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Sofrimento e psicologia de si em Nietzsche

Suffering and Self's Psychology in Nietzsche

Resumo

O objetivo do presente artigo é discutir o estatuto do caráter “pessoal” da filosofia de Nietzsche, tomando como ponto de partida suas reflexões tardias sobre o sofrimento, especialmente nos prefácios de 1886 e em Ecce homo. Apresenta-se inicialmente a contraposição entre duas interpretações extremas a respeito do suposto caráter autobiográfico de seu pensamento, a de Lou Andreas-Salomé e a de Paul Loeb (1); são analisadas soluções mais moderadas do que anteriores, em especial a de Werner Stegmaier e a de Michael Ure (2); discute-se, tomando como referência noções ou ideias norteadoras de sua filosofia, como o sofrimento (3) e a psicologia, em que consiste a “psicologia de si” do “sujeito” Nietzsche (4), indicando-se, conclusivamente, como essas concepções abrem espaço para pensar sua importância nas discussões contemporâneas sobre o sujeito e os processos de subjetivação (5).

Palavras-chave:
Nietzsche; Sofrimento; Psicologia; Psicologia de si

Abstract

The aim of this paper is to discuss the status of the “personal” character of Nietzsche’s philosophy, taking as a starting point his late reflections on suffering, especially in the prefaces of 1886 and in Ecce homo. Initially, a contrast is presented between two extreme interpretations regarding the allegedly autobiographical character of his thought, the one of Lou Andreas-Salomé and the other of Paul Loeb (1); more moderate solutions than previous ones are analyzed, especially those of Werner Stegmaier and Michael Ure (2); it is discussed, taking as reference notions or guiding ideas of his philosophy, such as suffering (3) and psychology, in which the “self-psychology” of the “subject” Nietzsche (4) consists; and it is indicated, conclusively, how these conceptions make room for thinking about their importance in contemporary discussions about the subject and the processes of subjectivation (5).

Keywords:
Nietzsche; Suffering; Psychology; Self’s Psychology

“A filosofia de Nietzsche é um autorretrato?”

Em artigo dedicado a objetar a tese de Lou Andreas-Salomé, segundo a qual a filosofia de Nietzsche NIETZSCHE, F. Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe (KSA: 15 vols.). Hrsg. von G.; Colli und M. Montinari. Berlin/New York: de Gruyter, 1988.seria um “tipo de confissão pessoal, memórias ou autorretrato”, Paul Loeb afirma que o autor na verdade está, quando se refere a tal maneira de fazer filosofia, criticando a filosofia que lhe precedeu, por terem cometido um “erro cognitivo falsificador” de projeção, de “si mesmos e seus preconceitos, na realidade como um todo” (LOEB, 2022, p. 43). Para comprovar seu ponto de vista, Loeb retoma algumas das passagens de Nietzsche em que Salomé se apoia, em especial o aforismo 6 de Para além de bem e mal, que começa com a seguinte afirmação: “gradualmente foi se revelando para mim o que toda grande filosofia foi até o momento: a confissão pessoal de seu autor, uma espécie de memórias involuntárias e inadvertidas” (JGB/ABM 6). Loeb defende fundamentalmente que a metafilosofia de Nietzsche, expressa sobretudo em sua crítica à concepção estoica de natureza no aforismo 9 da mesma obra, tem como meta colocar em xeque tal concepção de filosofia como projeção de si mesmo, na medida em que ela representa uma forma de tiranização da natureza:

Em contraste com os estoicos, que projetam a si mesmos e seus valores na natureza para validá-los, Nietzsche deriva sua concepção de si e seus valores da visão de natureza que ele descobre subtraindo todas essas projeções anteriores. Ainda assim, pode-se perguntar: se essa metodologia é tão importante quanto eu digo, por que ele não a formula mais explicitamente e programaticamente? Minha resposta é que ele está contando com seus leitores para saber que ele já fez isso na seção crucial 109 de seu livro anterior, A gaia ciência. Como demostrado por Paolo D’Iorio (...), as notas preparatórias de Nietzsche e as anotações de livros contemporâneos revelam que ele compôs esta seção em resposta direta aos debates cosmológicos contemporâneos entre filósofos e físicos proeminentes (...). Nessa seção, Nietzsche revisa suas cosmologias organicistas, mecanicistas, materialistas e pampsiquistas, criticando essas teorias por projetar atributos antropomórficos e julgamentos de valor no universo ao todo. (...) Ao final da seção 109, Nietzsche sugere uma nova metodologia interpretativa que irá combater esse tipo de erro cognitivo e falsificação da realidade - ou seja, o desdivinizar da natureza. Aludindo à alegoria fundacional da caverna de Platão, a metáfora que Nietzsche emprega aqui é o de dissipar as sombras obscuras de Deus (FW/GC 108). Uma vez que ele identifica essas sombras como projeções humanas de si mesmos e de seus valores, é claro que ele tem em mente a detecção, crítica e subtração de todos esses erros projetivos. O resultado, escreve ele, será uma natureza pura, recém-descoberta e redimida. Os estudiosos hoje concordam que Nietzsche está perseguindo um projeto naturalista no qual nós humanos somos retraduzidos para a natureza (JGB/BM 230). Mas o que eles geralmente não percebem é que na seção 109 de A gaia ciência Nietzsche explica que o que ele quer dizer com “natureza” é uma natureza que foi purificada de toda mistura antropomórfica (LOEB, 2022, pp. 63-64, grifos meus).

A tarefa da filosofia passaria a ser, para Nietzsche, após a subtração de tais projeções, “ajudar a revelar como o mundo como um todo realmente é” (idem, p. 44) ou, dito de outro modo, “descobrir como é de fato a realidade” (idem, p. 62). Ocorre, contudo, que Loeb avança muito pouco a respeito do que seria essa “natureza” desantropomorfizada (ou o “mundo como um todo” e a “realidade”). Ao contrário do que o intérprete afirma, Nietzsche não elabora propriamente tais noções no paradigmático 109 de A gaia ciênciaNIETZSCHE, F. A gaia ciência. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2001.: nesse contexto, o filósofo de fato tece uma longa crítica aos antropomorfismos nas descrições filosóficas da natureza, bem como aos julgamentos de valor aplicados ao universo como um todo. Mas soa exagerado afirmar que dessa crítica surge uma concepção mais robusta de natureza1 1 O máximo que se pode extrair do aforismo em questão é que “o caráter geral do mundo (...) é caos por toda a eternidade, não no sentido de ausência de necessidade, mas de ausência de ordem, divisão, forma, beleza, sabedoria e como quer que se chamem nossos antropomorfismos estéticos” (FW/GC 109). . E, por mais que o intérprete também se recorra aos importantes 229 e 230 de Para além de bem e mal, indicando a meu ver adequadamente a importância que a tese do naturalismo assume na filosofia de maturidade de Nietzsche, ele pouco explica em que medida essa concepção de natureza “desdivinizada” constitui uma oposição à filosofia como projeção de si2 2 Ainda que o intérprete sinalize que, na busca por “entender o universo como ele realmente é”, processo pelo qual se obtém mais poder intelectual, os “filósofos do futuro” não incorrem i) no erro kantiano de almejar “entender o que o mundo é ‘em si’”; nem ii) na crença de que a filosofia é a “expressão desinteressada da vontade de verdade pela própria verdade” (idem, p. 44). .

Nesse sentido, Loeb parece atribuir um peso excessivo tanto à tese de Salomé de que a filosofia seria para Nietzsche uma espécie de projeção de si quanto à sua própria interpretação, segundo a qual a tarefa da filosofia seria uma explicação da realidade tal como ela de fato é. De modo semelhante, soa pretensioso afirmar que muitas das razões pelas quais se atribui um caráter “autobiográfico” ao pensamento de Nietzsche sejam “óbvias e incontroversas” (Idem, p. 67): assim talvez o seja apenas quando se tem por meta contestar a ideia de que a filosofia de Nietzsche seja “um autorretrato, no sentido de que ele projeta a si mesmo e seus ideais em toda realidade” (idem, ibidem), mas não quando se julga, como é o caso do presente texto, que há muito mais a ser encontrado entre esses dois extremos na leitura do tema.

Loeb não leva em conta uma formulação metafilosófica nietzscheana de juventude bastante importante, a da filosofia como fruto da personalidade, assim como a possibilidade de pensar sua concepção “terapêutica” de filosofia. Ademais, o intérprete desconsidera a importância dos “tipos” no pensamento de Nietzsche, em especial seu uso de procedimentos indutivos para formular teorias mais amplas sobre a cultura. Por fim, o autor também não busca estabelecer uma relação entre o suposto caráter “pessoal” da filosofia de Nietzsche, o qual ele veementemente nega, e o que filósofo alemão teria compreendido como “realidade”, deixando de lado aspectos importantes do seu “perspectivismo”.

