Resumo:
Neste artigo, objetivamos, por um lado, analisar as reflexões teóricas de Haroldo de Campos sobre a tradução como transcriação a partir da prática transcriadora apresentada pelo poeta. Por outro, apresentaremos as peculiaridades do texto de Nietzsche enquanto estabelece uma ligação ente pensamento e vida, forma e conteúdo, escrita e sangue, visando a verificar em que medida os textos dele não remetem os leitores a uma criação paralela e autônoma, ainda que recíproca, indo ao encontro da perspectiva proposta por Haroldo de Campos no que concerne à tradução e no que tange à busca da criação de novas linguagens para expressar novos conteúdos.
Palavras-chave:
Tradução; transcriação; forma, linguagem, sentido
Abstract:
In this article, we aim, on one hand, to analyze Haroldo de Campos› theoretical reflections on translation as transcreation based on the transcreative practice presented by the poet. On the other hand, we will present the peculiarities of Nietzsche›s text while establishing a connection between thought and life, form and content, writing and blood, aiming to verify to what extent Nietzsche›s texts do not refer their readers to a parallel and autonomous creation, even if reciprocal, meeting the perspective proposed by Haroldo de Campos regarding translation and regarding the search for creating new languages to express new contents.
Keywords:
Translation; Transcreation; form, language, meaning
Para Ivo da Silva Júnior
“Tradução para mim é persona. Quase heterônimo. Entrar dentro da pele do fingidor para refingir tudo de novo, dor por dor, som por som, cor por cor. Por isso nunca me propus a traduzir tudo. Só aquilo que minto. Ou que minto que sinto, como diria, ainda uma vez, Pessoa em sua própria persona”.
Haroldo de Campos
Neste artigo, apresentaremos, por um lado, as reflexões teóricas sobre tradução no horizonte de uma prática radical da tradução poética, derivando a teoria da transcriação da própria prática transcriadora a partir da exposição de Haroldo de Campos ao compreender o texto enquanto rede de sentidos. E, por outro, analisaremos a particularidade do discurso de Nietzsche enquanto estabelece um elo indissolúvel entre pensamento e vida, forma e conteúdo, escrita e sangue. Nele, encontramos uma especificidade aproximadora dos discursos filosófico e literário, que remete o desafio da leitura e da tradução dos textos de Nietzsche ao exercício de uma criação paralela e autônoma, ainda que recíproca, indo, a nosso ver, ao encontro, em muitos sentidos, da perspectiva trazida por Haroldo de Campos.
Comecemos por assinalar que, na ótica de Haroldo de Campos, a possibilidade da tradução enquanto recriação/transcriação é determinada pela particularidade de uma tal realização com a poesia. Para ele, traduzir uma poesia requer um exercício estético análogo à criação poética, remetendo o recriar ou o transcriar à relação direta com a dificuldade e a intraduzibilidade de um texto, já que se trata de outro começo, conferido pela abertura de um espaço que permite dar ao criado, um novo processo de criação, diverso de uma transferência de códigos linguísticos correspondentes, distinto da remessa de um significado ao referente extralinguístico considerado a ele equivalente. Na recriação produz-se uma informação estética inaugural, distanciada, por isso, de uma tarefa meramente reprodutora, pois, para Haroldo de Campos, a questão crucial na tradução de um poema encontra-se na reconstituição do sistema de signos que incorpora a mensagem, no domínio estético ao invés de na carga semântica que o poema traz enquanto informação. Daí o poeta não reconhecer a reconstituição da mensagem como dimensão imperante a guiar a tarefa do tradutor e entender que a intraduzibilidade de textos criativos remete, de imediato, à possibilidade de recriação deles. Em Metalinguagem e outras metas, ele escreve:
Admitida a tese da impossibilidade em princípio da tradução de textos criativos, parece-nos que esta engendra o corolário da possibilidade, também em princípio, da recriação desses textos. Teremos, como quer Bense, em outra língua, outra informação estética, autônoma, mas ambas estarão ligadas entre si por uma relação de isomorfia: serão diferentes enquanto linguagem, mas, como os corpos isomorfos, cristalizar-se-ão dentro de um mesmo sistema
1 1 CAMPOS, 1992, p. 34. .
Ao considerar que a informação semântica não é ponto axial na tradução de um poema, Haroldo de Campos traz para o primeiro plano a integração de som, sentido e visualidade das palavras. Apropriando-se do neologismo verbivocovisual de Joyce2 2 Em Teoria da poesia concreta): textos críticos e manifestos 1950-1960, Haroldo de Campos, no texto “Contexto de uma vanguarda”, discorrendo sobre as particularidades da poesia concreta, recorre ao termo verbivocovisual para explicitar a integração entre o verbal, o visual e o sonoro nela presente, ao afirmar que: “ideograma: apelo à comunicação não-verbal. o poema concreto comunica a sua própria estrutura: estrutura-conteúdo. o poema concreto é um objeto em e por si mesmo, não um intérprete de objetos exteriores e/ou sensações mais ou menos subjetivas. seu material: a palavra (som, forma visual, carga semântica). seu problema: um problema de funções-relações desse material. fatores de proximidade e semelhança, psicologia da gestalt. ritmo: força relacional. o poema concreto, usando o sistema fonético (dígitos) e uma sintaxe analógica, cria uma área linguística específica -”verbivocovisual” ___ que participa das vantagens da comunicação não-verbal, sem abdicar das virtualidades das palavras. com o poema concreto ocorre o fenômeno da metacomicação: coincidência e simultaneidade da comunicação verbal e não-verbal, com a nota de que se trata de uma comunicação de formas, de uma estrutura-conteúdo, não da usual comunicação de mensagens.” (CAMPOS, 1975, p. 157). Sobre o mesmo tema, conforme PRADO, Célia Luiza Andrade; ESTEVES, Lenita Maria Rimoli. A tradução “verbivocovisual” de Haroldo de Campos. Tradução & Comunicação. Revista Brasileira de Tradutores. Nº. 19, Ano 2009, p. 115-127. , ele revê a organização do texto a partir da expressão dos valores gráficos e fônicos nele presentes, remetendo, com isso, o trabalho de transcriação ao horizonte da poesia concreta que propõe e compõe, possibilitando o enriquecimento simultâneo do texto de partida e do texto de chegada mediante o elo, a ligação, a costura, a interdependência criativa como marca do traduzir e do fazer poético. Em vista disso, o trabalho de tradutor ser tributário do de poeta e não haver diferenciação hierárquica entre transcriação e criação. Nos dois casos, trata-se de composição estética em palavras a preencher o espaço em branco. Em Da Tradução como Criação e como Crítica, lemos:
[...] para nós, tradução de textos criativos será sempre recriação, ou criação paralela, autônoma, porém recíproca. Quanto mais inçado de dificuldades esse texto, mais recriável, mais sedutor enquanto possibilidade aberta de recriação. Numa tradução dessa natureza, não se traduz apenas o significado, traduz-se o próprio signo, ou seja, sua fisicalidade, sua materialidade mesma (propriedades sonoras, de imagética visual, enfim, tudo aquilo que forma, segundo Charles Morris, a iconicidade do signo estético, entendido por signo icônico aquele “que é de certa maneira similar àquilo que ele denota”). O significado, o parâmetro semântico, será apenas e tão-somente a baliza demarcatória do lugar da empresa recriadora. Está-se, pois, no avesso da chamada tradução literal”
3 3 CAMPOS, 1992, p. 35.
