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Transporte orientado ao desenvolvimento urbano

Resumo

As redes de transporte desempenham um importante papel no desenvolvimento das cidades e no acesso a oportunidades. O planejamento de transportes, contudo, ainda não reconhece seu papel na promoção de desigualdades. Este trabalho busca discutir os conceitos de centralização e acessibilidade e apresentar um paradigma de desenho de redes de transporte coletivo, baseado na compreensão de que sua demanda contém um componente endógeno: ao promover acessibilidade, os sistemas de transporte coletivo incentivam parte da demanda que buscam atender, levando a um ciclo de causação circular. Propõe-se, então, que o planejamento das redes de transporte coletivo deva estar fortemente associado à disciplina de planejamento urbano, considerando não só a demanda existente, mas o desenho de cidade que se deseja construir.

desenho de redes de transporte coletivo; mobilidade urbana; acessibilidade; aglomeração; equidade

Abstract

Transportation networks play a vital role in the development of cities and access to opportunities. Transportation planning, however, has yet to recognize its role in promoting inequalities. This work aims to discuss the concepts of centralization and accessibility and present a paradigm for planning transit networks based on the understanding that transit demand contains an endogenous component: by increasing accessibility, transit systems encourage part of the demand they seek to meet, leading to a circular causation cycle. It is proposed, then, that the planning of transit networks should be strongly associated with the discipline of urban planning, considering the existing demand and the design of the city that one wants to build.

transit network design; urban mobility; accessibility; agglomeration; equity

Introdução

Os sistemas de transporte coletivo desempenham papel fundamental na promoção do acesso a oportunidades em um contexto de cidades que se desenvolveram de forma desigual. A importância do transporte coletivo é ainda maior nos países em desenvolvimento, onde os níveis de desigualdade são mais profundos e as camadas mais pobres são as mais dependentes desse sistema (Vasconcellos, 2015VASCONCELLOS, E. (2015). Transporte urbano y movilidad: reflexiones y propuestas para países en desarrollo. San Martín, Unsam Edita.). O funcionamento adequado das redes de transporte é, consequentemente, condição essencial para a redução das desigualdades sociais. O contrário, por sua vez, pode resultar em seu aprofundamento.

Nas décadas recentes, a preocupação de pesquisadores com os problemas de justiça e equidade em transportes cresceu de forma significativa (Pereira, Schwanen e Banister, 2017). Embora muitos planejadores não reconheçam e não compreendam o papel das políticas de transporte na produção e reprodução de desigualdades (Guimarães e Lucas, 2019GUIMARÃES, T.; LUCAS, K. (2019). O papel da equidade no planejamento coletivo urbano no Brasil. Transportes, v. 27, n. 4, pp. 76-92. DOI: 10.14295/transportes.v27i4.1709. Acesso em: 11 ago 2021.
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), o tema tem sido tratado de forma extensiva na academia nos últimos anos. Um grande número de estudos tem investigado as desigualdades, em contextos urbanos, a partir de métricas de acessibilidade (e.g. Pereira, 2018PEREIRA, R. (2018.). Transport legacy of mega-events and the redistribution of accessibility to urban destinations. Cities, v. 81, pp. 45-60. DOI: 10.1016/j.cities.2018.03.013. Acesso em: 11 ago 2021.
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; Basso et al., 2020BASSO, F.; FREZ, J.; MARTÍNEZ, L.; PEZOA, R.; VARAS, M. (2020). Accessibility to opportunities based on public transport gps-monitored data: the case of Santiago, Chile. Travel Behaviour and Society, v. 21, pp. 140-153. DOI: 10.1016/j.tbs.2020.06.004. Acesso em: 11 ago 2021.
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; Smith et al. 2020SMITH, D.; SHEN, Y.; BARROS, J.; ZHONG, C.; BATTY, M.; GIANNOTTI, M. (2020). A compact city for the wealthy? Employment accessibility inequalities between occupational classes in the London metropolitan region 2011. Journal of Transport Geography, v. 86, pp. 1-14. DOI: 10.1016/j.jtrangeo.2020.102767. Acesso em: 11 ago 2021.
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; Barboza et al., 2021BARBOZA, M.; CARNEIRO, M.; FALAVIGNA, C.; LUZ, G.; ORRICO, R. (2021). Balancing time: using a new accessibility measure in Rio de Janeiro. Journal of Transport Geography, v. 90. DOI: 10.1016/j.jtrangeo.2020.102924. Acesso em: 11 ago 2021.
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; Giannotti et al., 2021GIANNOTTI, M.; BARROS, J.; TOMASIELLO, D.; SMITH, D.; PIZZOL, B.; SANTOS, B.; ZHONG, C.; SHEN, Y.; MARQUES, E.; BATTY, M. (2021). Inequalities in transit accessibility: contributions from a comparative study between Global South and North metropolitan regions. Cities, v. 109, n. 103016. DOI: 10.1016/j.cities.2020.103016. Acesso em: 11 ago 2021.
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), enquanto outros se dedicam à conceituação da desigualdade e da justiça distributiva em transportes (e.g. Lucas, 2012LUCAS, K. (2012). Transport and social exclusion: where are we now? Transport Policy, v. 20, pp. 105-113. DOI: 10.1016/j.tranpol.2012.01.013. Acesso em: 11 ago 2021.
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; Pereira, Schwanen e Banister, 2017; Pereira e Karner, 2021PEREIRA, R.; KARNER, A. (2021). "Transportation equity". In: VICKERMAN, R. (org.) International Encyclopedia of Transportation. Amsterdam, Elsevier.).

Historicamente, os métodos de planejamento e desenho das redes de transporte associam o funcionamento ótimo dos sistemas de transporte coletivo à ligação dos principais bairros às regiões centrais das cidades (Brown e Thompson, 2012BROWN, J; THOMPSON, G. (2012). Should transit serve the CBD or a diverse array of destinations? a case study comparison of two transit systems. Journal of Public Transportation, v. 15, n. 1, pp. 1-18. DOI: 10.5038/2375-0901.15.1.1. Acesso em: 11 ago 2021.
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). Essa lógica tem, por consequência, a produção de redes de características radiocêntricas, nas quais as demandas secundárias são atendidas apenas de forma subsidiária ou complementar às demandas principais (A. Mello, J. Mello e Orrico, 2016). Esse tipo de rede, por sua vez, privilegia deslocamentos em distâncias cada vez maiores e dá origem a um cenário paradoxal: temos viajado cada vez mais, para mais lugares e distâncias maiores e, ainda assim, isso não se converteu em um acesso a um número maior de oportunidades e atividades.

Tradicionalmente, a demanda primária – que organiza os processos de planejamento das redes de transporte – é a demanda de deslocamentos entre casa e trabalho. Além de reproduzir uma dinâmica pendular de ligações centro-periferia, é um modelo que subordina toda a dinâmica da cidade a uma única relação: a relação entre capital e trabalho. Dessa forma, métodos tradicionais de planejamento frequentemente tratam todas as outras naturezas de deslocamentos como subordinadas. As consequências são especialmente sensíveis para pessoas cujas necessidades de deslocamento destoam do roteiro principal: mulheres, mães, idosos, enfermos, jovens, pessoas com deficiência.

Entretanto, mesmo sob uma perspectiva de promoção de equidade, as diretrizes para o desenho de redes de transporte coletivo podem não ser tão óbvias. Se o método de desenho das redes segue priorizando ligações das áreas com poucas oportunidades (periferias, subúrbios ou em classificação mais genérica ‘não-centros’) à área que reúne mais oportunidades (centro principal), há uma tendência de reprodução de um desenho de rede radiocêntrico que reforça o padrão de deslocamento existente e, em última instância, a própria concentração de atividades nas áreas centrais.