A despeito de concordar em parte com as críticas de Loeb à Salomé, em especial na atribuição de um caráter autobiográfico ao pensamento de Nietzsche, defendo i) que o caráter pessoal da filosofia de Nietzsche não pode ser reduzido, contrariamente ao que indica Loeb, ao modo com que Salomé formula o problema; e ii) que os textos nietzscheanos de que o intérprete lança mão para objetá-la não podem ser tomados como o ponto de vista exclusivo do filósofo alemão sobre tal caráter pessoal da filosofia, em especial de sua própria filosofia. Nesse sentido, buscarei explicar em que medida se pode pensar em uma alternativa, ao modo de uma 3ª via, entre os posicionamentos de Salomé e Loeb. Para tanto, recorro-me inicialmente a alguns intérpretes de cujas posições me aproximo mais, e então analiso o papel do sofrimento no que denomino psicologia de si nietzscheana, tendo como base sobretudo os prefácios de 1886 e Ecce homoNIETZSCHE, F. Ecce homo: como alguém se torna o que é. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.. Desse modo, espero poder levantar algumas hipóteses sobre a relação entre aspectos “subjetivos” e “objetivos” em seu pensamento, e mais especialmente sua importância para o criar filosófico.

Da “crítica da razão de sua vida” à “terapia”: o estatuto do suposto caráter pessoal da filosofia de Nietzsche

Werner Stegmaier afirma que a tarefa da filosofia consiste, para Nietzsche,

(...) no desatamento [Loslösung], na libertação [Befreiung] de crenças e vínculos espirituais de todos os tipos (...) e em se tornar um “espírito livre”, capaz de renovadamente se libertar das crenças que renovadamente nos pressionam. O que mais lhe ajudou nesse processo foi, a seu ver, sua doença. Mas a sua autolibertação vai além de tais ocasiões biográficas; portanto, não se pode compreender sua filosofia sem sua vida, mas igualmente também não se pode fazê-lo a partir dela (STEGMAIER, 2011STEGMAIER, W. Friedrich Nietzsche zur Einführung. Hamburg: Junius, 2011., p. 64, minha tradução).

Nesse sentido, a filosofia nietzscheana não seria uma autobiografia, mas a interpretação (filosófica) de sua própria vida como “libertação de vínculos de conhecimento profundamente incorporados”, como a filologia, a filosofia de Schopenhauer, o projeto musical de Wagner e, por fim, seus amigos, dos quais sempre esteve física ou espiritualmente tão próximo (idem, pp. 63-64). Por meio dessa libertação, Nietzsche passou a dispor de uma “força” (Gewalt) que, não mais submetida à moral dominante, lhe tornou capaz de criar e destruir perspectivas (idem, cf. p. 65). Por esse motivo, o intérprete optou por analisar o caráter pessoal dos escritos do filósofo alemão a partir da concepção de “crítica da razão de sua vida”3 3 Em texto publicado cerca de 20 anos antes, Stegmaier (1992) já havia discutido as obras Ecce homo e O anticristo sob esse ponto de vista, em alusão a um dos títulos que Nietzsche havia considerado para a primeira dessas obras (“Da razão de minha vida”). Para o intérprete, essa proposta consiste em contrapor à teoria do conhecimento tradicional, que pressupõe a relação entre sujeito e objeto, uma concepção individualizada de razão, que coloca em xeque precisamente a possibilidade de compreensão de si: compreender-se a si mesmo deixa de ser um primeiro princípio para se tornar o primeiro problema da filosofia de Nietzsche. Ecce homo seria, sob esse ponto de vista, “sua última e, ao mesmo tempo, primeira tentativa sistemática de compreender a si mesmo” (STEGMAIER, 2013, p. 67). .

A “radical individualidade de uma vida e sua originalidade” pressupostas e, ao mesmo tempo, reivindicadas pela filosofia de Nietzsche são discutidas por Jorge Viesenteiner (2013VIESENTEINER, J. L. Nietzsche e a vivência de tornar-se o que se é. Campinas, SP: Editora PHI, 2013. , p. 215), na esteira da interpretação de Stegmaier, a partir do conceito de vivência (Erlebnis). A vivência é, segundo o autor, a marca principal de uma filosofia definida como pathos, como “o padecimento da travessia por uma vivência”. Enquanto tal, é bem mais do que um mero experimento. Ela pressupõe a efetividade daquilo que ocorre na imediaticidade do momento, a intensidade que lhe atribui significatividade e ainda se configura como um sentimento que atravessa esteticamente o corpo. Se positivamente é um pathos, negativamente a vivência pode ser definida como um “contra-conceito da razão”:

A ação já pressupõe uma mediação lógica, seja de reflexão ou intencionalidade, enquanto pathos, ao contrário - além da significação usual de paixão, afeto, dor, sofrimento, etc. -, está em imediata ligação com a vida, profundamente significativo àquele que padece e se furta à instrumentalização da razão. Em outras palavras, sentimos ou temos que suportar algo em meio às dores. Por isso o termo alemão Erleiden significa, mais que sentir algo, “sofrer de algo, sentir dolorosamente algo, e também aguentar, ter que suportar algo (espiritual ou corporalmente)” (idem, p. 139).

Essa breve incursão em tais interpretações é suficiente para ao menos indicar a relevância do caráter pessoal da filosofia para Nietzsche, bem como abrir espaço para se refletir sobre a complexidade de suas reflexões metafilosóficas, que vão bem além de uma mera teorização abstrata sobre experiências pessoais. Uma filosofia como a de Nietzsche, construída a partir de suas vivências mais significativas, é o atestado do caráter incontornavelmente pessoal de seu pensamento4 4 Discuti em outra ocasião a hipótese de que a “Erlebnis do pessimismo” tenha sido uma das principais, senão a principal, vivência filosófica de Nietzsche, em grande medida por trazer o problema do sofrimento ao centro de sua reflexões filosóficas e, a partir desse ponto de vista, colocar a questão fundamental acerca dos juízos de valor sobre si mesmo e sobre o universo como um todo (cf. PAULA, 2012). . Essa caracterização fica ainda mais evidente na ocasião em que Nietzsche descreve o processo de “grande liberação” (groβe Loslösung) como uma “primeira erupção de vontade e força de autodeterminação, de determinação própria dos valores” (MA I/HH I, KSA 2, pp. 16-17), conforme será discutido, adiante.

O caráter pessoal do pensamento de Nietzsche figura de maneira central em um recente e instigante artigo de Michael Ure sobre a filosofia como “modo de vida”. Sua interpretação tem o grande mérito de trazer o problema do sofrimento para o centro da discussão e, desse modo, destacar o aspecto “terapêutico” da filosofia nietzscheana. Seguindo o caminho traçado por Hadot e Foucault, Ure reconhece no pensamento de Nietzsche um importante parentesco com as filosofias helenistas, especialmente o epicurismo e o estoicismo, na medida em que o autor busca reconstituir o modelo antigo de filosofia como uma “arte” ou “techne” de viver para, sobretudo, indicar o seu papel na constituição de “um certo ethos ou caráter”, ou, em última instância, de si mesmo (cf. URE, 2022, pp. 371-32)5 5 Segundo Ure, já no jovem Nietzsche há um compromisso genuíno em compreender o que há de pessoal em cada sistema filosófico, que pode ser percebido sob diversas perspectivas e textos: na análise da relação entre biografia e sistema filosófico (estudos sobre as fontes Diógenes Laércio); na prioridade atribuída à vida e às personalidades dos filósofos em detrimento de suas doutrinas escritas, criando uma história da filosofia como prática vivida (anotações para o “Livro do filósofo” e A filosofia na era trágica dos gregos); no ideal do filósofo como médico da cultura (sobretudo Segunda Extemporânea); ou, ainda, no papel modelar que a biografia de um filósofo exerce no processo de nos tornamos quem somos (sobretudo Terceira Extemporânea) (cf. URE, 2022, pp. 375-376; p. 379; p. 383). .

Com esse intuito, afirma o intérprete, Nietzsche lança mão dos critérios médicos que estruturavam a filosofia helenista para, em um primeiro momento de sua obra, se opor ao pessimismo moderno. Essa concepção de filosofia como modo de vida, presente já na Extemporânea dedicada a Schopenhauer, fica ainda mais clara nas obras do período “intermediário”, sobretudo pelo reconhecimento de que “o discurso filosófico é um meio fundamental para moldarmos e transformarmos a nossa vida”, tese que ganha, de acordo com Ure, “um contorno terapêutico: é um exercício de cura de nós mesmos” (idem, p. 386)6 6 Deve-se destacar que a interpretação de Ure das teses nietzscheanas sobre a verdadeira filosofia como “biografia involuntária” (cf. M/A 481 e JGB/ABM 6) se distingue da de Salomé precisamente pelo potencial terapêutico que o intérprete atribui à filosofia de Nietzsche (cf. URE, 2022, pp. 388-389). . Os prefácios de 1886 parecem ser, para o intérprete, o ápice dessa concepção de filosofia, pois é o momento em que Nietzsche associa sua própria metafilosofia às escolas antigas:

(...) Nietzsche não afirma simplesmente que os filósofos expressam involuntariamente as suas experiências e pulsões interiores através do discurso filosófico. Ele afirma também que eles podem voluntariamente utilizar esses discursos como exercícios através dos quais se moldam a si mesmos. Nesta ótica, Nietzsche afirma que a sua própria trilogia do espírito livre foi um exercício voluntário de si sobre si mesmo, um exercício da sua própria “cura espiritual”, ou uma forma de escrita de si. Nietzsche sublinha que Humano, demasiado humano registra uma “experiência”, nomeadamente a sua própria “história de uma enfermidade e de uma cura” (idem, pp. 388-389).

