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O pássaro Selvagem

MARTON, Scarlett. “Non dimenticare la frusta!” Nietzsche e l’emancipazione femminile.Traduzione italiana a cura di Maria Cristina Fornari. Pisa: Edizioni ETS, 2023. pp. 142. ISBN 9-788846-765505

Temos em italiano a primeira edição do texto inédito de Scarlett Marton, escrito originalmente em francês, “N’oublie pas ton fouet” Nietzsche et l’èmancipation féminine, traduzida por Maria Cristina Fornari.

Não é a primeira contribuição que a autora oferece sobre a relação entre o pensamento de Friedrich Nietzsche e a questão das mulheres. Na verdade, lembremo-nos de Les ambivalences de Nietzsche: Types, images et figures féminines, publicado em 2021 pela Éditions de la Sorbonne, de Paris; e Nietzsche e as mulheres, publicado em 2022 pela editora Autêntica, de Belo Horizonte.

É preciso dizer, desde já, que a escolha de abordar e aprofundar o estudo das ideias nietzschianas sobre as mulheres e os movimentos feministas apresenta, certamente, maiores dificuldades do que outros campos mais habituais de investigação da filosofia de Nietzsche. Na verdade, essa é uma das questões mais espinhosas de se lidar. Aqui, como talvez aconteça em outros poucos aspectos da obra de Nietzsche, o bom investigador, o mestre da suspeita, um dos mais ousados ​​psicólogos do ser humano e da sociedade, parece dar lugar a um pensador sem originalidade, atingido por uma súbita amnésia de sua própria acuidade, dando voz a preconceitos e grosserias que se chocam com as alturas do pensamento aos quais Nietzsche normalmente acostuma o leitor. Isto explica, por um lado, o número relativamente pequeno de estudos sobre o tema, em comparação com a imensa bibliografia nietzschiana; por outro lado, a divisão destes poucos estudos segundo duas posições expecíficas, que não conhecem nuanças: ou numa defesa cega de posições difíceis de defender, ou numa condenação que deixa pouco espaço para investigação e análise aprofundada.

Dentro desse panorama, o estudo de Marton se destaca dos demais por uma escolha metodológica totalmente original. A sua investigação é centralizada apenas nos textos do filósofo, deixando de fora as considerações biográficas. É uma decisão cientificamente ponderada, pois, considerando bem, querer se envolver no biográfico leva sempre ao risco de interpretações de natureza necessariamente subjetiva. Os dados bibliográficos de que dispomos são, de fato, sempre inferiores àqueles que não podem ser registados, o que pode levar à formulação de hipóteses essencialmente arbitrárias e, em última análise, não verificáveis. Neste caso, porém, abrir mão do apoio à biografia de Nietzsche é também uma escolha corajosa, em muitos aspectos, pois significa privar-se conscientemente da possibilidade de alguns elementos que poderiam, se não equilibrar, pelo menos suavizar as posições bastante questionáveis e difíceis de compartilhar, que encontramos nos textos do filósofo.

Na biografia, Nietzsche poderia ser destacado como, apesar do que escreveu, um dos poucos professores que, em 1874, se posicionou a favor da entrada das mulheres na Universidade de Basileia (cfr. p. 123 n. 3MARTON, Scarlett . «Non dimenticare la frusta!» Nietzsche e l’emancipazione femminile, Edizioni ETS, traduzione italiana a cura di Maria Cristina Fornari, Pisa, 2023.); ou que as únicas pessoas que ele pensava poder estar em um elevado nível filosófico a ponto de se tornar seus alunos, eram Lou Salomé, acima de tudo, e Resa Von Schirhofer - isto é, duas mulheres; ou, ainda, observando a família de Nietzsche, seria até mesmo possível haver um movimento de compreensão em relação a algumas das queixas de Nietzsche sobre as mulheres, se pensarmos em sua mãe e irmã, cujo retorno, escreve ele, o assustaria como "a mais profunda objeção contra o '“Eterno retorno”' (EH-Weise-3). Sem falar que, se analizarmos a frase, certamente não está entre as mais felizes daquelas que Nietzsche nos deixou, que dá título ao estudo de Marton: «Vais ter com as mulheres? Não te esqueças do chicote!» (Za-I-Weiblein) (um depoimento de Resa Von Schirhofer fala de um Nietzsche com lágrimas nos olhos porque viu essa frase mal interpretada), é possível notar, com um sorriso, como a única fotografia que o retrata junto com uma mulher e um chicote - é a mulher, Lou Salomé, que está com o chicote na mão.