O fato que buscamos aprofundar é a possível evidência de que os ganhos de acessibilidade produzidos pelas redes de transporte resultam da aproximação de agentes econômicos e, por consequência, traduzem-se em benefícios de aglomeração (Credit, 2019CREDIT, K. (2019). Accessibility and agglomeration: a theoretical framework for understanding the connection between transportation modes, agglomeration benefits, and types of businesses. Geography Compass, v. 13, n. 4. DOI: 10.1111/gec3.12425. Acesso em: 11 ago 2021.
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). Tais benefícios, por sua vez, são importantes para a escolha de localização dos agentes econômicos nas cidades (Corrêa, 1989CORRÊA, R. (1989). O espaço urbano. São Paulo, Ática.; Villaça, 1998VILLAÇA, F. (1998). Espaço intra-urbano no Brasil. São Paulo, Studio Nobel/Fapesp/Lincoln Institute of Land Policy.). De forma geral, compreendemos que, assim como a configuração do ambiente urbano interfere sobre o processo de definição dos investimentos em transporte, o próprio investimento em transportes produz efeitos sobre a forma urbana (Hickman e Hall, 2008HICKMAN, R.; HALL, P. (2008). Moving the City East: explorations into contextual public transport-oriented development. Planning, Practice & Research, v. 23, n. 3, pp. 323-339. DOI: 10.1080/02697450802423583. Acesso em: 11 ago 2021.; Kasraian et al., 2016KASRAIAN, D.; MAAT, K.; STEAD, D.; VAN WEE, B. (2016). Long-term impacts of transport infrastructure networks on land-use change: an international review of empirical studies. Transport Reviews, v. 36, n. 6, pp. 772-792. DOI: 10.1080/01441647.2016.1168887. Acesso em: 11 ago 2021.
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). Nesse sentido, uma compreensão mais profunda dessas dinâmicas é central para que os investimentos em transporte e o desenho das redes possam colaborar com a construção de cidades mais justas no longo prazo.

Neste artigo, apresentamos uma contribuição a essa discussão, que vem sendo realizada a partir de distintas abordagens. Nossa contribuição se inicia pela revisão dos conceitos de centralização e descentralização, a fim de bem caracterizar o papel das redes de transporte nessas dinâmicas. Em seguida, mostramos como os benefícios econômicos produzidos pelas redes de transportes resultam em benefícios de aglomeração, uma vez que os ganhos de acessibilidade aproximam agentes econômicos. Em sequência, apresentamos considerações sobre os métodos de planejamento de transportes e algumas abordagens que incorporam a interação entre transportes e uso do solo na prática do planejamento, a fim de discutir seus limites e contribuições. Na penúltima seção, produzimos uma síntese entre os diversos elementos abordados, apontando interfaces entre os conceitos que podem ser exploradas no planejamento das redes. Por fim, apontamos conclusões e sugerimos alguns caminhos de pesquisa para futuros trabalhos.

Transportes e centralidades

A ideia de centralidade é recorrente no planejamento de transportes. Predomina, no planejamento, a visão de que as redes de transporte coletivo devem privilegiar a conexão com áreas centrais (Brown e Thompson, 2012BROWN, J; THOMPSON, G. (2012). Should transit serve the CBD or a diverse array of destinations? a case study comparison of two transit systems. Journal of Public Transportation, v. 15, n. 1, pp. 1-18. DOI: 10.5038/2375-0901.15.1.1. Acesso em: 11 ago 2021.
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). Nabais e Portugal (2006)NABAIS, R.; PORTUGAL, L. (2006). Utilização de critérios de centralidade para seleção de estações de integração multimodal. In: 2° CONGRESSO LUSO-BRASILEIRO PARA O PLANEJAMENTO URBANO REGIONAL INTEGRADO SUSTENTÁVEL - PLURIS. Anais. Braga, Editora EESC/USP., por exemplo, apontam que, em grandes metrópoles, a oferta de transportes deveria ser proporcional à centralidade de uma localidade. Contudo, a própria definição e identificação de centralidades, pode variar muito em função dos critérios adotados para esta classificação, frequentemente sendo objeto de classificações subjetivas a partir da impressão dos planejadores.

Diversos trabalhos têm explorado, em maior ou menor medida, o tema das centralidades urbanas (ou policentralidade), dentre as quais destacamos abordagens que utilizam a teoria dos grafos (e.g. Irwin e Hughes, 1992IRWIN, M.; HUGHES, H. (1992). Centrality and the structure of urban interaction: measures, concepts, and applications. Social Forces, v. 71, n. 1, pp. 17-51.; Limtanakool, Schwanen e Dijst, 2009), a sintaxe espacial (e.g. Medeiros, 2013MEDEIROS, V. (2013). Urbis brasiliae: o labirinto das cidades brasileiras. Brasília, Editora UnB.) e modelos econométricos (e.g. Pereira et al., 2013PEREIRA, R.; NADALIN, V.; MONASTERIO, L.; ALBUQUERQUE, P. (2013). Urban centrality: a simple index. Geographical Analysis, v. 45, n. 1, pp. 77-89. DOI: 10.1111/gean.12002. Acesso em: 11 ago 2021.
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). Entretanto, não existe um consenso entre essas abordagens sobre a caracterização do fenômeno de centralidade (ibid.). Dessa forma, entendemos ser prudente, antes de buscar definições em estudos de caso, dar um passo atrás e buscar, na literatura da história, da geografia e do planejamento urbano, as raízes dos processos de centralização, seus motivos e suas consequências, em especial no contexto das cidades brasileiras.

Do ponto de vista histórico, a formação de centralidades não está associada, necessariamente, ao modo de produção capitalista, mas à própria dinâmica de vida em sociedade (Corrêa, 1989CORRÊA, R. (1989). O espaço urbano. São Paulo, Ática.; Villaça, 1998VILLAÇA, F. (1998). Espaço intra-urbano no Brasil. São Paulo, Studio Nobel/Fapesp/Lincoln Institute of Land Policy.). Nesse contexto, o surgimento do centro reflete a disputa pelo controle do tempo e da energia gastos nos deslocamentos necessários para a produção e reprodução da vida material (Castells, 1975CASTELLS, M. (1975). A questão urbana. São Paulo, Paz e Terra.; Villaça, 1998VILLAÇA, F. (1998). Espaço intra-urbano no Brasil. São Paulo, Studio Nobel/Fapesp/Lincoln Institute of Land Policy.). É a partir da revolução industrial, entretanto, com a intensificação da circulação de pessoas e mercadorias, que o processo de centralização ganha outra dimensão e importância na forma urbana (Corrêa, 1989CORRÊA, R. (1989). O espaço urbano. São Paulo, Ática.). O processo de centralização, porém, é dialético: ao mesmo tempo que produz o centro, produz também o não-centro (Villaça, 1998VILLAÇA, F. (1998). Espaço intra-urbano no Brasil. São Paulo, Studio Nobel/Fapesp/Lincoln Institute of Land Policy.). Desta forma, é importante notar a natureza relacional do processo. O centro não existe dissociado de seu tecido urbano e de suas atividades. O centro só é centro em relação a uma comunidade, a um conjunto de atividades, a um tecido social.

A relação entre o processo de centralização e os transportes permeia as diversas interpretações do conceito. Tanto para Corrêa (1989)CORRÊA, R. (1989). O espaço urbano. São Paulo, Ática. quanto para Villaça (1998)VILLAÇA, F. (1998). Espaço intra-urbano no Brasil. São Paulo, Studio Nobel/Fapesp/Lincoln Institute of Land Policy., o processo de centralização está fortemente associado à otimização dos deslocamentos, seja de pessoas ou mercadorias. Nesse sentido, ao conferir vantagens locacionais a partir de uma acessibilidade ampliada, as redes de transporte, historicamente, desempenharam um importante papel na definição das áreas centrais. O crescente interesse de diferentes agentes econômicos na exploração dessas vantagens locacionais se traduziu na elevação do preço da terra e, por consequência, na seleção de atividades (e pessoas) que ocupariam as áreas centrais (Corrêa, 1989CORRÊA, R. (1989). O espaço urbano. São Paulo, Ática.). O processo de centralização é, portanto, um processo de busca pelas economias de aglomeração.

A natureza dialética desse processo é um elemento importante a ser compreendido, uma vez que é impossível aglomerar todas as pessoas e atividades em um único espaço, o mesmo processo que conforma a área central, também expulsa dela atividades e pessoas cuja renda não consegue acompanhar a evolução do preço da terra (Villaça, 1998VILLAÇA, F. (1998). Espaço intra-urbano no Brasil. São Paulo, Studio Nobel/Fapesp/Lincoln Institute of Land Policy.). Configura-se, então, um processo de causação circular cumulativa: ao passo que as regiões mais desenvolvidas atraem um número cada vez maior de atividades, as demais regiões se tornam menos competitivas. O resultado são concentrações desiguais de riqueza, poder e influência (Santos, 1978SANTOS, M. (1978). Por uma geografia nova. São Paulo, EdUSP.; Harvey, 2014HARVEY, D. (2014). Seventeen contradictions and the end of capitalism. Oxford, Oxford University Press.).

