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Modernidade e modernização: a recepção de Nietzsche no Brasil (da Escola do Recife ao Modernismo)

Modernity and modernization: the reception of Nietzsche in Brazil (from the Recife School to Brazilian modernism)

Resumos

Resumo: Este artigo analisa a recepção de Nietzsche no Brasil, com destaque para a imprensa pernambucana, em que o seu nome aparece primeiramente. Compreende as contradições nas interpretações de Nietzsche como resultado de uma disputa de sentidos perpetrada por diferentes grupos sociais e em diferentes contextos, para os quais pesa a noção de modernidade.

Palavras-chave:
recepção de Nietzsche; modernidade; Escola do Recife; Modernismo


Abstract: This article analyzes the reception of Nietzsche in Brazil, with emphasis on the Pernambuco press, in which his name appears first. It understands the contradictions in Nietzsche’s interpretations as a result of a dispute of meanings perpetrated by different social groups and in different contexts, for which the notion of modernity is important.

Keywords:
Nietzsche’s reception; modernity; Recife School; Brazilian modernism


Integrante da Escola do Recife, um movimento intelectual da Faculdade de Direito interessado na construção de uma identidade cultural nacional e na modernização do Direito a partir de teorias positivistas e evolucionistas, Tobias Barreto consta como autor da mais antiga menção a Friedrich Nietzsche no Brasil1 1 Cf. Pantuzzi, 2016. : “Strauss, o sábio, o venerando Strauss, encontrou também o Sr. Nietzsche, de Basilea, que quis provar-lhe a sua ignorância da língua alemã!” (Barreto, 1876BARRETO, T. Nem philosopho nem critico. A Província, Recife, ano 5, n. 817, p. 2-3, 10 mar. 1876., p. 3). A menção de Tobias Barreto, encontrada em um artigo de jornal publicado no Recife em 1876, consiste em uma espirituosa comparação em que o autor critica a acusação de “lesa grammatica” dirigida a uma brochura de sua autoria. Curiosamente, no texto em que Tobias Barreto fundamenta sua comparação, Nietzsche critica David Strauss, que influenciaria o cientificismo positivista e evolucionista de Haeckel, um dos nomes mais importantes para a Escola do Recife, especialmente para Tobias Barreto. As considerações de Nietzsche contra David Strauss, datadas de 1873, interessam na medida em que parecem se aplicar, como veremos, aos nossos “homens de ciência”:

Mas se vós, como homens de ciência, procedeis com a ciência como os trabalhadores com as tarefas, que lhes impõem sua indigência e as necessidades da vida, o que será de uma civilização que está condenada, precisamente diante de uma tal cientificidade agitada, sem fôlego, que corre de cá para lá, e até mesmo se debate em estertores, a esperar pela hora de seu nascimento e redenção? Para ela ninguém tem tempo - e no entanto o que há de ser, em geral, a ciência, se não tem tempo para a civilização? Respondei-nos, pelo menos aqui: de onde, para onde, para que toda a ciência, se não for para levar à civilização? Ora, talvez então à barbárie! E nessa direção vemos já a comunidade erudita pavorosamente avançada, se pudermos pensar que livros tão superficiais como o de Strauss dão satisfação a seu grau atual de civilização (DS/Co. Ext I 8).2 2 NIETZSCHE, F.Obras Incompletas. Col. “Os Pensadores”. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 270. Posteriormente, Nietzsche se referiria a esta sua primeira consideração extemporânea como “Aquela irada irrupção contra a patriotice, o comodismo e o abastardamento da linguagem do envelhecido David Strauss” (MA II/HH II, Prólogo 1). NIETZSCHE, F. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres volume II. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 7.

Nietzsche critica, a seguir, o “espírito dos ruidosos cenáculos da ciência alemã nas grandes cidades”, caracterizado, como “a vida em sociedade das classes das classes eruditas”, por “uma experiência de vida desconexa”, incapaz “de toda penetração original no homem”. Assim, “naquelas cidades a civilização mais se perdeu”, de modo que

deixa de lado aquelas cidades e sente com o melhor de seus instintos que ali, para ela, não há nada a esperar e muito a temer. Pois a única forma de civilização e de cultura que pode ser oferecida pelo olho apagado e pelo embotado órgão de pensamento da corporação dos eruditos é justamente aquela cultura de filisteu, cujo evangelho Strauss anunciou (DS/Co. Ext I 8).3 3 Tradução de RRTF, p. 270-271.

Desde que apresentado aos leitores brasileiros por Tobias Barreto, por meio da imprensa do Recife, o nome de Nietzsche seria tomado positiva ou negativamente como uma forma de autorização e legitimação das posições e opiniões dos mais diferentes autores. Recorrente na imprensa recifense, em que nos concentraremos neste trabalho, e brasileira, entre intelectuais de dentro e de fora da academia, o nome de Nietzsche seria empregado muitas vezes para interpretar o Brasil e a cultura brasileira, sobretudo em seus conflitos com a modernidade e a modernização. Assim, Nietzsche oscila entre a associação de seus conceitos com teorias positivistas e evolucionistas, que, no limite, confundiriam sua filosofia com proposições de guerra e de eugenia, e a problematização do pensamento e dos valores ocidentais modernos, sobretudo aqueles relacionados ao positivismo, tão caro para a Escola do Recife.

O mesmo jornal que imprimiu pela primeira vez o nome de Nietzsche no Brasil, a saber, A província, anunciava, em 1900, o falecimento de Nietzsche nestes termos:

Telegramas de Berlim noticiam o falecimento do grande filósofo Frederico Nietzsche. Desde 1889 que já não vivia, por assim dizer, porque a alienação mental o assaltou, quando se achava em Turim. Agora foi a morte do corpo desse escritor que exaltara até ao lirismo o princípio da luta pela vida deduzindo uma “moral dos fortes” (E.B., 1900E. B. De Paris. A Província, Recife, ano 23, n. 211, p. 1, 19 set. 1900., p. 1).

A “loucura” de Nietzsche havia sido antes objeto da imprensa recifense, quando, em 1895, o Diário de Pernambuco anunciava a publicação da “última obra de Frederico Nietzsche, o ‘Anti-Christo’”: “Nietzsche escreveu-a durante o outono de 1888, algumas semanas antes de enlouquecer e sua família recusara até hoje deixar publicá-la. É que o “Anticristo” não mente ao seu título: não se pode conceber um ataque mais direto, mais violento e mais odioso contra a moral e a religião do meigo Crucificado” (O Antichristo, 1895O ANTICHRISTO. Diário de Pernambuco, Recife, ano 71, n. 36, p. 3, 13 fev. 1895., p. 3).

O artigo se desenvolve parafraseando o livro tomado como uma “declaração” de “guerra sem tréguas” ao cristianismo, e reduzido a uma exaltação dos fortes contra os fracos: “Tal é a doutrina de Nietzsche. Coitado, não é debalde que morra louco!” (O Antichristo, 1895O ANTICHRISTO. Diário de Pernambuco, Recife, ano 71, n. 36, p. 3, 13 fev. 1895., p. 3), conclui o artigo. Cinco anos depois, o mesmo jornal publica um artigo intitulado “Frederico Nietzsche”, de autoria da escritora portuguesa Maria Vaz de Carvalho. Nele, a autora afirma: “A sua noção de vida é ferozmente aristocrata, isto é, o contrário da noção cristã de que o reino dos céus - quem dera que fosse também o da terra! - pertence aos bons, aos humildes, aos resignados.” E, ao tratar do conceito de “sobrehumano”, conclui que “esta arrogante afirmação [...] é a mais completa antítese do cristianismo”. Mas, reconhecendo em Nietzsche um “poeta soberbo, e filósofo contraditório e terrível”, a quem “ninguém deve” seguir, ao mesmo tempo que “é impossível deixar de o admirar”, e cujas “imagens, analogia, aproximação, comparação, confronto fariam riqueza de uma literatura”, pondera, como quem dialoga com o artigo anterior: “muitos julgaram Nietzsche um blasfemador a quem o flagelo da loucura justamente puniu”. “A esses deve o juízo imparcial responder”, continua a autora, que conclui: “As doutrinas de Nietzsche não lhe pertencem propriamente a ele, são eternas como é eterna a corrente mental que representam e a corrente mental que contradizem”, ou seja, a afirmação da vida pelo paganismo e a sua negação pelo cristianismo, respectivamente. Assim, segundo a autora, Nietzsche “é apenas um homem de talento excepcional, de imaginação sombria e vasta que formulou em palavras de uma beleza estética indiscutível as doutrinas que seriam terríveis se fosse possível torná-las universalmente dominantes” (Carvalho, 1900CARVALHO, M. V. Frederico Nietzsche. Diário de Pernambuco, Recife, ano 76, n. 66, p. 2, 14 mar. 1900., p. 2).