Desta forma, propor-se a excluir da investigação elementos biográficos da interpretação de Nietzsche sobre a questão das mulheres significa privar-se voluntariamente de possíveis atenuantes no que diz respeito a muitas das suas declarações. Optar por concentrar-se apenas no que ele escreveu nas suas obras permite a Marton, em contrapartida, oferecer um dos pontos mais inovadores de seu estudo em relação aos trabalhos existentes. A interpretação nietzschiana da mulher está, de fato, inserida no quadro conceitual da filosofia de Nietzsche e avaliada dentro dele. “Nosso ponto de partida é afirmar que quando Nietzsche se expressa sobre as mulheres, o faz sobretudo como filósofo” (Marton, 2023MARTON, Scarlett . «Non dimenticare la frusta!» Nietzsche e l’emancipazione femminile, Edizioni ETS, traduzione italiana a cura di Maria Cristina Fornari, Pisa, 2023., p. 10).

Dessa forma, o texto se oferece como algo a mais do que uma investigação específica. É, ao mesmo tempo, um afresco mais geral sobre o pensamento de Nietzsche, pois prossegue analisando alguns dos principais pontos da reflexão de Nietzsche, esclarecendo aqueles que possibilitam evidenciar a origem, os objetivos e as estratégias que fundamentam as afirmações sobre a questão feminina. Verifica-se, assim, mais de uma vez, que as posições de Nietzsche relativamente às mulheres e aos movimentos emancipatórios se inserem numa crítica mais ampla aos valores históricos e culturais da modernidade: um projecto de dissolução dos fundamentos metafísicos (manifestos ou ocultos), de oposição a toda natureza dogmática do pensamento e a todas as tendências ao essencialismo (Marton, 2023MARTON, Scarlett . «Non dimenticare la frusta!» Nietzsche e l’emancipazione femminile, Edizioni ETS, traduzione italiana a cura di Maria Cristina Fornari, Pisa, 2023., pp. 39, 44, 66, 72-73, 122). Uma crítica corrosiva na qual, é preciso admitir, Nietzsche certamente não faz distinções de gênero, uma vez que até os homens saem igualmente feridos.

Mas esta análise do ponto específico, dentro de um amplo cenário filosófico e textual, não tem intenção apologética. Ao contrário. Um dos resultados que surgem, como consequência natural de focar a atenção somente nos textos do filósofo, é nos permitir perceber como Nietzsche não dedica apenas anotações esporádicas e infelizes às mulheres, mas antes uma quantidade surpreendente de páginas cujo número normalmente não é percebido por uma leitura que não seja especificamente direcionada ao tema. Algumas das frases mais escritas entre aquelas que Nietzsche reserva para a questão das mulheres se revelam não como "acidentes de caminho", mas convicções que ele repete em muitos lugares sobre uma questão que se mostra muito mais importante do que pode parecer à primeira vista.

Diante de tais convicções, ao leitor, por mais que admire Nietzsche, surgem espontaneamente, várias vezes, a questão que a autora explicitamente se coloca: “Mas como é possível que este pensador, tão astuto e perspicaz, se deixe levar tão facilmente por preconceitos?” (Marton, 2023MARTON, Scarlett . «Non dimenticare la frusta!» Nietzsche e l’emancipazione femminile, Edizioni ETS, traduzione italiana a cura di Maria Cristina Fornari, Pisa, 2023., pág. 41). Se Marton, ao traçar o quadro filosófico geral ao qual pertencem estes preconceitos, visa uma maior compreensão, este querer compreender não alcança - nem pretende alcançar - um desejo de justificação. Giorgio Colli escreveu:

Ser justo com Nietzsche significa medí-lo com o que ele mesmo proclamou como “justiça”. A mesma severidade implacável com que olhou para o seu passado e para o seu presente deve ser voltada contra ele. As suas fraquezas devem ser descobertas com malícia, sem indulgência, porque assim fez com os outros. O que ele não conseguiu ver, não devemos perdoá-lo. Isto significa ter aprendido com ele (Colli, Dopo Nietzsche, Adelphi, Milão 1974COLLI, Giorgio. Dopo Nietzsche, Adelphi, Milano 1974.).

