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Mapas, pontos de vista, perspectivas* * Tradução de Anna Maria Lorenzoni.

Maps, points of view, perspectives

Resumo:

este ensaio revisa a gênese da perspectiva nas práticas e teorias artísticas e considera seus desenvolvimentos na filosofia. O perspectivismo de Nietzsche se encaixa nessa trajetória. O termo “perspectivismo” designa, em Nietzsche, o mapeamento dos modos de interação e correlação entre formas de vida. Na antropologia contemporânea de Viveiros de Castro, o perspectivismo é a filosofia elaborada pelos povos amazônicos, para quem o mundo é habitado por diferentes tipos de sujeitos ou pessoas, humanos e não-humanos, que apreendem as realidades a partir de diferentes pontos de vista. O trabalho sobre a multiplicidade de sujeitos (ou pessoas) não-humanos incita à reflexão sobre os déficits cognitivos da espécie humana, incapaz de perceber pontos de vista, linguagens e mapeamentos da realidade próprios de outras espécies.

Palavras-chave:
mapa; ponto de vista; perspectiva; perspectivismo

Abstract:

This essay reviews the genesis of perspective within artistic practices and theories, and considers its developments in philosophy. Nietzsche's perspectivism fits into this trajectory. The term “perspectivism” designates in Nietzsche the mapping of the modes of interaction and correlation between forms of life. In Viveiros de Castro's contemporary anthropology, perspectivism is the philosophy elaborated by Amazonian peoples, for whom the world is inhabited by different kinds of subjects or people, human and nonhuman, who grasp realities from different points of view. The work on the multiplicity of nonhuman subjects (or persons) prompts reflection on the cognitive deficits of the human species, which is incapable of perceiving viewpoints, languages and mappings of reality proper to other species.

Keywords:
map; point of view; perspective; perspectivism

Parece-me adequado iniciar precisando o eixo argumentativo de minha proposta: em primeiro lugar, considerar os termos “mapa” e “ponto de vista” na articulação entre geografia e estética; em segundo lugar, traçar um concatenamento teórico aberto entre eles, verificando se não se delineia algo como uma linha de fuga à altura de certas questões elencadas na agenda filosófica do presente.

Pois bem, uma abordagem que articula estética e geografia: o que isso tem a ver com Nietzsche? - alguém poderia questionar logo de início. Com efeito, o tema escolhido soa, de fato, pouco nietzschiano, não fosse pelo termo “perspectiva”, que sugere uma declinação de “perspectivismo”. Todos sabemos, além disso, que, sobre a estética nietzschiana, foram já versados rios e mais rios de tinta, tão abundantes que tornam ociosa qualquer investigação complementar, ao passo que, sobre a geografia, muito menos foi dito - exceto que, sobre essa temática, parece haver tão poucos textos de apoio em Nietzsche, que o que foi escrito sobre uma geofilosofia nietzschiana poderia já ter esgotado qualquer desenvolvimento ou inventário temático1 1 Cf., por exemplo: Günzel, 2001. .

De todo modo, o maior estímulo vem de descobrir de que modo Nietzsche nos obriga a pensar de outra maneira. Obriga-nos, isto é, a um pensar outro que é, a um só tempo, seja um pensar outra coisa, seja um deslocar as percepções ordinárias da alteridade e de qualquer sua objetivação. Isso não é apenas uma indicação de postura, mas neste caso já delineia o eixo da argumentação: em relação a qual problema? Qual tensão conceitual se delineia com vistas a uma recomposição?

1. Alteridade é o nome que, propriamente falando, deveria ser dado à «pluralidade de forças de ordem pessoal» que é o eu (ego): «das quais ora uma, ora a outra, vem à tona como ego, e, olhando para as demais como um sujeito olha para um mundo externo repleto de influxos e determinações. O ponto do sujeito se encontra ora aqui, ora ali» (eKGWB/NF-1880,6 [70])2 2 Para citações de Nietzsche: após a indicação do texto, temos a referência da edição digital crítica dos textos: Friedrich Nietzsche. Digitale Kritische Gesamtausgabe Werke und Briefe, Paolo D’Iorio (editor), Nietzsche Source, Paris, 2009ss. <htttp://www.nietzschesource.org/eKGWB> = eKGBW). Ao preceder www.nietzschesource.org a tais referências, são obtidos os endereços de rede que, todas as vezes, dão acesso às passagens. . O Subjektpunkt, o “ponto do sujeito” consiste em seu próprio ponto de vista, ou seja - e voltarei a discuti-lo - o ponto de inflexão e irradiação de seu corpo-mente. Uma pluralidade (de forças) é a verdadeira natureza do eu, que não pode deixar de ser sempre outro e em movimento com relação a si mesmo, à suposta mesmice com que a “pequena razão” (o intelecto) pretende ancorá-la estaticamente ao ser por meio do tradicional vínculo lógico do fundacionalismo. O ego é uma hipóstase identitária e narcisística - enquanto não deve ser reconhecido em nada além de uma hipótese.

O zeramento do ego operado por Nietzsche nos planos epistêmico e ontológico ressoa, com um tom particular, na antropologia do século XX, que, desde as páginas de Lévi-Strauss, autentica-se como o lugar de desmantelamento das hipotecas do antropocentrismo e do consciencialismo (metaforicamente: das fortalezas do antropocentrismo e das catedrais góticas da consciência). Conhecemos o percurso de Lévi Strauss: ele partiu de uma assunção da identidade como ponto virtual (ponto de vista, eu diria), desprovido de existência real e dotado unicamente de um valor epistêmico, mesmo mantendo-se fiel a essa convicção, através do estudo dos mitos ameríndios vem a descobrir um estrato semântico de identidade como núcleo irrelativo de sentido que fundamenta o ato de identificação primordial do homem com todos os seres viventes. Menciono ainda apenas o célebre discurso proferido em 1962, em Genebra, em ocasião do 250º aniversário do nascimento de Rousseau, com o qual Lévi-Strauss o proclama descobridor da etnologia e fundador das ciências do homem, por ter formulado o dois princípios universais sob os quais se fundam as ciências humanas: «o da identificação a outrem e até ao mais “outrem” de todos os outrems, até um animal; e o da recusa da identificação a si mesmo, ou seja, a recusa de tudo o que pode tornar o eu “aceitável”»3 3 Lévi-Strauss, 2013, p. 51. .

