Open-access A união entre Eros e a vontade de potência na obra Psicologia do inconsciente: uma perspectiva junguiana

The union between Eros and the will to power in the work Psychology of the unconscious: a Jungian perspective

Resumo:

Este artigo visa explanar como o conceito vontade de potência, oriundo da filosofia de Nietzsche, é usado por C. G. Jung em sua obra Psicologia do Inconsciente para resolver um problema presente na primeira escola psicanalítica, a saber: a unilateralidade da neurose. Quando Jung identifica certas lacunas na teoria da repressão freudiana, irá reformular a teoria da neurose a partir da apropriação que Alfred Adler, um dos primeiros discípulos de Freud, faz do conceito nietzschiano. Veremos como Jung irá valer-se da oposição entre a teoria de Eros de Freud e a teoria de Adler, que, por sua vez, considera o poder como o principal mecanismo do caráter nervoso. Ao analisar de igual modo ambas as teorias, Jung chegará a conclusão de que o problema da neurose pode ser resolvido mediante a unificação de seus antagonismos. Assim, desenvolverá uma ideia basilar em sua psicologia analítica: a dos tipos psicológicos ou tipos de atitude.

Palavras-chave: Neurose; Eros; Vontade de potência; Extroversão; Introversão

Abstract:

This article aims to explain how the concept of will to power, derived from Nietzsche's philosophy, is used by C. G. Jung in his work Psychology of the Unconscious to solve a problem present in the first psychoanalytic school, namely: the unilaterality of neurosis. When Jung identifies certain gaps in Freud's theory of repression, he will reformulate the theory of neurosis based on the appropriation that Alfred Adler, one of Freud's first disciples, makes of the Nietzschean concept. We will see how Jung will use the opposition between Freud's theory of Eros and Adler's theory, which, in turn, considers power as the main mechanism of the nervous character. By equally analyzing both theories, Jung will come to the conclusion that the problem of neurosis can be solved by unifying its antagonisms. Thus, he will develop a basic idea in his analytical psychology: that of psychological types or types of attitudes.

Keywords: Neurosis; Eros; Will to power; Extroversion; Introversion

O pensamento de F. W. Nietzsche impactou profundamente a primeira escola de psicanálise no início do século XX. Tanto é assim que muitos são os trabalhos que se debruçaram sobre a relação da filosofia nietzschiana com a psicanálise de Sigmund Freud, bem como a psicologia individual de Alfred Adler e a psicologia analítica de C. G Jung. Diante disso, a ideia central do presente artigo não é trazer aos caros leitores uma discussão de cunho meramente comparativo entre esses principais autores, apontando as semelhanças ou as divergências de suas teorias com as do filósofo. Propomos, como é devidamente exigido em uma filosofia da psicanálise, analisar como Jung, em sua obra Psicologia do Inconsciente de 1912, beneficiou-se do conceito-chave de Nietzsche, a vontade de potência1 para pôr em xeque o reinado da pulsão sexual freudiana como única força motriz responsável pela neurose.

A obra Psicologia do inconsciente de Jung surgiu a partir da revisão de seu artigo Neue Bahnen der Psychologie de 1912, que acabou sendo ampliado e modificado com o passar dos anos. Na primeira edição, o trabalho editado e ampliado chamava-se Die Psychologie der unbewussten Prozesse (1917). Na terceira edição, o título foi modificado para Das Unbewusste in normalen und kranken Seelenben (1926). A última edição, por fim, em 1942, levou o título de Über die Psychologie des Unbewussten. A base inicial do artigo consistia em mostrar os aspectos essenciais da interpretação psicológica introduzida por Freud, porém, Jung observou com o passar dos anos que a psicologia direcionada para os problemas do inconsciente estava sofrendo numerosas mudanças, e isso fez com que ele se debruçasse com um pouco mais de atenção sobre o tema do artigo.

Fica claro que sua intenção é trazer uma orientação sobre as mais recentes interpretações desse tema em pauta, pois, para o autor, o estudo do inconsciente tornou-se um problema de grande repercussão a ser estudado na contemporaneidade, já que Jung redige seu trabalho no momento da Primeira Guerra e faz sua última edição em 1942, metade da Segunda Guerra. Dessa forma, seu trabalho tornou-se imprescindível em meio a uma época tão turbulenta e caótica para o homem moderno, e não caberia toda a elaboração de tamanhas questões em apenas um artigo. Temos, por fim, uma obra na qual os principais aspectos da psicologia analítica de Jung podem ser melhor discutidos.

Além do mais, Psicologia acompanhou ao longo dos anos uma boa parte do desenvolvimento, percurso e maturação do pensamento junguiano: os anos posteriores ao seu afastamento com Freud e suas questões iniciais quanto ao problema da repressão e da libido; em seguida, a elaboração quanto ao antagonismo presente na neurose, oriundo da tipologia; até, por fim, alcançar a ideia de um conceito basilar de sua psicologia analítica, o inconsciente coletivo. É, portanto, possível, por meio dessa obra, observarmos como se dá o processo de elaboração das próprias ideias e teorias de Jung, quando, em suas posteriores edições, ele explana quais foram as modificações, inserções e exclusões submetidas até então. E, de modo mais fundamental, é precisamente nessa obra que poderemos observar como se dá o desdobramento e a transformação da concepção de vontade de potência, oriunda da filosofia de Nietzsche, no campo da neurose, evidenciando assim seu imprescindível papel.

A discussão nuclear que Jung irá apresentar estará fundada na análise sobre a divergência que ocorre entre a teoria de Eros, de seu antigo mestre Sigmund Freud, e a teoria da vontade de potência, apropriada por Alfred Adler, lançando a seguinte interrogação - e provocação: a vontade de potência deve ser interpretada “como algo alheio à natureza, como um sintoma de repressão?”, ou ainda mais, “a vontade de potência é algo genuíno ou secundário?” (JUNG, 1989b, p. 26). Isto é, podemos tomar a vontade de potência como uma ramificação da repressão que advém da pulsão sexual ou a interpretamos como um impulso totalmente oposto a ela? Sendo esse o caso, então como resolver o problema da unilateralidade da neurose?

Muito mais do que analisar as principais diferenças entre ambas as teorias, Jung chegará a uma conclusão imprescindível, a saber: Eros e a vontade de potência são teorias de igual dinamismo, impacto e importância sobre a origem da neurose. Contudo, cometem o mesmo equívoco: pecam pelo seu redutivismo2 e unilateralidade, isto é, ambas objetivam explicar, cada uma à sua maneira, a sua origem e isso acaba por reduzir a doença nervosa a uma única pulsão; a uma única explicação e justificativa. Ora, justamente por serem teses opostas, antagônicas, Jung vislumbrou a possibilidade de uma síntese, pois, afinal, é o seu antagonismo que as complementam. Tal conclusão resultará em uma nova compreensão e estudo sobre a etiologia da doença nervosa na linha da psicologia analítica de Jung, a saber: os tipos psicológicos ou tipos de atitude, que culminou em sua obra Tipos Psicológicos de 1921.

Diante disso, no presente artigo trataremos de abordar os principais passos dado por Jung ao longo de sua obra, para compreendermos como seu argumento é construído até chegar à discussão da vontade de potência e o que concluirá com ela. Assim, primeiramente, apresentaremos o desdobramento do argumento do autor, no qual ele se deterá nos fundamentos da psicanálise de Freud, e mais precisamente, no tocante ao pensamento freudiano: a teoria de Eros. É partindo dela que tentaremos evidenciar qual foi a principal objeção de Jung feita à teoria freudiana.

Seguindo os passos de Jung, discorreremos sobre a teoria da neurose de Alfred Adler. Para entendermos como Jung se valerá dessa disputa de ideias, veremos como e por que a concepção de vontade de potência colocada por Adler trouxe um confronto direto e intragável para Freud e sua psicanálise. Tentaremos explanar, em linhas gerais, a apropriação adleriana do conceito de Nietzsche e como ele será interpretado dentro da discussão da neurose. Assim, será possível analisar, eventualmente, a abordagem de Jung com relação ao pensamento adleriano como uma teoria antagônica a de Sigmund Freud.

Finalmente, na terceira e última seção, tentaremos mostrar, em um primeiro momento, os argumentos de Jung para destronar a primazia de Eros como a única força motriz da neurose, e o fará por meio da vontade de potência. O objetivo será evidenciar que o autor, contudo, não está disposto a trocar Eros pelo poder, como faria Adler. Ao invés, pretende igualar a vontade de potência como um impulso, uma força tão poderosa quanto a pulsão sexual. Diante disso, a etapa final consistirá em compreender como a concepção nietzschiana, grandeza igual a Eros, porém oposta, culminará na formulação da ideia da tipologia, um dos grandes alicerces da psicologia analítica junguiana.