Nietzsche lança mão, na visão de Ure, do “otimismo” antigo como terapia para o pessimismo moderno, com o qual ele se via profundamente envolvido. Nos prefácios tardios aos dois volumes de Humano, centrais para o tema aqui discutido, o filósofo aplica as teorias antigas em si mesmo, no intuito de se curar do pessimismo, compreendido, portanto, como uma doença. A escrita filosófica teria sido, para o autor, a mais adequada forma de automedicação. Ao retirar a metafísica do horizonte interpretativo possível, um dos principais alvos de seu projeto terapêutico, Nietzsche se liberta de um importante tipo de sofrimento, aquele decorrente dos erros intelectuais (cf. M/A 449), e abre caminho para pensar a sua própria forma de terapia (anunciada em A gaia ciência e denominada por Ure de “pós-clássica”), com a qual almeja atuar tanto sobre a cultura quanto sobre si mesmo, porém sem simplesmente reciclar o modelo antigo:

(...) em Humano, demasiado humano e Aurora Nietzsche usara as terapias filosóficas clássicas para se curar a si próprio do seu pessimismo romântico ou schopenhaueriano. Nietzsche havia-se também valido do ceticismo científico iluminista, em especial dos recentemente emergentes métodos da história natural, para se libertar da agitação das emoções morais irracionais e dos sentimentos religiosos (...). No último volume da trilogia, A gaia ciência, Nietzsche apresenta-se a si mesmo como progenitor de uma terapia filosófica pós-clássica rival. Deste ponto de vista, A gaia ciência marca um importante ponto de viragem na filosofia de Nietzsche, a partir do qual ele começa a formular um projeto ético e ideal de felicidade que rompe radicalmente com os valores que motivaram as terapias filosóficas clássicas (idem, p. 395-396)7 7 Para Marta Faustino (2017), há uma tensão entre o projeto terapêutico nietzscheano e as concepções filosóficas antigas de terapia, no sentido de que, por um lado, o autor almeja uma recuperação da cultura ocidental (atuando como “médico da cultura”), mas, por outro, tece duras críticas a qualquer tentativa (filosófica, moral ou religiosa) de curar a humanidade. Essa tensão se desdobra, segundo a intérprete, em uma “autossupressão” da noção de terapia ou, com as suas palavras, em uma “terapia das terapias”. A proposta de Ure, como se pode perceber, caminha em uma outra direção. Já o meu enfoque, diversamente de Faustino, são os pressupostos e os possíveis usos do conceito de terapia nietzscheano no plano do indivíduo, e não da cultura - razão do maior diálogo com o artigo de Ure, que privilegia tais aspectos pessoais do pensamento de Nietzsche. .

A terapia “pós-clássica” nietzscheana tem como objetivo promover os tipos humanos mais elevados e, em especial, criar novos valores. Os conceitos de amor fati e eterno retorno desempenham um papel central nesse projeto de “educação estética”, de “ética do autocultivo” ou, sobretudo, de “criação de si próprio” (idem, cf. pp. 407-415). O mais instigante da interpretação de Ure é, a meu ver, o destaque atribuído à terapia de si, pois ela abre novas possibilidades de pensar a função do “sujeito” na escrita filosófica: de acordo com o intérprete, a terapia nietzscheana é uma “prática de si aberta às paixões enquanto possíveis instrumentos de autoafirmação e automelhoramento”, e se manifesta em uma ética que implica a abertura às “múltiplas pulsões do si próprio” e a afirmação de “juízos de valor que cultivem uma paixão arrebatadora para exercer e aperfeiçoar essas pulsões que se prestam a realizar a distinção pessoal” (idem, p. 398).

Trata-se, portanto, de uma nova maneira de lidar com as pulsões, retirando o julgamento moral envolvido em seu exercício. Pois, “aos olhos de Nietzsche, as pulsões elas mesmas são ‘inocentes’ e não causam qualquer sofrimento ou doença, a menos que sejam moralmente caluniadas” (idem, p. 399). De um ponto de vista mais básico, “naturalista”, estou de acordo com a posição de Ure: o sofrimento não está relacionado ao livre exercício das pulsões, mas ao seu entravamento. Entretanto, nem Ure e nem qualquer outro(a) intérprete levaram em conta, até onde sei, que Nietzsche tem grande estima pela possibilidade de orientação a partir do sofrimento, na medida em que o sofrimento causado por uma doença (seja ela em sentido literal ou metafórico) indica os caminhos para a maneira mais adequada de dar vazão às pulsões. É a partir desse ponto de vista que discuto o papel do sofrimento no processo de constituição de si - e da filosofia - em Nietzsche.

O papel do sofrimento na escrita de si

Após tratar da “grande liberação” dos espíritos livres no prefácio tardio ao primeiro volumeNIETZSCHE, F. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo, SP: Companhia das Letras , 2000. de Humano, demasiado humanoNIETZSCHE, F. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres volume II. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo, SP: Companhia das Letras , 2008., Nietzsche traz a narrativa para a primeira pessoa no prefácio ao segundo volume, vinculando tal processo de libertação a “si mesmo” e à sua “tarefa”:

Solitário, então, e tristemente desconfiado de mim, tomei, não sem alguma raiva, partido contra mim e a favor de tudo o que precisamente me feria e me era penoso: - desse modo achei novamente o caminho para o valente pessimismo que é o (...) caminho para “mim” mesmo, para minha tarefa. Esse oculto e imperioso algo, para o qual durante muito tempo não temos nome, até que finalmente prova ser nossa tarefa - esse tirano dentro de nós exerce uma terrível represália a cada tentativa que fazemos de evitá-lo ou dele escapar, a cada prematura resignação, a toda equiparação àqueles que nos são alheios, a toda atividade, ainda que respeitável, que nos distraia de nosso tema principal, e mesmo a toda virtude que nos proteja do rigor de nossa responsabilidade mais própria. A doença é a resposta, cada vez que queremos duvidar do direito à nossa tarefa - que começamos a tornar as coisas mais fáceis para nós. Algo peculiar e terrível ao mesmo tempo! As facilidades que nos damos, eis o que temos que pagar mais duramente! E, se depois queremos retornar à saúde, não nos resta escolha: temos de assumir a carga mais pesada do que a que levávamos antes... (MA II/HH II Pr. 4).

A busca pelo caminho para si mesmo e sua tarefa são projetos que se complementam: há uma espécie de “transposição” desse “si mesmo” na “tarefa”, no sentido de que é em seu processo de libertação que o espírito livre cria novos valores a partir de si mesmo, sem o peso da tradição com a qual rompeu. Esses projetos são frutos de um claro comprometimento de Nietzsche com reflexões metafilosóficas no contexto dos prefácios que redige a suas obras anteriores no ano de 1886. Nesses textos o autor:

  1. Apresenta, conforme indicado, uma definição de filosofia como “grande liberação” (MA I/HH I, KSA 2, p. 15) e “arte da transfiguração” (FW/GC, KSA 3, p. 349), segundo a qual a filosofia é compreendida, em linhas gerais, como uma espécie de transposição para o plano espiritual do estado de sofrimento causado por uma “doença”;

  2. Discute as razões que levam um ser humano a filosofar, indicando que tal processo de transposição é uma necessidade vital para um(a) filósofo(a) (cf. FW/GC, KSA 3, p. 350) ou, em outras palavras, que é fruto de uma “tenaz vontade de saúde” (MA I/HH I, KSA 2, p. 18);

  3. E ainda analisa esse modo de criação filosófica, concluindo que o sofrimento é a consequência de um adoecimento (corporal e espiritual), despertando no(a) filósofo(a) a “suspeita” que conduz ao pensamento (cf. MA I/HH I Prefácio; MA II/HH II Prefácio).

O corolário desse processo é o acesso adquirido pelo “espírito”, tornado “livre”, ao “perspectivismo” envolvido no ato de conhecer e valorar. Por essa razão, noções como “solidão”, “experimentação” e “vivência” figuram - ao lado de outras como o par “saúde” e “doença” ou as correlatas “convalescença” e “superação” - como centrais nos prefácios: elas indicam a importância do caráter pessoal que Nietzsche atribui à sua filosofia e vincula à sua própria “tarefa” de transvaloração de todos os valores8 8 Stegmaier (2011, p. 67) indica, de maneira clara, como tal processo de “desatamento” está diretamente relacionado ao caráter pessoal da filosofia de Nietzsche, ao afirmar que o filósofo é um médico, em primeiro lugar, de si mesmo. . É do processo de “grande liberação” que o espírito livre retira a força requerida para essa empreitada. Criar valores a partir de si mesmo significa, nesse contexto, estabelecer uma espécie de normatividade em concordância (ou em sintonia) com o fluxo pulsional de si mesmo, de maneira mais naturalista. A principal implicação desse projeto é, para Nietzsche, que o exercício das pulsões não seja condenado moralmente.

