumento, assessorando os técnicos da Smamus. (Smamus POA, 2022b)

Ou seja, os subsídios e o cooperativismo aconteceram apenas entre os parceiros selecionados: os de interesse do mercado. Meses depois, EY e PMPA realizaram reunião com a Associação Brasileira dos Escritórios de Arquitetura do Rio Grande do Sul (Asbea RS), IAB-RS e CAU-RS. Foi solicitada a metodologia de leitura da cidade, mas não houve retorno por parte da EY ou da PMPA.

EY afirma que buscará trabalhar para promover um plano diretor que crie condições para o mercado imobiliário, por meio da “flexibilidade com previsibilidade”. Como EY não atua na área de planejamento urbano diretamente, faz parte da equipe o escritório Forma Urbana, sediado na Argentina, com experiência em arquitetura, projetos urbanos e consultoria para o mercado imobiliário, como ilustrado nas imagens de divulgação de participações em eventos por parte do arquiteto sócio (Figura 2).

Figura 2
– Divulgação de participação em eventos do escritório forma urbana

Por fim, destaca-se que o CMDUA ficou sem a realização de eleições por quatro anos. A gestão 2018-2020 ficou no poder por seis anos, mesmo depois de inúmeras manifestações por parte dos conselheiros sobre o desacordo com a ausência de eleições. Após ação popular, o Tribunal de Justiça do Rio Grande (TJ-RS) determina que a PMPA realize eleições em até 90 dias. De tal forma, a 2ª Conferência de Revisão do PD que apresentou as propostas para o novo PD aconteceu sem efeito legal, uma vez que foi determinada a suspensão das atividades enquanto o CMDUA não tivesse nova composição.

Desse modo, constatam-se: (1) o desmonte da governança democrática (Harvey, 2008HARVEY, D. (2008). Neoliberalismo: história e implicações. São Paulo, Edições Loyola.) através da falta de promoção de uma participação qualificada e efetiva, não apenas dos que compõem o CMDUA, mas de todos que se agregaram os GTs posteriormente; (2) a aproximação com o autoritarismo (Harvey, 2008HARVEY, D. (2008). Neoliberalismo: história e implicações. São Paulo, Edições Loyola.) ao reduzir para caráter consultivo o papel dos conselheiros do CMDUA nos GTs e a não realização de eleições do conselho; (3) a presença de um estado forte, como máquina de repressão das vontades democráticas (ibid.), ao desconsiderar o investimento de recursos no desenvolvimento de metodologias participativas; e novamente (4) o apoio em instituições não democráticas (ibid.) ao optar pela falta de diálogo metodológico entre os processos participativos empregados na leitura da cidade a ser desenvolvida por EY, bem como ao acordar com a postura de não contato com a sociedade em geral, apenas com os parceiros selecionados.

Fatiamento do plano diretor: planejamento por projetos

Em meio à decisão do MP de suspender os processos participativos, a PMPA optou por retirar o foco da equipe de trabalho da revisão do plano para colocar esforços na elaboração de dois planos para partes de especial interesse econômico em Porto Alegre: o bairro Centro Histórico e a Região do 4º Distrito.

O Quadro 5 ilustra o andamento desses dois planos. O do Centro Histórico foi aprovado em 2021, e o do 4º Distrito em 2022. Em ambos os casos, há imediata solicitação de aprovação de projetos arquitetônicos de acordo com os novos parâmetros definidos. A repetição das ações e a rapidez de projetos aptos para este procedimento evidencia os interesses dos planos e a lógica do balcão de negócios nas suas formulações.

Quadro 5
– Fatiamento do plano diretor

Em termos gerais, os dois casos preveem: (1) a liberação do regime urbanístico, de modo a atingir flexibilização total, pois podem vir a ser definidos por decreto; e (2) a criação de novos índices de solo criado (sinônimo de outorga onerosa), com a finalidade de ampliação de arrecadação de recursos. Com efeito, são previstos os adensamentos construtivo e populacional, com investimentos em infraestrutura a posteriori, uma vez que só acontecerão por meio de aplicação dos recursos oriundos do solo criado dos empreendimentos que optarem por se instalar na região dos programas. Cientes de que este formato é inviável, a PMPA busca financiamento de bancos internacionais para investimento em infraestrutura. Destaca-se que nenhum deles é chamado de Plano de Bairro ou Plano de Região. A opção foi denominá-los de Programa de Reabilitação do Centro Histórico de Porto Alegre (PRCHPA) e Programa de Regeneração Urbana do 4º Distrito de Porto Alegre (PRU4DPA), ainda que ambos apresentem alteração de parâmetros urbanísticos e disponibilidade de solo criado.