O aspecto religioso de sua obra, em que pesam seus questionamentos da moral judaico-cristã, e, claro, o estilo de Nietzsche, percebido e comentado por poucos, a exemplo da escritora Maria Vaz de Carvalho, gera leituras divergentes da obra e dos efeitos da obra de Nietzsche entre articulistas do Recife. Mario Linhares, por exemplo, em artigo publicado pela Heliopolis em 1914LINHARES, M. Os prejuízos do divórcio. Heliopolis, Recife, ano 2, n. 1, p. 11, jan. 1914., relaciona Nietzsche com o “modernismo” que, segundo o autor, apostoliza “o divórcio, o amor livre, a poliandria, etc” (Linhares, 1914LINHARES, M. Os prejuízos do divórcio. Heliopolis, Recife, ano 2, n. 1, p. 11, jan. 1914., p. 11). Nietzsche, para ele, representa a “anarquia dos instintos”, que define, por sua vez, o estado de inconsciência dos favoráveis ao divórcio, contra o qual cita Spencer e Westermarck, familiares aos membros da Escola do Recife. Seria ainda a Nietzsche que recorreria o então deputado Sílvio Romero, um dos mais celebrados membros da Escola do Recife, para defender no congresso a precedência do casamento civil ao religioso. Em seu discurso parlamentar, publicado pelo Diário de Pernambuco, em 1901, Romero (1901ROMERO, S. Discurso. Diário de Pernambuco, Recife, ano 77, n. 72, p. 1, 18 jul. 1901. , p. 1) afirma em defesa da precedência do casamento civil e da separação da Igreja e do Estado: “lembrarei que não é somente aos indivíduos que se deve aconselhar o robustecimento da vontade; os povos também precisam desse conselho.” E, tendo recorrido a um conceito fundamental do pensamento nietzschiano, a vontade, continua:

Dizem os competentes que, como reação ao pessimismo que a tudo e a todos avassalou em nosso século, Nietzsche proclamou a ação e a força, e Tolstoi - o amor. Pois bem, o que o nosso país precisa é cultivar o amor de todos, o amor da humanidade, mas sabendo querer e procurando levantar sua grandeza,

conclui Romero, sintetizando Nietzsche e Tolstói.

Vinte anos depois, Nietzsche permanecia ainda presente em debates governamentais. No artigo “A reforma constitucional do Estado”, por exemplo, publicado pelo jornal A província, em 1921, seu nome emerge em meio a uma discussão sobre o subsídio para o mandato legislativo: “Os processos democráticos se metamorfoseariam no aristocracismo de Nietzsche...” (A Reforma, 1921A REFORMA Constitucional do Estado. A Província, Recife, ano 50, n. 131, p. 2, 17 mai. 1921., p. 2), argumenta o autor, posicionando-se contra o subsídio. E bem antes, em 1904, Soriano de Albuquerque, em artigo intitulado “A bandeira nacional”, publicado pelo jornal O Lidador, discute um projeto de modificação da bandeira nacional apresentado ao Congresso, cujo autor pretende excluir o lema “ordem e progresso”. Albuquerque (1904ALBUQUERQUE, S. A bandeira nacional. O Lidador, Victoria, ano 28, n. 40, p. 1, 20 out. 1904., p. 1) concorda em tirar o lema positivista, mas rejeita a mudança do traçado da bandeira, utilizando, para tanto, Nietzsche:

Por que motivo alterar o traçado? Que se retire o dístico positivista - de pleno acordo; e penso que este modo de sentir é o da nação inteira. Mas substituir por faixas o campo verde onde se engasta o losango áureo, nada significa, nada exprime, é mera imitação do pavilhão americano formado de listras rubras e brancas. Pela imitação o que tem valor perde-o, diz Nietzsche.

Uma certa inclinação nietzschiana de parte da Faculdade de Direito do Recife pode ser percebida em um artigo do Jornal Pequeno de agosto de 1912, de autoria de Henrique de Figueiredo, representando o Club Acadêmico. Figueiredo (1912FIGUEIREDO, H. Através da Academia. Jornal Pequeno, Recife, ano 14, n. 188, p. 4, 17 ago. 1912., p. 4) menciona Nietzsche em um elogio a homenagens do dia 11 de agosto de 1827, data da criação das duas primeiras faculdades do Brasil, a qual se oficializaria como Dia do Estudante em 1927:

As homenagens este ano prestadas pelo Club Academico à data magnificente de 11 de agosto de 1827, ficarão nas crônicas da velha Faculdade de Direito do Recife, para serem rememoradas como os primeiros triunfos de um novo espírito acadêmico, que anda saturando a mocidade de energias vencedoras, iluminando-a de alegrias fecundantes, - colaterais dessa alegria humana de que nos fala Nietzsche, quando os homens forem aureolados pela nova civilização, parada gloriosa da grandeza perfeita da humanidade.

Poucos anos depois, em 1920, um egresso da Faculdade de Direito do Recife, Arthur Muniz, menciona Nietzsche em seu discurso no Festival de Encerramento do Anno Lectivo do extinto Gymnasio do Recife, reproduzido em artigo intitulado “Pelas Escolas”, publicado pelo jornal A Província, em dezembro daquele ano. Vale retomar alguns fragmentos do discurso pelo que podem revelar ao lado do flagrado desconhecimento da obra de Nietzsche:

Apesar de que as ilusões são sempre as mesmas... Apesar de que as vossas esperanças de hoje são iguais às dos meus companheiros de ontem... A ilusão é a única realidade da vida, que nos dá o segredo e a força de vivê-la cantando. A realidade nos enche sempre de desenganos travosos... Conhecer a vida em todos os aspectos, sem tirar da diversidade de cada um deles, sequer, uma partícula de ideal, é não a saber viver na esfera ilimitada de suas belezas, presas e indesalaçáveis, na trama da unidade harmônica e profunda. Nada existe, feito por Deus, que não seja belo, perfeito e eterno. O estado de nossa alma, às vezes, é que afeia tudo quanto nos cinge esplendendo. O mundo exterior é a representação do nosso mundo interior. [...] A família humana é uma só, separada, exclusivamente, pelo delírio das grandezas e pelo delírio das vitorias sem término. A mocidade precisa, nos dias correntes, embora Nietzsche considerasse este século mais adiantado do que os escoados, de trabalhar com inteligência disciplinada, a fim de reconstruir o destruído pela iconoclastia dos tempos. Quando tudo se derrui e ruem os princípios de bondade, é necessário, para logo, que a gente moça surja, instruída e refletida, sem vaniloquência e piedosa, e estabeleça a ordem na atual desordem atordoante (Muniz, 1920MUNIZ, A. Pelas escolas. A Província, Recife, ano 49, n. 331, p. 3, 1 dez. 1920., p. 3).

O discurso de Muniz parece reproduzir, ao seu modo, ideias de outro egresso da Faculdade de Direito do Recife, Graça Aranha, o escritor e diplomata que participou da Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo. E a respeito de quem, por suas ideias de “ideal”, de “harmonia eterna do universo” e “unidade infinita da vida universal” numa “fusão no Todo infinito”, com um claro colorido racial, um artigo de setembro de 1924, publicado pelo jornal A província, lamentava que “tenha procurado fundir o pensamento do autor de ‘Além do Bem e do Mal’ com o monismo de Haeckel, dando-nos um livro incoerente e contraditório” (Publicações, 1924PUBLICAÇÕES. A Província, Recife, ano 53, n. 223, p. 4, 24 set. 1924., p. 4).4 4 Refere-se ao texto “Illusões. Ensaio sobre a ‘Esthetica da vida’”, de autoria de Angelo Guido, comentado anteriormente no n. 203, p. 7, 31 ago. 1924. Mas Muniz revela um conservadorismo ainda mais acentuado, em que o Todo, o “mundo exterior”, que aparece como equivalente da beleza, da perfeição e da eternidade, se resume a Deus - ou ao monismo religioso, que Graça Aranha substituiria pela filosofia monista5 5 Cf. Aranha, 1921, p. 21. -, e em que o Todo de beleza e perfeição parece prejudicado pelo fato de ser o mundo exterior uma “representação do nosso mundo interior”. E Nietzsche, a despeito de toda a problematização da noção de progresso, do mundo e do homem modernos que se explicita em sua obra, aparece simplesmente como advogado do progresso dos “dias correntes”, contra o qual o autor do discurso clama aos estudantes que reconstruam a “ordem” diante da “desordem” e da destruição provocada pela “iconoclastia dos tempos”. Muniz (1920MUNIZ, A. Pelas escolas. A Província, Recife, ano 49, n. 331, p. 3, 1 dez. 1920., p. 3) prossegue com seu eruditismo bacharelesco:

Os nossos anelos devem ser de paz e progresso. A civilização não deve se transformar em barbaria [...] não invejaremos os invejosos e nem nos atufaremos no pessimismo, que, embora poetisado por Byron, Leopardi e Heine e teorizado por Schopenhauer e Hartmann, é sempre nocivo e nos determina a ver o universo envolto na dor e na tristeza. [...] Não vos quero “sensitivos” e nem “inativos”, como classificam Ribot e Taine, aos inúteis à sua época.