Em muitas passagens do texto de Marton encontramos julgamentos absolutamente aceitáveis, ​​que a honestidade intelectual impede de manter em silêncio. A autora escreve que em Nietzsche encontramos “o gesto de exclusão [das mulheres] característico da era moderna” (Marton, 2023MARTON, Scarlett . «Non dimenticare la frusta!» Nietzsche e l’emancipazione femminile, Edizioni ETS, traduzione italiana a cura di Maria Cristina Fornari, Pisa, 2023., p. 11); “saudando a supressão dos direitos das mulheres, Nietzsche não hesita em tomar posição em defesa da sociedade patriarcal” (Marton, 2023MARTON, Scarlett . «Non dimenticare la frusta!» Nietzsche e l’emancipazione femminile, Edizioni ETS, traduzione italiana a cura di Maria Cristina Fornari, Pisa, 2023., pp. 47, 123); “se Nietzsche critica as mulheres que pedem direitos iguais, não está disposto a lutar contra o que as leva a pedi-los, nem contra o que as impede de obtê-los” (Marton, 2023MARTON, Scarlett . «Non dimenticare la frusta!» Nietzsche e l’emancipazione femminile, Edizioni ETS, traduzione italiana a cura di Maria Cristina Fornari, Pisa, 2023., pp. 108, 123); Nietzsche “é cúmplice da depreciação a que as mulheres foram submetidas durante séculos” (Marton, 2023MARTON, Scarlett . «Non dimenticare la frusta!» Nietzsche e l’emancipazione femminile, Edizioni ETS, traduzione italiana a cura di Maria Cristina Fornari, Pisa, 2023., p. 109).

Com isso, não seria admissível cair no erro oposto ao da justificação cega, ou seja, no erro de condenar Nietzsche justamente por culpá-lo por sua extraordinária capacidade de análise filosófica e por seu trabalho de superação das limitações do ser humano pelo qual devemos ser gratos a ele. Vale ressaltar que não estamos, em circunstância alguma, autorizados a exigir o mesmo padrão de Nietzsche em todas as questões que ele aborda. Seria prestar um desserviço ao que ele foi capaz de nos dar, caindo na ingenuidade de não querer aceitar que qualquer autor - mesmo outros filósofos, sobre este e outros temas - por mais extraordinários que sejam, ainda permaneça humano, allzumenschliches.

Mas também é preciso dizer que uma análise equilibrada dos preconceitos de Nietzsche sobre as mulheres não pode levar nem à justificação, nem ao esquecimento da gratidão que lhe é devida pelos resultados insuperáveis em muitas outras áreas. Entretanto, na leitura de todos os pensamentos de Nietzsche sobre a questão da mulher, permanece um sentimento de desagrado muito semelhante à decepção. Hoje, longe de Nietzsche e de sua época, tem-se a impressão de que ele desperdiçou uma oportunidade preciosa de utilizar, pessoalmente, as poderosíssimas ferramentas filosóficas de libertação que ele mesmo forjou e que poderia tê-las utilizado em favor da mulher e de sua emancipação ( não é por acaso que, apesar de tudo, muitos movimentos feministas, como recorda Marton, se tenham posteriormente apropriado destas ferramentas, pp. 129-130).

De fato, com um olhar contemporâneo, mesmo tomando todos os cuidados que evitem cair em anacronismos fáceis, pareceria que Nietzsche teve a possibilidade de perceber que as mulheres que no seu tempo lutaram (e no nosso continuam a lutar) pela emancipação feminina dos julgamentos e sistemas patriarcais que ainda hoje são muito fortes e cada vez mais retrógrados, enquadram-se perfeitamente na esplêndida definição de espírito livre [Frei Geist] que ele cunhou:

É chamado de espírito livre aquele que pensa de modo diverso do que se esperaria com base em sua procedência, seu ambiente, seu status e função [Amt] ou de acordo com as opiniões dominantes em seu tempo. É a exceção, os espíritos presos são a regra; estes últimos o censuram por seus princípios terem origem em sua ânsia de ser notado, ou até mesmo por fazerem pensar em ações livres, isto é, ações incompatíveis com a moralidade coerciva (MA-225NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal, trad. Paulo César de Souza, Companhia das Letras: São Paulo 2005.).