Pois bem, voltarei a esse ponto na conclusão: tanto a identificação com o animal, como a convicção que isso implique e «acompanhe uma recusa obstinada de identificação consigo mesmo»4 4 Lévi-Strauss, 2013, p. 47. , permitirão abrir uma linha de fuga do discurso. Creio que isso constitui não apenas um êxito em grande medida coerente com as premissas estabelecidas por Nietzsche, mas que pode, por sua vez, servir de premissa para a reconceitualização do perspectivismo nietzschiano na antropologia desenvolvida por Eduardo Viveiros de Castro por meio da comparação com a ontologia implícita em algumas culturas nativas ameríndio-amazônicas. O tema da perspectiva é de importância central, pois sua própria configuração artística levou, desde sua invenção na prática e no modo de se tratar as artes visuais renascentistas, até a unificação do espaço de representação enquanto obra de um corpo tomado em linha de princípio exclusivamente como um único, antropomórfico, masculino, europeu.

Presumo que já deste vislumbre seja possível entrever como as passagens por mim indicadas na contemporaneidade estão implicadas pelo questionamento nietzschiano da identidade, isto é, pela questão da questão da alteridade, dos perspectivismos nietzschianos em que se apreende que o eu é o outro (é outro de si) e, de maneira correlata, que o outro é o mesmo. A descoberta nietzschiana da desigualdade e desproporção do eu consigo mesmo descortina ao mesmo tempo o acesso a uma identificação com a alteridade mais radical: a do vivente sofredor (que aqui chamarei de “não-humano”, assumindo os mundos vegetal e animal) deixado fora do teatro da história, mas que comunica com os humanos porque suas raízes se confundem no fundo obscuro e atemporal da vida. Um não-humano que só por um vício invencível do antropocentrismo ainda hoje é muitas vezes considerado sem história, sem cultura e tecnologias.

Em suma, este é o problema que pretendo apresentar. E prospectivismo me parece soar como o nome que o seu precoce mapeamento recebe das páginas dos cadernos póstumos e das obras de Nietzsche. Não a estética nem a geografia tomadas unilateralmente conduzem, creio eu, com a mesma eficácia que uma abordagem geoestética pode alcançar. Abordagem que potencializa o mapeamento pela lógica corpórea que lhe pertence de maneira constitutiva, bem como emerge com a cartografia das grandes viagens de descoberta. Cada novo mapa ou carta foi um sensório comum, transferido por água e por terra. O fato ainda tem algo a nos dizer?

2. Antes de tudo, esclareço em que sentido usarei os termos “mapa”, “ponto de vista” e “perspectiva”, querendo evitar o risco, por assim dizer, de falar comigo mesmo. Não aspiro a definições verdadeiras e exaustivas, nem pretendo fazer apelo aos chamados significados literais, ou seja, à semântica. Em vez disso, tento, pragmaticamente, desenhar um contexto (semiótico) para o uso que farei dos termos.

Mapas são mundos. Cada mapa, ou “carta”, é e significa (representa) um mundo. Por “mundo”, que assumo como categoria fenomenológica, não física, entendo um conjunto perceptivo-prático essencialmente pluralístico, um complexo de relações dentro das quais a vida acontece (Wittgenstein, nos termos do Tractatus 1.1, teria dito: que o mundo é composto da «totalidade dos fatos»)5 5 Wittgenstein, 1968, p. 55. . Pois bem, por que são feitos “mapas” ou “cartas”? O motivo é simples: o mapeamento serve para elaborar o mundo externo e para comunicar informações de forma sintética (adotando uma escala, cores, signos, símbolos...). Uma carta modela experiências do mundo projetando-as na representação: as já desenvolvidas, bem como as que são possíveis. Aquelas que são possíveis, note-se, apenas na medida em que são concebíveis dentro dos parâmetros lógicos, semiótico-visuais, geográficos estabelecidos pelo próprio mapeamento (outros itinerários ou percursos na carta que se tem à disposição permanecem mudos, desconhecidos).

Por meio desses parâmetros, o autor dá forma e orientação ao mapa, à própria representação (à própria narrativa) do mundo. Constrói, portanto, e enuncia o próprio ponto de vista sobre as coisas. O ponto de vista consiste, portanto, no conjunto de operações realizadas pelo autor para ordenar e validar a relação que estabelecerá com os usuários da representação do mundo posta em prática. Cada mapeamento fixa cognitivamente um ponto de vista esquemático sobre o mundo que é válido tanto para o autor da carta quanto para seu usuário. Aos olhos dele, o ponto de vista é o lugar do qual a imagem (a imagem do mundo externo, o mapa, mas também uma imagem artística ou uma imagem narrada) exige ser olhada. O fruidor irá internalizar o mundo externo, irá concebê-lo para si de acordo com o arcabouço conceitual e semiótico fornecido pelo ponto de vista fixado pelo mapa. O leitor do mapa que transformou-duplicou o mundo externo em mundo interno possui esquematicamente o sistema que é útil para orientar as condutas intelectuais e práticas, a experiência por vir.

