A condição humana em toda a sua complexidade tornou-se, há muito, um tema expressivo em distintos campos do saber. Ao que se tem conhecimento, desde a Grécia Clássica, pensadores se ocupam em perseguir respostas para questões concernentes ao homem, perguntando por sua essência, por sua força motriz ou por seus determinantes comportamentais. Em busca de soluções, estudiosos dedicam-se em examinar características próprias não só da espécie humana, mas de sujeitos e grupos particulares, distinguindo-os, por vezes, em categorias. Entre os séculos XVIII e XIX, doutrinas como a Frenologia oua Eugenia acreditavam deter algumas respostas e, apoiando-se em teorias deterministas, influenciaram eventos sócio-históricos que culminaram na exclusão, estigmatização e extermínio de grupos étnicos e culturais.
Mesmo Nietzsche teria suas ideias apropriadas por agentes políticos radicais que defendiam ideais eugenistas. Cabe, todavia, questionar: teria o filósofo da suspeita se fiado a elocubrações assim tão polarizadas? Diante da oposição entre biologia e cultura, teria Nietzsche aderido a uma dessas vertentes ou proposto uma nova abordagem? Considerando essas e outras questões, Wilson Antonio Frezzatti Jr., notório pesquisador dos estudos nietzschianos do Brasil, lança em 2022 a 2ª edição de sua obra: A Fisiologia de Nietzsche: a superação da dualidade biologia/cultura, trazendoa lume meditações sobre a fisio-psicologia (Physio-Psychologie)e o debate acerca da oposição civilização versus cultura e educação versus formação no eixo do pensamento nietzschiano.
O livro, que integra o 6º volume da coleção Nietzsche em Perspectiva, editado pela CVR, é composto por cinco capítulos, introdução e conclusão, contendo também o prefácio à primeira edição escrito por Scarlett Marton, idealizadora e fundadora do Grupo de Estudos Nietzsche (GEN) no Brasil. A obra, que resulta de um minucioso trabalho realizado ao longo de quatro anos de doutoramento, é considerada, nas palavras de Marton, “[...] uma abordagem inovadora do pensamento nietzschiano.” (2022, p. 21FREZZATTI JR, Wilson Antonio. A fisiologia de Nietzsche: a superação da dualidade cultura/ biologia. 2 ed. Curitiba: CRV, 2022.).E o que visa a sua proposta fulcral? Investigar a relação entrea cultura e os processos biológicos no interior do pensamento de Nietzsche que, embora não expresse claramente este encadeamento, deixa em seu legado elementos para se pensar essa temática.
Assim, vemos no capítulo que abre o livro um descortinar dos diferentes sentidos que os termos “cultura” e “civilização” logram ao longo da história, em especial, na Alemanha. O objetivo, com isso, não é outro senão o de compreender com maior acuidade como essas palavras se adequam ao contexto filosófico de Nietzsche, não havendo na obra nenhuma pretensão de oferecer as melhores definições para os termos – se é que existem. Em suma, Frezzatti postula que a palavra cultura provém do romano Colere, que diz “cuidar”, “habitar” ou amansar a natureza para que se adequeao homem. Quando os franceses resgatam a palavra, a transformam em Culture, fazendo o seu sentido transmutar no decorrer dos séculos até adentrar ao Dicionário da Academia Francesa como significado de “educação do espírito”, em 1718.
No percurso da pesquisa, Frezzatti identifica que o filósofo romano Cícero havia antecedido o povo francês ao vinculara cultura ao espírito e à alma, tendo esta associação sido expressa nas Tusculanas II 13, em aproximadamente 45 a. C. Mas é somente a partir do século XVII que os franceses adotam o termo cultura com o caráter de “[...] soma dos saberes acumulados e transmitidos pela humanidade” (2022, p. 40FREZZATTI JR, Wilson Antonio. A fisiologia de Nietzsche: a superação da dualidade cultura/ biologia. 2 ed. Curitiba: CRV, 2022.), enlaçando a palavra a um ideal de evolução, progresso e educação. A Alemanha, que vivia sob forte influência da corte francesa naqueles tempos, assume o termo no século XVIII e o traduz para Cultur. Anos depois, a palavra passa por uma reforma em território germânico e torna-se Kultur.