O sofrimento é a “força” que dá as diretrizes do criar filosófico e, desse modo, demarca o seu caráter pessoal, tornando-se fundamental nas discussões tanto sobre a constituição da subjetividade (enquanto narrativa ou escrita de si, em contraposição à ideia de autoconhecimento) quanto sobre a possibilidade de generalização discursiva (para ao menos algumas pessoas) desse processo de libertação. O tema da comunicação das vivências ocupa lugar central no prefácio de A gaia ciência, em que Nietzsche define paradigmaticamente a filosofia como uma espécie de interpretação, transformação, transposição para o plano espiritual, por fim, uma transfiguração de suas vivências pessoais, mas, sobretudo, de suas experiências de sofrimento (cf. FW/GC, KSA 3, pp. 349-351). Cabe à “psicologia” investigar essa íntima relação entre filosofia e saúde:

(...) que temos nós com o fato de o sr. Nietzsche haver recuperado a saúde?... Para um psicólogo, poucas questões são tão atraentes como a da relação entre filosofia e saúde, e, no caso de ele próprio ficar doente, levará toda a sua curiosidade científica para a doença. Pois, desde que se é uma pessoa, tem-se necessariamente a filosofia de sua pessoa. (...) que virá a ser do pensamento mesmo que é submetido à pressão da doença? Eis a questão que interessa aos psicólogos: e aqui o experimento é possível. (...) Após uma interrogação sobre si mesmo, experimentação consigo mesmo, aprendemos a olhar mais sutilmente para todo o filosofar que houve até agora; adivinhamos melhor os involuntários desvios, vias paralelas, pontos de repouso, pontos solares do pensamento, aos quais os pensadores que sofrem são levados e aliciados justamente por sofrerem; sabemos agora para onde o corpo doente, com a sua necessidade, inconscientemente empurra, impele, atrai o espírito - para sol, sossego, brandura, paciência, remédio, bálsamo em todo e qualquer sentido (...). Eu espero ainda que um médico filosófico, no sentido excepcional do termo - alguém que persiga o problema da saúde geral de um povo, de uma época, de uma raça, da humanidade -, tenha futuramente a coragem de levar ao cúmulo a minha suspeita e de arriscar a seguinte afirmação: em todo o filosofar, até o momento, a questão não foi absolutamente a “verdade”, mas algo diferente, como saúde, futuro, poder, crescimento, vida... (idem, pp. 347-348).

O tipo de sofrimento que dá embasamento à criação filosófica - e que denomino “literário-filosófico”9 9 Para uma discussão sobre a metafilosofia nietzscheana a partir de uma tipologia do sofrimento, em especial do que denomino sofrimento “literário-filosófico”, e que está relacionado ao tema da “escrita de si”, cf. “Uma topologia do sofrimento, a partir de Nietzsche”, artigo de minha autoria a ser em breve publicado. - desempenha, portanto, um papel propedêutico no processo de constituição de si, pois ele “liberta” o espírito livre para sua “tarefa”. Esse tema é desenvolvido por Nietzsche em Ecce homoNIETZSCHE, F. Ecce homo: como alguém se torna o que é. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1995., a partir de uma “psicologia de si”, a qual abre espaço para se pensar a concepção de criação, constituição, cultivo ou escrita de si enquanto um processo “terapêutico”.

Uma psicologia de si em Ecce homo

O tema da psicologia ocupa um lugar central em Ecce homoNIETZSCHE, F. Ecce homo: como alguém se torna o que é. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.. Nela o “psicólogo” Nietzsche se define como alguém cuja “sensibilidade perfeitamente inquietante do instinto de limpeza” permite perceber “fisiologicamente (...) a parte mais íntima, as ‘entranhas’ de cada alma” (EH, Por que sou tão sábio 8, KSA 6, p. 275), e, nesse sentido, traz um novo olhar sobre as “razões pelas quais até agora se moralizou e se idealizou” (EH, Prólogo 3, KSA 6, p. 259). O objetivo desse projeto é constituir uma “história oculta dos filósofos, a psicologia de seus grandes nomes” (idem). A psicologia nietzscheana funciona em grande medida, portanto, como uma crítica à moral, em especial à “moral da renúncia de si”, cuja origem o autor localiza na sacralização de valores oriundos do instinto de “negação”, “degeneração” e “décadence”, que sedutoramente governaram a humanidade (EH, AuroraNIETZSCHE, F. Aurora: reflexões sobre os preconceitos morais. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo, SP: Companhia das Letras , 2004.2, KSA 6, p. 330):

As proposições sobre as quais no fundo o mundo inteiro está de acordo (...) aparecem em mim como ingenuidades do erro: por exemplo, a crença de que “altruísta” e “egoísta” são opostos, quando o ego não passa de um “embuste superior”, um “ideal”... Não existem ações egoístas, nem altruístas: ambos os conceitos são um contrassenso psicológico. Ou a proposição: “o homem busca a felicidade”... Ou “a felicidade é o prêmio da virtude”... Ou “prazer e desprazer são opostos”... A Circe da humanidade, a moral, falsificou no cerne - moralizou - todos os psychologica [as questões psicológicas], até chegar ao absurdo de que o amor deve ser algo “altruísta”... (EH, Por que escrevo tão bons livros 5, KSA 6, p. 305).

O critério “fisiológico” de que Nietzsche lança mão em sua crítica à moral garante à sua psicologia uma diversidade de abordagens, presente sobremaneira na Genealogia da moral. Em seu olhar retrospectivo, o autor considera que a cada uma das dissertações corresponde uma aplicação da psicologia: ao cristianismo, à consciência e aos ideais ascéticos (cf. EH, Genealogia da moralNIETZSCHE, F. Genealogia da moral: uma polêmica. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo, SP: Companhia das Letras , 1998.). A despeito do enfoque do método psicológico nas questões morais - levando-se em conta um sentido mais amplo de moral, em que são considerados tanto a formação psíquica dos indivíduos quanto movimentos histórico-culturais -, esse não é o ponto de vista exclusivo defendido em Ecce homo a respeito de seu uso. Ao se referir, por exemplo, às Extemporâneas dedicadas a Schopenhauer e Wagner, Nietzsche afirma que “desejava fazer algo bem diferente de psicologia - um problema de educação sem equivalente, um novo conceito de cultivo de si, defesa de si até a dureza, um caminho para a grandeza e para as tarefas histórico-universais” (EH, As extemporâneas 3, KSA 6, p. 319). Contrariamente, entretanto, ao que o trecho acima poderia sugerir, Nietzsche define o referido “problema de educação” menos a partir de um ponto de vista pedagógico, e bem mais em termos do que poderia ser considerado uma psicologia de si:

Grosso modo, eu agarrava pelos cabelos dois tipos célebres e absolutamente ainda não definidos, como se agarra uma ocasião pelos cabelos, para exprimir algo, para ter em mãos umas tantas fórmulas, signos e meios linguísticos (...). De maneira igual serviu-se Platão de Sócrates, como uma semiótica para Platão. - Agora que olho para trás e revejo de certa distância as condições de que esses escritos são testemunho, não quero negar que no fundo falam apenas de mim. “Wagner em Bayreuth” é uma visão do meu futuro; mas em “Schopenhauer como educador” está inscrita minha história mais íntima, meu vir a ser (...). Considerando que naquele tempo meu ofício era o de erudito, e talvez que eu entendia do meu ofício, não é sem significância um acre fragmento de psicologia do erudito que aparece subitamente nesse trabalho: ele exprime seu sentimento de distância, a profunda segurança sobre o que em mim pode ser tarefa ou apenas meio, entreato e ocupação secundária. É inteligência minha haver sido muitas coisas em muitos lugares, para poder tornar-me um - para poder alcançar uma coisa (idem, p. 319-321).