O ponto de vista se mostra conceitualmente superior ao da perspectiva, cujo conceito envolve a articulação de uma junção: do nível epistêmico-cognitivo a uma postura pragmático-semiótica do corpo-mente. Por um lado, é apenas o ponto de vista que gera perspectivas, que “coloca em perspectiva”; mas, por outro lado, abre e dispõe tanto do que se corporifica no sensorial de um corpo-mente imerso no mundo circundante (físico não mais cultural), localizado no espaço. O mundo modelado pelo mapa, e apreendido do ponto de vista que ele impõe ao usuário, é “expresso” de forma perspectivística nas práticas de intervenção que este assume para atingir os próprios objetivos cognitivos e práticos.

3. No uso ordinário da linguagem, também o mapa se tornou uma metáfora, como bem depressa se tornou o pôr-se em perspectiva. Uma metáfora abrangente e ao mesmo tempo singular: cada indivíduo carrega consigo seu próprio ambiente cognitivo como um mapa pessoal do mundo.

Assim que o indivíduo sente um estímulo proveniente do mundo exterior, ele o decodifica perceptivamente. Perceber já é decodificar-interpretar aquilo que estimulou a sensação. Que nunca registra um dado puro, mas intervém, naquilo que foi percebido, integrando-o, em virtude também da imaginação6 6 Já para Aristóteles a phantasia, a imaginação representativa, sempre acompanhava a aisthēsis, a “sensação” ou “percepção” (ainda não se estabelecia uma diferença conceitual entre uma e a outra). , além da contribuição muitas vezes determinante da vontade, que não consegue deixar de participar daquilo que acontece. Com efeito, um dado puro, um dado que se imagina existir de maneira pura e simples, não existe como tal, mas sim aparece pela ação, nem sempre deliberada, refletida, da subjetividade senciente. Não há uma sensorialidade puramente passiva, receptiva, na qual um dado possa se inserir. Pelo contrário, há sempre interação entre interno (mente) e externo (mundo). A subjetividade já está ativa em nível de impacto “acéfalo” com um real pré-linguístico e pré-semiótico, em uma fase de ressonância sensorial-emotiva que antecede a abordagem discriminativo-cognitiva exercida pela percepção.

Há uma vertente das tradições filosófica e psicológica europeias que sempre trabalhou o tema, amadurecendo passo a passo uma terminologia atualizada às mais recentes aquisições conceituais em estudos dedicados à teoria do conhecimento e às estruturas neurofisiológicas. Não é de forma alguma uma invenção de Nietzsche, como ainda hoje lemos ou ouvimos. A ênfase hermenêutica na existência apenas de interpretações, ao invés de fatos (cf. eKGWB / NF-1886,7 [60]), além de perder de vista a base fisiológico-corporal bem estabelecida na tão famosa observação nietzschiana, obscureceu completamente aquela tradição de pensamento, que começa na antiguidade e continua para além de Nietzsche, agregando posições, aliás, bastante diversas sobre a questão. Não apenas Aristóteles (segundo o qual a percepção se baseava na transmissão estésica da informação sensível), mas também os estóicos (para os quais a percepção era criação autóctone não mediada pela sensibilidade do dado, era catalepsia resultante do assentimento), para chegar a Franz Brentano (que relê o nous poietikos aristotélico), a Husserl (que submete o conceito de “representação” a profundas análises). E são apenas alguns dentre os autores mais frequentados. Nietzsche, por seu turno, insiste em mostrar como a célebre faculdade cognitiva do homem tem origens e finalidades (mas não finalismos) que são tudo menos teóricas, pelo simples fato de que ela nem sequer tem início, a não ser na atividade moldadora pela qual cada forma de vida atribui suas próprias estruturas sensoriais, seus próprios caracteres ao mundo exterior, o próprio mapa.

A decodificação perceptiva, a atribuição de sentido pode ocorrer, metaforicamente, apenas na medida em que o estímulo se insere no mapa. Enquanto ele recusar o mapeamento, o estímulo externo permanece incabível e privo de significado. Quando a inserção for alcançada, aumentará a confiança cognitiva do indivíduo em seu mapa cognitivo e sua disposição de se orientar a partir dele. Por outro lado, não se pode deixar de observar que ao codificar e adquirir o estímulo, ao fazê-lo, ou seja, ao voltar aos parâmetros fixados pelo ponto de vista, o indivíduo replica muito menos ao estímulo do que ao mapa em si.

Um mapeamento do mundo orientado no sentido pragmático-semiótico emerge também em Nietzsche, que faz convergir toda a sua epistemologia. As formas do saber, as próprias ciências “duras” têm, a seu ver, um teor semiótico, pragmático, “interpretativo”. Elas têm dobras e implicações (assim releio aquele «filosofar histórico» que Nietzsche defende a plenos pulmões de Humano, demasiado humano em diante). Funcionam como ciências das condições e das formas de vida. O nome desse mapeamento é precisamente: Perspektivismus.

A tese que quero sustentar é, portanto, que o termo “perspectivismo” designa, em Nietzsche, o mapeamento dos modos de interação e correlação entre as formas de vida, em qualquer nível. Tudo o que vier a afirmar poderá finalmente ser entendido como o argumento de apoio a esta tese.