Mas e quanto a civilização, o que diz essa palavra? Frezzatti assevera que este é um termo mais complexo de definir, pois esta noção depende dos desdobramentos que cada nação imputou a ela. Na Alemanha do século XVIII, por exemplo, civilização significava algo como “o aspecto exterior ou a superfície da vida humana.” (2022, p. 45FREZZATTI JR, Wilson Antonio. A fisiologia de Nietzsche: a superação da dualidade cultura/ biologia. 2 ed. Curitiba: CRV, 2022.). Já na França, a palavra era sinônimo de sociedade superior, refinada, ensejada pelos franceses. Tal distinção abre margem para uma disputa entre o povo francês e o alemão. De um lado, a nação germânica julgando que os franceses estavam mais preocupados com as aparências e com a etiqueta do que com as atividades intelectuais, políticas e religiosas; e de outro lado, a alta burguesia francesa limando o poder político alemão e julgando o idioma germânico como bárbaro e grosseiro.
A essa altura, a oposição entre as palavras se demarca e, embora a disputa entre o povo francês e alemão se dissolva e os significados dos termos acabem por se redefinir nos anos seguintes, os sentidos até então atribuídos a eles aparecem, de alguma maneira, refletidos na filosofia de Nietzsche. Não por acaso, este é o tema central do segundo capítulo do trabalho de Frezzatti, que aborda a confrontação entre a civilização e a cultura no âmbito do pensamento nietzschiano. Vê-se perscrutar também, neste momento da obra, noções fundamentais tematizadas pelo filósofo alemão, como a crítica ao cristianismo, a ideia de moral de rebanho, de melhoramento do homem, da mentira piedosa, entre outras concepções próprias da meditação nietzschiana.
Tendo em vista que Nietzsche alude a cultura (Cultur) e a civilização (Civilisation) sob distintas perspectivas ao longo dos seus manuscritos, Frezzatti dedica-se em examinar dois dos prismas que são característicos da filosofia do alemão: o de civilização como amansamento dos impulsos e o de cultura como cultura elevada. Assim, na compreensão nietzschiana, o quea civilização promulga é o melhoramento do homem, a sua afinação, o seu amansamento, para que possa conviver em harmonia com o “rebanho”. Por conseguinte, melhoramento e fortalecimento são noções antagônicas nesta forma de compreensão, uma vez que em vez de fortalecer o homem, a civilização o enfraquece1 1 Vê-se Nietzsche dedicar um capítulo ao que designa “Os ‘melhoradores’ da humanidade” em Crepúsculo dos ìdolos(1888), realizando a contraposição entre o melhoramento e o fortalecimento sob a perspectiva da moral: “sempre se quis ‘melhorar’ os homens”, diz o filósofo, “tanto o amansamento da besta-homem como o cultivo de uma determinada espécie de homem foram chamados de ‘melhora’: somente esses termos zoológicos exprimem realidades – realidades, é certo, das quais o típico ‘melhorador’, o sacerdote, nada sabe – nada quer saber... Chamara domesticação de um animal sua ‘melhora’ é, a nossos ouvidos, quase uma piada.” (cf. GD/CI “os ‘melhoradores’ da humanidade §2). . Tal como sucede aos camponeses que, retirando-se do campo, sucumbem às enfermidades emergentes nas metrópoles, como a doença dos nervos, a tuberculose e até a preguiça, destaca Nietzsche em um fragmento póstumo da primavera de 1888 (XIII 15 [40]).
E o que é o homem forte nesta acepção? É o homem considerado bárbaro pelos civilizados, que não permite que seus impulsos sejam domesticados, o que indica ser oriundo de uma cultura elevada: “Quanto mais um homem aceita seus impulsos, em sua rudeza e crueza, menos é domesticado e mais elevada é a cultura [Cultur] da qual faz parte. No sentido inverso, quanto mais um homem é medíocre, fraco, servil e covarde, mais necessitará da civilização.” (2022, p. 89FREZZATTI JR, Wilson Antonio. A fisiologia de Nietzsche: a superação da dualidade cultura/ biologia. 2 ed. Curitiba: CRV, 2022.). Assim, a cultura elevada nada tem a ver com erudição ou requinte, mas com força, saúde e capacidade para criação e superação. Um espelho desse tipo de cultura é o modelo aristocrático, que não nivela os homens em par de igualdade, mas investe na hierarquia e na distinção entre as pessoas. E é justamente essa abertura para a diversidade de expressões e de estilos que possibilita o surgimento de homens de exceção, que podem ou não culminar no gênio nietzschiano.