No ensaio “Da tradução como criação e como crítica”, partindo da noção de diferença endereçada ao texto enquanto distinto temporal e espacialmente daquilo que representa e encontrando-se inscrito em uma cadeia de significantes, Haroldo de Campos introduz o conceito de isomorfismo para tratar da relação existente entre o texto base para a recriação e aquele que nasce enquanto produto dela, afirmando que embora eles sejam diferentes enquanto linguagem, dentro do próprio agrupamento, eles se cristalizarão como corpos isomorfos; haja vista que, no mesmo sistema, encontram-se a língua de partida e a língua de chegada como o mesmo e o outro enquanto portadores de informações estéticas diferentes que caminham uma ao lado da outra. Daí a utilização posterior, pelo poeta, do termo paramórfico ao invés de isomórfico visando a dar ênfase a “ao lado de”, à noção de canto paralelo entre as línguas de partida e de chegada. Referindo-se às transformações no uso terminológico, em “Tradução, ideologia e história”, Haroldo de Campos afirma:
Em meu escrito de 1962, “Da tradução como criação e como crítica” procurei definir a tradução criativa Essa tradução isomórfica (para-mórfica) se voltaria para a reconfiguração da iconicidade do signo estético (Charles Morris; Max Bense), situando-se no avesso da chamada tradução literal (posteriormente, preferi falar em para-morfia, pensando na mimese como produção da diferença, “transformação ao lado de”, “paralela”, assim como, num ensaio de 1967, vali-me da acepção de paródia no sentido etimológico de “canto paralelo”
4 4 CAMPOS, 2019, p. 37. .
Recusando que a tradução possa restituir a verdade e a literalidade de um significado original contido no idioma de partida, que possa encontrar uma condição de possibilidade iniludível de expressão e de compreensão reveladora do ideal que se encontrava oculto, que seja uma transposição ou transferência de dados registrados, de marcadores a impor a unicidade de sentido, a tradução-transcriadora ou transcriação, partindo da semiótica, entende que a produção de sentido em um texto se dá em um percurso gerador do sentido e encontra a informação estética no horizonte da semelhança qualitativa com aquilo com que se refere, a iconicidade do signo, objetivando reconfigurar a forma significante do poema de partida no poema de chegada, voltando-se aos aspectos visuais e sonoros da palavra em que o sentido está incorporado.
Situando-se na cadeia de significantes remetidos concomitantemente uns aos outros, uma rede de significantes, o texto é visto como tecido pleno de fios que se regeneram a cada recorte, que se refazem pela visada da análise a descobrir, enquanto remoção de véu, a coexistência de uma miríade de significantes em cada palavra do texto, em cada fio que compõe a trama textual, possibilitando que se proceda a uma reconstrução sem fim, introduzindo uma relação de apropriação do texto-fonte. O texto como lugar da multiplicidade de escrituras, de culturas, de histórias a abrigar o diverso em diálogo. Ao transcriar, Haroldo de Campos recusa a imitação, rejeitando a reprodução do mesmo. Inscrevendo a noção de mimesis na produção da diferença, a tomo como o oposto da cópia, tornado impossível reproduzir um exemplar. Por isso, ao invés de buscar a decifração e a reconstituição da mensagem, o tradutor, para ele, irá, de fato, transcriar, pois entende a historicidade do texto-fonte como construção viva, propõe que os critérios intertextuais enformam o operar tradutório, ditando a transposição dos elementos extratextuais do original no novo texto que o usurpa, traduzindo a tradição como desconstrução e reconstrução da história, reinventando-a como criação. Nas palavras de Haroldo de Campos:
A tradução de poesia (ou prosa que a ela equivalha em problematicidade) é antes de tudo uma vivência interior do mundo e da técnica do traduzido. Como que se desmonta e se remonta a máquina da criação, aquela fragílima beleza aparentemente intangível que nos oferece o produto acabado numa língua estranha. E que, no entanto, se revela suscetível de uma vivissecção implacável, que lhe revolve as entranhas, para trazê-la novamente à luz num corpo linguístico diverso
5 5 CAMPOS, 1992, P. 43. .
A escolha do termo usurpar não é fortuita, remetendo ao ato de assimilação de variados elementos, resgatando a metáfora de Machado de Assis da cabeça como “um bucho ruminante” que ao misturar e triturar todas as sugestões não consegue distinguir o assimilador do assimilado, tocando a “escritura telegráfica de Oswald de Andrade”. Em “Arte Pobre, tempo de pobreza, poesia menos”, lemos sobre o autor de Dom Casmurro que: “Da ‘magreza estética, do estilo de ’gago’ de Machado de Assis vem, numa certa linha rastreável de evolução, a escritura telegráfica de Oswald de Andrade, marcada pela metonímia cubista”6 6 CAMPOS, 1992, p. 223. .
Há uma relação entre a proposta teórica de Haroldo de Campos e o movimento Antropofágico, encontramos uma alusão a um resgate do movimento em mais do que um texto do autor. Em “Tradição/Transcriação, Transculturação: o ponto de vista do ex-cêntrico”, o autor transcriador declara pertencer a um grupo de poetas que lançou nos anos de 1950, o movimento nacional e internacional da poesia concreta, retomando dialogicamente o modernismo dos anos de 1920, notadamente o de Oswald de Andrade. Referindo-se diretamente ao autor do Manifesto Antropófago, reconhece nos textos dele a presença de uma literatura des-centrada, ex-cêntrica e transgressiva tomada como exemplo. Na ótica de Haroldo, trata-se do momento em que se manifesta uma crise da filosofia “Messiânica” e o nacional é pensado em uma relação dialética e dialógica com o universal.
Em “Da razão antropofágica: diálogo e diferença na cultura brasileira”7 7 Cf. CAMPOS, 1992, p. 234. , contrapondo o mau selvagem transculturador oswaldiano ao bom selvagem submisso do Romantismo, especialmente o de José de Alencar, Haroldo de Campos refere-se à antropofagia oswaldiana como “devoração crítica do legado cultural universal, elaborado não a partir da perspectiva submissa e reconciliadora do ‘bom selvagem’, mas segundo o ponto de vista desabusado do”mau selvagem”, devorador de brancos, canibal”; mas há de se acrescentar que se trata de um canibal seletivo, haja vista que elege o inimigo a ser devorado a partir do critério da bravura, permitindo através do canibalismo a incorporação do que renova as forças naturais do selvagem.
A antropofagia é entendida como transculturação e transvaloração geradora de expropriação e de desconstrução enquanto visão crítica da história. No que concerne à tradição, Haroldo de Campos assinala uma permanente preocupação, em termos de revisão a partir de uma perspectiva crítica e criativa. Em “Da razão antropofágica: diálogo e diferença na cultura brasileira”, manifesta ser necessário pensar o nacionalismo desde a diferença ao invés de a partir de uma origem unívoca definidora, ao declarar que: “pensar a diferença, o nacionalismo como movimento dialógico da diferença (e não como unção platônica da origem e rasoura acomodatícia do mesmo)”, acrescentando, na sequência, a importância de tematizar: “o-des-caráter, ao invés do caráter; a ruptura, em lugar do traço linear; a historiografia como traço sísmico da fragmentação eversiva, antes do que como homologação tautológica do homogêneo”8 8 CAMPOS, 1992, p. 237. .
Mas que relação há entre a questão diferenciada da tradução de textos criativos abordada pelo poeta e as perspectivas da filosofia de Nietzsche? Não há dúvidas acerca da importância teórica de Haroldo de Campos no trato da temática da tradução. Embora não tenhamos feito referência, no trabalho dele encontramos influências e confluências que retomam o Romantismo alemão, a leitura de Walter Benjamim, a semiótica norte-americana, a abordagem francesa da filosofia e da literatura, os linguistas russos e Nietzsche, enquanto ponto de partida de muitos dos “sangues” que nutrem a abordagem de Haroldo de Campos enquanto apropriação, troca e diálogo. Mas o que nos parece relevante na questão teórica trazida pelo poeta tradutor é a afirmação de que os textos original e traduzido serão transformados, metamorfoseados e modificados, a tradução, passando a ser o original do original em Haroldo de Campos, como afirma Marcelo Tápia, impõem-nos a questão, por um lado, sobre a possibilidade de toda tradução “não transformar, por um átimo, o original na tradução de sua tradução”, ou seja, em que medida a tradução não se constitui como criação paralela e autônoma, ainda que recíproca?