Muniz não exige apenas dos estudantes que se sujeitem ao utilitarismo, mas que aceitem a desigualdade: “basta vivermos com simplicidade e, convencidos estaremos, de que a desigualdade de tudo que nos derrodeia constitui a igualdade suprema”, conclui Muniz (1920MUNIZ, A. Pelas escolas. A Província, Recife, ano 49, n. 331, p. 3, 1 dez. 1920., p. 3), deixando entrever o sentido da “trama da unidade harmônica e profunda” de que fala.

Podemos concluir apressadamente que os artigos da imprensa do Recife revelam, em geral, um conflito com a modernidade, compreendida como uma temporalidade relacionada a uma determinada racionalidade e sensibilidade, e com e entre os autores mesmos, enquanto homens modernos, como muitas vezes os artigos explicitam. Sobretudo, os artigos revelam uma disputa de sentido em que o nome de Nietzsche parece cumprir uma função importante, e a especificidade de sua obra - dele que insistiu numa filologia atenta, paciente, demorada - parece, com raras exceções, ignorada.

Em artigo sem indicação de autoria do Jornal Pequeno, de outubro de 1898, por exemplo, o autor recorre a Nietzsche, a quem se refere como “o malogrado filósofo”, para aparentemente comentar, de forma indireta, os violentos processos de reurbanização da cidade do Recife, que vinham se acentuando desde meados do século XIX. Afirma o texto: “a faculdade principal do arquiteto, segundo Nietzsche, é a vontade, a vontade que remove montanhas. Os homens de mais poder, disse, inspiraram sempre aos arquitetos: o arquiteto expande-se sob a sugestão do poder” (Música, 1898MÚSICA e arquitetura. Pequeno Jornal, Recife, ano 1, n. 88, p. 1, 13 out. 1898. Teatro e salões., p. 1). A seguir, ao constatar uma “decadência da arquitetura” e procurar explicar que “descuidemos da arquitetura, arte orgânica, realista e social”, conclui:

Homens modernos, só temos vontades vacilantes, somos demasiadamente débeis para dominar o real, demasiadamente melancólicos para não desejarmos escapar ao seu rude contato; já não removemos montanhas, contentamo-nos em passear por suas escarpas as nossas aspirações; agradamos a solidão interior do indivíduo que vive com seus sonhos: somos nervosos, imaginativos, sensitivos (Música, 1898MÚSICA e arquitetura. Pequeno Jornal, Recife, ano 1, n. 88, p. 1, 13 out. 1898. Teatro e salões., p. 1).

No mesmo jornal, e tratando ainda dos processos de reurbanização ou modernização da cidade do Recife, Carlos do Pinhal, em artigo de abril de 1912PINHAL, C. Diabo a quatro. Jornal Pequeno, Recife, ano 14, n. 83, p. 3, 13 abr. 1912., menciona Nietzsche em uma comparação com o personagem Malazarte, de Graça Aranha. O autor do artigo define o personagem como uma “vida alegre, jocunda”, contrapondo seu “desdém pela ‘regularidade’, pela ‘ordem’” à regularidade e à ordem da “engenharia, que parece-me”, escreve o autor, em defesa dos coqueiros do Recife, “vai concertando e endireitando tudo aqui, desapossa a velha cidade dessas copas viridentes”. No artigo, Carlos do Pinhal (1912PINHAL, C. Diabo a quatro. Jornal Pequeno, Recife, ano 14, n. 83, p. 3, 13 abr. 1912., p. 3) enaltece Graça Aranha, usando o adjetivo “apolíneo” e o comparando a Nietzsche: “todo esse esplendor viril e grave, essa vitalidade possante e soberana, essa robustez disciplinada e formidável que tornaram lendária e inconfundível a personalidade do solitário de Weimar”.

Nietzsche pode oferecer, portanto, a confirmação de uma perspectiva decadentista ou niilista, ao menos pessimista, tanto quanto uma perspectiva vitalista ou afirmativa da vida, de que, a sua maneira, Graça Aranha foi um dos promotores. Nietzsche se torna, assim, e curiosamente, um nome recorrente na interpretação do Brasil e da cultura brasileira em seu embate com a modernidade, inclusive em uma perspectiva racialista e culturalista, de que Gilberto Freyre seria o exemplo mais proeminente. Nesse sentido, ao analisar, em Casa grande & senzala, as características do cristianismo luso-brasileiro e, especialmente, o aspecto sensual, fraternal e alegre das festas religiosas brasileiras, Freyre (1988FREYRE, G. Casa grande e senzala. São Paulo: Círculo do Livro, 1988., p. 252) observa: “A festa de igreja no Brasil, como em Portugal, é o que pode haver de menos nazareno no sentido detestado por Nietzsche. No sentido sorumbático e triste.”

Gilberto Freyre figura, inclusive, como o autor com maior quantidade de menções a Nietzsche no Diário de Pernambuco nos anos 1920, tendo seu estilo de escrita, a propósito, comparado ao de Nietzsche, em artigo de autoria de Umberto Peregrino no mesmo jornal, em janeiro de 1936.

Em Ordem e progresso, Gilberto Freyre evidencia a orientação racialista nas leituras de Nietzsche, ao apresentar o depoimento “positivista”, como define, de Alfredo Severo dos Santos Pereira. Para o depoente de Freyre (2013FREYRE, G. Ordem e progresso. São Paulo: Global, 2013., p. 239), “a crescente miscigenação no Brasil, favorecida pelo 13 de Maio [de 1888, data da Lei Áurea] e pelo 15 de Novembro [de 1889, data da Proclamação da República]” significa

progresso étnico ou biossocial, pois, o tipo ideal de raça seria precisamente aquele que resultasse da miscigenação dos três tipos raciais fundamentais. Daí, “o tipo miscigenado, como o nosso, em vez de ‘sub-raça’, como apregoam os seguidores de Gobineau, Nietzsche e outros” ser “em verdade ‘super-raça’”. Foi isto o que compreendeu o alto espírito de José Bonifácio quando disse: “No Brasil só haverá uma grande nação quando pelo aspecto de cada brasileiro não se puder saber de que raça proveio”.

O depoimento evidentemente reproduz a ideologia do branqueamento por meio da miscigenação, requentada pelo culturalismo de Gilberto Freyre, fundamental para a disseminação do mito da harmonia racial no Brasil. Mas o que faz Nietzsche ao lado de Gobineau? Um dos pioneiros das teorias racistas sobre a miscigenação e degeneração se confunde com Nietzsche como este se confunde com os promotores de teorias racistas relacionadas ao positivismo de Comte, o evolucionismo de Spencer, o materialismo ou monismo de Haeckel, o determinismo e o darwinismo social, apregoadas por determinados membros da Escola do Recife e articulistas da imprensa.

Assim, em 1911, Ernesto Penteado (1911PENTEADO, E. A lógica dos homens. Jornal Pequeno, Recife, ano 8, n. 180, p. 1, 11 ago. 1911., p. 1) generaliza, no Jornal Pequeno, a filosofia de Nietzsche ao que parece uma proposta do darwinismo social ou da eugenia:

Suponhamos a seguinte tese de Nietzsche: os fracos não têm direito à vida. Qual o homem, de sentimentos nobremente altruísticos, capaz de abraçar, com entusiasmo, a sentença de morte formulada pelo grande e original pensador? Quem ousaria eliminar da cena da vida um pobre octogenário que lhe viesse suplicar um pedaço de pão para mitigar-lhe a fome? Os próprios monstros talvez se recusassem a tanta crueldade.