Embora a compreensão das raízes e dos processos históricos de conformação seja fundamental, é preciso, ainda, identificar quais seriam os elementos que definiriam um centro principal. Nesse sentido, é possível caracterizar o centro principal pelo uso intensivo do solo, pela complexidade das atividades, pela predominância de atividades do setor terciário e por ser área que otimiza os deslocamentos, possuindo a maior acessibilidade entre todas as áreas da cidade (Corrêa, 1989CORRÊA, R. (1989). O espaço urbano. São Paulo, Ática.; Villaça, 1998VILLAÇA, F. (1998). Espaço intra-urbano no Brasil. São Paulo, Studio Nobel/Fapesp/Lincoln Institute of Land Policy.). Sobre a acessibilidade, Santos (1978)SANTOS, M. (1978). Por uma geografia nova. São Paulo, EdUSP. aponta que a circulação facilitada de pessoas incentiva a concentração da atividade comercial no espaço. Esta observação é particularmente importante para nosso trabalho, uma vez que indica forte relação com nossos objetos de estudo: as redes de transportes e as centralidades. Outras características como a verticalização, a concentração de atividades diurnas e atividades ligadas à gestão e tomada de decisões de grandes agentes econômicos também são elementos definidores dos centros principais (Corrêa, 1989CORRÊA, R. (1989). O espaço urbano. São Paulo, Ática.).

Contudo, desde a década de 1980, processos de desconcentração ou descentralização da população e de atividades econômicas têm chamado a atenção de pesquisadores (Fernandez-Maldonado et al., 2014FERNANDEZ-MALDONADO, A.; ROMEIN, A.; VERKOREN, O.; PESSOA, R. (2014). Polycentric structures in latin american metropolitan areas: identifying employment sub-centres. Regional Studies, v. 48, n. 12, pp. 1954-1971. DOI: 10.1080/00343404.2013.786827. Acesso em: 11 ago 2021.
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; Lobo et al., 2015LOBO, C.; MATOS, R.; CARDOSO, L.; COMINI, L.; PINTO, G. (2015). Expanded commuting in the metropolitan region of Belo Horizonte: evidence for reverse commuting. Revista Brasileira de Estudos de População, v. 32, n. 2, pp. 219-233. DOI: 10.1590/S0102-30982015000000013. Acesso em: 11 ago 2021.
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). Alguns têm explorado e investigado estruturas policêntricas por meio de uma leitura funcional, buscando identificar processos de descentralização ou desconcentração a partir do padrão de deslocamentos (e.g. Veneri, 2013VENERI, P. (2013). The identification of sub-centres in two Italian metropolitan areas: a functional approach. Cities, v. 31, pp. 167-175. DOI: 10.1016/j.cities.2012.04.006. Acesso em: 11 ago 2021.
https://doi.org/10.1016/j.cities.2012.04...
; Burger e Meijers, 2012BURGER, M.; MEIJERS, E. (2012). Form follows function? Linking morphological and functional polycentricity. Urban Studies, v. 49, n. 5, pp. 1127-1149. DOI: 10.1177/0042098011407095. Acesso em: 11 ago 2021.
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; Lobo et al., 2015LOBO, C.; MATOS, R.; CARDOSO, L.; COMINI, L.; PINTO, G. (2015). Expanded commuting in the metropolitan region of Belo Horizonte: evidence for reverse commuting. Revista Brasileira de Estudos de População, v. 32, n. 2, pp. 219-233. DOI: 10.1590/S0102-30982015000000013. Acesso em: 11 ago 2021.
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; Mello et al., 2016MELLO, A.; MELLO, J.; ORRICO, R. (2016). Centralidade baseada em deslocamentos e seus reflexos sobre a estrutura monopolicentrica da região metropolitana do Rio de Janeiro. Investigaciones Geográficas, v. 89, pp. 74-89. DOI: 10.14350/rig.46184. Acesso em: 11 ago 2021.
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; Geaquinto, Paiva Neto e Orrico Filho, 2018). Outros adotam uma abordagem morfológica, buscando identificar os mesmos padrões a partir da concentração de postos de trabalho ou da população no espaço (e.g. Fernandez-Maldonado et al., 2014FERNANDEZ-MALDONADO, A.; ROMEIN, A.; VERKOREN, O.; PESSOA, R. (2014). Polycentric structures in latin american metropolitan areas: identifying employment sub-centres. Regional Studies, v. 48, n. 12, pp. 1954-1971. DOI: 10.1080/00343404.2013.786827. Acesso em: 11 ago 2021.
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; Brezzi e Veneri, 2015BREZZI, M.; VENERI, P. (2015). Assessing Polycentric Urban Systems in the OECD: country, regional and metropolitan perspectives. European Planning Studies, v. 23, n. 6, pp. 1128-1145. DOI: 10.1080/09654313.2014.905005. Acesso em: 11 ago 2021.
https://doi.org/10.1080/09654313.2014.90...
; Alidadi e Dadashpoor, 2017ALIDADI, M.; DADASHPOOR, H. (2017). Beyond monocentricity: examining the spatial distribution of employment in Tehran metropolitan region, Iran. International Journal of Urban Sciences, v. 22, n. 1, pp. 38-58. DOI: 10.1080/12265934.2017.1329024. Acesso em: 11 ago 2021.
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).

Do ponto de vista conceitual e de forma dialética, o processo de descentralização tem origem nas deseconomias geradas pelo próprio processo de centralização. Ambos são, portanto, resultado de um mesmo movimento (e não movimentos distintos, como se poderia imaginar). Em conjunto com o surgimento de fatores de atração em áreas não-centrais, essas deseconomias levam os agentes econômicos a buscar alternativas ao centro principal (Corrêa, 1989CORRÊA, R. (1989). O espaço urbano. São Paulo, Ática.; Fernandez-Maldonado et al., 2014FERNANDEZ-MALDONADO, A.; ROMEIN, A.; VERKOREN, O.; PESSOA, R. (2014). Polycentric structures in latin american metropolitan areas: identifying employment sub-centres. Regional Studies, v. 48, n. 12, pp. 1954-1971. DOI: 10.1080/00343404.2013.786827. Acesso em: 11 ago 2021.
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). Fatores como o elevado preço do solo, dificuldades de expansão, restrições legais e elevado congestionamento, por exemplo, são deseconomias que resultam na repulsão de atividades do centro principal (Corrêa, 1989CORRÊA, R. (1989). O espaço urbano. São Paulo, Ática.). Dessa forma, dá-se origem à formação de subcentros ou centralidades alternativas, que se configuram como réplicas em menor escala do centro principal. Concorrem com ele sem, contudo, serem capazes de se igualar a ele. Suas importâncias, por sua vez, estão associadas à área a que atendem (Corrêa, 1989CORRÊA, R. (1989). O espaço urbano. São Paulo, Ática.; Villaça, 1998VILLAÇA, F. (1998). Espaço intra-urbano no Brasil. São Paulo, Studio Nobel/Fapesp/Lincoln Institute of Land Policy.; Pacione, 2009PACIONE, M. (2009). Urban geography: a global perspective. Nova York, Routledge.). Outros ressaltam que subcentros são caracterizados por serem áreas que cumprem um papel estruturante em um subsistema metropolitano (Cladera, Duarte e Moix, 2009) e que possuem maior densidade de postos de trabalho que as regiões em seu entorno (McMillen, 2001MCMILLEN, D. (2001). Non-parametric employment subcenter identification. Journal of Urban Economics, v. 50, n. 3, pp. 448-473. DOI: 10.1006/juec.2001.2228. Acesso em: 11 ago 2021.
https://doi.org/10.1006/juec.2001.2228...
).