Na ocasião do envio do PRCHPA para a Câmara de Vereadores, o MP faz recomendação ao executivo para a observância de reserva do plano diretor (Brasil, 2021). Foi um alerta do judiciário para a antecipação de revisão de plano diretor. Na mídia, os programas são denominados como “planos diretores” e o próprio prefeito destaca que a revisão do PDDUA seguirá o formato destes dois programas. Em entrevista o Prefeito afirma:

[...] o tempo pra enfrentar o Centro e o 4º Distrito não dá pra ser 2023, e por isso esses dois recortes. Mas também tem uma visão urbanística do prefeito compartilhada com o vice: penso que a cidade, mesmo tendo um Plano Diretor geral, deveria ter a capacidade de ter muitos ‘planos diretores’ […] sou muito favorável as operações consorciadas urbanas, que é fazer um recorte urbanístico e dar a potencialidade para esses bairros. (Velleda e Gomes, 2022VELLEDA, L.; GOMES, L. E. (2022). Sebastião Melo: 'O Plano Diretor que vamos mandar para a Câmara será bastante liberal'. Disponível em: https://sul21.com.br/noticias/entrevistas/2022/01/sebastiao-melo-o-plano-diretor-que-vamos-mandar-para-a-camara-sera-bastante-liberal/ ). Acesso em: 2 dez 2022.
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; grifos nossos)

[...] a ideia é que seja (o plano diretor) “bastante liberal” e que não se atenha a discussões de altura, como diz ter sido o debate nas revisões anteriores. Contudo, enquanto ela não vem, diz que o Centro não pode esperar, por isso estaria encaminhando projetos que alteram o Plano Diretor atual de forma separada. (Ibid.; grifos nossos)

O debate e as declarações na mídia tornam evidente a intenção de não cumprimento à reserva do plano diretor. A PMPA adota uma postura empreendedora ao divulgar, em suas redes sociais, empreendimento privado em etapa de aprovação (por não atender normas de controle do espaço aéreo), conforme a Figura 3.

Figura 3
– Projeto aprovado no programa +4D será o mais alto da cidade

A equipe técnica da PMPA expressou, diversas vezes, a preocupação com a escala intermediária e o desenho dos espaços públicos, elencando, inclusive, a possibilidade de elaboração de planos de pormenor (baseada na experiência de projetos urbanos em Portugal). No 1º Seminário POA 2030, alegaram que o PDDUA de 1999 adotou formas mais genéricas de desenho, indicando um possível caminho de retorno à valorização do projeto em detrimento do plano (Figura 4).

Figura 4
– Projetos urbanos versus Plano Diretor

O vocabulário empregado pela PMPA e seus parceiros indica a mudança no modelo de plano diretor. Operações Urbanas Consorciadas, Planos de Pormenor, preocupação com a escala intermediária e a de plano geral, com capacidade de ter muitos planos diretores, são indicadores de um planejamento por projetos (Avitabile, 2005AVITABILE, A. (2005). La mise en scène du projet urbain: pour une structuration des démarches. Paris, L'Harmattan.) ou de resultados (Ascher, 1992ASCHER, F. (1992). Projet publics et réalisations privées: le renouveau de la Planification des villes. Les Annales de la Recherche Urbaine. Paris, n. 51, pp. 4-15.). Ambos têm enfoque no desenvolvimento de projetos urbanos e na posição estratégica perante o empreendedorismo e a especulação do lugar.

Também se identifica um governo empreendedor e de resultados orientado para o mercado, nos termos de Osborne e Gaebler (1993)OSBORNE, D.; GAEBLER, T. (1993). Reinventing government: how the entrepreneurial spirit is transforming the public sector. Nova York, Plume., uma vez que a divulgação dos empreendimentos acontece nas redes do governo, bem como a disposição de burlar as regras de reserva do plano diretor para atender os anseios do mercado. Os Planos/Programas do Centro Histórico e do 4º Distrito podem ser caracterizados como Planejamento de Tendência e Planejamento de Facilitação (Brindley, Rydin e Stoker, 2004), pois se baseiam em regular a ausência de regulamentações para atender interesses privados, inclusive estímulos fiscais.