Pode-se destacar, portanto, ao menos dois sentidos principais de psicologia em Ecce homo: uma psicologia dos “tipos”, que representam para Nietzsche uma síntese dos grandes movimentos culturais da humanidade, e uma psicologia de “si”, voltada para o projeto de transvaloração de todos os valores10 10 O que denomino de psicologia dos “tipos” não corresponde à análise feita por Christian Niemeyer (2014b) da “psicologia dos filósofos” nietzscheana. Ainda que, por um lado, o intérprete critique, a meu ver acertadamente, a posição de Salomé a esse respeito, reconhecendo que a psicologia de Nietzsche consiste em mais do que uma elucidação de um pensamento a partir de uma pessoa; por outro, elenca razões, no meu entendimento insuficientes, para demonstrar o fracasso de tal psicologia dos filósofos, restringindo-se às análises de Nietzsche que de fato partem de pessoas (como Wagner, Schopenhauer, Kant e Spinoza, por exemplo) para explicar suas obras (cf. pp. 479-480). Uma abordagem a partir de uma psicologia dos “tipos” seria mais adequada, a meu ver, para tratar das análises psicológicas de Nietzsche de grandes figuras históricas. É importante destacar que tanto o que denomino como a psicologia dos tipos quanto a psicologia de si têm como pressuposta uma concepção mais ampla e multifacetada de psicologia, tal como discutida por Nietzsche em seu pensamento. Ao tratar dessa concepção mais ampla, Niemeyer (2014a, p. 469) situa a psicologia de Nietzsche “entre a de Schopenhauer e a de Freud, na qualidade de ‘psicologia dos filósofos’”, cujas ambições são “orientadas cognitiva e cientificamente”, e a sistematiza sob dois aspectos: como “novas informações sobre o humano (Menschenkunde)” e como “teoria do comportamento (Behandlungslehre)”. Em relação ao primeiro aspecto, o intérprete considera que a psicologia nietzscheana está comprometida com uma visão do humano em sentido amplo, partindo inclusive de uma crítica às pretensões antropológicas de Kant, uma vez que os humanos muito pouco sabem sobre si mesmos. Esse projeto tem início com a publicação do primeiro volume do Humano e encontra seu ápice em A gaia ciência (e, em grande medida, Zaratustra), em que Nietzsche busca realizar uma descrição o mais completa possível do homem por meio da ciência. É esta que lhe permite colocar em prática um plano de “naturalização” do humano, restituindo-lhe o caráter “animalesco” de sua constituição e, ao mesmo tempo, destacando sua capacidade de criar valores (em contraposição ao processo de normatização das doutrinas morais, que põem os humanos num estado de passividade). Surge daí, especialmente a partir de Além do bem e do mal, o projeto de uma “psicologia profunda”, que, amparada na doutrina da vontade de poder, busca realizar uma descrição pulsional do humano. No interior desse projeto ainda se encontram observações de “psicologia moral”, nos moldes de Paul Rée e da moralística francesa, que buscam explicar a origem de nossos sentimentos morais, e tem seus desdobramentos nas importantes teses (psicanalíticas avant la lettre) da Genalogia da moral sobre o processo de “internalização” do medo dos desejos como o fundamento do homem moral. No que diz respeito ao segundo aspecto da psicologia nietzscheana, Niemeyer destaca seu projeto de transformar o que até então havia sido nomeado como “moral prática” em “arte da boa saúde” e “ciência da boa saúde”. Nesse sentido, o filósofo coloca em questão o significado da atuação dos “médicos da alma” de até então, em especial os “sacerdotes ascéticos”, neles encontrando não uma tentativa de cura, mas apenas um manejo do sofrimento dos “doentes”, de modo a lhes colocarem a seu serviço. O “imoralismo” nietzscheano tem a ver, nesse sentido, com uma proposta “terapêutica” que envolve não apenas um determinado conhecimento da “alma” humana (e do papel ínfimo da consciência em relação ao universo dos estados inconscientes), mas também uma determinada proposta de seu “tratamento”. Contudo, a despeito de destacar que o aspecto que denomino “terapêutico” da psicologia nietzscheana tem em vista uma revisão do papel normativo da filosofia, Niemeyer não leva em conta uma possível concepção de filosofia como “práxis”, fundamental, a meu ver, para compreender o alcance de suas teses “psicológicas”, sobretudo no que diz respeito ao seu caráter pessoal. . Em Ecce homoNIETZSCHE, F. Ecce homo: como alguém se torna o que é. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1995., a psicologia de si é abordada a partir de pelo menos quatro estratégias principais, que evidenciam o caráter pessoal que Nietzsche atribui à própria filosofia - e à filosofia em geral:

  1. Combinação de narrativas de vivências pessoais e (auto)análises filosóficas;

  2. Validação filosófica de vivências pessoais por meio de fenômenos culturais;

  3. Reivindicação de um “si mesmo” para a (sua) filosofia;

  4. Atribuição de papel central ao “gosto” no processo de “constituição de si”.

1. No que diz respeito à primeira estratégia, é paradigmática a longa descrição que Nietsche faz do surgimento, ou do “parto súbito”, após uma gestação de “elefante”, da “concepção fundamental” de Assim falou Zaratustra, o “pensamento do eterno retorno”:

(...) a mais elevada forma de afirmação que se pode em absoluto alcançar, é de agosto de 1881 (...). Naquele dia eu caminhava pelos bosques perto do lago de Silvaplana; detive-me junto a um imponente bloco de pedra em forma de pirâmide, pouco distante de Surlei. Então veio-me este pensamento (...). O inverno seguinte vivi na calma e graciosa baía de Rapallo (...). Minha saúde não era a melhor; o inverno frio e chuvoso ao extremo; um pequeno albergue, situado à beira-mar, de modo que à noite a maré alta tornava o sono impossível, oferecia em quase tudo o oposto do que era desejável. Apesar disso, e como que para demonstrar minha tese de que tudo decisivo acontece apesar de tudo, foi nesse inverno e nesse desfavorecimento das circunstâncias que meu Zaratustra nasceu (EH, Assim falou Zaratustra 1, KSA 6, p. 335-336).

É notório que, para Nietzsche, exista uma íntima relação entre seu estado de espírito (e a influência nele exercida pela sua condição de saúde e pelas circunstâncias espaciais, climáticas, dentre outras, como acontece em diversos momentos de Ecce homo, em especial no capítulo “Por que sou tão inteligente”) e a sua criação filosófica. A descrição de tais situações não implica em uma prescrição de como se deve proceder filosoficamente, mas é ela mesma o caminho seguido pela própria filosofia: tanto do ponto de vista de uma narrativa (mais literal) das condições que levaram ao filosofar (portanto, como pressuposto da filosofia) quanto da perspectiva de que esse procedimento narrativo é em si mesmo uma criação filosófica, enquanto uma criação de si. Um importante indício desse último aspecto nos é dado por Nietzsche logo no início da obra: “Como não deveria ser grato à minha vida inteira? - E assim me conto a minha vida” (EH, KSA 6, p. 263).

Note-se, além disso, que o criar filosófico não é uma simples contiguidade a circunstâncias externas favoráveis. Pelo contrário, ele se manifesta inclusive quando as circunstâncias são as mais adversas possíveis. Isso porque a filosofia é uma força libertada em e a partir de indivíduos cujo pressuposto fisiológico é a “grande saúde”, conforme Nietzsche faz questão de ressaltar em sua discussão sobre a elaboração do “tipo” Zaratustra em Ecce homo (cf. EH, Assim falou Zaratustra 2)11 11 Chama a atenção, ainda a esse respeito, a relação estabelecida por Nietzsche, em seu comentário retrospectivo a Aurora, entre suas vivências pessoais em Gênova e o início de sua “luta contra a moral da renúncia de si”, a partir de uma análise “fisiológica” da moral e da humanidade (cf. EH, Aurora 1 e 2). .

2. A segunda estratégia pode ser notada na ocasião em que Nietzsche trata da “primeira psicologia” do “fenômeno dionisíaco nos gregos” e da “compreensão do socratismo”, em referência às “novidades” apresentadas em O nascimento da tragédiaNIETZSCHE, F. O nascimento da tragédia: ou Helenismo e Pessimismo. Trad. J. Guinsburg. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 1992b.:

Eu havia descoberto a réplica e o símile únicos que a história tem para minha mais íntima experiência - com isso, fora o primeiro a perceber o maravilhoso fenômeno do dionisíaco. Ao mesmo tempo, reconhecer Sócrates como o décadent, eu havia dado uma prova inteiramente inequívoca do quão pouco a segurança de minhas garras psicológicas era ameaçada por quaisquer idiossincrasias morais - a moral mesma como sintoma de decadência é uma inovação, uma singularidade de primeira ordem na história do conhecimento (...). Eu vi por primeiro a verdadeira oposição - o instinto que degenera, que se volta contra a vida com subterrânea avidez de vingança (...), e uma fórmula de afirmação suprema nascida da abundância, da superabundância, um dizer sim sem reservas, ao sofrimento mesmo, à culpa mesmo, a tudo o que é estranho e questionável na existência mesmo... Esse último, mais radiante, mais exaltado-exuberante Sim à vida é não apenas a mais elevada percepção, é também a mais profunda, a mais rigorosamente firmada e confirmada por ciência e verdade (EH, O nascimento da tragédia 2, KSA 6, p. 311).

Perceba-se que, ao afirmar ter encontrado no “fenômeno dionisíaco” o correspondente histórico da sua “mais íntima experiência”, Nietzsche não se refere simplesmente a uma comprovação histórica de suas intuições filosóficas, mas sugere algo mais ousado: que a sua própria filosofia é a “transposição do dionisíaco em um pathos filosófico”. Ao realizar uma psicologia da tragédia e do poeta trágico, Nietzsche encontra, respectivamente, as concepções de trágico e dionisíaco, que lhe permitem se auto-intitular o “primeiro filósofo trágico”, isto é, aquele que realizou uma psicologia do pessimismo grego e, a partir dela, trouxe o dionisíaco e, com ele, o problema do sofrimento para o centro da filosofia (cf. EH, O nascimento da tragédiaNIETZSCHE, F. O nascimento da tragédia: ou Helenismo e Pessimismo. Trad. J. Guinsburg. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 1992b.3). Nietzsche sugere que esse projeto só pôde ser levado a cabo porque ele foi capaz de “traduzir” filosoficamente a sua vivência mais íntima, o que significa colocar a pergunta sobre o vir a ser a partir da ótica pessoal da “afirmação” da existência.

3. A busca por uma validação filosófica de suas vivências pessoais fica ainda mais clara quando Nietzsche reivindica autoridade ao “si mesmo” que fala em sua filosofia. Esse ponto de vista se faz presente logo nas primeiras linhas de Ecce homo:

A fortuna de minha existência, sua singularidade talvez, está na sua fatalidade: diria, em forma de enigma, que como meu pai já morri, e como minha mãe ainda vivo e envelheço. Essa dupla ascendência, como que do mais elevado e do mais rasteiro degrau da minha vida, a um tempo décadent e começo - isso explica (...) tal neutralidade, tal ausência de partidarismo em relação ao problema global da vida, que acaso me distingue (...). Da ótica do doente ver valores e conceitos mais sãos, e, inversamente, da plenitude e certeza da vida rica descer os olhos ao secreto lavor do instinto de décadence - este foi o meu mais longo exercício, minha verdadeira experiência, se em algo vim a ser mestre, foi nisso. Agora tenho-o na mão, tenho mão bastante para deslocar perspectivas: razão primeira porque talvez somente para mim seja possível uma “tresvaloração dos valores” (EH, Por que sou tão sábio 1, KSA 6, p. 264-266).