O processo de descentralização, ressalte-se, dá-se de forma diferente para diferentes setores econômicos. De modo geral, permanecem, no centro principal, as atividades que não só são capazes de pagar pelo preço da terra, mas que também são capazes de converter as vantagens locacionais produzidas pela área central em ganhos econômicos. Corrêa (1989)CORRÊA, R. (1989). O espaço urbano. São Paulo, Ática. aponta que as atividades industriais, intensivas no uso do solo, tendem a se mudar para áreas mais baratas e mais próximas da mão de obra. No caso do setor comercial e de serviços, por sua vez, a seletividade se processa de forma distinta: tendem a permanecer na área central as atividades especializadas, ao passo que o comércio de produtos comuns ou serviços corriqueiros tendem à descentralização. Em todos os casos, o que se busca é a otimização dos tempos (Villaça, 1998VILLAÇA, F. (1998). Espaço intra-urbano no Brasil. São Paulo, Studio Nobel/Fapesp/Lincoln Institute of Land Policy.) ou a produção de economias de transporte que possam se converter em um aumento de consumo (Corrêa, 1989CORRÊA, R. (1989). O espaço urbano. São Paulo, Ática.). Nesse sentido, é importante notar que o processo de descentralização se torna viável na medida em que se converte em um maior ganho para os agentes econômicos, representando uma vantagem frente às deseconomias geradas pela aglomeração excessiva (Fernandez-Maldonado et al., 2014FERNANDEZ-MALDONADO, A.; ROMEIN, A.; VERKOREN, O.; PESSOA, R. (2014). Polycentric structures in latin american metropolitan areas: identifying employment sub-centres. Regional Studies, v. 48, n. 12, pp. 1954-1971. DOI: 10.1080/00343404.2013.786827. Acesso em: 11 ago 2021.
https://doi.org/10.1080/00343404.2013.78...
). Por essa razão, há, no processo de descentralização, uma preferência, em especial do setor terciário, pela localização nas áreas da cidade que concentram as populações de maior renda (Corrêa, 1989CORRÊA, R. (1989). O espaço urbano. São Paulo, Ática.). Nas cidades brasileiras, esse processo ganha força, especialmente a partir do crescimento relativo da participação do setor terciário na economia.

É importante ressaltar que, em nosso entendimento, não há uma contradição ou mesmo ruptura entre os processos de centralização e descentralização. Ambos são consequência de um mesmo mecanismo de acumulação que busca obter ganhos econômicos cada vez maiores. Corrêa (1989)CORRÊA, R. (1989). O espaço urbano. São Paulo, Ática., ao descrever esse processo, aponta que pequenas lojas de bairro tendem a ser substituídas por filiais de grandes redes. Processo similar, embora em outra escala, é descrito por Oliveira (2008)OLIVEIRA, F. (2008). Noiva da revolução. Elegia para uma re(li)gião. São Paulo, Boitempo. ao tratar da política de desenvolvimento regional para a região nordeste do Brasil que, ironicamente, teria como foco a expansão de mercados oligopolistas das regiões Centro-Sul brasileiras. Nos dois casos, de forma analógica, embora a localização das atividades e dos postos de trabalho tenha se modificado em direção ao não-centro (ou à periferia), a direção do acúmulo de capital segue convergindo em direção à área central, através de estruturas financeiras que acabam por capturar os ganhos de produtividade resultantes da formação de subcentros.

Em síntese, nota-se que a centralização e a descentralização não são fenômenos isolados: ao produzir uma centralidade se produz, ao mesmo tempo, a não-centralidade. A centralização é resultado da tentativa de otimizar os custos de deslocamento e gerar economias de aglomeração. A disputa pelas economias de aglomeração, diante do processo de concentração espacial, produz deseconomias. Essas, por sua vez, associadas à expulsão das camadas mais pobres das áreas centrais, induzem, em um segundo momento, um processo de descentralização. Busca-se, então, investigar e melhor compreender a interação entre a estrutura urbana, a formação de centralidades e as redes de transporte coletivo. Nesse sentido, é importante notar o papel desempenhado pelo fenômeno de aglomeração, entendido como função inversa da impedância entre os agentes econômicos, ou, de forma direta, como função da acessibilidade.

Acessibilidade e economias de aglomeração

O conceito de acessibilidade tem sido discutido e utilizado por diversas disciplinas e tem tido um importante papel para o estudo dos transportes e do desenvolvimento urbano e regional (Páez, Scott e Morency, 2012) e na definição de políticas públicas (Geurs e Van Wee, 2004GEURS, K.; VAN WEE, B. (2004). Accessibility evaluation of land-use and transport strategies: review and research directions. Journal of Transport Geography, v. 12, n. 2, pp. 127-140. DOI: 10.1016/j.jtrangeo.2003.10.005. Acesso em: 11 ago 2021.
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). Entretanto, mesmo sendo um campo bastante consolidado na literatura, é importante notar que a conceituação do termo, bem como a formulação de diversas métricas e instrumentos têm sido fruto de constantes debates. No plano conceitual, diversas definições do termo merecem destaque. Hansen (1959HANSEN, W. (1959). How accessibility shapes land use. Journal of the American Institute of Planners, v. 25, n. 2, pp. 73-76. DOI: 10.1080/01944365908978307. Acesso em: 11 ago 2021.
https://doi.org/10.1080/0194436590897830...
, p. 73) define acessibilidade como o “potencial de oportunidades de interação”. Interpretações posteriores incorporaram, também, elementos associados à escolha dos indivíduos (e.g. Burns, 1979BURNS, L. (1979). Transportation: temporal and spatial components of accessibility. Washington DC, Lexington Books.) e o uso do solo, atribuindo uma dimensão espacial relevante ao conceito (e.g. Dalvi e Martin, 1976DALVI, M.; MARTIN, K. (1976). The measurement of accessibility: some preliminary results. Transportation, v. 5, pp. 17-42. DOI: 10.1007/BF00165245. Acesso em: 11 ago 2021.
https://doi.org/10.1007/BF00165245...
; Ben-Akiva e Lerman, 1979BEN-AKIVA, M.; LERMAN, S. (1979). "Disaggregate travel and mobility-choice models and measures of accessibility". In: HENSHER, D.; STOPHER, P. (orgs.). Behavioural travel modelling. Londres, Routledge.; Geurs e Van Wee, 2004GEURS, K.; VAN WEE, B. (2004). Accessibility evaluation of land-use and transport strategies: review and research directions. Journal of Transport Geography, v. 12, n. 2, pp. 127-140. DOI: 10.1016/j.jtrangeo.2003.10.005. Acesso em: 11 ago 2021.
https://doi.org/10.1016/j.jtrangeo.2003....
; Páez, Scott e Morency, 2012).

Na tentativa de conferir maior rigidez conceitual ao termo, Geurs e Van Wee (2004)GEURS, K.; VAN WEE, B. (2004). Accessibility evaluation of land-use and transport strategies: review and research directions. Journal of Transport Geography, v. 12, n. 2, pp. 127-140. DOI: 10.1016/j.jtrangeo.2003.10.005. Acesso em: 11 ago 2021.
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identificam quatro componentes essenciais para a construção de métricas de acessibilidade. O primeiro componente, relacionado aos sistemas de transporte, diz respeito à facilidade para o deslocamento entre uma origem e um destino através de um modo específico de transporte. O segundo componente, temporal, está relacionado à disponibilidade de atividades em diferentes momentos do dia ou às restrições temporais dos usuários. O terceiro componente, individual, representa as necessidades, capacidades e oportunidades de diferentes indivíduos, relacionando a acessibilidade às características sociodemográficas, físicas ou às condições econômicas de diferentes pessoas (ou grupos sociais). Por fim, o componente do uso do solo identifica a quantidade, qualidade e distribuição espacial de oportunidades em cada destino.

Páez, Scott e Morency (2012) chamam atenção, por sua vez, para a diferença entre duas formas de implementação de medidas de acessibilidade, divididas em duas categorias: as normativas e as positivas. De um lado, implementações normativas buscam identificar níveis aceitáveis de acessibilidade, estabelecendo limites máximos ou desejáveis de deslocamento para alcançar determinadas atividades de interesse. Por outro lado, as implementações positivas buscam identificar como as pessoas, de fato, deslocam-se, ou seja, estão relacionadas ao padrão concreto de viagens, que pode ou não respeitar os limites normativos estabelecidos por gestores ou pesquisadores.

Uma última distinção importante para o quadro conceitual apresentado diz respeito à forma como o componente do uso do solo (a distribuição de atividades) é tratado nos estudos de acessibilidade. A maioria dos estudos sobre acessibilidade trata a distribuição de atividades como um elemento dado, ou seja, assumem uma postura positiva em relação a esse componente. São poucas as exceções na literatura sobre acessibilidade que tratam da distribuição de atividades a partir de uma postura normativa, ou seja, qual deveria ser a distribuição desejada ou aceitável de atividades no espaço (ibid.). Isso, entretanto, não significa dizer que a acessibilidade não seja fator relevante para a localização de atividades no espaço, apenas que essa discussão tem sido feita por outros autores e em outras literaturas, em especial, os estudos microeconômicos e de localização-alocação (no campo da pesquisa operacional).