E é a propósito do “grande homem” (große Mann), também chamado “gênio nietzschiano”, que o terceiro capítulo de A Fisiologia de Nietzsche se detém. Retomando a pergunta central de seu estudo, a saber, se a produção humana é determinada pela fisiologia (hierarquização dos impulsos) ou pela ação formadora da cultura, Frezzatti pondera que as duas possibilidades parecem ser consideradas por Nietzsche. Para adentrar com mais afincoa essa questão, o autor se dispõe a versar sobre os fatores intrínsecos ao surgimento do grande homem, que nada mais é do que aquele capaz de construir uma nova cultura.
Desta maneira, seguindo os caminhos trilhados por Nietzsche sobretudo em Crepúsculo dos ÍdolosNIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos. Tradução e notas de Paulo César de Souza. Sã aulo: Companhia de Bolso, 2017. (1889), Frezzatti aventa que a “marca” do gênio se expressa em sua força. Pois, para ser gênio, é preciso ser dotado de um acúmulo de forças e de uma capacidade de esbanjamento que só pode resultar de um trabalho produzido ao longo de gerações. O grande homem é, portanto,“a última expressão na natureza criadora” (2022, p. 112FREZZATTI JR, Wilson Antonio. A fisiologia de Nietzsche: a superação da dualidade cultura/ biologia. 2 ed. Curitiba: CRV, 2022.), sendo a sua genialidade o cômputo de um longo processo histórico. E quais são as características mais marcantes deste homem? Por certo,as características de um aristocrata, que se arrisca em novos caminhos, que não se inclina diante de ideais de bondade, moralidade e, muito menos, de um ideal de utilidade. O homem de gênio é um fim em si mesmo. E, justamente por ser assim, pode ser visto como “mau”, fugindo às regras da moral de rebanho, julgado, por vezes, como criminoso.
Há de se alertar, contudo, que o homem de gênio não é de forma alguma um viciado ou desviado, ainda que possa aderir, ocasionalmente, a essas atitudes. Se assim o fosse, não teria domínio de seus impulsos. E o que significa dominar os impulsos? Significa não os sufocar em virtude da moral ou ideal de outrem e, para além disso, não promover a anarquia apegando-se a apetites nocivos que não tencionem a qualquer propósito de criação. Ademais, o gênioé também um homem bélico. Lembremos: ele abriga a capacidade de criar uma nova cultura. Para criar o que é novo, é preciso destruir o que é velho. Assim, o gênio terá de despender potência de tal modo que esse extravasamento não permita tendênciasà autoconservação. A destruição das normas e valores vigentes exige que o homem de gênio seja capaz de perspectivar sobre as próprias valorações. Somente o jogo entre impulsos pode promover esse dinamismo de visões. Nesse sentido, o homem de gênio nietzschiano guarda em si um ímpeto contraditório que o permite enxergar para além do bem e malNIETZSCHE, Friedrich. Além o Bem e do Mal. Tradução de Mario Ferreira dos Santos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012..
Após versar sobre o grande homem, Frezzatti assevera que, na acepção nietzschiana, o enfraquecimento dos impulsos promulgado pela civilização deve ser impedido, abrindo espaço para a elevação de uma nova educação que lute contra o processo civilizatório. Nesta nova educação forjadora do grande homem, o sofrimento é um agente transformador, pois é aprendendo a superar os obstáculos que o gênio e a cultura elevada tornam-se ainda mais fortes. Em alusão a este fenômeno, em “A origem do gênio”, fragmento de Humano, demasiado humanoNIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano. radução e notas de Paulo César de Souza. São aulo: Companhia das Letras, 2005. (1878), Nietzsche assevera que “[...] alguém que se perdeu completamente ao caminhar pela floresta, mas que, com energia invulgar, se esforça por achar uma saída, descobre às vezes um caminho que ninguém conhece: assim se formam os gênios, dos quais se louva a originalidade.” (MA I/HH I §231). Com isso, indica que enquanto os decadentes evitam o sofrimento e a experiência do viver, o grande homem vislumbra nos domínios do sofrer uma oportunidade de elevar sua força.