É uma pena que Nietzsche tenha perdido esta oportunidade. Uma oportunidade perdida que talvez encontre a sua encarnação mais icônica em Lou Salomé, uma das personagens mais excepcionais do panorama intelectual do século XX, mulher que conseguiu conquistar uma liberdade extraordinária, que ainda hoje seria invejada. Nietzsche a conhecia bem, embora ainda fosse jovem. Salomé leu o que Nietzsche escreveu sobre as mulheres. Não é improvável que tivesse a inteligência de se concentrar numa das raras passagens nietzschianas sobre o assunto que podem ser interpretadas como uma crítica ao machismo. No final dos tolos Sete Provérbios sobre as Mulheres (JGB-237NIETZSCHE, Friedrich. Humano, Demasiado Humano - Um Livro Para Espíritos Livres, trad. Paulo César de Souza, Companhia das Letras: São Paulo, 2004., ver Marton, pp. 71-77), Nietzsche escreve:

Até agora as mulheres foram tratadas pelos homens como pássaros que se desviaram de alguma altura para baixo até eles: como algo mais delicado, mais frágil, mais selvagem [Wild], mais estranho, mais doce, mais rico em sentimentos, mas também como algo que deve ser aprisionado para não fugir.

Esta imagem da mulher como pássaro selvagem, que por acaso caiu nas mãos do homem que não quer devolver-lhe a liberdade que pertence à sua natureza, torna-se para Salomé o “pato selvagem” (Die Wildente). Na verdade, retomando o título de um drama de 1884, de Henrik Ibsen (contemporâneo de Nietzsche, mas ao contrário deste último, compreendeu profundamente a necessidade e a urgência da emancipação feminina), Salomé faz dela a protagonista de “Uma fábula para introdução” que apresenta as figuras femininas de Herik Ibsen em seus seis dramas familiares (Hugo Bloch, Berlim 1892). O pato selvagem chega por acaso a um sótão onde “os homens mantinham cativos animais de todos os tipos e os desabituavam, com educação e disciplina, da sua vida natural livre”.

O pato selvagem não se deixa domesticar pelo homem, incapaz de extinguir “a audácia de quem nasceu livre”. No final da sua obra, Marton questiona Nietzsche se “esta ave rara”, que deveria permanecer numa gaiola, não teria talvez algo a dizer sobre isso. A resposta da autora, na última frase do livro, é: “acreditamos que sim” (Marton, 2023MARTON, Scarlett . «Non dimenticare la frusta!» Nietzsche e l’emancipazione femminile, Edizioni ETS, traduzione italiana a cura di Maria Cristina Fornari, Pisa, 2023., p. 130). Salomé concorda com ela, pois dedicou a sua vida intelectual ao estudo da mulher como um ser soberanamente autônomo e independente tanto da psicologia masculina como dos modelos masculinos com os quais é habitualmente comparada ao ser estudada. Os seus numerosos textos estão entre os mais profundos que se podem ler sobre a questão feminina e sobre a emancipação da mulher, demonstrando que nesses temas - aquela que não queria ser sua aluna superava em muito quem não era seu professor.

Referências

  • COLLI, Giorgio. Dopo Nietzsche, Adelphi, Milano 1974.
  • MARTON, Scarlett . «Non dimenticare la frusta!» Nietzsche e l’emancipazione femminile, Edizioni ETS, traduzione italiana a cura di Maria Cristina Fornari, Pisa, 2023.
  • MARTON, Scarlett. Les ambivalences de Nietzsche. Types, images et figures féminines, Éditions de la Sorbonne: Paris, 2021.
  • MARTON, Scarlett. Nietzsche e as mulheres Autêntica: Belo Horizonte, 2022.
  • NIETZSCHE, Friedrich. Humano, Demasiado Humano - Um Livro Para Espíritos Livres, trad. Paulo César de Souza, Companhia das Letras: São Paulo, 2004.
  • NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal, trad. Paulo César de Souza, Companhia das Letras: São Paulo 2005.
  • NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo, trad. Paulo César de Souza, Companhia das Letras: São Paulo 2008.
  • NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra, trad. Paulo César de Souza, Companhia das Letras: São Paulo 2011.
  • NIETZSCHE, Friedrich. Henrik Ibsen’s Frauen-Gestalten nach seinen sechs Familien-Dramen Verlag von Hugo Bloch: Berlin, 1892
  • Tradução de Oclécio Lacerda
  • Pareceristas:

    Alexander Gonçalves, Eder Corbanezi

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2024

Histórico

  • Recebido
    08 Fev 2024
  • Aceito
    16 Mar 2024
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