Esse cenário revela uma importante lacuna: ainda que a literatura de transportes e do planejamento urbano reconheça o papel dos ganhos de acessibilidade produzidos por sistemas de transporte na produção de economias de aglomeração e na localização de agentes econômicos (Corrêa, 1989CORRÊA, R. (1989). O espaço urbano. São Paulo, Ática.; Villaça, 1998VILLAÇA, F. (1998). Espaço intra-urbano no Brasil. São Paulo, Studio Nobel/Fapesp/Lincoln Institute of Land Policy.; Santos, 1978SANTOS, M. (1978). Por uma geografia nova. São Paulo, EdUSP.; Kasraian et al., 2016KASRAIAN, D.; MAAT, K.; STEAD, D.; VAN WEE, B. (2016). Long-term impacts of transport infrastructure networks on land-use change: an international review of empirical studies. Transport Reviews, v. 36, n. 6, pp. 772-792. DOI: 10.1080/01441647.2016.1168887. Acesso em: 11 ago 2021.
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; Credit, 2019CREDIT, K. (2019). Accessibility and agglomeration: a theoretical framework for understanding the connection between transportation modes, agglomeration benefits, and types of businesses. Geography Compass, v. 13, n. 4. DOI: 10.1111/gec3.12425. Acesso em: 11 ago 2021.
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), poucos têm sido os trabalhos que discutem como devem ser planejadas as redes de transporte para que a distribuição de atividades no espaço seja mais equilibrada. No mesmo sentido, embora diversos estudos investiguem o impacto da distribuição de atividades e do uso do solo sobre as redes de transporte, a investigação no sentido contrário – do impacto das redes de transporte sobre o uso do solo – tem sido muito mais limitada (Kasraian et al., 2016KASRAIAN, D.; MAAT, K.; STEAD, D.; VAN WEE, B. (2016). Long-term impacts of transport infrastructure networks on land-use change: an international review of empirical studies. Transport Reviews, v. 36, n. 6, pp. 772-792. DOI: 10.1080/01441647.2016.1168887. Acesso em: 11 ago 2021.
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). É fundamental, portanto, reconhecer as interações entre os ganhos de acessibilidade e as economias de aglomeração, campos de estudo que têm caminhado de forma separada (Credit, 2019CREDIT, K. (2019). Accessibility and agglomeration: a theoretical framework for understanding the connection between transportation modes, agglomeration benefits, and types of businesses. Geography Compass, v. 13, n. 4. DOI: 10.1111/gec3.12425. Acesso em: 11 ago 2021.
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).

Credit (2019)CREDIT, K. (2019). Accessibility and agglomeration: a theoretical framework for understanding the connection between transportation modes, agglomeration benefits, and types of businesses. Geography Compass, v. 13, n. 4. DOI: 10.1111/gec3.12425. Acesso em: 11 ago 2021.
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argumenta que os benefícios econômicos produzidos por ganhos de acessibilidade são, na realidade, consequências das economias de aglomeração produzidas pelas redes de transporte, uma vez que o ganho de acessibilidade tem o mesmo efeito que a aproximação de agentes econômicos. Essa aproximação, por sua vez, produz ganhos de produtividade e eficiência, em especial para setores da economia sensíveis aos efeitos de transbordamento, como as atividades do setor terciário. De forma análoga, é possível argumentar que os efeitos de aglomeração também se manifestam na proximidade entre consumidores e vendedores (entre demanda e oferta), uma vez que a proximidade do mercado consumidor é, sabidamente, um fator decisivo na localização de agentes econômicos. Os efeitos de aglomeração, de igual forma, se fazem presentes na relação entre atividades produtivas e a localização da mão de obra (Corrêa, 1989CORRÊA, R. (1989). O espaço urbano. São Paulo, Ática.).

Nesse sentido, é importante observar que diferentes modos de transporte produzem benefícios (ou prejuízos) de diferentes intensidades para diferentes atividades econômicas (Corrêa, 1989CORRÊA, R. (1989). O espaço urbano. São Paulo, Ática.; Orrico, 2005ORRICO, R. (2005). "Transporte e desenvolvimento: uma reflexão sobre a pavimentação da BR-163". In: TORRES, M. (org.). Amazônia revelada: os descaminhos ao longo da BR-163. Brasília, CNPq.; Lé Nechet et al., 2012; Credit, 2019CREDIT, K. (2019). Accessibility and agglomeration: a theoretical framework for understanding the connection between transportation modes, agglomeration benefits, and types of businesses. Geography Compass, v. 13, n. 4. DOI: 10.1111/gec3.12425. Acesso em: 11 ago 2021.
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). Por exemplo, a implantação de uma via expressa produz efeitos de barreira urbana que podem atrapalhar o desenvolvimento de atividades comerciais ou de serviços, mas são atrativas para atividades industriais que buscam reduzir o custo do escoamento de sua produção. Cabe notar, entretanto, que os ganhos de acessibilidade produzidos pelas redes de transporte são apenas potenciais e podem ou não se realizar em função de condições específicas do local, da qualidade dos projetos de infraestruturas e das características das atividades econômicas afetadas (Credit, 2019CREDIT, K. (2019). Accessibility and agglomeration: a theoretical framework for understanding the connection between transportation modes, agglomeration benefits, and types of businesses. Geography Compass, v. 13, n. 4. DOI: 10.1111/gec3.12425. Acesso em: 11 ago 2021.
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).

Merece especial atenção o fenômeno de causação circular gerado pelos ganhos de acessibilidade. À medida em que se tornam mais acessíveis, algumas regiões passam a concentrar atividades econômicas e se tornam foco de deslocamentos, o que, por sua vez, produz a demanda pela implantação de novas infraestruturas que produzem novos ganhos de acessibilidade. Esse paradigma, que tem sido predominante entre planejadores de transportes (Brown e Thompson, 2012BROWN, J; THOMPSON, G. (2012). Should transit serve the CBD or a diverse array of destinations? a case study comparison of two transit systems. Journal of Public Transportation, v. 15, n. 1, pp. 1-18. DOI: 10.5038/2375-0901.15.1.1. Acesso em: 11 ago 2021.
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; Brezzi e Veneri, 2015BREZZI, M.; VENERI, P. (2015). Assessing Polycentric Urban Systems in the OECD: country, regional and metropolitan perspectives. European Planning Studies, v. 23, n. 6, pp. 1128-1145. DOI: 10.1080/09654313.2014.905005. Acesso em: 11 ago 2021.
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), reforça, não só um padrão de deslocamento pendular, mas também a centralização das atividades econômicas. De forma complementar, áreas que perdem importância têm a demanda por viagens reduzidas, o que leva a redução de oferta e, por consequência, a uma nova perda de importância. O resultado é que os ganhos de velocidade ou a possibilidade de alcançar atividades cada vez mais distantes não têm se convertido, efetivamente, em ganhos de acessibilidade, uma vez que o número de atividades alcançadas tem permanecido estável ao longo do tempo (Banister, 2011BANISTER, D. (2011). The trilogy of distance, speed and time. Journal of Transport Geography, v. 19, pp. 950-959. DOI: 10.1016/j.jtrangeo.2010.12.004. Acesso em: 11 ago 2021.
https://doi.org/10.1016/j.jtrangeo.2010....
). A Figura 1 sintetiza, conceitualmente, a dinâmica descrita.

Figura 1
– Dinâmica de causação circular dos ganhos (e perdas) de acessibilidade

Não se trata, evidentemente, de propor que as atividades devam ser distribuídas uniformemente no espaço. Isto é impraticável e, em muitos casos, indesejável, uma vez que produz deseconomias em função da desagregação. Trata-se, sim, de discutir qual o nível de centralização adequado ou tolerável e como as redes de transporte podem auxiliar o processo de descentralização de atividades – ampliando a acessibilidade das parcelas socialmente vulneráveis, por exemplo – não por viabilizar deslocamentos mais extensos ou mais rápidos, mas, em outra perspectiva, por incentivar a localização diversificada de agentes econômicos no espaço urbano.

Desse modo, destacamos a necessidade de explorar a acessibilidade não só do ponto de vista dos indivíduos, mas também da perspectiva da escolha de localização dos agentes econômicos. Em outras palavras, a acessibilidade pode ser vista por um lado como a facilidade com a qual pessoas alcançam atividades espacialmente distribuídas e, por outro, como a facilidade com a qual atividades espacialmente distribuídas são acessadas pelas pessoas. Embora tal diferenciação, à primeira vista, não transpareça a elevada significância que tem, ressaltamos sua importância.