De outra parte, ao procurarem uma nova linguagem através da poesia concreta, Haroldo de Campos, Augusto de Campos e Décio Pignatari entendem haver uma imbricação entre a proposição de novos conteúdos e a necessidade de criação de outras formas linguísticas para expressá-los, de novas linguagens capazes de ultrapassar a limitação da linearidade da sintaxe oral. Ao apresentar o plano piloto da poesia concreta de 1958 em “Nova Linguagem, nova poesia”, Luiz Ângelo Pinto e Décio Pignatari, defendem que conteúdos inusitados requerem uma outra forma linguística, diferente das usuais, enquanto condição para que ela possa ser capaz de expressar o diverso, pois, na ótica dos autores, a linguagem tem limitações tanto em termos do conjunto de signos quanto das relações sintáticas que terminam por subordinar o dizer à determinada forma linguística, levando-os a entender que: “quando pensamos ou nos comunicamos por meio de uma certa linguagem não conseguimos referir-nos a coisa alguma nem estabelecer qualquer relação a não ser aquelas subordinadas à forma da linguagem em questão”. Daí eles se dirigirem à criação de novas linguagens, uma vez que, na visão deles, elas poderão ser, como afirmam: “projetadas e construídas para cada situação e de acordo com cada necessidade”9 9 CAMPOS; PIGNATARI; CAMPOS, H., 1975, p. 162. . No limite, para os autores, o valor da linguagem e do texto está na intraduzibilidade e na irredutibilidade deles a outras linguagens e a outros textos, já que, como afirmam: “Uma linguagem vale pelo que tem de intraduzível, de intransponível, de irredutível a outras linguagens. Um texto, também tem valor por tudo aquilo que há nele de irredutível a outros textos em quaisquer linguagens”10 10 CAMPOS; PIGNATARI; CAMPOS, H., 1975, p. 162. .
Em nossa ótica, tanto a questão da tradução enquanto transcriação quanto, particularmente, da linguagem em termos da busca de irredutibilidade e de intraduzibilidade a outras linguagens, remete-nos a preocupações presentes na filosofia de Nietzsche. Especialmente, no que concerne aos textos em que o autor de Ecce homo procura se comunicar sem, contudo, carregar em seu discurso um grão de desprezo. Que precisa da gramática sem, todavia, como critica em Descartes, vê-la como verdade eterna que termina por estabelecer, como ele afirma: “o sujeito ‘eu’ como condição do predicado ‘penso’” (NF/FP 1885, 40 [20], KSA 11.637) levando-o a procurar continuamente um modo de driblar a armadilha das palavras enquanto caracterizadas a partir da igualação do desigual e da transformação do próprio em algo comum, sendo, por ele, definidas desde a vulgaridade que portam. Por isso, entendemos o recurso de Nietzsche à multiplicidade de estilos como uma forma de incluir na exposição do discurso dele uma singularidade do dizer enquanto característica própria.
Convenhamos que, aos olhos de Nietzsche, a filosofia tem um sentido diverso daquele que a ela foi conferido tanto por Platão e Aristóteles quanto por Descartes e Kant. Num primeiro plano, estão o procedimento genealógico com a crítica acirrada à moral e os conceitos de vontade de potência, além-do-homem, eterno retorno e amor fati com os quais Nietzsche tenciona ultrapassar as dualidades que atravessam e fundam a filosofia da tradição ao transpor o valor para o plano imaginário. Num segundo plano, deparamo-nos com uma escritura sui generis que se manifesta na profusão de estilos, por vezes, aproximadores dos discursos filosófico e literário.
Há um certo consenso entre os comentadores de Nietzsche acerca da singularidade estilística que caracteriza a exposição da filosofia dele11 11 Cf. O desafio Nietzsche. MÜLLER-LAUTER, W., Discurso (21), 1993: 7-29. . Efetivamente, o recurso a formas diversas de apresentação do próprio pensamento atravessa o conjunto de sua obra desde O nascimento da tragédia até os Fragmentos póstumos de 1888 apontando para a presença de um vínculo estreito entre pensamento e escrita. Se essa vinculação permitiu que se questionasse a pertinência de uma classificação de Nietzsche como filósofo ou a coerência interna de sua filosofia, possibilita, sob outro prisma, compreender o pensamento dele desde o estabelecimento de uma relação necessária entre conteúdo e forma. Acreditamos, simultaneamente, na intencionalidade e na necessidade enquanto móveis subjacentes que conduziram Nietzsche a romper com o modo convencional de expor conceitos, recorrendo, assim, a metáforas, hipérboles, aforismos, poemas e ditirambos constantes em seus textos. Essa diversidade estilística aponta para uma singularidade discursiva que encontra, a nosso ver, a chave de compreensão na própria filosofia de Nietzsche em seu conjunto. Por um lado, há de se considerar, de forma especial, o vínculo indissolúvel presente entre pensamento e vida que se expressa, em termos de exposição, na confusão entre escrita e pensamento e, por outro, o reconhecimento das limitações da palavra em comunicar vivências singulares.
Partamos da filosofia que se inicia com Assim falava Zaratustra. É a partir desse momento conceitual que Nietzsche introduz a interpretação nos domínios do mundo a partir de uma interpretação, visando a aniquilar as noções de fato e de fundamento. É interessante sublinhar que ao rejeitar o fundamento, ele recusa a conceder à construção filosófica uma resposta última e definitiva seja à questão do conhecimento seja às concernentes à moral, à política e à estética. Invariavelmente, trata-se do empenho em mostrar que, por detrás daquilo que aparece enquanto interpretação, não há um fundamento oculto ao qual se possam remeter as perspectivas, mas que são as próprias perspectivas que manifestam aquilo que vem a ser como aquilo que é. Nesse sentido, dirige a crítica à noção de fundamento à História da Filosofia em seu conjunto conceptualizada nas obras que se iniciam com Platão e vão até Hegel; trazendo para a cena discursiva um outro modo de proceder que, ao aniquilar os referenciais semânticos subjacentes à quase totalidade dos discursos filosóficos, exige que se redimensione a análise, a compreensão, a expressão, enfim, os modos convencionais de tratamento tanto de um texto quanto da formulação de um pensamento. Por um lado, Nietzsche rejeita a unicidade do conceito e do fato originário; por outro, recusa a vigência de uma unidade subjetiva como regente através de um sujeito fundante do ser, do conhecer e do agir.
Temos, portanto, o delineamento de um esquema que liga a recusa do fundamento, enquanto rejeição de significados prévios, à afirmação de que existem tão-somente postulações. Uma tal vinculação, a nosso ver, requer que se transforme o modo de exposição conceitual. Nietzsche revê a relação entre forma e conteúdo a partir do estabelecimento de uma imbricação entre pensamento e escrita que revela, simultaneamente, a ausência de significados prévios e o introduzir de uma interpretação12 12 No que concerne aos limites e às possibilidades da interpretação em Nietzsche, conforme o estudo que realizamos no primeiro capítulo de Nietzsche e a aurora de uma nova ética, intitulado, “A interpretação: perspectivas de um aumento de potência” (Cf. AZEREDO, V. D. Nietzsche e a aurora de uma nova ética. 2 ed., Paraná: CRV, 2021, p. 35-74). .