O fato de ser décadent e não décadent conferiria a Nietzsche sua singularidade, assim como o “perspectivismo” de seu pensamento. Mas o que lhe caracteriza enquanto não décadent, portanto, como alguém sadio, é a capacidade de tomar a si mesmo em mãos, de se curar e, sobretudo, de realizar uma descrição ou narrativa de a si mesmo (cf. EH, Por que sou tão sábio 2). A crítica de Nietzsche à moral da compaixão vai, por sinal, precisamente nessa direção, pois ela busca subtrair o ser humano de si mesmo, como ocorre na “tentação de Zaratustra” (cf. EH, Por que sou tão sábio 4). A solução para esse cenário seria, afirma o autor em referência à sua concepção de amor fati, “tomar a si mesmo como um fado, não querer ser diferente - em tais condições isso é a grande sensatez mesma” (EH, Por que sou tão sábio 6).

4. No capítulo de Ecce homo em que Nietzsche sugere estar fazendo uma “terapêutica” filosófica num sentido supostamente mais usual, ao tratar da alimentação, do lugar, do clima e da distração mais adequados ao pensamento, o autor define “fisiologicamente” esse “sutil cuidado de si (Selbstigkeit)” (EH, Por que sou tão inteligente 2, KSA 6, p. 283) como um processo metabólico que visa a superação do “idealismo”12 12 Nietzsche deixa diversas vezes claro, tanto nos prefácios de 1886 quanto em Ecce homo, que a sua “terapêutica” é dirigida contra o “idealismo”. Para o que o autor compreende como idealismo em Ecce homo, cf. especialmente os capítulos desta obra dedicados a Humano demasiado humano e O caso Wagner. . Trata-se de uma “casuística do egoísmo” (EH, Por que sou tão inteligente 10, KSA 6, p. 295), em cujo centro se encontra a noção de “gosto”:

Em tudo isso - na escolha da alimentação, de lugar e clima, de distração - reina um instinto de conservação que se expressa da maneira mais inequívoca como instinto de autodefesa. Não ver muitas coisas, não ouvi-las, não deixar que se acerquem (...). A palavra corrente para esse instinto de autodefesa é gosto. Seu imperativo obriga não só dizer Não onde o Sim seria “altruísmo”, mas também a dizer Não o mínimo possível. Separar-se, afastar-se daquilo que tornaria o Não sempre necessário (...). Outra prudência e autodefesa consiste em reagir com a menor frequência possível e subtrair-se a situações e relações em que se estaria sujeito a como que suspender sua “liberdade”, sua iniciativa, e tornar-se apenas reagente (EH, Por que sou tão inteligente 8, KSA 6, p. 291-292).

O cultivo do gosto, esse instinto de conservação e defesa, é, portanto, uma prioridade no processo de “constituição de si”. Desenvolver o gosto é criar a habilidade de se afastar do que lhe faz mal e de agir por conta própria, e não apenas a partir da ação de um outro, como reação. Mais do que isso: a questão do gosto, entendida no contexto de uma terapêutica nietzscheana, conduz à pergunta norteadora de Ecce homo:

Neste ponto já não há como eludir a resposta à questão de como alguém se torna o que é. E com isso toco na obra máxima da arte da preservação de si mesmo - do amor de si... (...) Que alguém se torne o que é pressupõe que não suspeite sequer remotamente o que é. Desse ponto de vista possuem sentido e valor próprios até os desacertos da vida (...). Expresso moralmente: amar o próximo, viver para outros e outras coisas pode ser a medida protetora para a conservação da mais dura subjetividade. Este é o caso de exceção em que eu, contra minha regra, minha convicção, tomo o partido dos impulsos “desinteressados”: eles aqui trabalham a serviço do amor de si [Selbstsucht], do cultivo de si [Selbstzucht]. (...) - Entretanto segue crescendo na profundeza a “ideia” organizadora, a destinada a dominar - ela começar a dar ordens, lentamente conduz de volta dos desvios e vias secundárias, prepara qualidades e capacidades isoladas que um dia se mostrarão indispensáveis ao todo (EH, Por que sou tão inteligente 9, KSA 6, p. 293-294).

O tornar-se o que se é, alvo principal da psicologia de si nietzscheana em Ecce homo, tem como pressuposta uma determinada práxis do gosto. Enquanto amor e cultivo de si, tal práxis, e com ela a terapêutica nietzscheana em geral, prepara o terreno para que a “‘ideia’ organizadora”, a força que hierarquiza os impulsos, afetos e sentimentos do indivíduo, ou suas “qualidades e capacidades isoladas”, possa atuar na criação desse “todo” a que se dá o nome de “subjetividade”. Não se busca nesse processo qualquer forma de “heroísmo”. Muito pelo contrário: a terapêutica nietzscheana é o oposto de todo “idealismo”, de todo querer algo de modo diferente do que é, daí a formulação clássica do autor segundo a qual “a grandeza no homem é amor fati” (EH, Por que sou tão inteligente 10, KSA 6, p. 297).

O “sujeito Nietzsche”, a partir da psicologia de si: conclusões e novas questões

Michel Ure (2022URE, M. A reanimação de Nietzsche da filosofia como modo de vida. In: FAUSTINO, M.; TESTA, F. Filosofia como modo de vida: ensaios escolhidos. Coimbra, Portugal: Edições 70, 2022. pp. 371-416., cf. também 2008URE, M. Nietzsche's Therapy: Self-Cultivation in the Middle Works. Lanham (et. al.): Lexington Books, 2008.), conforme demonstrado anteriormente, já havia percebido muito bem quão promissora é uma leitura da filosofia de Nietzsche a partir de ideias como a de “escrita de si” em Foucault e de “filosofia como maneira de viver” em Hadot, sintetizando sua posição no que considera a “terapêutica” nietzscheana. Contudo, nem os autores franceses e nem o intérprete em questão parecem ter levado suficientemente em consideração o papel desempenhado pelo sofrimento nessa terapêutica (e, portanto, na escrita e na constituição de si)13 13 Com a importante exceção de Faustino (2017, cf. também 2013), que reconhece a função do sofrimento nesse projeto, mas, como já indicado, leva mais em conta a terapia nietzscheana da cultura e menos a terapia do sujeito (ou de si mesmo). Stegmaier (2011, cf. esp. pp. 68-70; pp. 76-78), a quem também fiz importante menção anteriormente, destaca o papel do sofrimento na “genealogia de si mesmo” em Ecce homo (definindo o capítulo “Por que sou tão sábio” como uma “Leidensgeschichte”, uma história do sofrimento) e, por conseguinte, na filosofia de Nietzsche, mas não o faz a partir de uma concepção de terapia, que considero bastante adequada para pensar o tema na obra do filósofo alemão. O mesmo vale para o trabalho de Viesenteiner (2013), que reconhece a importância do sofrimento, mas apenas no interior do que ele considera a práxis das vivências para o pensamento, segundo Nietzsche. . Nesse sentido, um olhar atento ao modo com que o autor desenvolve o tema do sofrimento ao longo de sua obra, podendo-se inclusive considerar uma tipologia do sofrimento a partir de seu pensamento14 14 Conforme proponho no já mencionado “Uma tipologia do sofrimento, a partir de Nietzsche”. , abre espaço para pensarmos um importante aspecto da “psicologia” nietzscheana, presente sobretudo em Ecce homo: a psicologia de si15 15 Ainda que eu busque discutir a psicologia de si nietzscheana a partir de um ponto de vista diverso, mas não necessariamente oposto, ao de Antônio Edmilson Paschoal, devo fazer justiça à sua importante contribuição, que me serviu de base desde as primeiras linhas do presente texto, de vincular a crítica nietzscheana ao sujeito ao “sujeito” de sua crítica, ou seja, de sua filosofia. Com esse intuito, o intérprete demonstra que apenas a partir de tal crítica é que se pode pensar esse suposto sujeito, além de indicar as possibilidades abertas pelo pensamento do autor nessa direção: tanto a concepção de sujeito como multiplicidade de forças e impulsos quanto o sujeito como ficção (cf. PASCHOAL 2018; cf. também 2015). . Esta pode ser considerada como um movimento de escrita e constituição de si mesmo, portanto contrário aos projetos que visam um autoconhecimento. E se, nesse contexto, ainda se pode reivindicar em alguma medida um conhecimento de si, mesmo que de modo bastante deflacionado quanto ao seu estatuto e objetivos, ele não existe de maneira desvinculada ou independente de uma criação de si, no sentido de que conhecer-se é também criar-se. Daí a concepção de filosofia como práxis, como terapêutica. A importância do caráter pessoal de uma filosofia não advém de ser uma projeção de si, mas de que essa terapêutica é uma prática de nossos impulsos, afetos e sentimentos, no intuito de determinar uma hierarquia de forças entre eles que esteja mais apta a lidar com a “realidade” - esta entendida a partir da ótica nietzscheana do amor fati, ou seja, do modo com que somos afetados pelo “mundo exterior” ou, com as palavras de Nietzsche, pelo acaso. Buscou-se demonstrar esse ponto de vista a partir da psicologia de si nietzscheana em Ecce homo, não sem antes indicar a sua relação com o papel do sofrimento e da concepção de transfiguração nos prefácios de 1886.