Um mesmo projeto pode, por exemplo, produzir ganhos de acessibilidade para quem mora em uma zona (e.g. ao facilitar o acesso ao centro) e, ao mesmo tempo, produzir impactos nulos ou negativos para as atividades econômicas dessa mesma zona, seja porque não amplia sua área de captação (e.g. o mercado consumidor acessível à determinada atividade econômica) seja porque as características do projeto produzem externalidades e efeitos de barreira urbana. A consequência é que, embora no curto prazo tais projetos produzam ganhos de acessibilidade para a população naquela zona, no longo prazo podem reforçar padrões de deslocamento e centralização que cristalizam ou intensificam a distribuição desigual de atividades no espaço.

Em que pese os inegáveis efeitos positivos resultantes de uma ligação isolada do tipo radial, projetos com essas características não podem ser, a priori, caracterizados como descentralizadores. Ainda que, quando avaliado de forma isolada, os ganhos de acessibilidade nas regiões periféricas sejam significativos, a reprodução dessa lógica de planejamento, ao longo do tempo, pode reforçar a dinâmica de centralização: ao repetir o processo, ligando regiões mais periféricas ainda ao mesmo centro, os ganhos marginais de acessibilidade para a região central se acumulam e superam os ganhos isolados de qualquer das regiões periféricas. A Figura 2 ilustra, conceitualmente, em uma sequência de etapas, esse processo.

Figura 2
– Reprodução do processo de centralização a partir de uma concepção de rede de transportes radiocêntrica

As etapas da Figura 2 são: a) Quadro de referência (tempo 0): o centro principal é a região de maior acessibilidade; b) Ampliação da rede (tempo 1): avaliada isoladamente, a ampliação radial produz ganhos de acessibilidade maiores para áreas não centrais; c) Nova ampliação da rede (tempo 2): a lógica é repetida, no entanto, a soma dos ganhos marginais de acessibilidade no centro se equipara ao ganho das áreas não centrais; d) Nova ampliação da rede (tempo 3): a continuação da lógica faz com que a soma dos ganhos marginais de acessibilidade no centro principal superem os ganhos das áreas não centrais.

De modo análogo, entende-se que projetos ou alterações, na rede de transporte, que não produzam ganhos globais de acessibilidade (e.g. não resultem, no curto prazo, em maior cobertura ou menor tempo de viagem), podem ter efeitos positivos para o desenvolvimento urbano por intermédio de ganhos locais de acessibilidade (e.g. ampliação das áreas de captação e aumento do fluxo de pessoas em centralidades alternativas). Tais hipóteses estão, conceitualmente, representadas na Figura 3. A incorporação da dimensão do uso do solo, no planejamento das redes de transporte é, indubitavelmente, peça-chave para o planejamento territorial descentralizado.

Figura 3
– Processo de descentralização a partir do desenho das redes de transporte

As etapas da Figura 3 são: a) Quadro de referência (tempo 0): o centro principal é a região de maior acessibilidade; b) Ampliação da rede (tempo 1): avaliada isoladamente, a ampliação transversal da rede produz ganhos de acessibilidade pequenos; c) Nova ampliação da rede (tempo 2): a lógica é repetida, efeitos cumulativos começam a se manifestar e novos destinos são incentivados; d) Nova ampliação da rede (tempo 3): a continuação da lógica permite o surgimento de novas centralidades, produzindo uma distribuição mais justa de atividades no espaço urbano.

As estratégias de planejamento dos transportes

Tradicionalmente, as estratégias de planejamento das redes de transportes seguem métodos que podem ser agrupados como intuitivos ou analíticos (Orrico, 2013ORRICO, R. (2013). "Redes de Transporte Público Coletivo Urbano: um roteiro metodológico para sua concepção". In: Projeto de Pesquisa MCT/CNPq n. 18/2009. Rio de Janeiro.). Orrico (ibid.), aponta que os métodos intuitivos estão frequentemente associados à lógica do desenho da rede viária, buscando construir as redes de transporte a partir da vida prática ou a partir de inferências lógicas resultantes do desenho urbano. Por sua vez, os métodos analíticos resultam de abordagens que priorizam o uso de funções matemáticas no desenho das redes, em geral, buscando otimizar parâmetros operacionais como tempo ou custo da viagem, frequência dos serviços ou restrições operacionais.

Ambos os grupos de métodos, contudo, são extremamente fundados nas dinâmicas da cidade existente: seja pela análise dos trajetos práticos ou do tecido urbano, seja pelo uso de fontes de dados primárias baseadas no comportamento de deslocamentos existentes, como matrizes origem-destino. Os avanços na disponibilidade de dados, por sua vez, aprofundaram esse problema. As principais fontes de dados para a construção de matrizes origem-destino têm sido os próprios sistemas de transporte. E mesmo o uso de fontes mais diversas, como dados de telefonia móvel, acabam por esbarrar na mesma limitação: como medir o potencial de trajetos que hoje não são viáveis ou possíveis dada a configuração da rede existente.

Embora o planejamento das redes de transporte continue, em grande medida, orientado para o atendimento da demanda do centro principal, nas últimas décadas, outras estratégias vêm ganhando força. Nesse contexto, a interação entre transportes e uso do solo tem sido objeto de intensa discussão a partir de diferentes abordagens. Em especial, destacamos os modelos de Interação entre Transportes e Uso do Solo ou Land-Use Transport Interaction (Luti) e as estratégias de Desenvolvimento Orientado aos Transportes ou Transit Oriented Development (TOD). Esta última, sem dúvidas, a mais bem-sucedida em projetos reais. Embora tratem, fundamentalmente, do mesmo problema, são abordagens bastante diferentes e que merecem uma avaliação mais aprofundada.

Introduzido na literatura por Calthorpe (1993)CALTHORPE, P. (1993). The next american metropolis: ecology, community, and the american dream. Nova York, Princeton Architectural Press., o TOD pode ser compreendido como uma estratégia de planejamento de transportes e uso do solo que faz com que modos de transporte sustentáveis se tornem mais convenientes e desejados, maximizando a eficiência desses sistemas ao concentrar o desenvolvimento urbano no entorno de estações de transporte coletivo (Ibraeva et al., 2020IBRAEVA, A.; CORREIA, G.; SILVA, C.; ANTUNES, A. (2020). Transit-oriented development: a review of research achievements and challenges. Transportation Research Part A: Policy and Practice, v. 132, pp. 110-130. DOI: 10.1016/j.tra.2019.10.018. Acesso em: 11 ago 2021.
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). Cabe notar, contudo, que o mero adensamento de corredores de transporte não configura, em si, uma estratégia de TOD, uma vez que não necessariamente esse adensamento se converterá em um padrão de deslocamento mais sustentável. Há, portanto, uma diferenciação entre TOD e o que diversos autores chamam de Desenvolvimento Próximo aos Transportes Coletivos ou Transit Adjacent Development (TAD).

Com efeito, é importante notar que o foco do TOD reside no adensamento e desenvolvimento de regiões próximas a estações de transporte coletivo (Calthorpe, 1993CALTHORPE, P. (1993). The next american metropolis: ecology, community, and the american dream. Nova York, Princeton Architectural Press.; Hickman e Hall, 2008HICKMAN, R.; HALL, P. (2008). Moving the City East: explorations into contextual public transport-oriented development. Planning, Practice & Research, v. 23, n. 3, pp. 323-339. DOI: 10.1080/02697450802423583. Acesso em: 11 ago 2021.; Bertolini, Curtis e Renne, 2012; Thomas e Bertolini, 2017THOMAS, R.; BERTOLINI, L. (2017). Defining critical success factors in TOD implementation using rough set analysis. Journal of Transport and Land Use, v. 10, n. 1, pp. 139-154. DOI: 10.5198/jtlu.2015.513. Acesso em: 11 ago 2021.
https://doi.org/10.5198/jtlu.2015.513...
). Desse modo, as estratégias de TOD são compostas, essencialmente, de projetos localizados, o que resulta em uma escala restrita de atuação. Chama a atenção ainda, o fato de que a maioria dos trabalhos sobre TOD estão focados no estudo dos padrões de viagem. Dado que um de seus principais objetivos ao qual está relacionado é a mudança na divisão modal, o desenvolvimento no entorno de estações é visto como um meio para alcançá-la. Por consequência, são poucos os estudos a respeito dos impactos de projetos de TOD na forma urbana (Ibraeva et al., 2020IBRAEVA, A.; CORREIA, G.; SILVA, C.; ANTUNES, A. (2020). Transit-oriented development: a review of research achievements and challenges. Transportation Research Part A: Policy and Practice, v. 132, pp. 110-130. DOI: 10.1016/j.tra.2019.10.018. Acesso em: 11 ago 2021.
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).