Vamos agora à Assim falava Zaratustra, já que se trata da obra em que Nietzsche introduz as noções a partir das quais passa a interpretar o mundo. Efetivamente, distinguimos esse livro dos anteriores por reconhecer nele tanto a exposição dos conceitos centrais do pensamento nietzschiano, distanciada, ao mesmo tempo, das influências, por exemplo, de Schopenhauer, presente em O nascimento da tragédia, e do positivismo, constante em Humano, demasiado humano, quanto a elaboração de uma escrita diferente da dos demais livros do autor. Em Ecce homo, sobre a singularidade estilística de Assim falava Zaratustra, Nietzsche declara: “- Que linguagem falará um tal espírito, ao falar só consigo mesmo? A linguagem do ditirambo”, afirmando, na sequência, ser o inventor do ditirambo: “Eu sou o inventor do ditirambo” (EH/EH, Assim falava Zaratustra 7, KSA 6.345)13 13 NIETZSCHE. Ecce homo, Trad. Paulo César Souza, São Paulo: Companhia das Letras, 1995. A partir de agora indicado como PCS. . Em carta de fevereiro de 1883 a Ernst Schmeitzner14 14 Cf. Carta para Ernst Schmeitzner de 13 fevereiro de 1883. , descreve o livro como algo para o qual não há nome, podendo ser uma poesia ou um quinto Evangelho. Nos dois casos, encontramos a ênfase de Nietzsche na linguagem peculiar da obra como tônica, seja ela em prosa ou em verso, a expressão literária e lírica, enfim, poética está em destaque como condição do escrito15 15 Em cartas de 1883, Nietzsche apresenta e tece comentários a Assim falava Zaratustra no que concerne à presença dos temas centrais da filosofia dele, ao aperfeiçoamento do idioma alemão por meio da escrita peculiar do texto, acrescentando a aversão ao trato do escrito como entretenimento. Três delas são exemplares da centralidade da obra na filosofia de Nietzsche, da dimensão conferida pelo autor à escrita definidora da obra e à recusa de uma qualificação do texto como passatempo, quais sejam, a escrita a Peter Gast em 6 de abril de1883, em que Nietzsche escreve: “Repugna-me que Zaratustra entre no mundo como um livro para entretenimento. Quem é bastante ‘sério’ para ele! Se eu tivesse a autoridade do ‘velho Wagner’, seria melhor. Mas, agora, ninguém pode evitar que eu seja atirado aos ‘literatos’...” (NIETZSCHE, 1944, p. 219). A carta endereçada a Erwin Rohde em 22 de fevereiro de 1884, em que Nietzsche faz referência ao estilo que atravessa e define Assim falava Zaratustra como perfeição máxima: “Não há exemplo, comparação ou precedente. Quem chegar a viver o meu livro, voltará ao mundo com diferente aspecto. (...) A ti, como homo litteratus, quero fazer uma confissão: creio ter levado, com o meu Zaratustra, o idioma alemão à sua perfeição máxima. (...) O meu estilo é uma doença, um jogo de simetrias, de todas as espécies, e um saltar e zombar destas mesmas simetrias. Chega até a escolha de vogais” (NIETZSCHE, 1944, p. 237). A carta remetida ao Barão de Gersdorf, redigida em junho de 1883; nela, Nietzsche declara: “O meu Zaratustra, que te enviei esta semana, revelar-te-á a elevação do voo da minha vontade. Não te deixes enganar pela forma legendária do livro. Atrás de suas simples e estranhas palavras, está a minha mais profunda seriedade e toda a minha filosofia” (NIETZSCHE, 1944, p. 225). .
Mas vejamos a que realmente Zaratustra nos remete; primeiramente, do ponto de vista do anúncio do eterno retorno, ele é apresentado reiteradas vezes como profeta. Em segundo lugar, do ponto de vista da profecia, Nietzsche rejeita para si e para Zaratustra alcunha similar, enquanto define ou um construtor de um novo ídolo ou um melhorador da humanidade. Em terceiro lugar, Nietzsche aproxima Zaratustra e Dionísio. Observe-se, por exemplo, que, a partir da elaboração de Assim falava Zaratustra, Nietzsche passa a conferir ao deus grego outro destaque, ao incorporar a vertente eminentemente positiva da filosofia, no sentido de uma ruptura com a tradição, ao pathos dionisíaco enquanto sentimento global de afirmação. Desde então, em maior ou menor intensidade e ocorrência, esse pathos dominará a cena filosófica nietzschiana. É recorrendo a Dioniso que o filósofo de Sils Maria propõe a afirmação da vida como medida de aceitação e expressão ascendente.
Convenhamos que, na visão de Nietzsche, Zaratustra e Dionísio designam o mesmo. Primeiramente, Nietzsche aproxima Zaratustra e Dionísio enquanto singularidade do tipo, como uma espécie de traços de caráter que tem no acesso aos extremos, na necessidade do acaso, na confusão com o vir-a-ser e, na perda de si para seu encontro no múltiplo, a expressão. Em um segundo momento, é em termos de atitude que a parecença tem relevo, pois é o caráter ilimitado da afirmação daquele que tem em seu dizer um superno não que remete ao Deus grego. Zaratustra diz não sem ser, no entanto, um negador: “‘A todos os abismos levo a benção do meu Sim’..., Mas esta é a ideia do Dioniso mais uma vez” 16 16 NIETZSCHE, F. Ecce homo. Trad. Paulo César Souza, p. 89. (EH/EH, Assim falava Zaratustra 6, KSA 6.345). Outra vez a noção do deus é parâmetro para o esclarecimento de Zaratustra. Todavia, não se trata de questões passíveis de distinção em Nietzsche, pois as duas ordens assemelham-se no vir-a-ser. Produto/processo, agir/agente, ser/vir-a-ser são como as duas faces de uma moeda, cuja separação acarretaria a perda. Assim, a condição do tipo é condição da ação desse tipo, já que não é possível antepor o ser ao agir, o ser ao dizer, o ser ao vir-a-ser. Em ambos está o movimento, o fluxo e o refluxo; enfim, a determinação do vir-a-ser.
Dessa compreensão advém uma potência sem medida para a mudança, a metamorfose; em suma, a transformação completa que interliga agir e agente, processo e produto. No limite, Dioniso e Zaratustra expressam, no plano filosófico nietzschiano, o exercer-se da força, o efetivar-se. Recorrendo à figura do deus grego, o pensador alemão apresenta as condições necessárias para uma assimilação da vida sem subterfúgios, isto é, sem a construção de ídolos ou de ideais. Logo, a dureza do tipo ser pré-condição para seu papel de aniquilador e de construtor. Dioniso é um dançarino e um destruidor; Zaratustra também é um dançarino e um destruidor. Em ambos os casos, manifesta-se a vida enquanto vontade de potência que institui e destitui interpretações. É a transposição do dionisíaco em pathos filosófico que, enquanto pano de fundo do discurso nietzschiano, remete sua filosofia positiva para a expressão do trágico e viabiliza apreender, nessa dimensão, a construção de uma nova perspectiva em termos de conteúdo e de forma que prescinde dessa distinção.
A originalidade de Nietzsche está em vincular o discurso filosófico ao âmbito do trágico introduzindo uma dimensão de filosofia que consiste justamente na transposição do dionisíaco em pathos filosófico” (EH/EH, O nascimento da tragédia 3, KSA 6.312). Em Ecce homo, ao comentar O nascimento da tragédia, Nietzsche apresenta-se como sendo o primeiro filósofo trágico “tenho o direito de considerar-me o primeiro filósofo trágico – ou seja, o mais extremo oposto de um filósofo pessimista” (EH/EH, O nascimento da tragédia 3, KSA 6.312). Mediante a proposição do caráter irrestrito da afirmação da vida, “[o] dizer Sim à vida mesma ainda em seus problemas mais estranhos e mais duros” (EH/EH, O nascimento da tragédia 3, KSA 6.312), o pensador incorpora a problematicidade do existir em uma dimensão de necessidade positiva. É próprio do vir-a-ser o criar e o destruir; logo, o adentrá-lo e o compreendê-lo pressupõem de início a sua afirmação: “ser em si mesmo o eterno prazer do vir-a-ser – esse prazer que traz em si também o prazer no destruir...” (EH/EH, O nascimento da tragédia 3, KSA 6.312).
Na visão de Nietzsche, ao assimilar a existência a partir da perspectiva de uma eternidade de criação e de destruição constantes, ao afirmar, ao mesmo tempo, as belezas e os horrores da vida e da condição humana, estaria, pela primeira vez, promovendo a abertura para o vir-a-ser e, com isso, realizando a “transposição do dionisíaco em pathos filosófico” (EH/EH, O nascimento da tragédia 3, KSA 6.312). Uma tal transposição tem implicações bem profundas, já que se trata, por um lado, de extrair de uma total gratuidade conferida ao mundo e ao homem um redimensionamento de ambos e, por outro, de expressar, através de uma filosofia que diz não às interpretações precedentes, uma suprema afirmação, rejeitando, assim, o pessimismo17 17 Em vários textos, Nietzsche manifesta distanciar-se do pessimismo ou, mesmo, erradicá-lo de suas perspectivas filosóficas, enquanto o compreende como uma concentração de impossibilidades, conforme os fragmentos póstumos de 1884 (25 [16], [159], [345] da primavera de 1884). Nos fragmentos de 1888, ao comentar O nascimento da tragédia, afirma ter rejeitado o pessimismo ao ensinar algo mais forte do que ele e mais divino do que a verdade: a arte. Especialmente 14 [14], [15], [16], [21], [24], [25] da primavera de 1888. No parágrafo 17 [8], do mesmo ano, ao referir-se ao pessimismo, apresenta-o como um sintoma, sintoma de declínio. (ver. também 14 [227] da primavera de 1888). . Ora, sim e não, em Nietzsche, andam juntos, assim como criar e destruir, sendo, em vista disso, pares complementares. Em sua perspectiva, “o negar e o destruir são condição para o afirmar”18 18 Ibidem, p. 111. (EH/EH, Por que sou um destino 4, KSA 6.368).