O questionamento à teoria de Eros

Nos capítulos iniciais de Psicologia do Inconsciente Jung nos apresenta os primeiros - e primordiais - passos do desenvolvimento da psicanálise de Freud. Ali nos deparamos com a discussão minuciosa do inconsciente e sua função repressora quanto às reminiscências mais antigas do indivíduo, advindas da primeira infância, que acabam por nos conduzir à questão da etiologia da neurose. Pelo método hipnótico introduzido por Josef Breuer, foi possível a apreensão da existência de processos mentais descritos como inconscientes, mas que tal método foi, na realidade, aprimorado e desenvolvido por Freud para tentar encontrar a raiz da neurose. Ao descobrir a associação-livre, Freud deparou-se com a chance de investigar as ideias involuntárias oriundas do inconsciente e assim tentar reconstruir o que foi esquecido pelo consciente. Por fim, constata-se que os conteúdos que haviam sido patologicamente esquecidos lutavam com uma imensa resistência do consciente. Nesse momento, Freud comprova o que viria a ser um dos pilares centrais de sua teoria sobre a neurose - a existência do inconsciente e a repressão. Então, para além da associação-livre, Freud descobre por meio dos sonhos (A interpretação dos sonhos, 1900), um significado oculto, secreto, a saber: um desejo que só ali é manifesto, de forma deformada; que é, portanto, censurado no estado desperto, e por isso apresenta-se para nós de forma irreconhecível, incompreensível, muitas vezes até assustadora.

É bem verdade que Jung mantém-se ao lado de Freud ao validar que os desejos inconscientes são os elementos formadores do sonho, e que por comportarem reminiscências tão antigas, íntimas e secretas, mostram-se desagradáveis à consciência; concorda ainda com a grande força do inconsciente e frisa a importância dos sonhos como a “via régia” para acessá-lo, o único caminho capaz de nos conduzir aos “segredos pessoais mais profundos” (JUNG, 1989b, p. 16). Ele também admite que Freud foi aquele que possuiu “o mérito imorredouro de ter lançado as bases para uma psicologia das neuroses” (Ibid, p. 1), e que seu ensinamento possibilitou o verdadeiro tratamento para essa grave doença. O que temos assim é a compreensão de que a vida inconsciente é constituída por conflitos entre impulsos instituais, repressões e satisfações subjetivas.

A psicanálise de Freud foi acusada de libertar no homem os instintos animais (felizmente) reprimidos, provocando com isso uma catástrofe de consequências imprevisíveis. Este receio evidencia a pouca confiança que se deposita na eficácia dos atuais princípios da moral. Até parece que a pregação moral pode impedir o homem de se precipitar numa libertinagem desenfreada (JUNG, 1989b, p. 18).

Para Freud, esses desejos são provenientes do passado infantil e que por isso não cabem mais no contexto presente do indivíduo, ocorrendo assim a repressão. Jung, ao explanar os passos de seu antigo mestre, tem como meta destacar o quanto Freud buscava a primazia do fator erótico-sexual como origem da neurose ao apontar que essa fixação do neurótico com sua primeira infância seria uma vinculação inconsciente de uma pulsão (Trieb) puramente sexual a certas fantasias infantis. O resultado desastroso, por conseguinte, é o confronto da consciência, que abarca as condutas morais erigidas ao longo de todo processo civilizatório e que se opõe veementemente a esses desejos sombrios do inconsciente - os desejos provenientes de Eros3. É digno de nota apontar que o uso de Freud ao termo “Eros” deve-se estritamente ao sentido etiológico grego, isto é, não se trata do amor romantizado, mas daquela busca do indivíduo pelo objeto desejado. É, portanto, sinônimo de incompletude e, ao mesmo tempo, anseio.

Contudo, Eros tem um grande preço: sua dessexualização, consequência da civilização ocidental moderna. Se, por um lado, Eros evidencia a ligação mais forte entre os indivíduos, por outro, sua renúncia em razão do processo civilizatório foi em muito sofrida. De acordo com Freud, em O mal-estar na civilização, de 1930:

O trabalho psicanalítico nos ensinou que são justamente essas frustrações da vida sexual que os indivíduos chamados de neuróticos não suportam. Eles criam, com seus sintomas, gratificações substitutivas, que no entanto causam sofrimento ao lhes criar dificuldades com o ambiente e a sociedade (FREUD, 2011, p. 52).

Não obstante, é dessa renúncia que as forças destrutivas do inconsciente despertam. Nas palavras de Freud, “por um lado, o amor se opõe aos interesses da cultura; por outro lado, a cultura ameaça o amor com sensíveis restrições” (FREUD, 2011, p. 48). Assim, o pai da psicanálise defende veementemente a primazia do fator erótico no inconsciente, que é por sua vez confrontado e enjaulado pela moral repressora do superego - instância inconsciente residida no ego, que tanto sofre com suas represálias, censuras e cruéis julgamentos.

Jung concorda com a atuação da pulsão sexual e as consequências destrutivas de sua repressão no inconsciente. De igual modo, compreende o impacto dessa repressão não apenas no indivíduo, mas em todo o processo civilizatório ao longo dos séculos. Portanto, ao tratar da neurose que irrompe sob a força de Eros, o autor de Psicologia está, até certo ponto, de acordo com Freud. Porém, ao debruçar-se sobre o que viria a ser o ponto inicial da teoria das pulsões, nos explana: “Eros é um grande ‘demônio’, declara a sábia Diotima a Sócrates. Nunca o dominamos totalmente; se o fizermos, será em prejuízo próprio. Eros não é a totalidade da natureza em nós, mas é pelo menos um de seus aspectos principais” (JUNG, 1989b, p. 20). Eis a ressalva: no fim, trata-se apenas de um dos pilares que sustentam a explanação etiológica da neurose:

O erotismo constitui um problema controvertido e sempre o será, independentemente de qualquer legislação futura a respeito. Por um lado, pertence à natureza primitiva e animal do homem e existirá enquanto o homem tiver um corpo animal. Por outro lado, está ligado às mais altas formas do espírito. Só floresce quando espírito e pulsão estão em perfeita harmonia. Faltando-lhe um dos dois aspectos (grifo nosso), já se produz um dano ou, pelo menos, um desequilíbrio, devido a unilateralidade, podendo resvalar facilmente para o doentio (JUNG, 1989b, p. 20).

O outro pilar será aquele oriundo da concepção filosófica nietzschiana - a vontade de potência. Totalmente oposta à pulsão sexual, essa, em vez de instigar o homem a buscar seu objeto de prazer, o incita ao isolamento e com isso o afasta por completo do objeto, pois o foco aqui é o ego, o sujeito. Nesta altura da discussão estamos no deparando com uma grande estratégia de Jung para questionar a primazia da pulsão sexual, por meio do pulsão de conservação da espécie4. De acordo com Jung (1989a, p. 137), Freud considerava a terminologia de sua teoria “[...] exclusivamente como função biológica”, na qual, primeiro: o objeto é sua finalidade, pois somente por meio dele a obtenção do prazer será possível, e segundo e não menos importante: trata-se da pulsão primordial do homem.

De acordo com Freud, a pulsão de autoconservação da espécie - buscar alimento ao sentir fome ou dormir quando sentir sono - abarca as funções necessárias à sobrevivência. Contudo, em sua psicanálise, esses impulsos dirigidos para o ego “[...] têm um lugar insignificante, comparado com o desenvolvimento inflacionado do fator sexual” (JUNG, 1989b, p. 26)5. Isto é, Freud defende veementemente que “as pulsões sexuais têm importância bem maior para a compreensão das neuroses”, pois para ele essas derivam de “enfermidades específicas da função sexual” (FREUD, 2010, p. 241). Esse é o ponto central da crítica de Jung quanto ao redutivismo e à unilateralidade no pensamento freudiano: tudo é efeito estritamente causal de fatos anteriores, a saber, do passado infantil, e esse efeito é causado pela repressão da pulsão sexual. Jung então vislumbra a vontade de potência como uma possível forma de destronar a libido como única força motriz da neurose, encontrando nessa concepção “um demônio tão grande, antigo e primordial quanto Eros” (JUNG, 1989b, p. 26), ou seja, não inferior ou secundário, mas de igual força.