O cultivo do corpo, com efeito, também é prestigiado por essa nova educação, considerando que Nietzsche valoriza em sua filosofia a atenção prestada à alimentação, higiene, clima e lazer, fatores que podem refletir na potência dos impulsos. Contudo, é preciso assinalar que o gênio nietzschiano não é dotado de grandeza absoluta. Seu processo de formação é cíclico e não possui características fixas, tampouco pré-determinadas. A cultura inaugurada pelo grande homem, por conseguinte, também mostrar-se-á decadente em algum momento, abrindo espaço para um novo tempo e para uma nova superação.
Para melhor compreensão do leitor sobre o homem de gênio, Frezzatti alude a distinção entre a noção de gênio postulada por Nietzsche e a postulada por Kant, esclarecendo que, no ideal kantiano, o gênio é aquele capaz de fazer bom uso da linguagem para exprimir ideias suprassensíveis. Não há, nesse aspecto, uma preocupação de Kant com a força, com o belo e o estilo, por exemplo. Nessa esteira, Frezzatti também propõe uma análise relacional sobre o gênio nietzschiano e as concepções de gênio formuladas por Herder, Fichte e Schlegel, demarcando a diferença de pensamento entre os autores. Por fim, se envereda a uma reflexão acerca das possibilidades de caminhos a serem trilhados pelo grande homem, tema que oferece escopo ao assunto central do capítulo quatro, qual seja, o processo seletivo para o “tornar-se o que se é”, centrando-se, em especial, nos manuscritos do Nietzsche maduro.
As questões elencadas por Frezzatti para nortear este momento da obra são elaboradas da seguinte maneira: “Pode-se, por meio da educação, produzir configurações de impulsos potentes? Ou a educação seleciona conjunto de impulsos potentes já estabelecidos?” (2022, p. 141FREZZATTI JR, Wilson Antonio. A fisiologia de Nietzsche: a superação da dualidade cultura/ biologia. 2 ed. Curitiba: CRV, 2022.). Assim, no capítulo que se segue, nosso autor busca perscrutar possíveis respostas exprimindo, de início, que para Nietzsche a educação (Erziehung) nada tem a ver com a instrução escolar (Schulung) ou erudição livresca (Gelehrsamkeit). Ser educado não é o mesmo que ser dotado de conhecimento técnico-científico ou enciclopédico. Mais do que isso, a educação abrange um contínuo e inesgotável processo de transformação e de superação da cultura vigente.
Nietzsche se opõe, nesse sentido, ao sistema educacional europeu, em especial ao instaurado nas universidades que privilegia o fazer científico em detrimento de uma cultura elevada. Um tipo de educação construída e fortificada não por homens de espírito, como deveriam ser os professores, mas por filisteus da formação.A crítica nietzschiana se encaminha, desta maneira, à ideia de que não há nesses espaços educativos uma preocupação com a expansão das potencialidades humanas, mas com a pura mercantilização do estudo. Com isso, o pensar e operar que permeia as universidades e os ideias de uma cultura decadente não logram mais do que o encaixamento do homem em cadeias de utilidades.
Há nesses meios um desprezo pela criação de valores e pela contradição criativa, de maneira tal que qualquer desvio do padrão do que é considerado “bom” e “moral” tende a ser reprimido.Isso impede, na acepção de Nietzsche, o aparecimento de exceções e a chance de viabilizar uma transformação necessária. Não por acaso, a educação nietzschiana tende a prezar por uma educação livre deste tipo de erudição, de um saber arrogado pelos “profissionais” da cultura. Sendo assim, mais do que se aliançar com o ar livresco, é preciso que o aluno entregue-se ao “[...] ar livre das montanhas e do mar; ao invés do peso da erudição, a leveza dos passos de dança. Assim como se deve ter um ritmo para dançar, deve-se ter um ritmo para pensar, ou seja, um estilo: lidar com os conceitos, com as palavras, saber escrever.” (2022, p. 145FREZZATTI JR, Wilson Antonio. A fisiologia de Nietzsche: a superação da dualidade cultura/ biologia. 2 ed. Curitiba: CRV, 2022.).