Outros autores articulam tal redução de Nietzsche a teorias então consagradas nas faculdades de direito e de medicina brasileiras de maneira, digamos, menos ingênua e mais decididamente eugênica. Em agosto de 1931, Azevedo Amaral, jornalista formado em medicina, conhecido por sua postura antissemita, racista e eugenista, aborda o “problema da cooperação intelectual na obra política da renovação da República” no Diário de Pernambuco nestes termos:

as atitudes e as manifestações da inteligência são condicionadas e coloridas pela ambiência individual e social em que ela se exprime. O aspecto, a orientação e a tempera das forças culturais traduzem invariavelmente as injunções do determinismo econômico, reagindo sobre as funções psíquicas do indivíduo. Nietzsche, com a sua super-humana clarividência, distinguiu em categorias luminosamente divididas as produções intelectuais da miséria e as criações do intelecto através do qual se expande a vitalidade vencedora dos organismos sadios e felizes. Antes do Zarathustra alpino ter vislumbrado genialmente essas verdades, Buckle, mais terra a terra na sólida filosofia do seu racionalismo empirista, já havia pressentido que as formas de cultura só podem aparecer quando o acúmulo da riqueza permite a existência de uma classe de indivíduos emancipados da premência absorvente da procura perene dos meios de subsistência. O conceito nietzscheano parece ter particular aplicação ao caso da elaboração da inteligência brasileira na obra de reconstrução política da nação (Amaral, 1931AMARAL, A. Os intelectuais e a constituinte. Diário de Pernambuco, Recife, ano 106, n. 191, p. 1, 23 ago. 1931., p. 1).

E não foi apenas a confusão entre Nietzsche e os promotores de teorias racistas do evolucionismo, determinismo e darwinismo social que produziu contradições na recepção de Nietzsche no Brasil. Em 1914, na revista Heliópolis, Padre Leonardo Mascello (1914MASCELLO, L. Frederico Nietzsche e a guerra. Heliopolis, Recife, ano 2, n. 10, p. 6-8, out. 1914., pp. 6-8) acusa Nietzsche pela Primeira Guerra Mundial, ao compreender o imperialismo alemão como uma “espécie de escravidão disfarçada debaixo de um patriotismo exagerado e oprimente” e, consequentemente, compreende a guerra como “uma rigorosa aplicação das perigosas e absurdas teorias éticas e estéticas de Frederico Nietzsche”, o qual acusa de ódio contra a “civilização cristã”.

Nesse sentido, ainda em 1914, o Jornal Pequeno reproduz, em um artigo sem identificação de autoria, um texto de José Veríssimo, que, tratando do imperialismo do programa de Bismarck, observa que este teria se apropriada do conceito de “vontade de potência”, de Nietzsche:

Todo pensamento literário, estético, filosófico, científico, cultural, industrial, mercantil e ainda religioso da Alemanha contemporânea gravita em torno do seu predomínio, a conquistar com ferro e sangue, segundo o programa de Bismarck. Este pensamento que se apropriou à fraseologia de Nietzsche, da “vontade de poder”, não é um conceito universal e humano senão para uso exclusivo da Alemanha contra os outros povos que ela do alto de suas tamancas declara inferiores (Assuntos, 1914ASSUNTOS da guerra. Jornal Pequeno, Recife, ano 16, n. 252, p. 1, 3 nov. 1914. Seção especial., p. 1).

Veríssimo conclui que “o que a Alemanha quer não é impor ao mundo uma ‘vontade de poder’, que se poderia voltar contra ela, senão realizar contra o mundo a sua ‘vontade de poder’, impondo-se-lhe por ela.”

Pouco depois, em janeiro de 1915, um artigo do Diário de Pernambuco ironizava o “apelo” ou “proclamação ao mundo civilizado” de intelectuais alemães em defesa das ciências e das artes alemãs, citando Nietzsche como quem inocula o belicismo em um jornalista como Maximilian Harden, que no ano anterior havia assumido uma posição de direita e apoiado as invasões imperialistas alemãs que conflagrariam a Primeira Guerra, e mesmo Bismarck. Afinal, “no seu tempo a ideia do ‘Assim Falava Zarathustra’ ainda bailava, fragmentada em notas, na jovem celebração de Nietzsche” (Max, 1915MAX, -. Confrontos e contrastes. Diário de Pernambuco, Recife, ano 91, n. 16, p. 1, 17 jan. 1915. Crônica., p. 1), escreve o articulista.

O alinhamento de Nietzsche com a guerra se prolonga, e em um artigo de 1932, publicado em Maria, uma publicação mensal religiosa, o autor, Eduardo Siqueira (1932SIQUEIRA, E. Pelo reino de Christo. Maria, Olinda, n. 12, p. 284, dez. 1932., p. 284), inicia logo mencionando Nietzsche: “Frederico de Nietzsche dizia, com ares de profeta, que o século XX seria o século clássico da guerra. E realmente foi.” Mas o artigo, na verdade, não trata de guerra nem de Nietzsche, mas da necessidade de religião do “mundo moderno”, caracterizado por um “materialismo destruidor” e pela falta de “convicções orientadas”.

Passada a Primeira Guerra, pela qual, como vimos, muitos culparam Nietzsche, as menções a ele se multiplicam, de fato. E são conhecidas as relações que se estabeleceram com o Nazismo e, portanto, e posteriormente, com a Segunda Guerra. Mas houve aqui quem, como Georges Bataille, Pierre Klossowski, André Masson, Jean Rollin e Jean Wahl o fizeram em terras francesas, propusesse uma revisão ou reapropriação do legado de Nietzsche contra as leituras fascistas a que sua obra foi submetida.6 6 Cf. Bataille et al, 1937. Em 1937, mesmo ano da edição da revista Acéphale dedicada a Nietzsche, Euryalo Cannabrava publica no Diário de Pernambuco uma extensa defesa do pensamento de Nietzsche contra a sua apropriação pelos intelectuais nazistas. Cannabrava (1937CANNABRAVA, E. Walter F. Otto - Der Junge Nietzsche (O jovem Nietzsche). Diário de Pernambuco, Recife, ano 112, n. 82, p. 2, 14 fev. 1937. Letras Estrangeiras., p. 2) escreve que as ideias de Nietzsche “assumiram o feitio de uma passeata alegre ou de uma excursão ao país das maravilhas”. E afirma que Nietzsche não poderia prever que elas parecessem, para “as modernas organizações totalitárias”, “um plano ameno para lisonjear o instinto da multidão”, criticando sua apropriação e redução:

Seria, entretanto, deformar o pensamento do pensador e alterar os traços essenciais da imagem que conservamos da sua obra, circunscrever a ação das ideias nietzschianas no âmbito estreito da política e da técnica partidária. [...] A Alemanha, esquecida dos tremendos epítetos com que ele flagelou a obstinação e a opacidade espiritual da maioria de seus compatriotas, festeja no filósofo um precursor do nacional-socialismo e das teorias atualmente em voga sobre a pureza da raça, a necessidade de um condutor e a primazia da vida sobre o espírito.

Mencionando Klages e Rosenberg, que reflete, segundo Cannabrava, “o que acontece a algumas ideias de Nietzsche, desacompanhadas do gênio e da potência criadora de seu autor”, constata que os alemães modernos não percebem que

o entusiasmo pela verdadeira grandeza e o ouvido apurado afastariam o filósofo [...] de uma ditadura fanática e ruidosa como a de Hitler, que se mantém à custa daquelas manias e ingenuidades tão ridicularizadas por Nietzsche nos seus frequentes ataques ao povo alemão. [...]

Nietzsche nunca poderia concordar com o aviltamento da filosofia à interpretação estrita dos valores germânicos. A arte nunca seria para ele uma atividade subordinada ao ideal de beleza da raça ariana, e a psicologia significava para Nietzsche muito mais do que o conhecimento prático do homem e das representações, estilos, ideias e atitudes peculiares aos diferentes tipos raciais, como apregoa agora um impressionante documento da nova Alemanha (National-sozialistische Monatscheft) [...]

Embora ferrenho adversário do liberalismo [...] Nietzsche não poderia concordar com a eliminação da crítica, com a obediência passiva a espíritos sem finura, a princípios dogmáticos e a ideais fictícios.