Nietzsche pode ser considerado, a meu ver, como o ponto de inflexão de um movimento mais amplo de reflexões sobre a subjetividade na modernidade. Inaugurado pela “filosofia do sujeito” cartesiana, tal movimento busca, com importantes variações tanto no método empregado quanto nos objetivos inerentes a cada projeto, fundamentar uma concepção de subjetividade centrada em si mesmo16 16 Tomo como referência a esse respeito a importante contribuição de Luís Figueiredo (2007) a respeito dos “processos de subjetivação” da modernidade, cujo ápice é a criação da psicologia enquanto disciplina autônoma no século XIX, e a correspondente tentativa de fundamentar o “sujeito” cientificamente. Essa é uma das razões pelas quais o autor afirma que o nascimento do sujeito coincide com a sua derrocada. Lendo o período histórico que vai de 1500 a 1900, a meu ver a partir de uma ótica foucaultiana, Figueiredo tem, dentre outros, o mérito de demonstrar, por meio de exemplos religiosos, literários, históricos, políticos e filosóficos, que o nascimento do “sujeito” é fruto de um amplo movimento de sucessivas e diversas tentativas de constituição e fundamentação de um “espaço da interioridade”. . Apesar de bastante crítico ao projeto moderno de fundamentação do sujeito, sobretudo o cartesiano, Nietzsche não deixa de usar um método que lhe é bastante semelhante: o da meditação sobre si mesmo (cf. MARTON, 2009MARTON, S. Nietzsche e Descartes: Filosofias de Epitáfio. In: MARTON, S. Extravagâncias. Ensaios sobre a filosofia de Nietzsche. 3. ed. São Paulo: Discurso Editorial; Editora Barcarolla, 2009, pp. 143-166.; WIENAND, 2015WIENAND, I. Writing from a First-Person Perspective: Nietzsche’s Use of the Cartesian Model. In: CONSTÂNCIO, J. (et al.) (orgs.). Nietzsche and the Problem of Subjectivity. Berlin/Boston: De Gruyter, 2015, pp. 49-64). Em nenhum dos autores da modernidade que pensam o sujeito a partir de si mesmo se percebe, entretanto, um papel tão significativo do sofrimento quanto em Nietzsche. O tema do sofrimento é, a meu ver, não apenas o que distingue Nietzsche dessa tradição, mas, tomado em sua relação com a concepção pulsional de sujeito em sua filosofia, aquele que pode abrir importantes possibilidades de se pensar, conjuntamente à psicanálise, nos processos de subjetivação de nossa época. O vínculo e a ruptura de Nietzsche com o projeto moderno, a partir da ótica acima aludida, serão objetos de investigações futuras.