4. Antes de me dedicar ao perspectivismo nietzschiano, parece oportuno mencionar a “linhagem filosófica” de onde provém. Infelizmente, nas linhas deste breve ensaio, não há espaço para focar, de maneira minimamente adequada, no pano de fundo conceitual do qual a perspectiva emerge em si mesma como objeto de investigação da filosofia (um objeto verdadeiramente singular, que diz respeito às práticas da representação e cognoscibilidade). Mas, diante de tantas críticas que não lhe dignam nem sequer um olhar, mesmo gastando numerosas páginas sobre o assunto, um esquema cru ao menos me impedirá a completa ignorância. O pano de fundo deve ser duplo. Por um lado, a papelada genética se afunda nos tratados de arte que na era humanista-renascentista, época especialmente amada por Nietzsche, inventaram aquela nova técnica de representação pictórica e arquitetônica capaz de conseguir o efeito da tridimensionalidade mediante a projeção de imagens numa superfície bidimensional7 7 Dentre os numerosos estudos e ensaios sobre a questão estética da perspectiva, cf. Damisch, 1993. . O dispositivo da perspectiva geométrica linear deu vida a uma linguagem figurativa mimético-ficcional estudada e adotada para reproduzir o aspecto visível do mundo externo do justo ponto de vista. Aqui só posso listar rapidamente os principais protagonistas dessa inovação de época: Filippo Brunelleschi, que aprendeu a arte da perspectiva não por acaso com Paolo dal Pozzo Toscanelli, talvez o maior entre os cosmógrafos modernos; Leon Battista Alberti (De Pictura, 1435); Piero della Francesca (De prospectiva pingendi, editado entre 1460 e 1480); Leonardo (Tratado de pintura, red. Séc. XVI); Daniele Barbaro (Pratica della perspettiva, 1569); Gian Paolo Lomazzo (Ideia del tempio della pittura, 1590). Se alguém presumisse que estão em jogo apenas as artes, as técnicas e a poética, estaria muito enganado. Bastaria já levar em conta que as considerações desenvolvidas por Alberti no De Pictura constituem o ponto de partida de uma série de reflexões que atravessam a era renascimental e seiscentista não apenas em mérito ao estatuto da arte pictórica, a estrutura geométrica da representação perspectiva, a pragmática da fruição, mas também acerca da finalidade principal de cada representação pictórica: a narração persuasiva e eficaz de uma história. E não é talvez essa uma finalidade plenamente política?

É a própria modernidade que se “coloca em perspectiva” com a inauguração desse método de representação do espaço, cujas virtualidades logo seriam colocadas em uso na esfera geográfica e política. Usando as famosas tábuas, hoje perdidas, mas das quais tivemos notícia pelo testemunho biográfico de Antonio Manetti, Brunelleschi mostrava a capacidade de uma imagem em perspectiva corretamente executada e corretamente observada de restituir fielmente o aspecto visível da cena representada. Postulando planura e fixidez do ponto de vista ocular, implicando assim a necessária imobilidade do observador, Brunelleschi inaugura as páginas sobre as quais reescreve-se a relação da subjetividade com o mundo. Aqui a entrada da modernidade filosófica, geográfica e política europeia: isto é, com o impulso para a nova cartografia, inauguram-se as grandes viagens de exploração e colonização, o nascimento do conceito moderno de territorialidade e os primeiros estados nacionais centralizados - tudo menos um capítulo, ainda que esplêndido, unicamente de história da arte8 8 Sobre os aspectos geográficos e políticos enfatizou Farinelli, 2009, pp. 40-41, 49, 100. .

5. A ampla gama de elaborações fornecidas por artistas e tratados renascentistas, e do século XVII, sobre o assunto contêm elementos retirados do discurso filosófico seiscentista: do ideal de um olhar pontiagudo, fixo e instantâneo, à distinção entre “olhos do corpo” e “olho do espírito”; da convicção de que todo ato cognoscitivo, toda visão e todo juízo devem ser feitos a partir uma “distância justa”, à tese de que é possível estabelecer uma hierarquia entre diferentes pontos de vista, uma hierarquia dominada por aquele de lugar nenhum - ou de todos os lugares ao mesmo tempo - que seria Deus.

Durante o século XVII, a perspectiva é concebida, de fato, com um novo valor, que vai além da conexão geométrico-linear com a perspectiva da visão natural. Torna-se perspectiva metafórica9 9 Cf. Elkins, 1994, especialmente pp. 2-44. , “metageométrica”. Os termos adotados na discussão mantêm, sim, a referência ao domínio oculocêntrico da visão, mas, no entanto, em torno do obstáculo teórico de identificar o ponto de vista correto, uma série de questões teóricas decisivas.

Os textos dos filósofos seiscentistas exploram e desfrutam o tema do justo ponto de vista, reunindo o espectro de uma rica metafórica. A perspectiva deixa de ser considerada uma técnica geométrica para a produção de imagens verossímeis e aos poucos acaba se impondo como dispositivo ou paradigma das múltiplas valências. O justo ponto de vista pode ser aquele graças ao qual um intuitus mentis suprassensível se torna capaz de apreender com clareza e distinção os primeiros princípios dos quais o conhecimento é constituído (Descartes). Ou pode designar aquele ponto cujas coordenadas exatas não estão disponíveis no mapeamento da atividade cognitiva do ser humano, o qual, criatura frágil e finita, está destinado a oscilar entre o infinitamente grande e o infinitamente pequeno, incapaz de contemplar justamente a natureza e o complexo das ações humanas, e de encontrar estabilidade somente graças à fé (Pascal). Assim como esse ponto pode evocar a condição de evidência e cognoscibilidade das realidades materiais graças à visão de suas ideias em Deus (Malebranche). Caso contrário, pode indicar, ainda, o ponto a partir do qual uma totalidade de fenômenos aparentemente desordenados e confusos pode ser reconduzida até a ordem e a harmonia: assim ocorre, com efeito, segundo LeibnizLEIBNIZ, G.W. Monadologia, que incorpora o modelo perspectivo no discurso filosófico e o enche de importantes valências teológico-racionais, ontológicas, gnosiológicas, éticas, estéticas, a ponto de conceber a própria subjetividade - a mônada - como ponto de vista sobre o mundo, uma das múltiplas perspectivas que Deus tem sobre a criação10 10 Cf. Leibniz, Discurso de metafísica, § 9; Monodologia, § 57. .

Depois de Leibniz, no século XVIII, a questão filosófica foi retomada por autores como Chladenius, Hume, Diderot. Eu não posso tratá-los todos, limito-me a nomeá-los. Olhando para o elenco que indiquei, só tenho tempo para acrescentar que toda vez foram questionadas as diferentes posições possíveis do ponto de vista: à distância finita ou infinita, em posição frontal ou oblíqua em relação ao plano de representação, imediatamente evidente ou não rastreável. Não há posição possível que não tenha sido imaginada, apresentada, discutida como figuração da subjetividade e com vistas a determinar seu correspondente poder cogniscitivo-representativo.