As contradições na recepção de Nietzsche no Brasil indicam o seu uso por parte de intelectuais para determinados fins relacionados a demandas dos grupos sociais que representam, da mesma maneira que, na Alemanha, o “programa de Bismarck” se apropria, como nota Veríssimo, da “fraseologia de Nietzsche”. Ao analisar a formação do sistema intelectual brasileiro, cujos participantes compartilham a sensação “de não pertencerem a nenhum grupo social” (Lima, 1981LIMA, L. C. Dispersa demanda: ensaios sobre literatura e teoria. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981., p. 5), Luiz Costa Lima retoma justamente Veríssimo, para quem o intelectual oitocentista brasileiro se caracteriza por “repetir servilmente o estrangeiro” (Veríssimo, 1898 Apud Lima, 1981LIMA, L. C. Dispersa demanda: ensaios sobre literatura e teoria. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981., p. 10).

O mesmo Veríssimo, em artigo de janeiro de 1903VERÍSSIMO, J. Um Nietzsche diferente. Correio da Manhã. Rio de Janeiro, ano 3, n. 587, p. 1, 19 jan. 1903, publicado no Correio da Manhã, do Rio de Janeiro,7 7 Artigo republicado em Cad. Nietzsche, São Paulo, v. 1, n. 35, p. 125-132, 2014. constatava: “Nietzsche está na moda, porque filosofias e filósofos também têm moda, como as casacas e os vestidos”. E ao acusar os intelectuais brasileiros de adaptarem “a sua doutrina contraditória e vaga” para “corresponder aos sentimentos” seus, intui os interesses dos grupos sociais na interpretação de Nietzsche: “quando uma filosofia ou um filósofo e suas doutrinas estão em moda, é que correspondem à índole do momento, ou, pelo menos, às aspirações e sentimentos, ao estado de alma de alma de grupos sociais, numerosos e conside ráveis. E é, de fato, o que sucede a respeito de Nietzsche”. Por fim, conclui:

É o defeito e perigo das nossas interpretações a todo o transe de pensadores e poetas, nos quais descobrimos as obscu ridades e dificuldades, e ocultos sentimentos e intenções que, na maioria dos casos, não estariam na sua mente, mas que condizem com nosso próprio pensar e sentir (Veríssimo, 1903VERÍSSIMO, J. Um Nietzsche diferente. Correio da Manhã. Rio de Janeiro, ano 3, n. 587, p. 1, 19 jan. 1903, p. 1).

Quanto ao sistema intelectual brasileiro, Luiz Costa Lima argumenta que as faculdades de Direito de Recife e São Paulo legitimariam o retoricismo herdado do colonialismo, acrescentando ao intelectual brasileiro um aspecto imediatista e antiteoricista, e conclui: “Ora, o próprio do estatuto colonial é ter as soluções pré-fabricadas” (Lima, 1981LIMA, L. C. Dispersa demanda: ensaios sobre literatura e teoria. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981., p. 9). Como nota Lima (1981LIMA, L. C. Dispersa demanda: ensaios sobre literatura e teoria. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981., p. 10),

raro era o estilo, não as ideias. Quanto a estas, o intelectual oitocentista brasileiro se contentava em estar em dia, na medida do possível, com as novidades europeias, adquirindo ou perdendo prestígio na proporção em que divulgava ou não as ideias lá dominantes. Pois, desde a sua legitimação, o sistema intelectual brasileiro se tem caracterizado pelo receio de ser original.

Ao lado do aspecto imediatista e antiteoricista, que, nas periferias do capitalismo, como o Brasil, resulta que “não ser capaz de teorizar significa, no melhor dos casos, adaptar, e, no caso normal, manter um estatuto colonial”, Luiz Costa Lima (1981LIMA, L. C. Dispersa demanda: ensaios sobre literatura e teoria. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981., p. 15) constata ainda o autoritarismo do intelectual brasileiro, definido por uma postura antidemonstrativa. No nosso sistema intelectual, “o que decisivamente importa”, conclui Luiz Costa Lima (1981LIMA, L. C. Dispersa demanda: ensaios sobre literatura e teoria. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981., pp. 22-24), são “os brasões da cultura”, ou seja, a “apresentação externa”, herdada de “nossa formação senhorial”, de modo que a falta de um pensamento original decorre da falta de “condições materiais”, bem “como porque as instituições legalmente capacitadas para julgar as produções intelectuais tendem a não acatar senão os produtos seguidores de uma linhagem já suficientemente legitimada nos centros que reconhecemos”. Assim, não admira a filosofia de Nietzsche ser interpretada, no Brasil, conforme uma “linhagem já suficientemente legitimada”, a saber, o positivismo, e, sobretudo, conforme os interesses de determinados grupos sociais, a despeito de Nietzsche criticar insistentemente o positivismo.8 8 Ao criticar, por exemplo, “a impetuosa exigência de certeza que hoje se espalha de modo científico-positivista”, Nietzsche escreve: “O fato é que de todos esses sistemas positivistas desprendem-se os vapores de um certo abatimento pessimista, algo de cansaço, fatalismo, decepção, temor de nova decepção - ou então raiva ostensiva, mau humor, anarquismo indignado e o que mais houver de sintomas ou mascaradas do sentimento de fraqueza” (FW/GC 347). Quanto “ao pedante inglês Herbert Spencer” e “tantos cientistas naturais materialistas”, Nietzsche conclui: “Uma interpretação do mundo ‘científica’, tal como a entendem, poderia então ser uma das mais estúpidas, isto é, das mais pobres de sentido de todas as possíveis interpretações do mundo” (FW/GC 373). NIETZSCHE, F. A gaia ciência. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 240 e pp. 276-277, respectivamente. Com efeito, Nietzsche frequentemente explicita uma opinião negativa sobre o positivismo, como “o bric-à-brac de conceitos da mais diversa procedência, com que hoje o chamado positivismo se apresenta no mercado, uma náusea do gosto mais exigente face ao colorido de feira e aspecto andrajoso desses filosofastros da realidade” (JGB/BM 10), bem como dos positivistas, como “filósofos-de-fuzarca, que se denominam ‘filósofos da realidade’ ou ‘positivistas’” (JGB/BM 204). NIETZSCHE, F. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 16 e 107, respectivamente.

A introdução de Nietzsche, no Brasil, nos anos 1870, por meio, de certa forma, da Escola do Recife, ocorre justamente no momento em que, como nota Lilia Schwarcz (1993SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil - 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993., p. 13.), “ao lado de um discurso de cunho liberal, tomava força [...] um modelo racial de análise, respaldado por uma percepção bastante consensual”, segundo a qual a miscigenação explicaria o atraso senão a inviabilidade da nação, uma vez que a civilização e o progresso ocidentais eram compreendidos como universais mas restritos a sociedades europeias e seus espelhos. Assim, segundo Schwarcz (1993SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil - 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993., p. 14), “a década de 70 é entendida como um marco para a história das ideias no Brasil, uma vez que representa o momento de entrada de todo um novo ideário positivo-evolucionista em que os modelos raciais de análise cumprem um papel fundamental”.

Cumpre observar, seguindo Schwarcz (1993SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil - 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993., p. 241), que, no contexto imediatamente posterior ao fim da escravidão, e da necessidade de se repensar a organização social no Brasil, a prometida igualdade, transformada em utopia pelos cientistas nacionais, “era negada em nome da natureza”. E a constatação de que a natureza justificaria a desigualdade, e as teorias raciais, supostamente fundamentadas na natureza, cumpririam a função de conservar uma determinada hierarquia social e racial e negar a cidadania a determinados estratos da sociedade brasileira parece explicar um aspecto relevante da apropriação seletiva de Nietzsche, sobretudo na Escola do Recife, onde, segundo Schwarcz (1993SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil - 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993., p. 25), “predominava o socialdarwinismo de Haeckel e Spencer”.

No contexto da “importação” das teorias europeias, como se dizia, em que ocorre, na verdade, como dissemos, uma seleção predeterminada pelos interesses de certos grupos sociais, em um momento em que tais teorias se encontravam desacreditadas na Europa, para a qual cumpriram a função de justificar a dominação imperialista europeia, devemos, como sugere Schwarcz (1993SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil - 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993., p. 17), entender tais teorias “em seu movimento singular e criador, enfatizando-se os usos que essas ideias tiveram” no Brasil. Assim, podemos compreender os usos de Nietzsche e as disputas de sentido em torno de seu nome, segundo os contextos e os grupos sociais envolvidos nas disputas, em que pesa uma complexa tensão entre conservação e modernização, que, no entanto, não permite delimitar os grupos em disputa. Afinal, a “modernidade” se encontra igualmente em disputa.