Na filosofia de Nietzsche, a vontade de potência preserva aquilo que acabou de dominar, porém, vai mais além porque busca sua intensificação, não objetivando apenas a conservação6 e não tem como finalidade o objeto - aspecto que despertou interesse no debate clínico. Trata-se de uma força eficiente, e sendo assim, é uma força plástica, criadora. Novas configurações sobre as demais forças podem ser criadas enquanto houver - e sempre haverá - o impulso sobre uma determinada força impelindo-a a efetivar-se. Assim, a ponte entre o campo da filosofia nietzschiana e os debates psicopatológicos sobre a vontade de potência é devida, em partes, a um de seus aspectos principais, a saber: sua ação de produzir, fazer, formar, efetuar, criar - destoando da pulsão de conservação.

Posto dessa forma, enquanto Eros, por um lado, busca o objeto de desejo para descarregar sua pulsão na qual sua finalidade é o prazer, a vontade de potência, de modo contrário, almeja cada vez mais sua expansão, cada vez mais domínios, mais sobrepujamentos oriundos de combates antagônicos. De acordo com Nietzsche, em seu aforismo 22 de Para além de bem e mal “cada potência, a cada instante, tira a sua última consequência” (eKGWB, JGB-22, Nietzsche, 1999, p. 307). Ou seja, é mais do que se autoconservar, é uma busca incessante de lutas.

Para Jung (1989b, p. 23), no âmbito da neurose, isso significa viver “[...] muito além da pulsão, nas alturas do heroísmo”. Trata-se, portanto, de compreender a essência da vontade de potência, porque ela não se justifica meramente pela necessidade de se conservar ao dominar, mas ter em mente que a meta é sempre dominar cada vez mais, incessantemente. Assim Jung nos apresenta:

Num dos casos, Eros e seu destino são a realidade suprema e decisiva; no outro, é o poder do eu. No primeiro caso, o eu não passa de uma espécie de apêndice de Eros; no segundo, o amor não passa de um meio para se atingir a meta, que é dominar. (JUNG, 1989b, p. 32).

Diante disso, a apresentação da teoria de Alfred Adler torna-se aqui imprescindível, visto que foi ele quem nos trouxe a apropriação do conceito vontade de potência no campo da patologia e nos mostrou como se dá o seu desdobramento por meio dos confrontos com o meio externo, no qual o poder visado pelo ego jamais cessa:

Quis o destino que um dos primeiros discípulos de Freud, Alfred Adler, estabelecesse um conceito de essência da neurose baseado exclusivamente no princípio do poder. [...] Antecipando a principal contradição, quero mencionar de início que para Freud tudo é efeito estritamente causal de fatos anteriores e para Adler, ao contrário, tudo é manobra condicionada pelo fim (JUNG, 1989b, p. 27).

Em Memórias, Sonhos e Reflexões (1961), temos uma citação significativa, na qual poderemos observar a importância da vontade de potência compreendida por Jung como um opositor de igual dinamismo frente a Eros:

De resto, eu considerava a psicologia de Freud uma manobra da história do espírito que vinha compensar a divinização do princípio de poder realizada por Nietzsche. O problema realmente não era “Freud versus Adler”, mas “Freud versus Nietzsche (grifo nosso)” (JUNG, 1989a, p. 138).

Isto é, do ponto de vista de Jung, o conceito originariamente formulado pelo filósofo - e que foi habilmente apropriado pela psicologia adleriana, é aquele que, de modo fundamental, acabou evidenciando as lacunas deixadas pela unilateralidade da pulsão sexual ao apresentar manifestação, força e impacto equivalentes na psique, tão destrutivos quanto, tão significativos quanto. Dessa forma, quando Jung nos traz a sentença “Freud versus Nietzsche”, ele está opondo dois impulsos distintos.

A inserção da vontade de potência na discussão da neurose

Partindo da perspectiva freudiana da pulsão sexual, a vontade de potência nada mais é do que uma consequência da repressão, em virtude do “desconhecimento da pulsão considerada fundamental” (JUNG, 1989b, p. 24). Por isso, voltemos à nossa questão inicial: como observar a função da vontade de potência? Seria, sob a análise de Freud, como um impulso secundário a Eros? Se for assim, como resolver a neurose dentro dessa unitelaridade e redutivismo?

De modo distinto de Freud, Alfred Adler determina que o caráter nervoso é aquele portador de um objetivo fictício, isto é, uma ideia ou meta norteadora imposta pela psique que está buscando uma completude; buscando o afastamento de tudo aquilo que transmite uma profunda sensação de inferioridade por ela apreendida, e que por isso visa a todo custo a superação desse sofrimento, da sensação angustiante de sentir-se inferior. É o que Adler irá denominar como sentimento de personalidade: o indivíduo se agarra fortemente à ilusão de que é capaz de encontrar uma sensação ideal de segurança e bem-estar que possam preservar seu ego de qualquer confronto, insegurança e frustração; afastando-se assim dos padrões da realidade, já que ele não se encontra, nesse estágio, capaz de lidar com seus complexos. Dessa forma, para Adler, a libido, os impulsos sexuais e as tendências às perversões sexuais organizam-se, na realidade, de acordo com seu princípio orientador, não importando de onde se originam. A libido, portanto, não é a força motriz, como sustenta Freud, mas sim, está sujeita a essa ficção orientadora - é por ela direcionada.

No momento que a psique apreende uma inferioridade, ocorre a manifestação do que Adler apresentará como protesto masculino. Trata-se de um “protesto”, porque se manifesta no exato momento que a psique se sente confrontada, insegura; sentindo uma forte necessidade de recuar perante os problemas. Visa buscar poder no sentido de buscar uma ascensão, uma superação para compensar toda essa terrível sensação de inferioridade.

É preciso enfatizar, mesmo que seja de modo breve, que todo indivíduo, sem exceção, é dominado por essa busca por superação, perfeição e completude. A direção principal do homem, desde sua mais tenra infância, é naturalmente voltada para a busca de sua competência, bem como de seu autodomínio. Ele visa constantemente, desde os anos iniciais da formação de sua personalidade, seu aperfeiçoamento. Trata-se, portanto, de uma resposta saudável, criativa e compensatória do indivíduo aos sentimentos normais e universais frente a insignificância e falta de poder que surgem nos confrontos e adversidades da realidade.

Lutar pela perfeição ou tentar buscar a superação frente aos obstáculos pertencentes à existência é o desejo humano natural de passar de uma posição sentida de forma negativa para uma posição afirmativa de vida. É a vontade de potência em seu aspecto criativo, impulsionador, transfigurador, afirmativo. Contudo, lutar por uma superioridade significa agir de forma egocêntrica, quadro em que o indivíduo busca de modo frenético se ver superior perante seu meio, seus problemas ou perante quaisquer aspectos interpretados como ameaçadores. Busca, principalmente, o ganho pessoal sem contribuições ou considerações pelos outros e pelo bem comum. Tudo o que importa é a preservação de si mesmo, de seu ego.

É esse aspecto perigoso e degenerativo da vontade de potência tratada por Adler que Jung nos apresenta em Psicologia: o sentimento de inferioridade que pode, tanto quanto a exacerbação de Eros, levar ao colapso mental. No caso do caráter nervoso, esse sentimento é tomado de forma muito profunda e desenfreada pela psique, quando essa confronta-se com os obstáculos e desafios da realidade. Assim, assustada diante de sua aparente falta de força, completude, sucesso etc., resolve a todo custo encontrar alívio, conforto e segurança. Diante disso, acaba desenvolvendo um protesto demasiadamente agudo frente a tudo o que parece ameaçador ao ego, impelindo de maneira insaciável e obsessiva o indivíduo em busca de poder, a procurar avidamente sempre “estar por cima” e estar seguro - suas metas principais.

Os mecanismos do protesto masculino ocorrem dessa forma: dirá Adler que o aspecto masculino é supervalorizado7, no qual seu principal traço do caráter nervoso é o traço ativo, agressivo, impulsionador. O aspecto feminino, por outro lado, representa a passividade, e é uma variação - atitudes passivas e masoquistas do indivíduo são intensificadas, por meio das quais ele espera ganhar poder e influência sobre os outros a sua volta:

Tenho encontrado regularmente o seguinte: (I) acima-embaixo; (II) masculino-feminino. Além disso, sempre se encontra um arranjo de memórias, sentimentos e ações de acordo com esses tipos de antíteses, no sentido que o paciente as toma (nem sempre é geralmente aceito), isto é, inferior-abaixo-feminino; poderoso-acima-masculino. [...] esse agrupamento é importante porque pode ser conservado ou falsificado à vontade; a distorção do quadro pelo qual o neurótico pode sempre se manter firme em seu ponto de vista, a saber, o de uma pessoa negligenciada” (ADLER, 1921, p. 13).