Considerações finais

O objetivo do artigo foi investigar os efeitos do neoliberalismo avançado sob a revisão de planos diretores no Brasil, a partir da experiência de Porto Alegre/RS. O processo é marcado por repetições de ações, interferências entre os processos cíclicos por meio do MP e ausência de encerramento de nenhum ciclo.

Dos efeitos, o primeiro detectado relaciona-se à implementação do estado mínimo (Harvey, 2008HARVEY, D. (2008). Neoliberalismo: história e implicações. São Paulo, Edições Loyola.) por meio do desmonte do corpo técnico na pasta de planejamento nos últimos 10 anos em conjunto com o fato de expressivos recursos conquistados para a revisão investidos em empresas internacionais, recursos oriundos do Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul (BRDE).

O segundo efeito relaciona-se à força do mercado imobiliário na revisão. Sempre presente, assume força imensurável em ambiente de acumulação flexível (Harvey, 2011HARVEY, D. (2011). Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo, Edições Loyola.). O diálogo com entidades do setor é livre e desejado, enquanto para entidades de planejamento, meio ambiente e comunidade restam as atividades realizadas por recomendação do MP, sem metodologia de participação qualificada ou respostas prometidas. Desde a formação do Estado Democrático de Direito, a questão das gestões democráticas e dos planos diretores participativos merecem atenção. No momento do neoliberalismo avançado, a atenção deve ser redobrada.

O terceiro efeito é o enfoque em uma cidade produtiva para o capital. Temáticas, lugares e grupos sociais que não dão suporte a essa produção são invisibilizados e não têm espaço na discussão do novo plano diretor. As agências internacionais e a Agenda 2030 da ONU dão uma roupagem de eficiência e preocupação socioambiental, liberando a aplicação do ideário neoliberal. A participação de atores internacionais que não dialogam com a comunidade local é resultado de novos arranjos institucionais e formas de governança que não passam pelo escrutínio da sociedade.

Por fim, no planejamento urbano, os efeitos são contundentes. Não há ausência de planejamento, há o planejamento programado para atender interesses de atores específicos. Planejamento de tendência e facilitação (Brindley, Rydin e Stoker, 2004) são postos em curso na sua plenitude. O planejamento por projetos atende a essa demanda, transformando a cidade em pedaços de interesse do capital especulativo e os cidadãos em clientes.

Os resultados obtidos a partir processo de revisão do plano diretor de Porto Alegre mostram o desafio que o campo do planejamento urbano enfrenta. Os efeitos da financeirização, os avanços de novos arranjos institucionais e o desmonte de governança democrática apontam para a direção oposta ao ideário da luta pela reforma urbana, que não se concretizou. A recondução de percurso é urgente para a valorização de uma prática de planejamento que se vincule aos interesses dos cidadãos.

Quadro 4
– Participação social e estratégias de mobilização social

Nota de Agradecimento

O presente trabalho foi realizado com apoio do Programa de Bolsas de Iniciação Científica do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (PIBIC CNPq/UFRGS). Pedido de solicitação de bolsa no sistema da universidade 125807/2022-8.

Referências

Notas

  • 1
    Para Murphy (2008MURPHY, J. (2008). The World Bank and global managerialism. Londres, Routledge., p. 154), o gerencialismo transforma “temas da vida social e de organizações em séries de problemas discretos que podem ser resolvidos através da aplicação da perícia técnica”. Para Parker (2002), o gerencialismo é a ideologia generalizada do management que, por sua vez, possui múltiplos significados. Esse conceito pode ser relacionado a um grupo de executivos; a um processo ou a um ato de gestão; ou a uma disciplina acadêmica relacionada à gestão e à administração.
  • 2
    Não se ignora a disseminação e diferenças pontuais com o movimento pós-burocrático, com a New Public Management nos países anglo-saxões e com a Administração Pública Gerencial no Brasil. No entanto, para os fins deste trabalho, o movimento de reinvenção do governo é o mais relevante.
  • 3
    O Pacto Alegre é um “acordo entre instituições de ensino, governo, iniciativa privada e sociedade civil para estimular o empreendedorismo colaborativo” (Pacto Alegre, 2022).
  • 4
    Realizados pelo Instituto de Arquitetos do Brasil – Departamento Rio Grande do Sul (IAB-RS), em parceria com Cidade em Projeto – Laboratório de Pesquisa, Ensino e Extensão (CPLAB-UFRGS), com patrocínio do Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU-RS).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2024

Histórico

  • Recebido
    26 Dez 2022
  • Aceito
    20 Abr 2023
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