Como nota Schwarcz (1993SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil - 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993., p. 32), entre os “homens de sciencia” brasileiros, a ideia de modernidade e de moderno se associa a um “ideário evolutivo-positivista”, em que se sobressaem “Darwin, Spencer e Comte, como se livremente se associassem conceitos como ciência e modernidade.” Nesse sentido, “segundo vários críticos, coube à ‘geração dos 70’ a introdução do Brasil na ‘modernidade cultural’, na medida em que se propunha o rompimento com o pensamento religioso em prol de uma visão laica do mundo” (Schwarcz, 1993SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil - 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993., p. 150).

Mas ao almejar uma concepção “scientífica” de direito, “a disciplina surge”, como constata Schwarcz (1993SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil - 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993., p. 149), “aliada à biologia evolutiva, às ciências naturais e a uma antropologia física e determinista”, culminando em um direito criminal com determinações raciais, uma versão brasileira para a antropologia criminal inaugurada pelo criminologista e higienista italiano Cesare Lombroso, que, aplicando o conceito de degeneração, seria recepcionado em artigo da Revista Acadêmica da Faculdade de Direito do Recife, de 1893, como “a modernidade” no combate ao crime (Schwarcz, 1993SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil - 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993., p. 159). Na mesma revista, em artigo de 1913, o professor de direito criminal Laurindo Leão publica uma “ilustre lista de loucos”, e quem figura na lista? Nietzsche, o “louco”! Mas a “insanidade manifesta” preocupa menos do que “a proximidade existente entre a degeneração, a loucura e a criminalidade” (Leão, 1913 Apud Schwarcz, 1993SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil - 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993., p. 167), assegura o autor do artigo, professor da Faculdade de Direito do Recife, que associa ainda com a criminalidade a miscigenação.

Presumivelmente, a fonte das convicções de Laurindo Leão se encontre no livro Degeneração, de Max Nordau, publicado em 1892. Dedicado a Lombroso, o livro de Nordau consiste na aplicação do conceito de degeneração ao campo da arte e da filosofia, com o intuito de demonstrar que determinados escritores e artistas modernos manifestam as mesmas qualidades mentais de criminosos. Para Nordau, eles satisfazem seus impulsos degenerados pela escrita, que, por sua vez, sugestionaria as massas.

Nordau recorre constantemente a argumentos fundamentados no pseudocientificismo do positivismo evolucionista, aliado ao liberalismo capitalista colonial e industrial. E dedica um longo capítulo a Nietzsche:

Da primeira à última página dos escritos de Nietzsche, - escreve Nordau - o leitor cuidadoso parece ouvir um louco, com olhos brilhantes, gestos selvagens e boca espumante, jorrando bombástica e ensurdecedoramente; e isso tudo, ora irrompendo em gargalhadas frenéticas, ora cuspindo expressões de insultos e injúrias imundas, ora saltitando em uma dança vertiginosa e ágil, e ora explodindo sobre os ouvintes com semblante ameaçador e punhos cerrados (Nordau, 1895NORDAU, M. Degeneration. Londres: William Heinemann, 1895., p. 416).

Para corroborar a imagem de louco e doente que faz de Nietzsche, Nordau (1895NORDAU, M. Degeneration. Londres: William Heinemann, 1895., p. 416) afirma que ele “mostra, como seus elementos fundamentais, uma série de ideias delirantes constantemente reiteradas, tendo sua fonte em ilusões de sentido e processos orgânicos doentios”.

Nordau (1895NORDAU, M. Degeneration. Londres: William Heinemann, 1895., p. 434) não perdoa que Nietzsche censure a moral utilitarista, e conclui, em um argumento moralista que subordina as construções sociais a uma suposta natureza, que “os degenerados com os quais nos familiarizamos afirmam que não se preocupam com a Natureza e suas leis” (Nordau, 1895NORDAU, M. Degeneration. Londres: William Heinemann, 1895., p. 443). Aproximando, assim, Nietzsche dos “decadentes franceses” e dos “estetas ingleses”, Nordau (1895NORDAU, M. Degeneration. Londres: William Heinemann, 1895., pp. 444-445) sustenta a “identidade” entre eles pela “identidade de qualidades mentais” degeneradas, mencionando Baudelaire como exemplo. Para Nordau (1895NORDAU, M. Degeneration. Londres: William Heinemann, 1895., p. 447), “o sistema de Nietzsche é o produto da mania da contradição, a forma delirante dessa perturbação mental, cuja forma melancólica é a mania da dúvida e da negação.”

Embora reconheça que “sua perversão é de caráter puramente intelectual e quase nunca o impeliu a atos”, Nordau não hesita em declarar que “Nietzsche sofre de sadismo em sua forma mais pronunciada”. “Na consciência de Nietzsche”, alega Nordau (1895NORDAU, M. Degeneration. Londres: William Heinemann, 1895., pp. 450-451), “nenhuma imagem de maldade e crime pode surgir sem excitá-lo sexualmente. Não satisfeito em diagnosticar em Nietzsche uma “psicopatia sexual”, Nordau (1895NORDAU, M. Degeneration. Londres: William Heinemann, 1895., pp. 460-461) compreende que “Nietzsche tem todos os tipos de ilusões de sensibilidade da pele [...], de visão [...], de audição [...] e de olfato, que ele mistura em sua fugitiva ideação”, o que indica, para Nordau, uma “consequência de um desarranjo do mecanismo de coordenação”. E não termina aí: “Já nos familiarizamos com o sadismo intelectual de Nietzsche e sua mania de contradição e dúvida, ou mania de questionar. Além disso, ele promove a misantropia, ou antropofobia, megalomania e misticismo” (Nordau, 1895NORDAU, M. Degeneration. Londres: William Heinemann, 1895., p. 465).

E o mesmo parece se aplicar aos seus leitores, sujeitos a serem enganados pelo falso individualismo e aristocratismo de Nietzsche (Nordau, 1895NORDAU, M. Degeneration. Londres: William Heinemann, 1895., p. 472), ou seus adeptos, os quais Nordau (1895NORDAU, M. Degeneration. Londres: William Heinemann, 1895., p. 442) identifica como anarquistas e, ao mesmo tempo, filósofos “almofadinhas”: “A verdadeira quadrilha de Nietzsche consiste de criminosos imbecis natos e de simplórios bêbados de palavras sonoras”, conclui Nordau (1895NORDAU, M. Degeneration. Londres: William Heinemann, 1895., p. 469).

E, no entanto, seria o conceito de degeneração de Nordau que fundamentaria, poucos anos depois, o conceito de arte degenerada, propalada pelos nazistas que se apropriavam, criminosamente, claro, de Nietzsche. E, aqui, fundamentaria os argumentos de um autodeclarado nietzschiano, Monteiro Lobato, contra a arte moderna de Anita Malfatti. Basta, para percebermos, retomarmos os termos com que define a arte moderna e diagnostica o artista moderno no famoso artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, em dezembro de 1917:

Há duas espécies de artistas. Uma composta dos que veem normalmente as coisas e em consequência disso fazem arte pura, guardando os eternos ritmos da vida, e adotados para a concretização das emoções estéticas, os processos clássicos dos grandes mestres. [...] A outra espécie é formada pelos que veem anormalmente a natureza, e interpretam-na à luz de teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica de escolas rebeldes, surgidas cá e lá como furúnculos da cultura excessiva. São produtos de cansaço e do sadismo de todos os períodos de decadência: são frutos de fins de estação, bichados ao nascedouro (Lobato, 1917LOBATO, M. A propósito da Exposição Malfatti. O Estado de S. Paulo, São Paulo, ano 43, p. 4, 20 dez. 1917. Artes e artistas., p. 4).

Lobato (1917LOBATO, M. A propósito da Exposição Malfatti. O Estado de S. Paulo, São Paulo, ano 43, p. 4, 20 dez. 1917. Artes e artistas., p. 4) ainda caracteriza a arte moderna como “arte anormal ou teratológica: nasceu com a paranoia e com a mistificação”, conclui. E continua:

De há muitos já que a estudam os psiquiatras em seus tratados, documentando-se nos inúmeros desenhos que ornam as paredes internas dos manicômios. A única diferença reside em que nos manicômios esta arte é sincera, produto ilógico de cérebros transtornados pelas mais estranhas psicoses; e fora deles, nas exposições públicas, zabumbadas pela imprensa e absorvidas por americanos malucos, não há sinceridade nenhuma, nem nenhuma lógica, sendo mistificação pura.