Trata-se de uma variação do comportamento neurótico, que se esforça para cativar e conquistar os outros mediante uma grande obediência, submissão e humildade - que não raramente degenera-se em traços masoquistas. Já o comportamento ativo, interpretado pela figura masculina, é o que se manifesta de forma mais aguda: exagera sua precaução frente aos outros e começa a antecipar todo tipo de consequências desagradáveis; torna-se insaciável e constantemente luta para estender os limites de sua influência sobre seu espaço e meio; sua desconfiança sobre si mesmo e os outros, sua inveja e sua maldade se tornam tendências cada vez mais agressivas e cruéis, pois são justamente esses traços que garantem uma ideia fantasiosa de supremacia perante seu meio. Por isso a escolha do termo “protesto masculino”, devido à intensidade com que o indivíduo se lança em direção às suas metas fantasiosas.

De qualquer forma, Adler não deixa de sustentar a ressalva de que tanto o indivíduo, que se mostra ativo, quanto aquele que manifesta uma enorme passividade, apresentam, de igual modo, a enorme ânsia de alcançar uma meta que proporciona poder, sempre crescente, e por isso fictícia. Em suma, um desejo incansável que busca estar acima dos antagonismos que desencadearam o protesto.

O que temos que ter em vista é que, quando Adler desenvolve em sua teoria a concepção de poder, sentimento de inferioridade e luta por superação, trata-se de termos que encontram seu fundamento por meio da doutrina da vontade de potência de Nietzsche, e que não menos, culminou em sua obra mais importante, em 1912: Über den nervösen Charakter: grundzüge einer vergleichenden individual-psychologie und psychotherapie. É nesta fase de seu percurso teórico, 1912-13, que Adler refere-se “explícita e confessadamente” à Nietzsche, “sublinhando assim sua discrepância e ao mesmo tempo sua libertação de Freud” (BRUDER-BAZZEL, 2016, p. 347). Isto é, contra os fundamentos basilares da teoria de Eros, o princípio de prazer e o impulso de autopreservação; contra a libido enaltecida por Freud como força motriz, Adler agora opõe-se abertamente a vontade de potência de Nietzsche em sua obra nuclear:

A própria forma de expressão e acentuação desse pensamento norteador, que também pode ser expresso pela “vontade de potência” de Nietzsche (grifo nosso), ensina que há uma força compensatória especial em ação, cujo objetivo é pôr fim ao sentimento de incerteza interior (ADLER, 1921, p. 12).

Com a vontade de potência, o primeiro golpe de Adler acabou sendo desferido estritamente sobre a libido: para Freud é ela a força motriz por trás do fenômeno que é a neurose. Adler, por sua vez, enxerga a neurose por meio de um propósito final. Significa que a percepção do prazer, sua seleção e poder são na realidade impelidos a buscar uma meta final, visando apenas um único propósito: a preservação do ego. O segundo golpe - e podemos dizer aqui o mais forte - é direcionado contra a fundamental visão de Freud sobre a etiologia sexual da neurose: Adler defende que o conteúdo sexual no fenômeno neurótico se origina principalmente por meio da antítese “masculino-feminino”8, isto é, o protesto masculino - a sensação de incompletude - que evolui e se expande. A partir daí o traço sexual na fantasia e na vida do neurótico segue a direção do “objetivo masculino”, ativo, agressivo, no qual, para Adler, toda a imagem da neurose sexual nada mais é do que a representação da distância do paciente em relação a seu objetivo imaginário e a maneira pela qual ele busca alcançá-lo, quiçá superá-lo. Assim, na psicologia adleriana, o erro mais básico e extensivo que a psicanálise freudiana cometeu foi a suposição de que o neurótico está sob a influência de seus desejos infantis mais primevos:

Na realidade, esses desejos infantis já estão sob a compulsão do objetivo imaginário e, em geral, eles mesmos carregam o caráter de um pensamento orientador adequadamente ordenado e se adaptam à expressão simbólica puramente por razões de economia do pensamento (ADLER, 1921, p. X,).

Partamos de um exemplo: uma menina doente que foi durante toda sua infância tomada de uma incomum insegurança apoia-se sobre seu pai e, ao fazê-lo, esforça-se para tornar-se superior à mãe. Isso pode ser compreendido psiquicamente, em uma primeira observação, como a manifestação de um incesto, como se a menina desejasse ser a esposa de seu pai. Ora, dirá Adler, seu objetivo acaba sendo atingido, pois “sua insegurança somente é abolida quando está próxima de seu pai” (ADLER, 1921, p. X). Quanto maior o sentimento de incerteza, isto é, mais agudo o protesto masculino, mais firmemente essa menina irá apegar-se à sua ficção, esforçando-se para torná-la literal. Freud viu-se obrigado a observar nessa intencional manifestação uma reanimação dos desejos infantis, porque eles são vistos como a força motriz. Aqui, de modo oposto, Adler observa que a ficção neurótica luta em direção a sensação de segurança, uma maximização de seu ego, buscando uma solução para seu protesto masculino.

Assim, desmascaramos o caráter neurótico como servo de um objetivo imaginário e estabelecemos sua dependência de um objetivo final. Não surgiu independentemente de nenhum tipo de força primitiva biológica ou constitucional (grifo nosso), mas recebeu direção e motivação da superestrutura compensatória e do princípio orientador esquemático. Sua emergência ocorreu sob a pressão da incerteza, sua tendência a personificar-se é o duvidoso sucesso do desejo de segurança (ADLER, 1921, p. XIV-XV).

Se investigarmos as razões finais para esses dispositivos neuróticos, poderemos conjecturar o que é revelado por meio de toda a análise de Adler: no início do desenvolvimento de uma neurose, lá está de modo muito ameaçador o sentimento de incerteza e inferioridade, demandando insistentemente uma orientação, isto é, buscando por meio de todos os meios a garantia de uma meta e um caminho capazes de tornar a vida suportável. Para Adler fica evidente que esse tipo de psique, que direciona uma força especial para o aumento da consciência do ego, destaca-se do indivíduo normal em razão da sua grande incapacidade de se adaptar na sociedade. Ao tomarmos conhecimento dessas destrezas psíquicas, é possível compreender, em síntese, a luta do neurótico com sua tendência agressiva, sua inquietação e impaciência. Assim a vontade de potência, pelo agudo sentimento de inferioridade, torna-se o verdadeiro escopo, para Adler, da neurose.

Adler vê como um sujeito que se sente inferior e derrotado procura aceder a uma superioridade ilusória, mediante “protestos”, “manobras” e outros estratagemas adequados, indiscriminadamente, contra pais, educadores, superiores, situações, seja o que for (JUNG, 1989b, p. 34).

A unificação entre os antagonismos: extroversão e introversão

Ao explanar a limitação da teoria de Freud por meio da discussão sobre a vontade de potência extraída da filosofia nietzschiana, Jung procura evidenciar a possibilidade do desenvolvimento de uma síntese9, apresentada no capítulo O problema dos tipos de atitude, partindo de duas teorias antagônicas em questão: na teoria adleriana da vontade de potência, o tipo “introvertido” é trazido à luz; por outro lado, é na teoria de seu antigo mestre, Freud, que o tipo oposto, o “extrovertido”, é contemplado10.

Mais do que possibilitar uma nova interpretação diante do problema da neurose, tão em voga naquela época, a concepção nietzschiana da vontade de potência acabou sendo a pedra angular na qual Jung fundamentou os pilares de sua nova psicologia frente ao impasse dessa doença, justamente porque tal conceito-chave o capacitou a repensar e contestar a pulsão sexual como força motriz. Diante disso, a importância da vontade de potência aqui se torna claramente ímpar. De acordo com suas Memórias:

Surgiu-me a ideia de que Eros e a pulsão de poder eram como que irmãos inimigos, filhos de um só pai, filhos de uma força psíquica que os motivava e - se manifestava na experiência sob a forma de oposição: o Eros como patiens, como uma força que se se sofre passivamente, e a pulsão de poder como um agens, como força ativa, e vice-versa. O Eros recorre tantas vezes à pulsão de poder como à pulsão de poder ao Eros. O que seria uma dessas pulsões sem a outra? (JUNG, 1989a, p. 139).