Sobre Nietzsche falarei imediatamente. Depois dele, não deveriam se calar as investigações sobre a perspectiva de ao menos outros dois: Erwin Panofsky (historiador da arte, teórico da iconologia), que submeteu à releitura a história da perspectiva na arte ocidental, considerando a perspectiva como uma resposta a uma concepção espacial rebaixado ao plano da representação, e Pavel FlorenskijFLORENSKIJ, P. Lo spazio e il tempo nell’arte. Milano: Adelphi, 1995. (matemático, filósofo, teólogo, estetólogo). Para o primeiro, que cresceu na escola de Aby Warburg e se mediu em particular com Cassirer, a perspectiva se baseia no significado “simbólico” dos sistemas espaciais de representação, que podem ser conectados aos diferentes momentos e aspectos da história dos estilos11 11 Cf. Panofsky, 1927. . Florenskij, por sua vez, é responsável pela ilustração matematicamente mais clara do dispositivo de perspectiva e suas consequências: o fruidor-espectador, “paralisado como se envenenado pelo curare”, deixa de ser uma “pessoa vivente” e a imagem torna-se “uma ilusão de ótica mórbida, privada, em grande parte, de humanidade”12 12 Florenskij, pp. 244-248. . Florenskij observa oportunamente que a elaboração da perspectiva plana pode ser realizada durante o século XVII porque encontra a condição necessária para sua realização na noção cartesiana de espaço como uma substância extensa, homogênea, infinita. Mas a novidade específica de Florenskij consiste em sua elaboração do conceito de “perspectiva invertida”, a partir do qual um novo modelo de perspectiva baseado em uma relação livre com o espaço e o tempo: policentricidade da representação, descontinuidade, separabilidade dos elementos singulares e interconexão recíproca através de curvaturas espaciais13 13 Cf. Florenskij, 2003. .

6. Ao introduzir o termo Perspektivismus e discutir suas implicações em nível epistêmico-epistemológico e ético-axiológico, Nietzsche se insere, portanto, em uma reflexão que vem acontecendo há séculos, e que continuará existindo depois dele. Podemos apoiá-lo com um mínimo de conhecimento, embora a crítica reavive seu traço muito raramente. Nietzsche relança uma problemática estruturada em maneira já bem firme, ramificada. Deve-se dizer com toda clareza que, se fosse apenas uma questão de perspectiva cognitiva, de níveis de conhecimento, Nietzsche não inventaria nada. Trata-se, portanto, antes de mais nada, de compreender qual é, supondo que haja de fato - fora de qualquer deletério nietzscheanismo - a lacuna operada por Nietzsche nesse regime de discursividade bem estabelecido na tradição filosófica europeia.

Como todos sabemos, os lugares textuais em que Nietzsche menciona o perspectivismo são muito poucos, cabem nos dedos de uma mão. Quero recordar a definição mais tardia, confiada a uma anotação póstuma da primavera de 1888: “o perspectivismo é apenas uma forma complexa da especificidade”. A mesma nota esclarece a operatividade do conceito: em virtude dele “todo centro de força - e não só o homem - constrói todo o restante do mundo a partir de si mesmo, ou seja, mede-o, molda-o, forma-o segundo a sua força...”; os físicos “esqueceram de calcular, no ´ser verdadeiro`, essa força que põe perspectivas... para usar a linguagem acadêmica: o ser sujeito” (eKGWB / NF-1888,14 [186]).

Escolho esta definição pela irredutibilidade imediata do perspectivismo apenas ao comportamento humano, à vontade e à liberdade específicas do homem (o que também é declarado no tão turbulento parágrafo 354 do Livro V da Gaia Ciência, mas a estratificação dos argumentos nesse longo parágrafo corre o risco de perder o ponto). Há pouco para interpretar mal. O “humano, demasiado humano” já ficou para trás, com todos os seus pretensos privilégios metafísicos, lógicos, gnosiológicos, éticos e até mesmo estéticos. E justamente por isso há o perspectivismo, é preciso dizer: porque não é por nada explicado e compreendido por uma subjetividade humana que pensa a priori seu próprio ponto de vista. Em vez disso, é explicado por toda forma-força vivente que não pode se afirmar na vida, exceto tentando assimilar seu próprio ambiente, implantando seu próprio sensório e codificando-o com base em parâmetros que governam cada um de seus próprios mapeamentos do mundo externo. Perspectivista é a semiose produzida, quer queira quer não, com consciência ou em modos não conscientes e inconscientes, pela força modeladora do viver que se coloca a si mesmo por meio de centros e movimentos antagônicos dos próprios viventes, divergindo na pluralidade deles. Cada um desses centros, afirmando-se na vida, exprime a multissensorialidade (as perspectivas) com a qual quer valorizar (impor) o próprio ponto de vista. “Valor” é essencialmente o ponto de vista do aumento ou diminuição desses centros de domínio (“pluralidade” em qualquer caso; a “unidade”, em vez disso, não existe de forma alguma na natureza do vir-a-ser)» (eKGWB / NF-1887, 11 [73]). Daqui para a famigerada vontade de poder o passo é muito curto, se apenas se considerar, como convém fazer, que não consiste em outra coisa senão na tentativa exercitada por toda forma vivente de apropriar-se do mundo exterior, desfazer a alteridade recalcitrante, assimilá-lo pela vida, englobá-lo à esfera do próprio eu.