Ora, Zaratustra, enquanto porta-voz do discurso nietzschiano, recebe a incumbência de incorporar, ao mesmo tempo, a destruição e a criação supremas. A ele coube, por um lado, dissipar a moral, o ideal de homem moderno, a teleologia no mundo, mas, por outro, foi aquele que anunciou o advento do além-do-homem, a vida enquanto vontade de potência, a doutrina do eterno retorno. Considerando Zaratustra o afirmador par excellence, Nietzsche o vê como aquele que constrói sobre escombros, extrai do mais pesado dos pesos a leveza. Em suas palavras, “[e]le contradiz com cada palavra, esse mais afirmativo dos espíritos; nele todos os opostos se fundem numa nova unidade” (EH/EH, Assim falava Zaratustra 6, KSA 6.343). Em um primeiro plano, a nova unidade remete à introdução do aparato conceitual nietzschiano que suplanta as dualidades. Em um segundo, é a vinculação entre escrita e pensamento que ganha relevo. Ao comentar esta obra em Ecce homo, Nietzsche afirma que seu “conceito de ‘dionisíaco’ se tornou ali ato supremo” e acrescenta, no mesmo parágrafo, que”a mais poderosa energia para o símbolo até aqui existente é pobre brincadeira, frente ao retorno da linguagem à natureza mesma da imagem” (EH/EH, Assim falava Zaratustra 6, KSA 6.343). A personagem Zaratustra enquanto alter-ego de Nietzsche cria, ao mesmo tempo, o mundo, enquanto expõe a interpretação de Nietzsche, e um novo modo de dizer o mundo, à medida em que procura construir uma linguagem que retorne à natureza da imagem.
Nesse ponto, algumas questões precisam ser colocadas, dentre elas, como é possível a aproximação da linguagem à imagem e por que é necessário construir uma tal aproximação?
Comecemos pela segunda questão enquanto a consideramos a partir da problemática que Nietzsche confere à linguagem escrita e falada em termos de seus veículos convencionais: o signo e a palavra. Por um lado, o signo, enquanto unidade básica de um sistema de significação, funciona, nessa acepção, como um estabilizador, ou seja, algo que concentra a pluralidade em uma aparente unidade de sentido, donde decorre a possibilidade de determinação de um significado como o significado. Mas trata-se apenas de uma função estabilizadora, uma vez que o tanto o signo quanto suas correspondentes convenções carecem de um estatuto originário no sentido de fundante. Em Nietzsche, desde o início o signo aparece como resultado: o signo já expressa uma interpretação e a remessa a outro signo é a remessa à outra interpretação e assim sucessivamente. É oportuno citar o texto em que ele, referindo-se ao testemunho dos sentidos e do intelecto, apresenta a compreensão acerca das possíveis convenções de signos:
A ‘razão’ é a causa pela qual falsificamos o testemunho dos sentidos. Enquanto mostram o vir-a-ser, o passar, a mudança, os sentidos não mentem...” (...) O resto é aborto e ainda-não-ciência: isto é, metafísica, teologia, psicologia, epistemologia. Ou ciência formal, uma teoria dos signos, como a lógica e aquela lógica aplicada, a matemática. Através dela a realidade não se torna presente, nem sequer como problema; e tampouco a questão sobre que valor tem em geral uma tal convenção semiológica, como a lógica”
(GD/CI, A “razão” na filosofia 3, KSA 6.76).
Por outro lado, o que, de fato, caracteriza a palavra, em Nietzsche, é a vulgaridade enquanto iguala o desigual e transforma o próprio em algo comum. Em sua definição, “Palavras são sinais sonoros para conceitos, mas conceitos são sinais-imagens mais ou menos determinados para sensações recorrentes e associadas...”19 19 NIETZSCHE, F. Para além do bem e do mal. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. A partir de agora indicado como PCS. (JGB/BM 268, KSA 5.221). Porque as palavras são sinais sonoros para conceitos e os conceitos são sinais-imagens para sensações associadas, Nietzsche considera que mesmo utilizando as mesmas palavras, não há garantia de compreensão: “é preciso utilizar as mesmas palavras para a mesma espécie de vivências interiores, é preciso, enfim, ter a experiência em comum com o outro” (idem). É condição do comunicar a compartilha de perspectivas que se assenta nas mesmas experiências. Ainda assim, o entendimento processa-se no âmbito do comum porque a própria linguagem falada e escrita carrega um grão de desprezo. Encontramos nos textos de Nietzsche a possibilidade de compartilha e de cumplicidade ao invés de uma busca pela compreensão que possa superar o mal-entendido. Ao contrário, ele considera melhor não ser compreendido do que o ser. Em um fragmento póstumo de 1885, afirma: “Deve-se permitir aos amigos ampla margem para mal-entendidos. Parece-me preferível ser malcompreendido (...): há algo de ofensivo em ser compreendido. Ser compreendido? Vós sabeis bem o que isto significa? Compreender é igualar”20 20 Em nossa ótica, no fragmento 1 [182] de 1885, ao referir-se ao compreender como igualar, Nietzsche faz uma crítica ao projeto de uma hermenêutica universal enquanto determina como tarefa suprema da filosofia compreender corretamente o discurso do outro, buscando evitar o mal-entendido, estabelecendo, com isso, um procedimento comum a filólogos e teólogos. Este é o ponto axial da proposição de uma hermenêutica filosófica em Schleiermacher ao defini-la como “arte de compreender corretamente o discurso do outro, predominantemente o escrito” (Schleiermacher, 2005, p. 87), ou “arte de compreender e interpretar”. Em Ecce homo: O caso Wagner 1889, § 3, encontramos outra referência a Schleiermacher. Nela, o autor de A vida de Jesus é colocado ao lado dos pensadores alemães que antecedem a filosofia de Nietzsche e são considerados, por ele, como falsários da filosofia e responsáveis por lançar véus sobre a efetividade seja como Iluministas seja como Idealistas e Românticos. A eles, a filosofia do autor de Ecce home se contrapõe. No texto, lemos: “Os alemães acham-se inscritos na história do conhecimento apenas com nomes ambíguos, jamais produziram senão falsários”inconscientes” (— Fichte, Schelling, Schopenhauer, Hegel, Schleiermacher merecem o termo tanto quanto Leibniz e Kant: não passam todos de ‘fabricantes de véus’ [Schleiermacher]: jamais terão a honra de ver associado ao espírito alemão o primeiro espírito reto da história do espírito, o espírito no qual a verdade leva a julgamento a falsificação de quatro milênios” (EH/EH, O caso Wagner, 3, KSA 6.361). (NF/FP 1885,1[182], KSA 12.51).
Invariavelmente, nos textos de Nietzsche, vamos encontrar no signo a conversão da pluralidade em unidade, e na palavra, o tornar comum, vulgar mediano mediante a igualação do desigual. Em ambos os casos, a perspectiva do rebanho. Nesse ponto, convém mostrar que há uma distinção cara a Nietzsche, qual seja, a existente entre a profundidade e a superfície que permite compreender a remessa da palavra ao comum. Com relação à superfície, trata-se, para o filósofo, de tornar comum, através da fala, os estados vivenciados. Por profundidade, ele entende os processos indeterminados, desconhecidos, inapreensíveis, que se passam na luta entre aquilo que ele denomina de impulso, força ou vontade de potência. Instância detentora de qualquer expressar, não se deixa vulgarizar a ponto de ser traduzida em uma linguagem passível de compartilha, mas, ao contrário, é vedado o acesso a esse domínio via consciência. Nada há de pessoal na consciência, na visão do filósofo, já que ela se desenvolveu devido à necessidade de comunicação, estando, por isso, vinculada à rede do comunicar e do utilizar. Tem-se aqui uma especificidade da compreensão nietzschiana acerca do pensar e do estar consciente desse pensar: “o homem como toda criatura viva, pensa continuamente, mas não sabe disso; o pensamento que se torna consciente é apenas a mínima parte dele, e nós dizemos: a parte mais superficial, a parte pior...”21 21 Idem, 2001. Trad. Paulo César Souza. São Paulo: Companhia das Letras, p. 248.. (FW/GC 354, KSA 3.592). A distinção existente entre o pensar, que não se separa do querer e do sentir, e do estar consciente desse pensar separa diametralmente a profundidade e a superfície. No primeiro caso, a inexistência de comunicação; no segundo, a vulgarização que permite o tornar comum. Disso decorre a impossibilidade de apreensão e compartilha dos processos que se passam aquém da comunicação, isto é, de tudo aquilo que se dá em profundidade.