Ademais, os projetos de TOD adotam uma abordagem centralizada, direcionando esforços de ocupação na região de intervenção a partir da coordenação de diferentes agentes econômicos. Essa abordagem pode não obter sucesso, em especial quando não há convergência de interesses entre os agentes econômicos e os objetivos do projeto. Adicionalmente, o TOD pode encontrar dificuldades adicionais para promover mudanças no padrão de deslocamento, seja por resistências pessoais, seja porque os destinos desejados continuam sendo inacessíveis pela rede de transporte coletivo, o que, frequentemente, não é avaliado nos estudos sobre o tema (ibid.). A despeito dos desafios apontados, os estudos sobre TOD têm produzido importantes avanços na compreensão sobre a interação entre os sistemas de transporte e o uso do solo, e os benefícios superam, consideravelmente, as limitações dos projetos.

Os modelos Luti, por sua vez, tratam da interação entre uso do solo e transportes na escala urbana (da unidade urbana funcional). Entendem, de forma geral, o desenvolvimento das cidades como um processo resultante da interferência de múltiplos agentes, cujas ações descoordenadas influenciam diversos subsistemas e cada um desses subsistemas, por sua vez, influencia o outro, produzindo alterações nas relações de equilíbrio entre oferta e demanda ao longo do tempo (Stead, Williams e Titheridge, 2000). Esses modelos, geralmente, incorporam três subsistemas: o subsistema dos transportes, que pode ser definido como o conjunto de elementos e interações que produzem tanto a demanda quanto a oferta de transportes (Cascetta, 2009CASCETTA, E. (2009). Transportation systems analysis: models and applications. Springer optimization and its applications. Nova York, Springer. DOI: 10.1007-978-0-387-75857-2. Acesso em: 11 ago 2021.
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); o subsistema do uso do solo, que pode ser visto como resultado do ambiente construído (Handy, Cao e Mokhtarian, 2005) ou da forma urbana (Rodrigue, Comtois e Slack, 2013) e o subsistema das atividades, que está relacionado à participação em atividades, entendida como a principal motivadora de algumas decisões, como os deslocamentos e as escolhas locacionais (Meurs e Van Wee, 2003MEURS, H.; VAN WEE, B. (2003). Land use and mobility; a synthesis of findings and policy implications. European Journal of Transport and Infrastructure Research, v. 3, n. 2, pp. 219-233.). Entretanto, são diversas as abordagens a respeito da interação entre os diferentes subsistemas para os diferentes modelos e muitos falham em incorporar interações entre o subsistema de atividades e os demais (Lopes, Loureiro e Van Wee, 2018). Outro aspecto dos modelos Luti que merece destaque e resulta, diretamente, da incorporação de relações dinâmicas entre os subsistemas diz respeito à dimensão temporal. Diferentemente de modelos de planejamento de transportes que assumem condições estáticas ao longo do tempo, ou variações lineares, os modelos Luti incorporam as incertezas resultantes dessas interações complexas.

É possível agrupar os modelos Luti em três categorias: modelos de interação espacial, que resultam, em geral, de adaptações do modelo gravitacional; modelos econométricos, que incorporam tanto modelos comportamentais quanto métodos econométricos e modelos de microssimulação, que buscam simular o comportamento de diversos agentes em pequena escala (ibid.). Embora os modelos Luti representem um importante avanço na tentativa de modelar interações complexas, é importante notar que, também, trazem consigo um conjunto de desafios. Os modelos costumam ser complexos e de difícil comunicação, o que dificulta sua adoção por gestores públicos, planejadores ou mesmo a aceitação pela sociedade. Além disso, tendem a ser aplicações que demandam muito maior volume e disponibilidade de dados (em comparação com métodos tradicionais) que nem sempre estão disponíveis, em especial no contexto de países em desenvolvimento.

Nota-se, no geral, um tradeoff entre uma abordagem mais prática, porém limitada do ponto de vista espacial e temporal (TOD) e uma abordagem mais teórica (Luti), mas que incorpora tanto dimensões espaciais maiores (a escala de unidades urbanas funcionais) quanto a própria dimensão temporal e as inter-relações entre os sistemas. Contudo, a crescente interação metodológica entre sistemas de transportes e uso do solo não tem se traduzido em aplicações práticas no desenho das redes. Na maioria dos casos, a concepção das redes de transporte coletivo continua sendo motivada por aspectos relacionados ao nível de serviço e ao equilíbrio econômico-financeiro dos sistemas. Há, portanto, um importante espaço a ser preenchido por instrumentos que sejam capazes de incorporar as questões relacionadas à interação entre transportes e uso do solo no desenho das redes de transporte coletivo.

O transporte orientado ao desenvolvimento urbano

Diante do quadro conceitual apresentado, propõe-se a importância de aprofundar os estudos em torno de uma abordagem para o desenho de redes de transporte que subverta o paradigma vigente. Ao invés de seguir as tendências atuais do desenvolvimento urbano, reproduzindo um padrão de acumulação nos centros principais, o desenho das redes de transporte passaria a atuar como promotor de um planejamento territorial descentralizado, incentivando o desenvolvimento de subcentros em regiões menos desenvolvidas.

Propõe-se – a partir da síntese das discussões preexistentes – uma abordagem de Transporte Orientado ao Desenvolvimento Urbano como um paradigma complementar ao Desenvolvimento Orientado aos Transportes (DOT). Ao passo que o DOT se foca em promover iniciativas de desenvolvimento urbano focalizadas, ao redor da infraestrutura existente, o paradigma de Transporte Orientado ao Desenvolvimento teria, como objetivo prioritário, o planejamento de redes de transporte – em especial coletivo – capazes de influenciar o desenvolvimento de cidades mais justas e sustentáveis.

Para isso, é importante reconhecer que as condições de deslocamento são decisivas na construção do espaço urbano (Villaça, 1998VILLAÇA, F. (1998). Espaço intra-urbano no Brasil. São Paulo, Studio Nobel/Fapesp/Lincoln Institute of Land Policy.) e que as redes de transporte desempenham papel fundamental no desenvolvimento das cidades, em especial, no processo de centralização das atividades (Corrêa, 1989CORRÊA, R. (1989). O espaço urbano. São Paulo, Ática.; Villaça, 1998VILLAÇA, F. (1998). Espaço intra-urbano no Brasil. São Paulo, Studio Nobel/Fapesp/Lincoln Institute of Land Policy.; Santos, 1978SANTOS, M. (1978). Por uma geografia nova. São Paulo, EdUSP.). Esse processo, por sua vez, é motivado pelas economias de aglomeração produzidas pelos ganhos de acessibilidade e sua natureza é dialética: ao mesmo tempo em que produz o centro, produz também o não-centro. Ao passo que aproxima, afasta. Ao centralizar excessivamente, produz as deseconomias que levam à descentralização (Fernandez-Maldonado et al., 2014FERNANDEZ-MALDONADO, A.; ROMEIN, A.; VERKOREN, O.; PESSOA, R. (2014). Polycentric structures in latin american metropolitan areas: identifying employment sub-centres. Regional Studies, v. 48, n. 12, pp. 1954-1971. DOI: 10.1080/00343404.2013.786827. Acesso em: 11 ago 2021.
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).

A abordagem apresentada, propõe que o planejamento das redes de transporte deve levar em consideração não apenas a demanda existente, mas o desenvolvimento urbano futuro (Orrico, 2013ORRICO, R. (2013). "Redes de Transporte Público Coletivo Urbano: um roteiro metodológico para sua concepção". In: Projeto de Pesquisa MCT/CNPq n. 18/2009. Rio de Janeiro.). Deve ser instrumento de construção da cidade desejada. Isto é fundamental para alcançar, no longo prazo, uma distribuição de atividades mais justa e ganhos reais de acessibilidade. A consequência direta desse raciocínio é que, eventualmente, os projetos mais importantes para reduzir, no longo prazo, a centralização excessiva seriam justamente os projetos que produzem ligações transversais na rede, especialmente entre e aos subcentros periféricos, atendendo a uma demanda que hoje é considerada subsidiária da demanda principal. Essa constatação, contudo, não é intuitiva, uma vez que implica em reconhecer que, para produzir ganhos ótimos de acessibilidade no longo prazo, é preciso investir em projetos que, por definição, não produzem ganhos ótimos de acessibilidade no curto prazo. Ou seja, há uma contradição entre objetivos de curto e longo prazos.