É pareando as duas linhas de pensamento, aparentemente inconciliáveis, que Jung dá um passo além ao propor uma unificação. Ora, quando ambas são examinadas sem parcialidade, não se pode negar que cada uma delas contém suas verdades fundamentais e que por mais contraditórias que sejam entre si, “uma não exclui a outra” (JUNG, 1989b, p. 33). Jung propõe, portanto, uma síntese entre elas, não apenas por estarem corretas em suas devidas perspectivas sobre a neurose, mas principalmente porque, quando analisadas separadamente, são unilaterais e redutivas - uma pendendo estritamente para Eros e a outra para a vontade de potência do eu - levando cada uma a pender para um impulso antagônico. Não obstante, é essa divergência entre Freud e seu antigo discípulo Alfred Adler que leva Jung a concluir que a própria neurose possui, na realidade, dois aspectos contraditórios, mas que podem muito bem ser repensados como tipos opostos de comportamento.

De acordo com Psicologia, o pensamento adleriano consiste em uma supervalorização do sujeito, o qual “as características e a significação dos objetos desaparecem por completo” (JUNG, 1989b, p. 34). Isto é, a relação amorosa e outros desejos que ganharam vida em razão da forte e inconsciente atração pelos seus respectivos objetos, para Adler, não possuem o papel nuclear como na teoria da neurose de Freud. Este, de modo contrário, observa o indivíduo na constante dependência dos objetos11 e intrinsecamente relacionado com eles, nos quais as figuras do pai e da mãe exercem o papel central: “Todas as influências ou condicionamentos que eventualmente ainda venham a ter importância na vida do paciente remontam, em causalidade direta, a essas potências primordiais” (JUNG, 1989b, p. 34).

Jung em sua obra explana que para a psicanálise freudiana “sempre o indivíduo desejará um objeto especificamente qualificado” (JUNG, 1989b, p. 32), e isso se dará invariavelmente conforme o modelo da relação com os pais adquirido na primeira infância. De acordo com Freud, o indivíduo é tomado pelo desejo de prazer, mas este sempre recebe sua qualidade de objetos que são específicos, afinal, “[...] estamos falando de uma energia psíquica cujo trabalho é a atração” (BARCELLOS, 2019, p. 302).

É, por conseguinte, dentro dessa ótica que os objetos são aqueles que denotam um grau muito maior de importância, sendo, conforme suas características, proveitosos ou prejudiciais12, já que possuem uma força determinante sobre o sujeito - que não é mais do que a fonte do desejo de prazer. Assim:

Observando o dilema, eu me pergunto: será que existem pelo menos dois tipos diferentes de pessoas, um dos quais se interessa mais pelo objeto e o outro por si mesmo? E podemos dar-nos por satisfeitos com a explicação de que um deles só vê um lado e o outro só o outro e que por isso os resultados são diametralmente diferentes? (JUNG, 1989b, p. 35).

Diante disso, é importante ressaltar que o autor de Psicologia do Inconsciente não toma um partido -, nem pretende - sobre a origem da neurose. Jung não mantém o reinado de Eros, como também não eleva a vontade de potência acima do fator sexual, como faz Adler. Partindo de duas teorias que divergem essencialmente, confrontará os dois impulsos e dará a eles uma função de complementaridade ao reinterpretá-los como introversão e a extroversão13.

A primeira atitude, quando normal e sã, é apresentada sob a forma de um indivíduo “reflexivo, hesitante e retraído”, que prefere sempre se servir de uma “observação desconfiada” perante a tudo o que lhe apresenta como novo, diferente (JUNG, 1989b, p.36). Já a segunda, também num quadro de saúde e normalidade, é caracterizada por um indivíduo que é “afável, despreocupado e aparentemente aberto” e que se adapta bem a qualquer situação (JUNG, 1989b, p.36).

Contudo, nos indivíduos neuróticos ora um tipo aparece, ora outro, por causa da dissociação da personalidade - uma cisão interna que está nela ocorrendo -, o que não traz uma certeza se tal atitude manifesta é consciente ou inconsciente. Assim, por meio de seu antagonismo, Jung vislumbrou a possibilidade de uma nova teoria que “fosse justa, não para com uma ou com outra, mas com as duas” (JUNG, 1989b, p. 37). Para Jung ambas as linhas aproximam-se, não só por causa do seu aspecto unilateral14, mas por seu grau de redutividade, justamente o aspecto que acaba por limitá-las:

Não há dúvida de que Eros está sempre presente, sempre e em toda parte. Não há dúvida de que o impulso de poder penetra no que há de mais sublime e mais real na alma humana. Mas a alma não é só isso ou aquilo, ou, se preferirem, isso e aquilo, mas também tudo o que ela já fez e ainda vai fazer com isso (JUNG, 1989b, p. 38, grifo no original).

Os sintomas da neurose não são, portanto, somente efeitos de reminiscências passadas da primeira infância, isto é, como a sexualidade infantil propõe; assim como não são somente efeitos do impulso de poder do eu, mas sim trata-se de tentativas para uma nova síntese de vida. Além disso, devido à divergência de ambas as teorias, Jung observou a função da compensação dos opostos no cerne da teoria da neurose, bem como a necessidade da tensão entre eles como imprescindível à psique humana. Ou seja, é preciso que o oposto da atitude consciente se manifeste e seja encontrado:

[...] a teoria de Freud representa Eros; a de Adler, o poder. [...] Onde impera o amor, não existe vontade de poder; e onde o poder tem precedência, aí falta o amor. Um é a sombra do outro. Quem se encontra do ponto de vista de Eros procura o contrário, que o compensa, na vontade de poder. Mas quem põe a tônica no poder, compensa-o com Eros (JUNG, 1989b, p. 45).

Com essa nova interpretação da etiologia da neurose, o caminho para a cura da doença dá-se, por conseguinte, pela busca da totalidade dessa psique cindida: Eros de um lado e a vontade de potência do outro; extroversão e introversão. Assim, devemos entender que “tipos gerais de atitude” são, no pensamento junguiano, aqueles que denotam quaisquer comportamentos peculiares frente ao objeto:

O introvertido está basicamente sempre preocupado em retirar a libido do objeto, como a prevenir-se contra um superpoder do objeto. O extrovertido, ao contrário, [...] afirma a importância [do objeto] na medida em que orienta constantemente sua atitude subjetiva por ele e a ele se reporta (JUNG, 1991, p. 315).

Os tipos distribuem-se aleatoriamente, isto é, não são escolhidos pelo sujeito conscientemente, pois sua existência deve-se a “um fundamento inconsciente e instintivo” (JUNG, 1991, p. 316), e sua relação, frisa Jung, é uma relação de adaptação15. Ou seja, as atitudes e comportamentos do sujeito frente ao objeto é que acabam por evidenciar seu processo de adaptação.

O extrovertido se caracteriza por sua constante doação e intromissão em tudo; [enquanto] a tendência do introvertido é defender-se contra as solicitações externas e precaver-se de qualquer dispêndio de energia que se refira diretamente ao objeto, e criar para si uma posição segura e fortificada ao máximo (JUNG, 1991, p. 316).

O que é preciso compreender, é que ambas as atitudes existem dentro do indivíduo, porém “apenas uma delas é que foi desenvolvida como função de adaptação” (JUNG, 1991, p. 48), isto é, o indivíduo mantém a atitude que lhe é natural, pois é com ela que consegue adaptar-se ao seu meio.

No tipo extrovertido, quando consciente, o objeto determina e desempenha um papel bem maior que a opinião subjetiva. Assim, as decisões e ações mais frequentes do sujeito são condicionadas pelas circunstâncias objetivas, pois predomina a orientação pelo objeto e pelo dado objetivo. As pessoas, o ambiente, as coisas, enfim, despertam seu interesse, e dessa forma, influenciam fortemente as ações deste indivíduo. Portanto, a normalidade, nesse caso, deve-se por um lado ao fato de o indivíduo “estar relativamente bem ajustado às circunstâncias dadas e não ter outras pretensões além de realizar as possibilidades objetivamente dadas” (JUNG, 1991, p. 319), como, por exemplo, na sua profissão, relacionamento pessoal e relacionamento social. O grande perigo, isto é, a iminência do colapso nervoso, ocorre quando o sujeito se perde completamente dentro do objeto em razão de sua enorme atração. Nesse quadro, no qual o inconsciente agora impera, a sua atitude extrovertida é o tempo todo tentada a desfazer-se de si em benefício do objeto, na busca de assimilar o sujeito ao objeto.

Aqui, a consequência desta perturbação nervosa consiste em buscar uma compensação que force o indivíduo, até então extrovertido, à sua característica contrária, a saber, um “autofechamento involuntário” (JUNG, 1991, p.320). Não é de surpreender que a neurose mais frequente advinda da extroversão seja, por exemplo, a histeria, já que denota uma relação exagerada com as pessoas e o seu ambiente:

O caráter histérico é antes de tudo um exagero da atitude normal, mas logo complicado por reações compensatórias do inconsciente que, opondo-se à extroversão exagerada, mediante perturbações corporais, forçam a energia psíquica para a introversão (JUNG, 1991, p. 321).