Por um lado, Nietzsche condiciona o desenvolvimento da consciência, enquanto esse tomar consciência de si, ao da linguagem, pois entende que a necessidade, oriunda da fragilidade humana, determinou a precisão de um tornar comum alguns estados. É enquanto ser social que o homem compartilha a superfície com os demais, visando à utilização dessa comunhão para o desenvolvimento do rebanho. Entretanto, o tomar consciência de si implica o não conhecer a si, já que trazer algo não consciente à consciência requer o abandono de tudo aquilo que for pessoal e individual. Por isso Nietzsche, afirma, acerca da consciência, “que não faz parte propriamente da existência individual do homem, mas antes daquilo que nele é da natureza da comunidade e do rebanho” (FW/GC 354, KSA 3.592) e, acrescenta, com relação à possibilidade do tomar consciência de si, que “cada um de nós, com a melhor vontade de entender a si mesmo tão individualmente quanto possível, de ‘conhecer a si mesmo’, sempre trará a consciência, precisamente, apenas o não-individual em si...” (FW/GC 354, KSA 3.592).
Por outro, o filósofo afirma resolutamente a pessoalidade, a singularidade, a impossibilidade de compartilha de nossas ações, situando-as em uma dimensão de profundidade que não pode ser atingida sem ser, ao mesmo tempo, abandonada. É isso que ele denomina de corte transversal, quer dizer, querer adentrar na profundidade e trazê-la à superfície implica em ficar na superfície, pois a fala, na ótica dele, tem a invenção relacionada ao mediano, ao superficial, ao corte transversal. Em Crepúsculo dos ídolos, ele afirma, primeiramente, com relação à impossibilidade de comunicação de nossas vivências, que “[n]ão nos estimamos mais o bastante, quando nos comunicamos. Nossas vivências mais próprias não são nada tagarelas. Não poderiam comunicar-se se quisessem. É que lhes falta a palavra”22 22 Idem, Crepúsculo dos Ídolos, p. 83. (CI, Incursões de um extemporâneo, § 26, KSA 6.).
Posteriormente, ele responde que o problema da inaptidão para o comunicar de nossas vivências se deve à característica da fala: “Quando temos palavras para algo, também já o ultrapassamos. Em todo falar há um grão de desprezo. A fala, ao que parece, só foi inventada para o corte transversal, o mediano, o comunicativo”23 23 Idem, Ibidem. (GD/CI, Incursões de um extemporâneo, 24, KSA 6.128). Nesse sentido, Nietzsche identifica como sendo dramático na condição humana, por ser uma espécie de condenação, o fato de, em querendo conhecer-se, simultaneamente, desconhecer-se. Em querendo comunicar-se, simultaneamente, perder-se. Eis a questão central que, em nossa ótica, motiva a busca de uma forma diversa de comunicação e de expressão. No limite, é preciso construir uma linguagem que, em retornando à natureza da imagem, veicule o singular, a multiplicidade sob a face mediana e unívoca. Nesse ponto, respondemos a nossa primeira indagação referente à necessidade de remeter a linguagem à imagem e, ao mesmo tempo, somos remetidos a segunda, como é possível a aproximação da linguagem à imagem?
Se Nietzsche reconhece, que não basta utilizar as mesmas palavras para que se consiga o entendimento, remetendo tal possibilidade à compartilha de vivências, reconhece que mesmo as vivências similares, enquanto condição de entendimento da palavra, não impedem o mediano, o comum, o vulgar.
Essa problemática, que se manifesta com maior clareza a partir de Assim falava Zaratustra, conduz Nietzsche à construção de um discurso diferente, ao mesmo tempo, filosófico e literário, um discurso que veicule a profusão infindável de perspectivas, as vivências singulares. Enfim, na compreensão dele, conforme Assim falava Zaratustra: “De tudo o que se escreve, aprecio somente o que alguém escreve com seu próprio sangue” (Za/ZA, I, Do ler e do escrever, KSA 4.48). Mas como seria possível escrever com sangue se o veículo para o fazer é mediano? Como conciliar o próprio com o comum se, em ambos os casos, utiliza-se a palavra, introduz-se conceitos? Seguindo a exposição de Nietzsche, o melhor seria calar, não parece haver alternativa exceto o silêncio, pois o comunicar já contém um grão de desprezo ao converter o próprio em comum. Logo, todo discurso está condenado à perspectiva do rebanho.
A resposta à segunda questão que nos coloca no limite tênue entre o silêncio e a palavra encontra-se em Nietzsche, em nossa hipótese, na própria arte do estilo: “Comunicar um estado, uma tensão interna de pathos, por meio de signos, incluído o tempo desses signos – eis o sentido de todo estilo”. É através da multiplicidade de estilos que Nietzsche consegue comunicar um estado interior, veicular vivências singulares, ultrapassar o mediano e o comum enquanto arte de comunicar por meio de palavras. É nele que se veicula e se vincula o sangue ao signo. Por isso, afirma Nietzsche: “Bom é todo estilo que realmente comunica um estado interior, que não se equivoca nos signos, no tempo dos signos” (EH/EH, Por que escrevo livros tão bons 4, KSA 6.304).
Ao romper com o modo convencional de expor conceitos recorrendo a metáforas, hipérboles, aforismos, poemas, ditirambos e, também, ensaios e relatos autobiográficos, Nietzsche quis comunicar um estado interior. Através da diversidade, o autor de Assim falava Zaratustra tencionou deixar falar o tempo dos signos entendendo as leis do período como arte dos gestos (Cf. EH/EH, Por que escrevo livros tão bons 4, KSA 6.304). Efetivamente, Nietzsche não consegue subverter a gramática, mesmo afirmando que “não nos desvencilharemos de Deus, porque ainda acreditamos na gramática...” (GD/CI, A razão na filosofia 5, KSA 6.78) ele permanece, ao modo de Descartes, no domínio do sujeito, do predicado e do objeto. Entretanto, Nietzsche sabe, conforme afirmação em Crepúsculo dos ídolos, que: “A ‘razão’ na linguagem é uma enganadora personagem feminina” e, se não pode romper com as suas regras, pode mudar a forma de acesso a ela penetrando, como sugere Drummond em a “Procura da Poesia”, “surdamente no reino das palavras”24 24 DRUMMONT, 2012, p. 11. . Por isso, diz Zaratustra reiteradas vezes aos seus interlocutores: “Será preciso primeiro partir-lhes as orelhas para que aprendam a ouvir com os olhos?” (Za/Za, Prólogo 5, KSA 4.18) e reconhece, constantemente, que: “o sentido do que ele fala não diz nada aos seus sentidos” (Za/Za, Prólogo 7, KSA 4.23), apontando para um outro domínio em termos do compreender e do expressar.
Experiência similar encontramos no filósofo Nietzsche que procura se comunicar sem, contudo, carregar em seu discurso um grão de desprezo. Que precisa da gramática sem, todavia, como critica em Descartes, vê-la como verdade eterna que termina por estabelecer “o sujeito ‘eu’ como condição de ‘penso’” (NF/FP 1885 40 [20], KSA 11.637). Trata-se, a nosso ver, de ele procurar um modo de driblar a reconhecida armadilha das palavras por meio do encontro de uma forma inusitada de expressão discursiva. Em carta a Erwin Rohde de 22 de fevereiro de 1884, ao mencionar o reconhecimento e o apreço de Rohde pela linguagem característica dos seus textos, Nietzsche declara-se como poeta: “Além de que sou poeta até aos mais longínquos limites de tal conceito. Poeta, ainda que me tenham tiranizado com tudo que há de mais oposto à poesia”25 25 NIETZSCHE, 1944, p. 237. .