Reconhecer a importância dessas ligações transversais não é, contudo, suficiente. No mesmo sentido, é importante notar que os ganhos de acessibilidade produzidos no curto prazo podem ser anulados ou revertidos no longo prazo, se o desenho das redes reforçar os padrões existentes de deslocamento e, por consequência, de centralização. Mesmo estratégias orientadas para a ampliação do acesso a oportunidades podem resultar em um desenho de rede concentrador, em especial se a avaliação dos projetos estiver focada apenas nos ganhos brutos de acessibilidade para as populações da zona de origem. Esse paradigma tende a privilegiar a ligação de áreas com poucas oportunidades (em geral periferias) a área com o maior número de oportunidades (em geral o centro principal), reproduzindo um desenho radiocêntrico das redes de transporte.

Esse conjunto implica em uma mudança de paradigma: a demanda de transportes, frequentemente vista como derivada de outras atividades, passaria a ter um componente endógeno. Ao criar economias de aglomeração e as condições para a centralização, as infraestruturas de transporte se tornam, em alguma medida, causadoras de sua própria demanda. Isso não significa dizer que o transporte é o único elemento nessa equação, mas que tem, sem dúvidas, importância significativa e que deve ser melhor investigada. Nesse sentido, há um importante componente temporal que vem sendo ignorado no planejamento das redes. Ao invés do foco excessivo em projeções de demanda de longo prazo – que são, em geral, pouco confiáveis, especialmente no contexto de países em desenvolvimento (Vasconcellos, 2015VASCONCELLOS, E. (2015). Transporte urbano y movilidad: reflexiones y propuestas para países en desarrollo. San Martín, Unsam Edita.) –, deveria haver um foco maior na projeção dos impactos futuros dos projetos para a forma urbana e a distribuição espacial das atividades. Do contrário, existe a possibilidade de seguirmos projetando infraestruturas cada vez maiores para tentar responder a demandas por deslocamentos cada vez mais longínquos em configurações urbanas cada vez mais desiguais.

A estrutura profundamente desigual da sociedade brasileira (e de outras sociedades no mundo, principalmente no sul global) impõe desafios de curto prazo. Nesse sentido, as preocupações com o aumento dos níveis de acessibilidade para as populações mais pobres não devem (e não podem) deixar de permear o planejamento das redes. Da mesma forma, as preocupações com a sustentabilidade econômico-financeira dos sistemas não são injustificadas e devem ser resolvidas a partir de uma adequada política de financiamento da mobilidade. O que se propõe é que mais um elemento de preocupação seja adicionado a esse complexo e delicado processo de planejamento. Embora a lógica proposta possa resultar em ligações que, no curto prazo, não atinjam critérios de otimalidade econômico-financeira, no longo prazo podem ser peça-chave na construção de um padrão de deslocamentos mais sustentável e de um sistema mais eficiente.

Para isso, é fundamental, ainda, que o desenho e o planejamento das redes de transporte estejam intimamente associados ao processo de planejamento urbano. Da mesma forma, dentro desse paradigma proposto, o planejamento deve ser feito a partir de unidades urbanas funcionais (regiões metropolitanas ou conurbações), o que resultaria em um desafio para uma eventual implementação dessas estratégias, o de construção das estruturas de governança metropolitana que tornarão possível essa prática.

De todo modo, entendemos que o paradigma apresentado representa um importante passo em direção à investigação e à construção de uma estratégia de planejamento dos transportes integrada ao desenvolvimento urbano e à dinâmica de uso do solo. A construção de um paradigma de mobilidade sustentável, nas cidades brasileiras, é um desafio multidimensional e a interação entre os sistemas de transporte e o uso do solo é, sem dúvida, peça-chave nessa equação.

Considerações finais

Os sistemas de transporte desempenharam – e continuarão desempenhando – papel fundamental na conformação dos centros urbanos, contudo, também têm feito parte de uma dinâmica de causação circular, que reforça os padrões de deslocamento e, em última instância, o próprio processo de centralização. Ou seja, a perspectiva de manutenção de uma lógica de planejamento de redes baseada em ligações radiais pode acabar neutralizando ganhos de acessibilidade produzidos no curto prazo.

Em contraposição, alterações parciais na rede, que produzam ligações transversais e diametrais e que tratem os subcentros como pontos também focais – ainda que não vislumbrem grandes ganhos de acessibilidade no curto prazo –, podem resultar em importante incentivo para o desenvolvimento dessas regiões, promovendo uma distribuição mais justa das oportunidades no espaço.

O planejamento das redes de transportes, no entanto, não tem reconhecido seu papel na produção e reprodução das desigualdades urbanas. Diante disso, ressaltamos a importância de aprofundar a investigação a respeito dos componentes formadores da demanda por transporte. Uma vez que a própria provisão de transportes interfere nas atividades e dinâmicas de uso do solo, tal demanda não deveria ser interpretada como exclusivamente derivada de outras atividades. Isso implica em reconhecer o planejamento de transportes como um instrumento importante da política de desenvolvimento urbano e econômico.

Não só precisamos aproveitar melhor a infraestrutura já construída – como propõem as abordagens de desenvolvimento orientado aos transportes – mas, também, investigar em que medida planejar de forma mais eficiente a infraestrutura a ser construída pode afetar as dinâmicas urbanas e de mobilidade. O investimento em transportes, principalmente o coletivo, geralmente decorre do esforço coletivo da sociedade através do Estado, podendo ser coordenado e planejado. Em contraposição, os investimentos imobiliários e a alocação de atividades no espaço urbano são movimentos particulares, de agentes difusos, movidos por interesses diversos. Ainda que compartilhem de demandas similares – o que permite que seja possível estudar e analisar a escolha de locação dos agentes econômicos no espaço urbano –, a coordenação desses agentes é significativamente mais complexa do que o direcionamento de investimentos estatais.

Em síntese, o que propomos é que a literatura aprofunde caminhos de investigação que avaliem a hipótese de que os sistemas de transporte não são apenas instrumentos para atender à demanda existente por deslocamentos, mas também ferramentas de projeto da cidade do futuro, capazes de incentivar (ou dificultar, quando mal utilizadas) o desenvolvimento de centralidades alternativas ao centro principal, produzindo uma distribuição espacial mais justa das atividades e, assim, reduzindo a demanda por deslocamentos. Em nossa compreensão, o planejamento das redes de transporte não só não pode reproduzir os erros do passado (reforçando dinâmicas produtoras de desigualdade), como deve fazer tudo o que estiver a seu alcance para a produção de cidades mais justas. Para isso, há indícios de que atender a demanda não basta.

É importante notar que uma barreira considerável à incorporação de abordagens mais complexas no planejamento das redes de transporte está na indisponibilidade de dados e ferramentas. Ainda há um enorme campo a ser explorado sobre as relações entre as infraestruturas de transporte, economias de aglomeração e a escolha locacional de agentes econômicos, tanto em estudos empíricos que busquem mensurar esses impactos, quanto no desenvolvimento de métricas de acessibilidade sob a perspectiva dos diversos agentes econômicos.

Evidentemente, as novas dinâmicas produtivas introduzidas por avanços tecnológicos incrementais ou disruptivos – como alterações na cadeia logística de comércio e suprimentos a partir do crescimento exponencial das atividades de e-commerce –, bem como modificações nas dinâmicas de trabalho aceleradas e aprofundadas pela pandemia de covid-19 – como a adoção massiva de trabalho híbrido e/ou remoto no setor de serviços – influenciam enormemente esta discussão. Ainda que não tenham sido abordados por esta contribuição, são temas, sem dúvida, centrais para a formulação de qualquer estratégia contemporânea de planejamento de transportes.

Estudos que investiguem o comportamento de diferentes estratégias de planejamento das redes de transporte, aplicadas ao tempo de forma iterativa, bem como o papel dos diferentes agentes econômicos e sociais que influenciam o processo de alocação espacial nas cidades – como o mercado imobiliário – também formatam importantes campos de pesquisa. Vislumbra-se compreender como diferentes algoritmos de escolha por projetos de transporte se comportam no longo prazo e se reproduziriam, ou não, desenhos de redes centralizadoras. São desafios que podem resultar em importantes saltos de qualidade no planejamento da mobilidade, acelerando o desenvolvimento e a redução de desigualdades estruturais, em direção à construção de cidades mais sustentáveis e mais justas no médio e no longo prazo, para seus habitantes e visitantes.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2024

Histórico

  • Recebido
    14 Ago 2023
  • Aceito
    20 Set 2023
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