Isso não torna, todavia, o processo educativo nietzschiano tal como um baile, contente, fácil. É preciso que o aluno aceite a sua senda e trilhe o duro caminho em direção a si e a elevação de sua cultura. Nietzsche compreende, dessa forma, que cada pessoa deve tornar-se mestre de si próprio, seguir o próprio caminho.Tão somente por isso, não há nesta filosofia uma educação ideal, menos ainda um modelo de estilo. Para que surja o gênio, a diversidade é necessária. Impor “tipos” ao outro não é uma característica de Nietzsche, mas uma característica dos legisladores morais, dos sacerdotes, da decadência.
Em suma, o conjunto de forças de um organismo precisa zelar por sua própria tarefa de superação e dominação. Por este motivo, Frezzatti assegura que processo seletivo que culmina numa cultura elevada não deve ser cristalizado, mas constantee rigorosamente ativo. Seguindo a dinâmica aristocrática, não se deve conformar à dureza, mas superá-la em vista de enfrentar obstáculos ainda maiores: “Quando aparece um período de prosperidade, a coação não é mais necessária, mas, para que as características cultivadas pela aristocracia se perpetuem,é necessário que as dificuldades sejam constantemente renovadas.” (2022, p. 155FREZZATTI JR, Wilson Antonio. A fisiologia de Nietzsche: a superação da dualidade cultura/ biologia. 2 ed. Curitiba: CRV, 2022.).
A esta altura, importa destacar que seleção, aqui, não compreende evolução. Nietzsche não acredita que estamos “evoluindo para melhor”. O homem renascentista inclusive é, para o filósofo, mais forte que o homem moderno. Em verdade, essa atenção exacerbada voltada à evolução nem deveria ser motivo de preocupação, uma vez que “o fortalecimento, a elevação,a intensificação não têm nada a ver com um processo evolutivo:a exceção surge por meio do acaso em diferentes lugares, épocas e culturas (Culturen)”. (2022, p. 159FREZZATTI JR, Wilson Antonio. A fisiologia de Nietzsche: a superação da dualidade cultura/ biologia. 2 ed. Curitiba: CRV, 2022.). Para além disso, aquele que esbanja força não se ocupa em conservar a si próprio. “Portanto, os homens elevados são produções esporádicas, resultantes de um processo atávico de acúmulo de força e seletivo, e não alvos a serem atingidos por um processo evolutivo geral da humanidade.” (2022, p. 160FREZZATTI JR, Wilson Antonio. A fisiologia de Nietzsche: a superação da dualidade cultura/ biologia. 2 ed. Curitiba: CRV, 2022.).
Nietzsche permite entrever que o desenvolvimento da cultura ocorre num processo histórico cíclico, sendo que “cada ciclo inicia-se com a imposição de uma perspectiva e termina com sua superação, ou seja, com a imposição de uma nova perspectiva, que é o início do ciclo seguinte.” (2022, p. 184FREZZATTI JR, Wilson Antonio. A fisiologia de Nietzsche: a superação da dualidade cultura/ biologia. 2 ed. Curitiba: CRV, 2022.). E é sobre o ciclo vital da cultura que o quinto e último capítulo da obra de Frezzattise perfaz. E sobre o que trata este ciclo? Sobre o movimento próprio de cada cultura. Chama-se, nesse sentido, de processo nietzschiano de elevação a dinâmica de superação da cultura vigente, que inaugura um novo conjunto de características, uma nova morale um novo processo seletivo. Por isso, é importante ter em vista que a cultura elevada só é elevada em relação a cultura vigente. Não há, por conseguinte, um modelo ideal nietzschiano de cultura elevada, assim como não existe um modelo de educação ou modelo de ser do homem na filosofia de Nietzsche.
E quais são os sinais da cultura tardia, isto é, da cultura que deve ser superada? A resposta reside no processo civilizatório, no ideal de compaixão, na mercantilização da educação e na incapacidade de perceber a degeneração. Todos esses elementos culminam na sufocação dos instintos humanos e na nivelação do homem. É o que Nietzsche nomeia de período de encruzilhada. Ainda que seja marcada pela decadência, debilidade e indisposição para as lutas, entretanto, há ainda a esperança de que surja no meio lânguido da cultura tardia, seja por herança ou criação (angezüchtet), um estímulo vital capaz de promover a superação. É desse estímulo que brotam, na acepção de Nietzsche, “aqueles incompreensíveis e incríveis homens predestinados à vitória e sedução” (cf. JGB / BM § 200), tal como Alcebíades, Césare Leonardo da Vinci.