Perspectiva é o mapeamento que uma vida (a vida singular de cada ser vivo) traça em seu próprio verificar-se na crosta terrestre. Não lhe é acessível nenhuma subjetividade prévia a ditar a priori. Não há Sujeito já belo e fundado nas próprias verdadeiras formas ou em seu substrato ontológico, com toda uma carga de finalidades a serem realizadas. Em vez disso, a concepção perspectivista substitui a carga de verdade a ser criada - fora de qualquer concepção adequacionista-correspondentista, não menos do que a substancialista e dogmática do verdadeiro. O perspectivismo é sempre da verdade (genitivo de subjetivação): mas para Nietzsche a verdade não consiste em outra coisa senão uma forma de moldar e aderir às coisas, ao sensível, de modo a permitir seu uso para a vida. O perspectivismo nietzschiano é forma imanente ao plano da correlacionabilidade geral, em cujas bifurcações e divergências emerge a verdade vivente da relacionalidade mesma - tudo menos o suposto relativismo do verdadeiro. O parágrafo 12 da Terceira Dissertação da Genealogia conclui:

apenas uma visão perspectiva, apenas um “conhecer” perspectivo; e quanto mais afetos deixarmos falar sobre uma determinada coisa, quanto mais olhos, diferentes olhos soubermos empenhar em nós por essa mesma coisa, mais completo será nosso “conceito” dela, a nossa “objetividade” (eKGWB / GM -III-12).

Esta citação poderia ser mal interpretada se não nos permitíssemos a lentidão apropriada para refletir sobre ela. Mal interpretá-la como? Liquidando relativisticamente o perspectivismo. Atenção: não há perspectivismo até que se assuma um sujeito, por mais autocentrado que seja, que explique variações de perspectivas, mesmo as mais diversas e incessantes, sobre uma realidade em todo caso que se supõe sempre igual a si mesma (uma “coisa em si”). O perspectivismo só se afirma no campo da imanência despojado dos pressupostos de um sujeito em si e de uma realidade objetiva em si.

“Sujeito” é o nome (fictício) de um evento no qual se implanta a dinâmica cognitiva de captura. O que quero dizer com evento? Algo que acontece com alguém em um determinado lugar. Este lugar torna-se inclusivo-prospectivo com o surgimento e estabelecimento de um “ponto de vista integral” que o toma de forma subjetiva. Ou seja, note-se bem, um ponto de inflexão multissensorial, não apenas ocular-visual. Um centro de atividade sinestésica que inclui coisas como prospectos. Note-se bem: na concepção perspectivística, não é precisamente o ponto de vista que inclui outra coisa a partir do sujeito. O que é inclusivo é o que, daquilo que acontece, permanece no ponto de inflexão. O que resta são afecções, imaginações, disposições, hábitos de conduta: Deleuze diria “dobras na alma”14 14 Cf. Deleuze, 1988, pp. 20-37; sobre o ponto de vista, cfr. Deleuze, 1969, p. 203. .

Teichmüller, o autor de quem Nietzsche capta diretamente o tema da perspectividade, fala de “imagens perspectivísticas”, que consistem, se bem compreendo, no êxito projetivo-perspectivo - para usar as palavras de Nietzsche - de “quanto mais afetos deixamos para falar sobre uma determinada coisa”, de “quanto mais olhos, diferentes olhos quantos soubermos empenhar” atenção ao texto - não diretamente na coisa, mas sim “em nós por essa mesma coisa”. Nossa capacidade de perceber e refletir sobre as percepções da coisa terá sido tanto mais multifacetada quanto “mais completo será nosso ‘conceito’ dela, a nossa ‘objetividade’”. Parece-me que se pode tirar uma primeira conclusão. Na terminologia que adotei desde o início, encontramo-nos no plano de análise do perspectivismo como mapeamento semiótico do mundo externo. De que tipo de mapa estou falando? Talvez seja comparável aos mapas digitais de uso diário que ativamos com o smartphone?

Ora, do ponto de vista epistemológico, convém ser prudente contra a redução do mapeamento nietzschiano da força afirmativa do vivente a um puro mapping cognitivo - que eu pessoalmente sintetizei no dispositivo que gostaria de chamar propriamente de biopolítico do perspectivismo. Convém também evitar aplicar esse mesmo mapping a todo tipo de mapa, sem delongas ao menos na fisionomia e no funcionamento conceituais dos diferentes tipos de mapas: dos do Google, precisamente, aos mapas dos metrôs, dos topográficos às náuticas - posto que a mesma aplicação generalizada do termo “mapa” não corra o risco de levar a mal-entendidos. É uma questão de se prestar atenção ao gesto e à área a ser mapeada, não ao uso do mapa. Nietzsche se comporta tal qual os cartógrafos da descoberta mencionados no início, seu gesto é o de um explorador de novos mundos. “Até os antípodas têm o seu direito de existir! Há ainda um outro mundo a ser descoberto - e mais de um! Aos navios, filósofos!” (eKGWB/FW-289).

7. O último passo. Para uma última interrogação. A questão é: em que sentido a indicação do dispositivo da perspectiva nietzschiana também se aplica ao nosso mundo? Em outras palavras, de que lugar o mapa do conhecimento traçado por Nietzsche exige ser olhado hoje?

Em geral, a representação cartográfica, à semelhança da imagem pictórica, deve ser questionada pelo aspecto de sua produção não mais do que pelo de sua fruição. O gesto com que se fixa o ponto principal - isto é, o que Alberti chamava de “ponto cêntrico” em correspondência projetiva com o ponto de vista ao longo de um eixo ortogonal no plano da representação - implica uma série de consequências que dizem respeito tanto à força expressiva e retórica da imagem, quanto a sua capacidade de se colocar como restituição adequada do aspecto visível da cena representada. Não basta perguntar-se onde deve estar, de maneira geral, colocar-se o olho do espectador que na imagem (no mapa) pretende ver ao menos a re-produção da percepção (das coisas não mais do que dos saberes) que deu vida à representação. Ademais, se isso bastasse, nossa reflexão deveria ser considerada concluída uma vez reconstruído o arcabouço histórico-epistemológico. Perguntemo-nos também se o nosso próprio ponto de vista, de nós leitores atuais, dispõe de mobilidade concreta e dinamicidade de olhar. Como se move e o que vê o nosso olhar? Como se encaixa entre o espaço que o perspectivismo circunscreve com a própria imagem conceitual e o espaço efetivo de pensamento que pode emergir (neste outro milênio) após a dissolução do fundacionalismo, consciencialismo, antropocentrismo?