Em nossa leitura, o sentido da multiplicidade de estilos em Nietzsche e o reconhecimento dele de ser um poeta até “aos mais longínquos limites de tal conceito” está em, através deles, contemplar nas palavras, como afirma Drummond na poesia já citada: “as mil faces secretas sob a face neutra” delas, isto é, a singularidade que subjaz ao estado comum em que as palavras se encontram no dicionário. É sob a face neutra da palavra que a poesia original, própria, intransferível e intraduzível encontra a possibilidade de expressão, driblando a vulgaridade do dizer convencional mediante uma outra e nova linguagem, capaz de veicular o diverso. Nietzsche, a nosso ver, ao inaugurar um horizonte aproximador dos discursos filosófico e literário, entende remeter a linguagem à natureza da imagem e por intermédio do uso nada parcimonioso de metáforas, hipérboles, aforismos, poemas, ditirambos, ensaios e relatos autobiográficos, tenciona introduzir o próprio e o singular, o movimento e a multiplicidade na palavra, deixando o pathos afirmativo por excelência falar através do introduzir de interpretações. Com a diversidade estilística, a transposição do dionisíaco em pathos filosófico suporta a construção de uma rede que enlace de modo indissolúvel pensamento e vida, forma e conteúdo, escrita e sangue: “De tudo o que se escreve, aprecio somente o que alguém escreve com seu próprio sangue. Escreve com sangue; e aprenderás que o sangue é o espírito” (Za/ZA I, Do ler e escrever, KSA 4.48). Afinal, no prólogo do livro que Nietzsche endereça a todos e a ninguém, Assim falava Zaratustra, e que considera externar a mais profunda seriedade e toda a filosofia dele26 26 Cf. Carta de 28 de julho de 1883 ao Barão de Gersdorff em que Nietzsche afirma: “O meu Zaratustra, que te enviarei esta semana, revelar-te-á a elevação do voo da minha vontade. Não te deixeis enganar pela forma legendária do meu livro. Atrás das suas simples e estranhas palavras, está a minha mais profunda seriedade e toda a minha filosofia”. , afirma poeticamente ser imprescindível escutar o que o filósofo diz ao lê-lo, remetendo à necessidade de “aprendam a ouvir com os olhos” (Za/Za, Prólogo 5, KSA 4.18).
Em conclusão, consideramos que por intervenção da multiplicidade de estilos, Nietzsche procura ultrapassar as armadilhas das palavras e da gramática, aproximando os discursos filosófico e literário. Ao fazê-lo, dedica empenho na busca de outras formas linguísticas passíveis de expressar a singularidade do pensamento dele, reconhecendo e propondo, antes de 1900, a imbricação presente entre conteúdo e linguagem e a premência da criação de novas linguagens para expressar novos conteúdos, mostrando que a abordagem da Transcriação e da Antropofagia enquanto fertilidades nos campos de Haroldo, o é, também, nos campos de Nietzsche; remetendo-nos ao desafio da leitura, da tradução, enfim, do acesso aos textos dele. Impondo-nos, por um lado, a questão trazida por Marcelo Tápia acerca da perspectiva de Haroldo de Campos no que concerne à possibilidade de toda tradução “não transformar, por um átimo, o original na tradução de sua tradução”, ou seja, em criação paralela e autônoma, ainda que recíproca. E, por outro, conduzindo-nos ao reconhecimento do desvelo nietzschiano em criar uma linguagem para o novo conteúdo a introduzir, escrevendo o espírito com sangue e antecipando e influenciando considerações tecidas pelos autores de Teoria da poesia concreta.
Referências
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- CAMPOS, Haroldo. Metalinguagem & outras metas. 4 ed. São Paulo: Perspectiva, 1992.
- CAMPOS, Augusto; CAMPOS, Haroldo; PIGNATARI, Décio. Teoria da poesia concreta: textos críticos e manifestos 1950-1960. São Paulo: Duas Cidades, 1975.
- CAMPOS, Haroldo de. A arte no horizonte do provável e outros ensaios. São Paulo: Perspectiva, 1969.
- DRUMMOND, Carlos A. A rosa do povo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
- GUINSBURG, J. A presença de Haroldo de Campos. REVISTA USP, São Paulo, n.59, setembro/novembro 2003, p. 181-183.
- NIETZSCHE, F. Sämtliche Werke - Kritische Studienausgabe, edição organizada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari. Berlim: Walter de Gruyter & Co., 15 vol, 1988.
- NIETZSCHE, F. Obras Incompletas, coleção “Os Pensadores”, tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho, São Paulo: Abril Cultural, 1978.
- NIETZSCHE, F. Para além de bem e mal, Trad. Paulo César Souza, São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
- NIETZSCHE, F. Genealogia da Moral. Trad. Paulo César Souza, São Paulo: Brasiliense, 1987.
- NIETZSCHE, F. Ecce homo, Trad. Paulo César Souza, São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
- NIETZSCHE, F. O caso Wagner, trad. Paulo César Souza, São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
- NIETZSCHE, F. Genealogia da Moral, Trad. Paulo César Souza, São Paulo: Brasiliense, 1987.
- NIETZSCHE, F. Humano, demasiado humano, Trad. Paulo César Souza, São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
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- NIETZSCHE, F. O nascimento da tragédia, Trad. J. Guinsburg, São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
- NIETZSCHE, F. Despojos de uma tragédia, Trad. Ferreira da Costa, Lisboa: Relógio D’água, 1944.
- PRADO, Célia Luiza Andrade; ESTEVES, Lenita Maria Rimoli. A tradução “verbivocovisual” de Haroldo de Campos. Tradução & Comunicação. Revista Brasileira de Tradutores. Nº.19° Ano 2009, p. 115-127.
- TÁPIA, Marcelo; NÓBREGA, Thelma (Org.) Aroldo de Campos – transcriação. São Paulo: Perspectiva, 2019.
- VIEIRA, Henrique Júlio; HOISEL, Evelina. A signagem de Décio Pignatari. Estudos semióticos, vol. 12, n. 2 – dezembro de 2016, p. 82-88.
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1
CAMPOS, 1992,CAMPOS, Haroldo. Metalinguagem & outras metas. 4 ed. São Paulo: Perspectiva, 1992. p. 34.
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2
Em Teoria da poesia concretaCAMPOS, Augusto; CAMPOS, Haroldo; PIGNATARI, Décio. Teoria da poesia concreta: textos críticos e manifestos 1950-1960. São Paulo: Duas Cidades, 1975.): textos críticos e manifestos 1950-1960, Haroldo de Campos, no texto “Contexto de uma vanguarda”, discorrendo sobre as particularidades da poesia concreta, recorre ao termo verbivocovisual para explicitar a integração entre o verbal, o visual e o sonoro nela presente, ao afirmar que: “ideograma: apelo à comunicação não-verbal. o poema concreto comunica a sua própria estrutura: estrutura-conteúdo. o poema concreto é um objeto em e por si mesmo, não um intérprete de objetos exteriores e/ou sensações mais ou menos subjetivas. seu material: a palavra (som, forma visual, carga semântica). seu problema: um problema de funções-relações desse material. fatores de proximidade e semelhança, psicologia da gestalt. ritmo: força relacional. o poema concreto, usando o sistema fonético (dígitos) e uma sintaxe analógica, cria uma área linguística específica -”verbivocovisual” ___ que participa das vantagens da comunicação não-verbal, sem abdicar das virtualidades das palavras. com o poema concreto ocorre o fenômeno da metacomicação: coincidência e simultaneidade da comunicação verbal e não-verbal, com a nota de que se trata de uma comunicação de formas, de uma estrutura-conteúdo, não da usual comunicação de mensagens.” (CAMPOS, 1975, p. 157CAMPOS, Augusto; CAMPOS, Haroldo; PIGNATARI, Décio. Teoria da poesia concreta: textos críticos e manifestos 1950-1960. São Paulo: Duas Cidades, 1975.). Sobre o mesmo tema, conforme PRADO, Célia Luiza Andrade; ESTEVES, Lenita Maria Rimoli. A tradução “verbivocovisual” de Haroldo de CamposPRADO, Célia Luiza Andrade; ESTEVES, Lenita Maria Rimoli. A tradução “verbivocovisual” de Haroldo de Campos. Tradução & Comunicação. Revista Brasileira de Tradutores. Nº.19° Ano 2009, p. 115-127.. Tradução & Comunicação. Revista Brasileira de Tradutores. Nº. 19, Ano 2009, p. 115-127.