Ademais, como a cultura tardia não possui um estilo definido, há um constructo de distintas potencialidades humanas que podem fazer surgir tanto o homem débil quanto o gênio. Por fim, Frezzatti oferece uma distinção à cultura elevada e cultura suprema, designação esta que também aparece na filosofia de Nietzsche, embora não diga a mesma coisa que a primeira. Para Frezzatti, a cultura elevada é aquela que superou a cultura anterior, sendo, portanto, resultado de uma única superação. Já a cultura suprema tem potência o suficiente para superar continuamente os próprios movimentos decadentes. É a cultura que se coloca ante desafios em busca da superação e do acúmulo de forças.
Somente da cultura suprema pode nascer aquele queé tão notável na filosofia do alemão, o Übermensch, isto é, o além-do-homem: “aquele que supera a própria humanidade porqueé capaz de se utilizar de todas as capacidades humanas.” (2022, p. 198FREZZATTI JR, Wilson Antonio. A fisiologia de Nietzsche: a superação da dualidade cultura/ biologia. 2 ed. Curitiba: CRV, 2022.). Frezzatti ressalta que a condição intrínseca ao surgimento da cultura suprema e do além-do-homem não se deve unicamente a capacidade de sempre se superar, mas de ser capaz de selecionar o conjunto de impulsos que expresse estilo e potência. Não há superação da decadência sem hierarquia de impulsos. Não basta, portanto, renegar valores morais: a anarquia também é um entrave para Nietzsche, uma vez que a cultura suprema é amiúde seletiva em seu modo de formar e educar os seus.
Respondendo à pergunta elencada no início de seu estudo, Frezzatti compreende que, para Nietzsche, é preciso superara dualidade biologia versus cultura e centrar-se na investigação das configurações impulsionais em busca de mais potência.O filósofo alemão não está, nesse sentido, nem de um lado nem de outro. Em sua filosofia, tanto a cultura quanto os organismos são expressões de conjuntos impulsionais, cabendo ao psicólogo ou ao médico filósofo afinar o seu olhar para esta percepção, o que o tornará, talvez, capaz de diagnosticar a si e ao seu tempo.
Referências
- FREZZATTI JR, Wilson Antonio. A fisiologia de Nietzsche: a superação da dualidade cultura/ biologia. 2 ed. Curitiba: CRV, 2022.
- NIETZSCHE, Friedrich. Além o Bem e do Mal. Tradução de Mario Ferreira dos Santos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.
- NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos. Tradução e notas de Paulo César de Souza. Sã aulo: Companhia de Bolso, 2017.
- NIETZSCHE, Friedrich. Fragmentos Póstumos (1885-1889). Traduccíon de Luis E. de Santiago Guervós. V. 4. 2. Madrid: Editorial Tecnos, 2008.
- NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano. radução e notas de Paulo César de Souza. São aulo: Companhia das Letras, 2005.
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Vê-se Nietzsche dedicar um capítulo ao que designa “Os ‘melhoradores’ da humanidade” em Crepúsculo dos ìdolosNIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos. Tradução e notas de Paulo César de Souza. Sã aulo: Companhia de Bolso, 2017.(1888), realizando a contraposição entre o melhoramento e o fortalecimento sob a perspectiva da moral: “sempre se quis ‘melhorar’ os homens”, diz o filósofo, “tanto o amansamento da besta-homem como o cultivo de uma determinada espécie de homem foram chamados de ‘melhora’: somente esses termos zoológicos exprimem realidades – realidades, é certo, das quais o típico ‘melhorador’, o sacerdote, nada sabe – nada quer saber... Chamara domesticação de um animal sua ‘melhora’ é, a nossos ouvidos, quase uma piada.” (cf. GD/CI “os ‘melhoradores’ da humanidade §2).
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
05 Abr 2024 -
Data do Fascículo
Jan./Apr. 2024
Histórico
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Recebido
03 Jun 2023 -
Aceito
10 Out 2023