Ou seja, uma atitude inconsciente de caráter introvertido surge como compensação, buscando complementar a extroversão consciente, extroversão essa que por ter desempenhado um papel de unilateralidade acabou por cindir a psique do indivíduo. Agora, toda a energia psíquica será concentrada sobre as necessidades e pretensões que antes foram reprimidas pela atitude consciente demasiadamente extrovertida, sem equilíbrio16. Por isso, concluirá Jung, que “tais pretensões inconscientes têm caráter primitivo, infantil e autista” e que além disso, se “Freud diz que o inconsciente só sabe desejar, isso vale em um grau elevado para o inconsciente extrovertido” (JUNG, 1991, p. 322). Ou seja, tendências como ideias, desejos, necessidades, sentimentos etc., assumem uma característica regressiva de acordo com seu grau de repressão, pois, quanto menos reconhecidas forem, mais arcaicas e infantis se tornarão. Como resultado, a caracterização dessa atitude inconsciente é de um egoísmo tamanho que supera o infantil e beira ao perverso.

Quando a atitude é consciente, ela toma dessas devidas tendências quantidades de energias relativamente disponíveis, deixando apenas uma pequena parte de energia psíquica e que não consegue extrair depois. Esse resquício Jung o denominará como pulsão primitiva, porque possui sua força própria para emergir quando é necessitado, ou seja, quando a psique está em desequilíbrio. É por isso que quando ocorre um exagero na atitude consciente, a atitude inconsciente rapidamente irá se manifestar buscando compensá-la. Porém, esse mecanismo que aparenta ser a solução acaba, na realidade, gerando uma enorme catástrofe para a psique, porque a reação inconsciente paralisa por completo a ação consciente. Com isso, o colapso nervoso é inevitável.

Por sua vez, o tipo introvertido é aquele que se orienta por fatores subjetivos. Dirá Jung (1991, p.353) que “entre a percepção do objeto e o agir do introvertido, se interpõe uma opinião subjetiva impedindo que o agir assuma um caráter correspondente ao dado objetivo”. Se, por um lado, o tipo extrovertido apoia-se em tendências que provém do objeto, o introvertido é aquele que pode ser compreendido como uma reserva do ego. Contudo, é preciso aqui sustentar uma importante ressalva: de fato, a atitude introvertida é a estrutura psíquica do sujeito antes de qualquer desenvolvimento de um “eu”; isto é, o sujeito é muito mais abrangente e abarca o inconsciente. Por isso, Jung o denomina como “si-mesmo”17 e identifica o ego como apenas o ponto central da consciência. Porém, o introvertido é aquele que confunde seu ego com essa instância:

É peculiaridade típica do introvertido que, seguindo sua própria tendência ou algum preconceito comum, confunda seu ego com o si-mesmo e eleve o primeiro a sujeito do processo psíquico, consumando assim a subjetivação mórbida de sua consciência que o torna estranho ao objeto (JUNG, 1991, 355).

A decisão e a inflexibilidade do julgamento subjetivo, a priori superior às influências subjetivas, é, de acordo com Jung, facilmente confundido com o comportamento egocêntrico. Isso se deve ao fato de o introvertido não estar familiarizado com as condições inconscientes desse seu julgamento. Se estamos falando de uma neurose, temos aqui indício de uma identidade inconsciente, maior ou menor, do ego com o sujeito (o si-mesmo), na qual a importância desse é reduzida drasticamente, enquanto o ego é enaltecido sobremaneira.

O poder indubitável e determinante do mundo do fator subjetivo é, então, comprimido no eu, produzindo-se um desejo incomensurável de poder e um egocentrismo simplório. Toda psicologia que reduz a essência da pessoa ao impulso inconsciente de poder provém dessa disposição. Muitas coisas sem gosto, em Nietzsche, devem sua existência à subjetivação da consciência (JUNG, 1991, p. 356).

Nota-se aqui a inserção da vontade de potência nos moldes da tipologia psíquica. Com isso é possível afirmarmos que Jung também concorda com a psicologia de Adler no tocante aos complexos e sintomas do caráter nervoso como “manobras sutis” (JUNG, 1989b, p. 32) que visam alcançar seus objetivos com a finalidade de preservar o ego. O objeto de desejo, sob a égide da vontade de potência, não passa de um mecanismo para que o eu atinja seu objetivo, o qual é dominar18, assim como virtudes apresentadas servem apenas para forçar o reconhecimento dos outros. É o poder tirano do eu.

Quando o ego assume as aspirações do sujeito, um fortalecimento inconsciente da influência do objeto surge como compensação: “Devido à deficiente relação do eu com o objeto - querer dominar não é adaptação - surge no inconsciente uma relação compensatória com o objeto que se manifesta como vinculação incondicional e irreprimível a ele” (JUNG, 1991, p. 357). Por mais que o ego busque ser independente e superior, procurando assenhorear-se de todas as liberdades possíveis, o objeto tomará uma grandeza indiscutível e acabará subjugando o ego, pois este se encontrará frágil e limitado. O inconsciente, então, irá buscar compensar a relação com o fator objetivo, mas de tal forma que irá destruir por completo a “ilusão de poder e a fantasia de superioridade da consciência” (JUNG, 1991, p. 357). Por causa disso, o ego irá se esforçar ainda mais para separar-se do objeto e tentar dominá-lo. Trata-se de um sistema de defesa que não pretende de modo algum largar a ilusão de superioridade.

Nesse quadro de neurose, o introvertido irá buscar a todo custo a separação e distanciamento do objeto. Por um lado, dedica-se a tomar medidas de segurança e, por outro, as tentativas inúteis de impor-se sobre o objeto e afirmar-se. Todavia, é o objeto que, gradativamente, irá manifestar sua imposição. Aqui o inconsciente revela, como visto anteriormente, fantasias de poder em razão de um enorme medo de objetos, enfim, a tudo o que não pertence ao ego e com ele se relaciona, porém, no plano da realidade, o introvertido irá sucumbir a esse medo. Em razão dele, uma covardia específica se desenvolve na psique, temendo uma influência ainda mais forte do objeto. A consequência é uma temeridade surreal do indivíduo perante ao afeto dos outros a sua volta, bem como um profundo receio de sofrer alguma influência ou sugestão alheia.

Os objetos têm para o introvertido qualidades poderosas e aterradoras que não consegue ver conscientemente, mas que percebe pelo inconsciente. Como sua relação com o objeto é relativamente reprimida, ela passa pelo inconsciente onde é começada pelas qualidades deste. Estas são principalmente arcaico-infantis. Por isso torna-se primitiva sua relação [a do sujeito] com o objeto (JUNG, 1991, p. 358).

Assim, objetos estranhos e novos despertam pavor e insegurança, como se fossem portadores de perigos desconhecidos, e as mudanças que ocorrem em objetos já apreendidos pela psique são desconfortáveis e muito incômodas.

O introvertido tem em si o seu oposto, o extrovertido, mas inconsciente, porque sua parte consciente está sempre voltada para o sujeito: o objeto é observado, porém, há um receio, uma hesitação de relacionar-se com ele, como se fosse algo ameaçador. Isso obviamente denota o que Adler denomina como a intensificação do sentimento de personalidade, um grande choque, que faz o indivíduo buscar a maximização do ego em detrimento da realidade externa. Temos aqui a manifestação da vontade de potência nos moldes da psicologia adleriana.

Destarte, é preciso compreender que ambas as atitudes existem dentro do indivíduo, mas somente uma delas é que foi desenvolvida como função de adaptação do primeiro com o meio externo, por ser-lhe mais natural. Não obstante, quando ocorre a tensão entre os dois tipos antagônicos, é principalmente devido à influência do objeto:

[...] manifesta-se a hipersensibilidade. A hipersensibilidade é sintoma da existência de uma inferioridade. Assim se estabelecem as bases psicológicas da desunião e da incompreensão, não só entre duas pessoas, mas como também da cisão dentro de si mesmo (JUNG, 1989b, p. 50, grifos no original).

É assim que uma extroversão inferior surge no introvertido, enquanto na atitude extrovertida rompe uma introversão inferior. Para Jung, acontecimentos negativos ou positivos na vida do indivíduo trazem à tona essa função contrária inferior residida na psique, e é estritamente necessário o surgimento dessa tensão. Significa uma relação natural e que forma o ritmo da vida do indivíduo. Por isso, é imprescindível que os contrários se manifestem e que o conflito entre os antagonismos se efetive, pois só assim poderão ser reorganizados e a psique cindida, restaurada.