Nietzsche não apenas fecha as entradas filosóficas tradicionais para tais “ismos”, mas, precisamente porque reconhece o valor ficcional-regulatório de “eu”, “alma”, “sujeito”, “objeto”, “coisa”, “realidade”, “propósito”, “número” (cf. eKGWB / NF-1885,35 [35]), parece-me que ele consegue nos dar, por assim dizer, o suporte sobre o qual desenhar novos mapas, que ele mesmo não conhece e não pode rastrear, porque seu ponto de vista, em muitos aspectos à frente de seu tempo e, portanto, destinado à “vida póstuma” (para dizê-los nas palavras do Nachleben pensado por Aby Warburg), não poderia deixar de pertencer à epistemologia e à filosofia europeias de seu tempo. Digamos, se conseguimos vislumbrar o mapeamento nietzschiano, devemos também estar cientes de que ele entrega, sim, um método para aproximar formas de hibridização com culturas totalmente outras, por exemplo o que Nietzsche, olhando para as raízes arcaicas dos cultos, chamado «pensamento impuro», e, no entanto, sabemos que a questão hoje se coloca, se é que existe, na possibilidade de “sobrevivência dos resíduos” culturais de outros mundos, em seu direito de serem preservados, transmitidos e não aniquilados na homologação global.

Como havia antecipado no início, e embora aqui só possa abordá-lo com um sinal conclusivo pouco mais do que risível, a esse respeito parece-me relevante a reconceituação do perspectivismo realizada durante as últimas décadas nos quadros ontológicos, cosmológicos, epistemológicos, éticos, da antropologia contemporânea como alternativa às visões monísticas tipicamente ocidentais. No desenho antropológico-filosófico de Eduardo Viveiros de Castro, por exemplo15 15 Outros autores de referência: Roy Wagner, Marilyn Strathern, Amiria Henare, Martin Holbraad, Sari Wastell, Davi Kopenawa, Tânia Lima. Aliás, é precisamente dos trabalhos desta antropóloga brasileira que Viveiros de Castro reconhece ter derivado o perspectivismo como conceito gerador: cf. Lima, 1995; 1999. , perspectivismo significa a assunção de subjetividade da parte de qualquer ser vivente. Viveiros de Castro observa que os termos ameríndios nativos usualmente traduzidos com “ser humano” designam não a espécie natural, ou um membro da espécie humana, mas a pessoa, significando porém o ser animado tomado na posição relacional do sujeito16 16 Cf. Viveiros de Castro, 2009, p. 35; 2012, tr. it. 2019, p. 31. . Pessoa, sujeito, até “homem” devem ser entendidos em um sentido não-substancial, mas pronominal (Viveiros de Castro aplica-lhes a lição de Émile Benveniste): eles indicam um dêitico, um marcador de enunciação, precisamente um posicionamento relacional no vivente por inteiro. “Sujeito” significa um prospectivo, não um substantivo17 17 Cf. Viveiros de Castro, 1998. .

Parece-me que posso inferir que os termos “pessoa” e o estatuto de “personalidade” significam, sim, como na tradição da filosofia europeia, uma identidade relacional, e todavia na mentalidade nativa das culturas ameríndias abordadas por Viveiros de Castro essa identidade relacional designa a singularidade de qualquer ser vivente e seu papel no mundo, de forma alguma exclusivamente a singularidade do ser humano como “substância indivídua de natureza racional” (Boécio). Portanto, o status de “personalidade” e as características consideradas “humanas” na filosofia e na antropologia ocidentais não pertencem por direito e de maneira espécie-específico aos humanos.

Qualquer indivíduo vivente na biosfera percebe os membros de sua própria espécie como “humanidade”. A condição comum a humanos e animais não seria, portanto, a animalidade, mas sim a humanidade18 18 Cf. Viveiros de Castro, 2012, tr. it. 2019, p. 42. . Esta é uma afirmação que carece de muitos esclarecimentos, sobre a qual Viveiros de Castro é mais evasivo do que claro. Mas este já não é mais o lugar textual para realizá-los. Para além das razões de Viveiros de Castro, devemos, no entanto, refletir o que acarretam os déficits cognitivos da espécie humana, incapazes de perceber pontos de vista, linguagens e mapeamentos da realidade de outras espécies. Uma árdua tarefa, recém vislumbrada, à qual é sempre conveniente virar as costas para não perder supostos privilégios.

Concluo neste ponto. Uma abordagem como a de Viveiros de Castro fecunda as perspectivas da filosofia com as da biologia (como Nietzsche já fez) não mais do que com as da etnoantropologia (como Nietzsche fez apenas em parte). Através do perspectivismo, Nietzsche indicou o caminho para a afirmação decisiva: todo vivente produz cultura. O inexplorado a ser rastreado terá que ser colocado em um novo mapa etnográfico, incluindo o não humano. Sem ênfase.