Referências

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  • URE, M. Nietzsche's Therapy: Self-Cultivation in the Middle Works Lanham (et. al.): Lexington Books, 2008.
  • VIESENTEINER, J. L. Nietzsche e a vivência de tornar-se o que se é Campinas, SP: Editora PHI, 2013.
  • WIENAND, I. Writing from a First-Person Perspective: Nietzsche’s Use of the Cartesian Model. In: CONSTÂNCIO, J. (et al.) (orgs.). Nietzsche and the Problem of Subjectivity Berlin/Boston: De Gruyter, 2015, pp. 49-64
  • 1
    O máximo que se pode extrair do aforismo em questão é que “o caráter geral do mundo (...) é caos por toda a eternidade, não no sentido de ausência de necessidade, mas de ausência de ordem, divisão, forma, beleza, sabedoria e como quer que se chamem nossos antropomorfismos estéticos” (FW/GC 109).
  • 2
    Ainda que o intérprete sinalize que, na busca por “entender o universo como ele realmente é”, processo pelo qual se obtém mais poder intelectual, os “filósofos do futuro” não incorrem i) no erro kantiano de almejar “entender o que o mundo é ‘em si’”; nem ii) na crença de que a filosofia é a “expressão desinteressada da vontade de verdade pela própria verdade” (idem, p. 44).
  • 3
    Em texto publicado cerca de 20 anos antes, Stegmaier (1992STEGMAIER, W. Nietzsches Kritik der Vernunft seines Lebens. Zur Deutung von ‚Der Antichrist‘ und ‚Ecce Homo‘ . Nietzsche-Studien 21 (1992), 163-83. ) já havia discutido as obras Ecce homo e O anticristo sob esse ponto de vista, em alusão a um dos títulos que Nietzsche havia considerado para a primeira dessas obras (“Da razão de minha vida”). Para o intérprete, essa proposta consiste em contrapor à teoria do conhecimento tradicional, que pressupõe a relação entre sujeito e objeto, uma concepção individualizada de razão, que coloca em xeque precisamente a possibilidade de compreensão de si: compreender-se a si mesmo deixa de ser um primeiro princípio para se tornar o primeiro problema da filosofia de Nietzsche. Ecce homo seria, sob esse ponto de vista, “sua última e, ao mesmo tempo, primeira tentativa sistemática de compreender a si mesmo” (STEGMAIER, 2013STEGMAIER, W. As linhas fundamentais do pensamento de Nietzsche: coletânea de artigos (1985-2009). Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. , p. 67).
  • 4
    Discuti em outra ocasião a hipótese de que a “Erlebnis do pessimismo” tenha sido uma das principais, senão a principal, vivência filosófica de Nietzsche, em grande medida por trazer o problema do sofrimento ao centro de sua reflexões filosóficas e, a partir desse ponto de vista, colocar a questão fundamental acerca dos juízos de valor sobre si mesmo e sobre o universo como um todo (cf. PAULA, 2012PAULA, W. A. Criar a partir do sofrimento: uma análise dos prefácios de 1886. In: AZEREDO, V. D.; SILVA Jr. , I. (org.). Nietzsche e a interpretação. Curitiba, PR: CRV, 2012 - Coleção Nietzsche em Perspectiva (Volume 1) - coedição: São Paulo, SP: Humanitas, 2012. ).
  • 5
    Segundo Ure, já no jovem Nietzsche há um compromisso genuíno em compreender o que há de pessoal em cada sistema filosófico, que pode ser percebido sob diversas perspectivas e textos: na análise da relação entre biografia e sistema filosófico (estudos sobre as fontes Diógenes Laércio); na prioridade atribuída à vida e às personalidades dos filósofos em detrimento de suas doutrinas escritas, criando uma história da filosofia como prática vivida (anotações para o “Livro do filósofo” e A filosofia na era trágica dos gregos); no ideal do filósofo como médico da cultura (sobretudo Segunda Extemporânea); ou, ainda, no papel modelar que a biografia de um filósofo exerce no processo de nos tornamos quem somos (sobretudo Terceira Extemporânea) (cf. URE, 2022URE, M. A reanimação de Nietzsche da filosofia como modo de vida. In: FAUSTINO, M.; TESTA, F. Filosofia como modo de vida: ensaios escolhidos. Coimbra, Portugal: Edições 70, 2022. pp. 371-416., pp. 375-376; p. 379; p. 383).
  • 6
    Deve-se destacar que a interpretação de Ure das teses nietzscheanas sobre a verdadeira filosofia como “biografia involuntária” (cf. M/A 481 e JGB/ABM 6) se distingue da de Salomé precisamente pelo potencial terapêutico que o intérprete atribui à filosofia de Nietzsche (cf. URE, 2022URE, M. A reanimação de Nietzsche da filosofia como modo de vida. In: FAUSTINO, M.; TESTA, F. Filosofia como modo de vida: ensaios escolhidos. Coimbra, Portugal: Edições 70, 2022. pp. 371-416., pp. 388-389).
  • 7
    Para Marta Faustino (2017FAUSTINO, M. Nietzsche’s therapy of therapy. In: Nietzsche-Studien, 46, 2017, 82-104. ), há uma tensão entre o projeto terapêutico nietzscheano e as concepções filosóficas antigas de terapia, no sentido de que, por um lado, o autor almeja uma recuperação da cultura ocidental (atuando como “médico da cultura”), mas, por outro, tece duras críticas a qualquer tentativa (filosófica, moral ou religiosa) de curar a humanidade. Essa tensão se desdobra, segundo a intérprete, em uma “autossupressão” da noção de terapia ou, com as suas palavras, em uma “terapia das terapias”. A proposta de Ure, como se pode perceber, caminha em uma outra direção. Já o meu enfoque, diversamente de Faustino, são os pressupostos e os possíveis usos do conceito de terapia nietzscheano no plano do indivíduo, e não da cultura - razão do maior diálogo com o artigo de Ure, que privilegia tais aspectos pessoais do pensamento de Nietzsche.
  • 8
    Stegmaier (2011STEGMAIER, W. Friedrich Nietzsche zur Einführung. Hamburg: Junius, 2011., p. 67) indica, de maneira clara, como tal processo de “desatamento” está diretamente relacionado ao caráter pessoal da filosofia de Nietzsche, ao afirmar que o filósofo é um médico, em primeiro lugar, de si mesmo.
  • 9
    Para uma discussão sobre a metafilosofia nietzscheana a partir de uma tipologia do sofrimento, em especial do que denomino sofrimento “literário-filosófico”, e que está relacionado ao tema da “escrita de si”, cf. “Uma topologia do sofrimento, a partir de Nietzsche”, artigo de minha autoria a ser em breve publicado.
  • 10
    O que denomino de psicologia dos “tipos” não corresponde à análise feita por Christian Niemeyer (2014bNIEMEYER, C. Psicologia. In: NIEMEYER, C. (org.) Léxico de Nietzsche. Trad. de André Muniz Garcia et al. São Paulo: Edições Loyola, 2014b. pp. 478-480.) da “psicologia dos filósofos” nietzscheana. Ainda que, por um lado, o intérprete critique, a meu ver acertadamente, a posição de Salomé a esse respeito, reconhecendo que a psicologia de Nietzsche consiste em mais do que uma elucidação de um pensamento a partir de uma pessoa; por outro, elenca razões, no meu entendimento insuficientes, para demonstrar o fracasso de tal psicologia dos filósofos, restringindo-se às análises de Nietzsche que de fato partem de pessoas (como Wagner, Schopenhauer, Kant e Spinoza, por exemplo) para explicar suas obras (cf. pp. 479-480). Uma abordagem a partir de uma psicologia dos “tipos” seria mais adequada, a meu ver, para tratar das análises psicológicas de Nietzsche de grandes figuras históricas. É importante destacar que tanto o que denomino como a psicologia dos tipos quanto a psicologia de si têm como pressuposta uma concepção mais ampla e multifacetada de psicologia, tal como discutida por Nietzsche em seu pensamento. Ao tratar dessa concepção mais ampla, Niemeyer (2014aNIEMEYER, C. Psicologia. In: NIEMEYER, C. (org.) Léxico de Nietzsche. Trad. André Muniz Garcia et al. São Paulo: Edições Loyola, 2014a. Pp. 469-478., p. 469) situa a psicologia de Nietzsche “entre a de Schopenhauer e a de Freud, na qualidade de ‘psicologia dos filósofos’”, cujas ambições são “orientadas cognitiva e cientificamente”, e a sistematiza sob dois aspectos: como “novas informações sobre o humano (Menschenkunde)” e como “teoria do comportamento (Behandlungslehre)”. Em relação ao primeiro aspecto, o intérprete considera que a psicologia nietzscheana está comprometida com uma visão do humano em sentido amplo, partindo inclusive de uma crítica às pretensões antropológicas de Kant, uma vez que os humanos muito pouco sabem sobre si mesmos. Esse projeto tem início com a publicação do primeiro volume do Humano e encontra seu ápice em A gaia ciência (e, em grande medida, Zaratustra), em que Nietzsche busca realizar uma descrição o mais completa possível do homem por meio da ciência. É esta que lhe permite colocar em prática um plano de “naturalização” do humano, restituindo-lhe o caráter “animalesco” de sua constituição e, ao mesmo tempo, destacando sua capacidade de criar valores (em contraposição ao processo de normatização das doutrinas morais, que põem os humanos num estado de passividade). Surge daí, especialmente a partir de Além do bem e do malNIETZSCHE, F. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo, SP: Companhia das Letras , 1992a., o projeto de uma “psicologia profunda”, que, amparada na doutrina da vontade de poder, busca realizar uma descrição pulsional do humano. No interior desse projeto ainda se encontram observações de “psicologia moral”, nos moldes de Paul Rée e da moralística francesa, que buscam explicar a origem de nossos sentimentos morais, e tem seus desdobramentos nas importantes teses (psicanalíticas avant la lettre) da Genalogia da moral sobre o processo de “internalização” do medo dos desejos como o fundamento do homem moral. No que diz respeito ao segundo aspecto da psicologia nietzscheana, Niemeyer destaca seu projeto de transformar o que até então havia sido nomeado como “moral prática” em “arte da boa saúde” e “ciência da boa saúde”. Nesse sentido, o filósofo coloca em questão o significado da atuação dos “médicos da alma” de até então, em especial os “sacerdotes ascéticos”, neles encontrando não uma tentativa de cura, mas apenas um manejo do sofrimento dos “doentes”, de modo a lhes colocarem a seu serviço. O “imoralismo” nietzscheano tem a ver, nesse sentido, com uma proposta “terapêutica” que envolve não apenas um determinado conhecimento da “alma” humana (e do papel ínfimo da consciência em relação ao universo dos estados inconscientes), mas também uma determinada proposta de seu “tratamento”. Contudo, a despeito de destacar que o aspecto que denomino “terapêutico” da psicologia nietzscheana tem em vista uma revisão do papel normativo da filosofia, Niemeyer não leva em conta uma possível concepção de filosofia como “práxis”, fundamental, a meu ver, para compreender o alcance de suas teses “psicológicas”, sobretudo no que diz respeito ao seu caráter pessoal.
  • 11
    Chama a atenção, ainda a esse respeito, a relação estabelecida por Nietzsche, em seu comentário retrospectivo a Aurora, entre suas vivências pessoais em Gênova e o início de sua “luta contra a moral da renúncia de si”, a partir de uma análise “fisiológica” da moral e da humanidade (cf. EH, Aurora 1 e 2).
  • 12
    Nietzsche deixa diversas vezes claro, tanto nos prefácios de 1886 quanto em Ecce homo, que a sua “terapêutica” é dirigida contra o “idealismo”. Para o que o autor compreende como idealismo em Ecce homo, cf. especialmente os capítulos desta obra dedicados a Humano demasiado humano e O caso Wagner.
  • 13
    Com a importante exceção de Faustino (2017FAUSTINO, M. Nietzsche’s therapy of therapy. In: Nietzsche-Studien, 46, 2017, 82-104. , cf. também 2013FAUSTINO, M. Nietzsche e a grande saúde. Para uma terapia da terapia. 2013Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH), Universidade Nova de Lisboa, 2013 (Tese de Doutoramento). ), que reconhece a função do sofrimento nesse projeto, mas, como já indicado, leva mais em conta a terapia nietzscheana da cultura e menos a terapia do sujeito (ou de si mesmo). Stegmaier (2011STEGMAIER, W. Friedrich Nietzsche zur Einführung. Hamburg: Junius, 2011., cf. esp. pp. 68-70; pp. 76-78), a quem também fiz importante menção anteriormente, destaca o papel do sofrimento na “genealogia de si mesmo” em Ecce homo (definindo o capítulo “Por que sou tão sábio” como uma “Leidensgeschichte”, uma história do sofrimento) e, por conseguinte, na filosofia de Nietzsche, mas não o faz a partir de uma concepção de terapia, que considero bastante adequada para pensar o tema na obra do filósofo alemão. O mesmo vale para o trabalho de Viesenteiner (2013VIESENTEINER, J. L. Nietzsche e a vivência de tornar-se o que se é. Campinas, SP: Editora PHI, 2013. ), que reconhece a importância do sofrimento, mas apenas no interior do que ele considera a práxis das vivências para o pensamento, segundo Nietzsche.
  • 14
    Conforme proponho no já mencionado “Uma tipologia do sofrimento, a partir de Nietzsche”.
  • 15
    Ainda que eu busque discutir a psicologia de si nietzscheana a partir de um ponto de vista diverso, mas não necessariamente oposto, ao de Antônio Edmilson Paschoal, devo fazer justiça à sua importante contribuição, que me serviu de base desde as primeiras linhas do presente texto, de vincular a crítica nietzscheana ao sujeito ao “sujeito” de sua crítica, ou seja, de sua filosofia. Com esse intuito, o intérprete demonstra que apenas a partir de tal crítica é que se pode pensar esse suposto sujeito, além de indicar as possibilidades abertas pelo pensamento do autor nessa direção: tanto a concepção de sujeito como multiplicidade de forças e impulsos quanto o sujeito como ficção (cf. PASCHOAL 2018PASCHOAL, A. E. Da crítica de Nietzsche ao sujeito ao sujeito de sua crítica. In: Cadernos Nietzsche, Guarulhos/Porto Seguro, v.39, n.1, p. 93-119, janeiro/abril, 2018.; cf. também 2015PASCHOAL, A. E. Autogenealogia: acerca do tornar-se o que se é. In: Revista Dissertatio, 42, 27-44, verão de 2015.).
  • 16
    Tomo como referência a esse respeito a importante contribuição de Luís Figueiredo (2007FIGUEIREDO, L. C. A invenção do psicológico: quatro séculos de subjetivação. São Paulo: Escuta, 2007. ) a respeito dos “processos de subjetivação” da modernidade, cujo ápice é a criação da psicologia enquanto disciplina autônoma no século XIX, e a correspondente tentativa de fundamentar o “sujeito” cientificamente. Essa é uma das razões pelas quais o autor afirma que o nascimento do sujeito coincide com a sua derrocada. Lendo o período histórico que vai de 1500 a 1900, a meu ver a partir de uma ótica foucaultiana, Figueiredo tem, dentre outros, o mérito de demonstrar, por meio de exemplos religiosos, literários, históricos, políticos e filosóficos, que o nascimento do “sujeito” é fruto de um amplo movimento de sucessivas e diversas tentativas de constituição e fundamentação de um “espaço da interioridade”.
  • Pareceristas

    André Luís Mota Itaparica, Eder Corbanezi

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2024

Histórico

  • Recebido
    19 Jun 2023
  • Aceito
    01 Dez 2023
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