Assim, Jung conclui:

Os pontos de vista de Freud e Adler, portanto, só são contraditórios quando pretendem valer como teorias globais. Mas, na medida em que se contentarem com o título de técnicas auxiliares, já não entram em contradição nem se excluem mutuamente. A teoria psicológica que quiser ser mais do que simples técnica auxiliar tem que basear-se no princípio dos contrários, pois sem ele só reconstruiria psiques neuróticas desequilibradas. Não há equilíbrio nem sistema de auto regulação sem oposição. E a psique é um sistema de auto regulação (JUNG, 1989b, p. 53).

Portanto, por um lado, vimos que, em Alfred Adler, a apropriação do termo vontade de potência, sob o campo da psicopatologia, impreterivelmente surge como uma resposta direta e totalmente oposta à teoria da pulsão erótico-sexual, e Jung foi aquele que soube observar nessa manobra seu grau de veracidade. Contudo, não podemos afirmar que o autor de Psicologia do inconsciente tem em vista um objetivo igual ao de Adler ao trazer em sua obra a vontade de potência nietzschiana.

Como frisa Jung, a teoria adleriana determina a etiologia da neurose por meio desse impulso por poder e, por causa dessa extrema oposição, comete os mesmos erros que a teoria freudiana: é, de igual modo, unilateral e redutiva. Então, enquanto o conceito vontade de potência em Adler é transmutado para o campo patológico a fim de evidenciar que a teoria da pulsão erótico-sexual reprimida é ineficaz e insuficiente para se compreender o rompante da neurose; Jung, por outro lado, beneficia-se do grau de veracidade do conceito que é discorrido por Adler, todavia não o faz para destronar e excluir a teoria de Freud.

Por conseguinte, o resultado que temos é este: um problema da psicopatologia, a etiologia da neurose, sendo resolvido mediante da Filosofia. Adler tentou nos trazer esse novo horizonte, mas podemos afirmar que Jung foi mais além ao buscar uma totalidade que engloba Eros e vontade de potência; extroversão e introversão. O mais instigante e desafiador que pudemos observar foi que a vontade de potência, em Psicologia do inconsciente, é usada como recurso para denotar a luta entre os antagonismos presentes na neurose. Sem tamanho impulso, a quem Eros se oporia? A síntese entre sujeito e objeto precisa ser feita para chegarmos a uma totalidade, isto é, a uma psique não mais cindida entre seus contrários, mas sim que busque sua unificação.

Descobrir e fundamentar a etiologia da neurose foi um dos grandes desafios da primeira escola psicanalítica, e Jung foi aquele que vislumbrou a superação desse problema e dos embates entre as divergentes teorias de sua época. Debruçou-se com cautela sobre a tese da repressão da pulsão sexual defendida por Freud e constatou nela um certo grau de veracidade quanto à repressão no inconsciente. Contudo, a ênfase sobre o Eros reprimido denotava um grande problema, a saber, seu aspecto redutivista e unilateral para explanar a doença nervosa. Assim, Jung desenvolveu caminhos e estratégias para tentar uma nova perspectiva e pudemos analisar o papel da vontade de potência dentro dessa discussão.

Conceito oriundo da filosofia de Nietzsche, a vontade de potência aparece na obra junguiana mediada pela psicologia de Alfred Adler que, completamente oposta a Freud, a sustenta como desencadeadora da neurose. Podemos dizer que esse momento - o qual antecede uma possível solução de Jung a partir de duas teorias antagônicas da neurose - foi deveras desafiador, pois constituiu todo o pano de fundo da argumentação de sua obra. Observamos na tese de Adler que a psique doente visava dominar a todo custo; estar sempre um passo à frente de qualquer sofrimento, perda ou surpresa. Sob essa égide, Adler considera a concepção vontade de potência de Nietzsche apropriada: no caso, trata-se de um grande impulso, ávido por autossuperação e domínio (representando assim a segurança), mas que trilha caminhos e objetivos que vão contra a realidade. Entender os principais aspectos que levaram Adler a apropriar-se desse conceito nietzschiano significa antes de tudo entender que aquele não interpretou a doutrina da vontade de potência equivocadamente, mas sim vislumbrou uma grande resposta à teoria da neurose de Freud. Esse olhar mais cauteloso, digamos, sobre a psicologia adleriana e seus fundamentos mostrou-se adequado, visto que agora temos todo o escopo do argumento de Jung em sua discussão central: a vontade de potência versus Eros.

Porém, Jung distancia-se da teoria adleriana ao mesmo tempo que destrona a libido freudiana como única força motriz da neurose, por ter encontrado um oponente de igual intensidade. Constata, então, que a neurose possui dentro de si uma luta de tipos opostos: de um lado, a extroversão sob a força de Eros; de outro, a introversão consequente da vontade de potência. Essa é, portanto, sua nova teoria, a dos tipos de atitude, na qual há de fato uma luta de impulsos opostos entre si, mas eles não se anulam, e sim se complementam. A neurose, dessa forma, não é mais unilateral ou redutiva, mas se encontra cindida e o caminho para sua cura é a busca da totalidade entre esses dois lados. Diante disso, podemos afirmar que foi por um uso estratégico da concepção de vontade de potência em Psicologia do inconsciente que Jung encontrou sua solução para o problema da neurose e acabou por ir além das teorias freudiana e adleriana. Desse modo, é possível pensarmos como a filosofia de Nietzsche acabou por desempenhar um papel de grande peso para a resolução desse conflito. Com uma síntese, uma unificação entre Eros e a concepção vontade de potência, Jung ultrapassa tanto a perspectiva freudiana quanto a adleriana, porém - e o que nos é tão caro - ele mesmo não chegaria a tais horizontes sem a presença e a discussão da concepção nietzschiana em seu trabalho.