Referências

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  • WITTGENSTEIN, L. Tractatus logico-philosophicus Tr. J.A. Giannotti, São Paulo: Companhia Editoria Nacional, 1968.
  • *
    Tradução de Anna Maria Lorenzoni.
  • 1
    Cf., por exemplo: Günzel, 2001GÜNZEL, S. Geophilosophie. Nietzsches philosophische Geographie. Berlin: Akademie Verlag, 2001..
  • 2
    Para citações de Nietzsche: após a indicação do texto, temos a referência da edição digital crítica dos textos: Friedrich Nietzsche. Digitale Kritische Gesamtausgabe Werke und Briefe, Paolo D’Iorio (editor), Nietzsche Source, Paris, 2009ss. <htttp://www.nietzschesource.org/eKGWB> = eKGBW). Ao preceder www.nietzschesource.org a tais referências, são obtidos os endereços de rede que, todas as vezes, dão acesso às passagens.
  • 3
    Lévi-Strauss, 2013LÉVI-STRAUSS, C. «Jean-Jacques Rousseau, fundador das ciências do homem». In: LÉVI-STRAUSS, C. Antropologia estrutural dois. Tr. B. Perrone-Moisés, São Paulo: Cosac Naify, 2013, pp. 45-55., p. 51.
  • 4
    Lévi-Strauss, 2013LÉVI-STRAUSS, C. «Jean-Jacques Rousseau, fundador das ciências do homem». In: LÉVI-STRAUSS, C. Antropologia estrutural dois. Tr. B. Perrone-Moisés, São Paulo: Cosac Naify, 2013, pp. 45-55., p. 47.
  • 5
    Wittgenstein, 1968WITTGENSTEIN, L. Tractatus logico-philosophicus. Tr. J.A. Giannotti, São Paulo: Companhia Editoria Nacional, 1968., p. 55.
  • 6
    Já para Aristóteles a phantasia, a imaginação representativa, sempre acompanhava a aisthēsis, a “sensação” ou “percepção” (ainda não se estabelecia uma diferença conceitual entre uma e a outra).
  • 7
    Dentre os numerosos estudos e ensaios sobre a questão estética da perspectiva, cf. Damisch, 1993DAMISCH, H. L’origine de la perspective. Paris : Flammarion, 1993..
  • 8
    Sobre os aspectos geográficos e políticos enfatizou Farinelli, 2009FARINELLI, F. La crisi della ragione cartografica. Torino: Einaudi, 2009., pp. 40-41, 49, 100.
  • 9
    Cf. Elkins, 1994ELKINS, J. The Poetics of Perspective. Ithaca and London: Cornell University Press, 1994., especialmente pp. 2-44.
  • 10
    Cf. Leibniz, Discurso de metafísicaLEIBNIZ, G.W. Discorso di metafisica, § 9; Monodologia, § 57.
  • 11
    Cf. Panofsky, 1927PANOFSKY, E. Die Perspektive als „symbolische Form“. Leipzig: Teubner, 1927..
  • 12
    Florenskij, pp. 244-248.
  • 13
    Cf. Florenskij, 2003FLORENSKIJ, P. «La prospettiva rovesciata» (1920). In: FLORENSKIJ, P., La prospettiva rovesciata e altri scritti. A cura di N. Misler, Roma: Gangemi, 2003..
  • 14
    Cf. Deleuze, 1988DELEUZE, G, Le pli. Leibniz et le Baroque. Paris : Les Éditons de Minuit, 1988., pp. 20-37; sobre o ponto de vista, cfr. Deleuze, 1969DELEUZE, G. Logique du sens. Paris : Les Éditons de Minuit, 1969., p. 203.
  • 15
    Outros autores de referência: Roy Wagner, Marilyn Strathern, Amiria Henare, Martin Holbraad, Sari Wastell, Davi Kopenawa, Tânia Lima. Aliás, é precisamente dos trabalhos desta antropóloga brasileira que Viveiros de Castro reconhece ter derivado o perspectivismo como conceito gerador: cf. Lima, 1995LIMA, T.S. A parte do cauim: etnografia juruna, tese de douturado, Programa de Pósgraduação em Antropologia Social. Rio de Janeiro: Museu Nacional, UFRJ, 1995.; 1999LIMA, T.S. The Two and Its Many: Reflections on Perspectivism in a Tupi Cosmology. Ethnos, n. 64, I, pp. 107-131, 1999..
  • 16
    Cf. Viveiros de Castro, 2009VIVEIROS DE CASTRO, E. Métaphisiques cannibale. Lignes d’antropologie post-structurale. Paris: Presses Universitaires de France, 2009., p. 35; 2012VIVEIROS DE CASTRO, E. Cosmological Perspectivism in Amazonia and Elsewhere. Four lectures given in the Department of Social Anthropology, Cambridge University, February-March 1998. London-Manchester: Hau Masterclass Series, vol. I, 2012; tr. It. V. Gamberi, Prospettivismo cosmologico in Amazzonia e altrove. Macerata: Quodlibet, 2019., tr. it. 2019VIVEIROS DE CASTRO, E. Cosmological Perspectivism in Amazonia and Elsewhere. Four lectures given in the Department of Social Anthropology, Cambridge University, February-March 1998. London-Manchester: Hau Masterclass Series, vol. I, 2012; tr. It. V. Gamberi, Prospettivismo cosmologico in Amazzonia e altrove. Macerata: Quodlibet, 2019., p. 31.
  • 17
    Cf. Viveiros de Castro, 1998VIVEIROS DE CASTRO, E. Les pronoms cosmologiques et le perspectivisme amérindien. In : ALLIEZ, E. (ed.). Gilles Deleuze. Une vie philosophique. Paris : Les Empêcheurs de penser en ronde, 1998, pp. 429-462..
  • 18
    Cf. Viveiros de Castro, 2012, tr. it. 2019VIVEIROS DE CASTRO, E. Cosmological Perspectivism in Amazonia and Elsewhere. Four lectures given in the Department of Social Anthropology, Cambridge University, February-March 1998. London-Manchester: Hau Masterclass Series, vol. I, 2012; tr. It. V. Gamberi, Prospettivismo cosmologico in Amazzonia e altrove. Macerata: Quodlibet, 2019., p. 42.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    30 Set 2022
  • Aceito
    17 Nov 2022
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