Notadamente, Lobato se fundamenta na universalidade e na normalidade da “percepção sensorial” e, portanto, na capacidade do corpo “normal” sentir ou, mais exatamente, perceber pelos sentidos, e interpretar a realidade, para a qual a arte se reduz a uma representação ou imitação que deve se submeter a normas eternas que regem as artes. Contrariando a compreensão de arte reproduzida por Lobato, o modernista Mário de Andrade (2009ANDRADE, M. A escrava que não é Isaura. In: ANDRADE, Mário de. Obra imatura. Rio de Janeiro: Agir, 2009., p. 274) se manifesta, em seguida, em defesa da arte moderna aludindo ao artigo contra Anita Malfatti:

A incompreensão com que os modernistas de todas as artes são recebidos provem em parte disso. O espectador procura na obra de arte a natureza e como não a encontra, conclui: - Paranoia ou mistificação! O autor é idiota.

O ceticismo de alguns modernistas brasileiros com as teorias do século XIX acolhidas aqui o comprova Antônio de Alcântara Machado, ao criticar, na Revista de Antropofagia, de julho de 1928, a “epidemia positivista que assolou e ainda hoje assola” o Brasil: “é preciso de uma vez por todas liquidar com esse cadáver que enterrado desde muito na Europa foi exumado por meia dúzia de fivelas e trazido para o Brasil onde continua empestando o ambiente”, exorta Antônio de Alcântara Machado (2014MACHADO, A. A. Carniça. Revista de Antropofagia, n. 3 - edição fac-similar. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, 2014., p. 1), aludindo ironicamente ao positivista inglês Buckle, que influencia significativamente os intelectuais brasileiros a partir de 1870.9 9 Nietzsche tampouco simpatiza com Buckle. Ao perscrutar a genealogia de determinados conceitos morais, e o preconceito quanto aos problemas da origem no mundo moderno, “mesmo no aparentemente tão objetivo campo da ciência natural e da fisiologia”, Nietzsche escreve: “Mas o dano que esse preconceito, exacerbado até o ódio, pode ocasionar acima de tudo para a moral e o estudo da história, mostra-se no famigerado caso de Buckle; em que o plebeísmo do espírito moderno, de ascendência inglesa, irrompeu uma vez mais no seu solo natal, impetuoso como um vulcão de lama, e com aquela eloquência excessiva, rumorosa, vulgar, com a qual sempre falam os vulcões” (GM/GM I, 4). NIETZSCHE, F. Genealogia da moral: uma polêmica. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 21. Poucos anos antes, Renato Almeida criticava, na revista modernista Estética, o ceticismo cientificista dos “positivistas, evolucionistas e materialistas” do século XIX, contrapondo-o ao relativismo de Nietzsche, do qual, no entanto, não toma partido: “Nietzsche foi o primeiro a exclamar - do erro vem o conhecimento!”, constata Renato Almeida (2014ALMEIDA, R. Relativismo e scepticismo. Estética - edição fac-similar. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo; Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, 2014., p. 187).

Como compreender tantas contradições na recepção de Nietzsche, provenientes, tudo indica, de seleções e obliterações, que permitem, mais do que as tão repetidas fragmentação e contradição de sua obra, associar seus textos a proposições tão distintas?

Talvez as anotações marginais de Mário de Andrade a sua tradução francesa de Henri Albert de Assim falou Zaratustra possam nos ajudar a compreender. Nas margens de sua edição de 1921, ao final do “Prólogo de Zaratustra”, que termina com a frase “Assim começou o declínio de Zaratustra” (Za/ZA I, Prólogo de Zaratustra)10 10 NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 25. , anota Mário de Andrade:

Compreende-se todo o mal que um livro assim pode fazer. Admira mesmo que seja tão pouco o mal que fez, dada a imbecilidade humana. Só este início é uma obra-prima de beleza, de alta poesia e de sonho. É preciso compreender Zarathustra como um poema, não como uma filosofia. O livro imita, com alguma exatidão, o tom [ilegível], profético dos livros sagrados da antiguidade. Como estilo e como poesia, Zarathustra não cria, imita com muita inteligência. Em ideia quando cria, cria errado, porque não há mais nada por criar. Eis o declínio de Zarathustra.11 11 Anotação marginal em grafite em NIETZSCHE, F. Ainsi parlait Zarathoustra. Tradução de Henri Albert. 39 ed. Paris: Mercure de France, 1921, p. 29.

Com efeito, a filosofia de Nietzsche foi articulada, no Brasil, mais do que contraditoriamente, combativamente. Por um lado, em proposições de eugenia, apropriadas para as teorias raciais associadas a uma noção de civilização e progresso mobilizadas por intelectuais brasileiros para quem a miscigenação representou a aclimatação da civilização europeia no Brasil pelo branqueamento, e a modernidade, o cientificismo que fundamentaria e legitimaria tal processo. E, por outro lado, em problematizações do eurocentrismo e do processo de homogeneização europeia, contestando o sentido de progresso racional, de ordenamento e de administração da vida, ao reconhecer que a modernidade e a modernização, compreendidas naqueles termos, não condizem com a prometida civilização. Tal problematização permite identificar a continuidade entre a conquista, o ordenamento colonial do mundo, com o racismo como “instrumento de dominação social” em que se funda “o eurocentrismo do poder capitalista mundial e a consequente distribuição mundial do trabalho e das trocas” (Quijano, 2000 Apud Segato, 2021SEGATO, Rita. Crítica da colonialidade em oito ensaios: e uma antropologia por demanda. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021., p. 304) e, finalmente, a formação republicana. A modernidade e a colonialidade como uma mesma formação que, internamente, reproduz o colonialismo, na medida em que a instauração do estado nacional depois da descolonização implica as mesmas premissas de “modernidade” em se baseava a dominação colonial, rearticulada em “novas bases institucionais” (Quijano, 2000 Apud Segato, 2021SEGATO, Rita. Crítica da colonialidade em oito ensaios: e uma antropologia por demanda. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021., p. 308).

As interpretações de Nietzsche no Brasil confirmam, portanto e por fim, a “falta de conclusão essencial de interpretação” que Michel Foucault identifica como um dos postulados da “hermenêutica moderna” fundada por Nietzsche: “em Nietzsche está claro que a interpretação permanece sem acabar”, pois, para Nietzsche, não existe “um significado original”, de modo que a interpretação “necessita apoderar-se, e violentamente, de uma interpretação que já está ali”, explica Foucault (1997FOUCAULT, M. Nietzsche, Freud e Marx. São Paulo: Princípio, 1997., pp. 21-23). Assim, ao modo da disputa de sentidos em torno do nome de Nietzsche no Brasil, “o que se encontra no começo histórico das coisas não é a identidade ainda preservada da origem - é a discórdia entre as coisas, é o disparate” (Foucault, 1979 FOUCAULT, M. Nietzsche, a genealogia e a história. In: FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979, pp. 15-37., p. 18).