Referências

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  • STEIN, Murray. Jung: O mapa da alma: uma introdução. Tradução de Álvaro Cabral. São Paulo: Cultrix, 2006.
  • Pareceristas:
    Geraldo Pereira Dias, Luís Rubira
  • 1
    Para evitar quaisquer tipos de ambiguidades, optamos pelo termo “potência” no que toca o conceito nietzschiano. De acordo com Scarlett Marton (1997, pp. 10-11) “traduzir a expressão por vontade de poder corre o risco de levar [o conceito] a outros [equívocos], como o de tomar o vocábulo ‘poder’ estritamente no sentido político (e, neste caso, contribuir - sem que seja essa a intenção - para reforçar eventualmente apropriações indevidas do pensamento nietzschiano)”. Ademais, a comentadora acrescenta: “Contudo, a principal razão que nos leva a manter tal escolha [pelo termo ‘potência’], consiste em oferecer ao leitor, com as duas opções de tradução (‘vontade de poder’ e ‘vontade de potência’), a possibilidade de enriquecer sua compreensão dos sentidos que a concepção Wille zur Macht abriga em Nietzsche”. Dessa forma, como estamos trabalhando a vontade de potência dentro dos moldes da psicologia de A. Adler, não é equivocado questionarmos a possibilidade também da tradução por vontade de poder, visto que seguiremos a discussão compreendendo o ego como aquele que tenta incessantemente exercer poder, extraindo assim suas últimas consequências. Trata-se, portanto, de uma neurose que possui sua origem em uma vontade por poder.
  • 2
    Sobre o termo redutivista que Jung apresenta em sua obra para se referir ao método de que parte Freud, o autor argumenta que se trata de “um processo que decompõe o sonho (ou fantasia) nos componentes de reminiscências e nos processos instintivos que lhe constituem a base” (JUNG, C.G., 1989b, p. 72). Ou seja, desconstrói-se o sonho, a via-régia do inconsciente, para assim chegar ao objeto, o foco libidinal. Do ponto de vista de Jung, esse mecanismo acabará se mostrando insuficiente em um determinado ponto de uma análise, quando os símbolos (conteúdos oníricos) forem finalmente acessados e mostrarem que não são mais passíveis de serem reduzidos a reminiscências ou desejos pessoais esquecidos, reprimidos pelo inconsciente.
  • 3
    Para a designação de Eros, Jung (1989b, p. 45) complementa: “Libido significa energia psíquica, para mim, ou o mesmo que intensidade energética de conteúdos psíquicos. Freud identifica a libido com o Eros, concordando com seu pressuposto teórico, e quer vê-la distinta de uma energia psíquica geral”.
  • 4
    De acordo com Freud, Eros é o pilar essencial da cultura: “A vida humana em comum teve então um duplo fundamento: a compulsão ao trabalho, criada pela necessidade externa, e o poder do amor, que no caso do homem não dispensava o objeto sexual, a mulher, e no caso da mulher não dispensava o que saíra dela mesma, a criança. [...] O desleixo com que na linguagem se usa a palavra ‘amor’ tem uma justificação genética. Chama-se ‘amor’ a relação entre homem e mulher, que fundam uma família tendo por base as suas necessidades genitais” (FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Penguin Classics; Companhia das Letras, 2011, p. 45-47).
  • 5
    Freud, por sua vez: “Afirmamos que a descoberta de que o amor sexual (genital) proporciona ao indivíduo as mais fortes vivências de satisfação, dá-lhe realmente o protótipo de toda felicidade, deve tê-lo feito continuar a busca da satisfação vital no terreno das relações sexuais, colocando o erotismo genital no centro da vida. Prosseguimos dizendo que assim ele se torna dependente, de maneira preocupante, de uma parte do mundo exterior, ou seja, do objeto amoroso escolhido, e fica exposto ao sofrimento máximo” (Ibid, p. 46).
  • 6
    De acordo com Scarlett Marton (1990, p. 39): “[...] não abandonar o que conquistou decorre do fato de exercer-se, mas, por vezes, nem mesmo é bem-sucedida: é o caso da célula que, não podendo assimilar o que absorveu, decompõe-se”.
  • 7
    Quanto a essa dualidade oposta “masculino-feminino”, Adler a traz como caso de análise em seu pensamento inicial. Dessa forma, o uso do termo “feminino” enquanto forma passiva é visto inicialmente por Adler como uma das variações do protesto masculino. Porém, em seu pensamento tardio, tal concepção será gradativamente deixada de lado; apenas o sentido da busca pelo poder no protesto masculino é que será mantido - o movimento ativo.
  • 8
    Heiz L. Ansbacher nos dá um plausível esclarecimento: “Os termos sexuais que Adler usa aqui, em contraste com o uso de Freud, não devem ser interpretados literalmente. Sentir-se pouco masculino é a analogia para o sentimento de inferioridade; masculino e feminino são metáforas para força e fraqueza. ‘Hermafroditismo psicológico’, outro termo introduzido aqui, simplesmente significa que um indivíduo geralmente tem traços submissos (‘femininos’), bem como agressivos (‘masculinos’)” (ANSBACHER, H, L. ANSBACHER, R. R. The individual Psychology of Alfred Adler: a systematic presentation in selections from his writings, 1956, p. 45).
  • 9
    Müller-Lauter assim explana no capítulo de sua obra intitulado O caminho para o além-do-homem: “Síntese significa então: sob uma vontade dominante, sujeição e reordenação poderosas de todos os antagonismos adquiridos por meio de herança ou conhecimento. Não obstante, esses antagonismos devem chegar à sua manifestação mais extrema. Por isso, é necessária a força mais extrema, para mantê-los coesos e torná-los frutíferos” (In: Nietzsche: sua filosofia dos antagonismos e os antagonismos de sua filosofia. São Paulo: Editora Unifesp, 2009, p. 206).
  • 10
    “As pessoas introvertidas são mais motivadas pelo impulso para a conquista de uma posição de superioridade e para o controle de objetos ameaçadores do que pela busca de prazer. Os extrovertidos, por outro lado, são orientados pelo princípio de prazer e estão em harmonia com a perspectiva psicológica de Freud” (STEIN, M. Jung: o mapa da alma, São Paulo: Cultrix, 2006, p. 199).
  • 11
    Sobre a formulação da ideia central de Eros, eis aqui uma citação de Junito Brandão quanto à Eros como uma atividade ou ser-em-ato: “Assim, longe de ser um deus todo-poderoso, Eros é uma força, uma enérgueia, uma ‘energia’, perpetuamente insatisfeito e inquieto: uma carência sempre em busca de plenitude. Um sujeito em busca do objeto” (BRANDÃO, 2014 apud BARCELLOS, G. Mitologias arquetípicas: figurações divinas e configurações humanas. Petrópolis: Vozes, 2019, p. 299, grifo nosso).
  • 12
    Sob a ótica da psicologia analítica, devemos entender Eros, portanto, como “[..] aspecto da existência de atração, desejo, amor, daquilo que impulsiona e faz ligar [...] Eros porque é um demônio, uma força que não se detém, quer fazer uma determinada união de qualquer maneira, mesmo que ela não seja boa, e isso pode ser sentido como destrutivo” (BARCELLOS, 2019, p. 303). Freud, no campo psicanalítico, explana o lado prejudicial de Eros: “A escolha de objeto do indivíduo sexualmente maduro é reduzida ao sexo oposto, a maioria das satisfações extragenitais é interditada como perversão. A exigência, expressa em tais proibições, de uma vida sexual uniforme para todos, ignora as desigualdades na constituição sexual inata e adquirida dos seres humanos, priva um número considerável deles do prazer sexual, e se torna, assim, a fonte de grave injustiça” (FREUD, Sigmund, 2011, p. 50).
  • 13
    Para uma maior compreensão sobre a tipologia junguiana, consultar Tipos Psicológicos (1921). Foi nesse trabalho que Jung aprofundou essa teoria dos tipos ao fundamentar a caracterização da introversão e extroversão, estipulando quatro funções de orientação da consciência para trabalhar os antagonismos: sentimento, pensamento, sensação e intuição. De acordo com Paul Bishop (1995a, p. 293): “tanto a teoria ‘tipológica’ quanto a interpretação dos impulsos opostos de Nietzsche [apolíneo e dionisíaco] é anunciada (em 1921) quando Jung afirma que agora é necessário ir além da distinção entre introversão e extroversão. Ele tem em mente um novo conjunto de opostos que vai além da ‘elaboração lógica e racional’ (em outras palavras, além do ‘pensamento e sentimento’: as duas funções que Jung já havia adotado nesse estágio): as chamadas funções ‘estéticas’. Jung afirmou ter derivado essas funções psicológicas diretamente de Nietzsche, ao passo que é mais provável que a abordagem comparativa de Schiller e Nietzsche tenha forçado Jung a considerar um novo conjunto de funções (Intuição e Sensação) além de seu par original (Pensamento e Sentimento)”.
  • 14
    Jung, muito além de apontar a limitação do aspecto unilateral, evidencia a necessidade de relacionar as teorias antagônicas na linha da psicologia para se deparar com uma totalidade frente a uma psique cindida. Assim, a relação entre os antagonismos novamente surge na discussão de modo imprescindível. De acordo com Müller-Lauter (2009, p. 203), “O fixar-se numa determinada perspectiva, a intransigência em um ideal leva à rigidez que não tem mais em conta a modificação incessante do todo da efetividade da luta dos ‘antagonismos”.
  • 15
    “Cada relação dessas pressupõe efeitos modificativos de um sobre o outro [sujeito e objeto]” (JUNG, Carl Gustav. Tipos psicológicos. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 316).
  • 16
    Jung (1991, p. 322) manterá a ressalva: “O antigo deve manifestar-se no novo e conviver com ele: a assimilação total ao objeto esbarra com o protesto da minoria reprimida do que existia até agora”.
  • 17
    Podemos entender o si-mesmo, dessa forma, como um segmento, uma parte representativa do inconsciente coletivo.
  • 18
    Bruno Martins Machado, no capítulo “A psicologia: o caminho para os problemas fundamentais” em sua obra discorre sobre o pensamento de Nietzsche desenvolvido no primeiro livro de Humano, demasiado humano (1878) quanto ao prazer do sofredor: “[...] é do sentimento de ser capaz de causar dor ao outro que o compassivo extrai sua satisfação. [...] A subversão no desejo do compassivo poderia ser atribuída à satisfação do sentimento de superioridade de poder causar dor ao outro através da própria dor”. Assim, para o autor, o “[...] sentimento de ‘prazer-consigo’ foi trabalhado por Nietzsche como motor psicológico das ações humanas através do conceito de vaidade [...] liga-se a vaidade ao funcionamento subterrâneo de prazer da satisfação no exercício de poder” (Nietzsche e Rée: psicólogos e espíritos livres. Campinas: Phi, 2016, p. 166). Assim, os sintomas e o comportamento neurótico que o paciente reclama são levados em parte como sua forma de controle sobre outras pessoas, exercendo poder sobre elas e sem tomar a responsabilidade disso.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2024

Histórico

  • Recebido
    30 Mar 2023
  • Aceito
    22 Jun 2023
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