Referências

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  • ALMEIDA, R. Relativismo e scepticismo. Estética - edição fac-similar. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo; Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, 2014.
  • AMARAL, A. Os intelectuais e a constituinte. Diário de Pernambuco, Recife, ano 106, n. 191, p. 1, 23 ago. 1931.
  • ANDRADE, M. A escrava que não é Isaura. In: ANDRADE, Mário de. Obra imatura Rio de Janeiro: Agir, 2009.
  • ARANHA, G. A esthetica da vida Rio de Janeiro, Paris: Garnier, 1921.
  • A REFORMA Constitucional do Estado. A Província, Recife, ano 50, n. 131, p. 2, 17 mai. 1921.
  • ASSUNTOS da guerra. Jornal Pequeno, Recife, ano 16, n. 252, p. 1, 3 nov. 1914. Seção especial.
  • BARRETO, T. Nem philosopho nem critico. A Província, Recife, ano 5, n. 817, p. 2-3, 10 mar. 1876.
  • BATAILLE, G. et al. Acéphale Nietzsche e os fascistas: uma reparação, n. 2, jan. 1937. Trad. Fernando Scheibe. Cultura e Barbárie: Desterro, 2013.
  • CANNABRAVA, E. Walter F. Otto - Der Junge Nietzsche (O jovem Nietzsche). Diário de Pernambuco, Recife, ano 112, n. 82, p. 2, 14 fev. 1937. Letras Estrangeiras.
  • CARVALHO, M. V. Frederico Nietzsche. Diário de Pernambuco, Recife, ano 76, n. 66, p. 2, 14 mar. 1900.
  • E. B. De Paris. A Província, Recife, ano 23, n. 211, p. 1, 19 set. 1900.
  • FIGUEIREDO, H. Através da Academia. Jornal Pequeno, Recife, ano 14, n. 188, p. 4, 17 ago. 1912.
  • FOUCAULT, M. Nietzsche, a genealogia e a história. In: FOUCAULT, M. Microfísica do poder Rio de Janeiro: Graal, 1979, pp. 15-37.
  • FOUCAULT, M. Nietzsche, Freud e Marx São Paulo: Princípio, 1997.
  • FREYRE, G. Casa grande e senzala São Paulo: Círculo do Livro, 1988.
  • FREYRE, G. Ordem e progresso São Paulo: Global, 2013.
  • LIMA, L. C. Dispersa demanda: ensaios sobre literatura e teoria. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981.
  • LINHARES, M. Os prejuízos do divórcio. Heliopolis, Recife, ano 2, n. 1, p. 11, jan. 1914.
  • LOBATO, M. A propósito da Exposição Malfatti. O Estado de S. Paulo, São Paulo, ano 43, p. 4, 20 dez. 1917. Artes e artistas.
  • MACHADO, A. A. Carniça. Revista de Antropofagia, n. 3 - edição fac-similar. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, 2014.
  • MASCELLO, L. Frederico Nietzsche e a guerra. Heliopolis, Recife, ano 2, n. 10, p. 6-8, out. 1914.
  • MAX, -. Confrontos e contrastes. Diário de Pernambuco, Recife, ano 91, n. 16, p. 1, 17 jan. 1915. Crônica.
  • MUNIZ, A. Pelas escolas. A Província, Recife, ano 49, n. 331, p. 3, 1 dez. 1920.
  • MÚSICA e arquitetura. Pequeno Jornal, Recife, ano 1, n. 88, p. 1, 13 out. 1898. Teatro e salões.
  • NIETZSCHE, F. A gaia ciência São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
  • NIETZSCHE, F. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
  • NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
  • NIETZSCHE, F. Considerações extemporâneas. In: NIETZSCHE, F. Obras incompletas São Paulo: Editora Nova Cultural, 1999. (Os Pensadores)
  • NIETZSCHE, F. Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
  • NIETZSCHE, F. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres volume II. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
  • NORDAU, M. Degeneration Londres: William Heinemann, 1895.
  • O ANTICHRISTO. Diário de Pernambuco, Recife, ano 71, n. 36, p. 3, 13 fev. 1895.
  • PANTUZZI, T. L. A primeira recepção de Nietzsche no Brasil: a Escola de Recife. [dissertação de mestrado] Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo: São Paulo: 2016.
  • PENTEADO, E. A lógica dos homens. Jornal Pequeno, Recife, ano 8, n. 180, p. 1, 11 ago. 1911.
  • PINHAL, C. Diabo a quatro. Jornal Pequeno, Recife, ano 14, n. 83, p. 3, 13 abr. 1912.
  • PUBLICAÇÕES. A Província, Recife, ano 53, n. 223, p. 4, 24 set. 1924.
  • ROMERO, S. Discurso. Diário de Pernambuco, Recife, ano 77, n. 72, p. 1, 18 jul. 1901.
  • SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil - 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
  • SEGATO, Rita. Crítica da colonialidade em oito ensaios: e uma antropologia por demanda. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.
  • SIQUEIRA, E. Pelo reino de Christo. Maria, Olinda, n. 12, p. 284, dez. 1932.
  • VERÍSSIMO, J. Um Nietzsche diferente. Correio da Manhã Rio de Janeiro, ano 3, n. 587, p. 1, 19 jan. 1903
  • 1
    Cf. Pantuzzi, 2016PANTUZZI, T. L. A primeira recepção de Nietzsche no Brasil: a Escola de Recife. [dissertação de mestrado] Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo: São Paulo: 2016..
  • 2
    NIETZSCHE, F.Obras Incompletas. Col. “Os Pensadores”. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Nova Cultural, 1999NIETZSCHE, F. Considerações extemporâneas. In: NIETZSCHE, F. Obras incompletas. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1999. (Os Pensadores), p. 270. Posteriormente, Nietzsche se referiria a esta sua primeira consideração extemporânea como “Aquela irada irrupção contra a patriotice, o comodismo e o abastardamento da linguagem do envelhecido David Strauss” (MA II/HH II, Prólogo 1). NIETZSCHE, F. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres volume II. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2008NIETZSCHE, F. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres volume II. São Paulo: Companhia das Letras, 2008., p. 7.
  • 3
    Tradução de RRTF, p. 270-271.
  • 4
    Refere-se ao texto “Illusões. Ensaio sobre a ‘Esthetica da vida’”, de autoria de Angelo Guido, comentado anteriormente no n. 203, p. 7, 31 ago. 1924.
  • 5
    Cf. Aranha, 1921ARANHA, G. A esthetica da vida. Rio de Janeiro, Paris: Garnier, 1921., p. 21.
  • 6
    Cf. Bataille et al, 1937BATAILLE, G. et al. Acéphale. Nietzsche e os fascistas: uma reparação, n. 2, jan. 1937. Trad. Fernando Scheibe. Cultura e Barbárie: Desterro, 2013..
  • 7
    Artigo republicado em Cad. Nietzsche, São Paulo, v. 1, n. 35, p. 125-132, 2014.
  • 8
    Ao criticar, por exemplo, “a impetuosa exigência de certeza que hoje se espalha de modo científico-positivista”, Nietzsche escreve: “O fato é que de todos esses sistemas positivistas desprendem-se os vapores de um certo abatimento pessimista, algo de cansaço, fatalismo, decepção, temor de nova decepção - ou então raiva ostensiva, mau humor, anarquismo indignado e o que mais houver de sintomas ou mascaradas do sentimento de fraqueza” (FW/GC 347). Quanto “ao pedante inglês Herbert Spencer” e “tantos cientistas naturais materialistas”, Nietzsche conclui: “Uma interpretação do mundo ‘científica’, tal como a entendem, poderia então ser uma das mais estúpidas, isto é, das mais pobres de sentido de todas as possíveis interpretações do mundo” (FW/GC 373). NIETZSCHE, F. A gaia ciência. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001NIETZSCHE, F. A gaia ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2001., p. 240 e pp. 276-277, respectivamente. Com efeito, Nietzsche frequentemente explicita uma opinião negativa sobre o positivismo, como “o bric-à-brac de conceitos da mais diversa procedência, com que hoje o chamado positivismo se apresenta no mercado, uma náusea do gosto mais exigente face ao colorido de feira e aspecto andrajoso desses filosofastros da realidade” (JGB/BM 10), bem como dos positivistas, como “filósofos-de-fuzarca, que se denominam ‘filósofos da realidade’ ou ‘positivistas’” (JGB/BM 204). NIETZSCHE, F. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1992NIETZSCHE, F. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. São Paulo: Companhia das Letras, 1992., p. 16 e 107, respectivamente.
  • 9
    Nietzsche tampouco simpatiza com Buckle. Ao perscrutar a genealogia de determinados conceitos morais, e o preconceito quanto aos problemas da origem no mundo moderno, “mesmo no aparentemente tão objetivo campo da ciência natural e da fisiologia”, Nietzsche escreve: “Mas o dano que esse preconceito, exacerbado até o ódio, pode ocasionar acima de tudo para a moral e o estudo da história, mostra-se no famigerado caso de Buckle; em que o plebeísmo do espírito moderno, de ascendência inglesa, irrompeu uma vez mais no seu solo natal, impetuoso como um vulcão de lama, e com aquela eloquência excessiva, rumorosa, vulgar, com a qual sempre falam os vulcões” (GM/GM I, 4). NIETZSCHE, F. Genealogia da moral: uma polêmica. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998NIETZSCHE, F. Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 1998., p. 21.
  • 10
    NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. São Paulo: Companhia das Letras, 2011., p. 25.
  • 11
    Anotação marginal em grafite em NIETZSCHE, F. Ainsi parlait Zarathoustra. Tradução de Henri Albert. 39 ed. Paris: Mercure de France, 1921, p. 29.
  • Pareceristas:

    João Evangelista Tude de Melo Neto, Geraldo Pereira Dias

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2024

Histórico

  • Recebido
    13 Jan 2023
  • Aceito
    22 Jun 2023
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