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3
CAMPOS, 1992CAMPOS, Haroldo. Metalinguagem & outras metas. 4 ed. São Paulo: Perspectiva, 1992., p. 35.
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4
CAMPOS, 2019, p. 37.
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5
CAMPOS, 1992CAMPOS, Haroldo. Metalinguagem & outras metas. 4 ed. São Paulo: Perspectiva, 1992., P. 43.
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6
CAMPOS, 1992CAMPOS, Haroldo. Metalinguagem & outras metas. 4 ed. São Paulo: Perspectiva, 1992., p. 223.
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7
Cf. CAMPOS, 1992CAMPOS, Haroldo. Metalinguagem & outras metas. 4 ed. São Paulo: Perspectiva, 1992., p. 234.
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8
CAMPOS, 1992CAMPOS, Haroldo. Metalinguagem & outras metas. 4 ed. São Paulo: Perspectiva, 1992., p. 237.
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9
CAMPOS; PIGNATARI; CAMPOS, H., 1975CAMPOS, Augusto; CAMPOS, Haroldo; PIGNATARI, Décio. Teoria da poesia concreta: textos críticos e manifestos 1950-1960. São Paulo: Duas Cidades, 1975., p. 162.
-
10
CAMPOS; PIGNATARI; CAMPOS, H., 1975CAMPOS, Augusto; CAMPOS, Haroldo; PIGNATARI, Décio. Teoria da poesia concreta: textos críticos e manifestos 1950-1960. São Paulo: Duas Cidades, 1975., p. 162.
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11
Cf. O desafio Nietzsche. MÜLLER-LAUTER, W., Discurso (21), 1993: 7-29.
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12
No que concerne aos limites e às possibilidades da interpretação em Nietzsche, conforme o estudo que realizamos no primeiro capítulo de Nietzsche e a aurora de uma nova ética, intitulado, “A interpretação: perspectivas de um aumento de potência” (Cf. AZEREDO, V. D. Nietzsche e a aurora de uma nova ética. 2 ed., Paraná: CRV, 2021AZEREDO, V. D. Nietzsche e a aurora de uma nova ética. 2 ed., Paraná: CRV, 2021, p. 35-74).
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13
NIETZSCHE. Ecce homo, Trad. Paulo César Souza, São Paulo: Companhia das Letras, 1995NIETZSCHE, F. Ecce homo, Trad. Paulo César Souza, São Paulo: Companhia das Letras, 1995.. A partir de agora indicado como PCS.
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14
Cf. Carta para Ernst Schmeitzner de 13 fevereiro de 1883.
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15
Em cartas de 1883, Nietzsche apresenta e tece comentários a Assim falava Zaratustra no que concerne à presença dos temas centrais da filosofia dele, ao aperfeiçoamento do idioma alemão por meio da escrita peculiar do texto, acrescentando a aversão ao trato do escrito como entretenimento. Três delas são exemplares da centralidade da obra na filosofia de Nietzsche, da dimensão conferida pelo autor à escrita definidora da obra e à recusa de uma qualificação do texto como passatempo, quais sejam, a escrita a Peter Gast em 6 de abril de1883, em que Nietzsche escreve: “Repugna-me que Zaratustra entre no mundo como um livro para entretenimento. Quem é bastante ‘sério’ para ele! Se eu tivesse a autoridade do ‘velho Wagner’, seria melhor. Mas, agora, ninguém pode evitar que eu seja atirado aos ‘literatos’...” (NIETZSCHE, 1944, p. 219NIETZSCHE, F. Despojos de uma tragédia, Trad. Ferreira da Costa, Lisboa: Relógio D’água, 1944.). A carta endereçada a Erwin Rohde em 22 de fevereiro de 1884, em que Nietzsche faz referência ao estilo que atravessa e define Assim falava Zaratustra como perfeição máxima: “Não há exemplo, comparação ou precedente. Quem chegar a viver o meu livro, voltará ao mundo com diferente aspecto. (...) A ti, como homo litteratus, quero fazer uma confissão: creio ter levado, com o meu Zaratustra, o idioma alemão à sua perfeição máxima. (...) O meu estilo é uma doença, um jogo de simetrias, de todas as espécies, e um saltar e zombar destas mesmas simetrias. Chega até a escolha de vogais” (NIETZSCHE, 1944, p. 237NIETZSCHE, F. Despojos de uma tragédia, Trad. Ferreira da Costa, Lisboa: Relógio D’água, 1944.). A carta remetida ao Barão de Gersdorf, redigida em junho de 1883; nela, Nietzsche declara: “O meu Zaratustra, que te enviei esta semana, revelar-te-á a elevação do voo da minha vontade. Não te deixes enganar pela forma legendária do livro. Atrás de suas simples e estranhas palavras, está a minha mais profunda seriedade e toda a minha filosofia” (NIETZSCHE, 1944, p. 225NIETZSCHE, F. Despojos de uma tragédia, Trad. Ferreira da Costa, Lisboa: Relógio D’água, 1944.).
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16
NIETZSCHE, F. Ecce homo. Trad. Paulo César Souza, p. 89.
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17
Em vários textos, Nietzsche manifesta distanciar-se do pessimismo ou, mesmo, erradicá-lo de suas perspectivas filosóficas, enquanto o compreende como uma concentração de impossibilidades, conforme os fragmentos póstumos de 1884 (25 [16], [159], [345] da primavera de 1884). Nos fragmentos de 1888, ao comentar O nascimento da tragédia, afirma ter rejeitado o pessimismo ao ensinar algo mais forte do que ele e mais divino do que a verdade: a arte. Especialmente 14 [14], [15], [16], [21], [24], [25] da primavera de 1888. No parágrafo 17 [8], do mesmo ano, ao referir-se ao pessimismo, apresenta-o como um sintoma, sintoma de declínio. (ver. também 14 [227] da primavera de 1888).
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18
Ibidem, p. 111.
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19
NIETZSCHE, F. Para além do bem e do mal. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1992NIETZSCHE, F. Para além de bem e mal, Trad. Paulo César Souza, São Paulo: Companhia das Letras, 1992.. A partir de agora indicado como PCS.
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20
Em nossa ótica, no fragmento 1 [182] de 1885, ao referir-se ao compreender como igualar, Nietzsche faz uma crítica ao projeto de uma hermenêutica universal enquanto determina como tarefa suprema da filosofia compreender corretamente o discurso do outro, buscando evitar o mal-entendido, estabelecendo, com isso, um procedimento comum a filólogos e teólogos. Este é o ponto axial da proposição de uma hermenêutica filosófica em Schleiermacher ao defini-la como “arte de compreender corretamente o discurso do outro, predominantemente o escrito” (Schleiermacher, 2005, p. 87), ou “arte de compreender e interpretar”. Em Ecce homo: O caso Wagner 1889NIETZSCHE, F. O caso Wagner, trad. Paulo César Souza, São Paulo: Companhia das Letras, 1999., § 3, encontramos outra referência a Schleiermacher. Nela, o autor de A vida de Jesus é colocado ao lado dos pensadores alemães que antecedem a filosofia de Nietzsche e são considerados, por ele, como falsários da filosofia e responsáveis por lançar véus sobre a efetividade seja como Iluministas seja como Idealistas e Românticos. A eles, a filosofia do autor de Ecce home se contrapõe. No texto, lemos: “Os alemães acham-se inscritos na história do conhecimento apenas com nomes ambíguos, jamais produziram senão falsários”inconscientes” (— Fichte, Schelling, Schopenhauer, Hegel, Schleiermacher merecem o termo tanto quanto Leibniz e Kant: não passam todos de ‘fabricantes de véus’ [Schleiermacher]: jamais terão a honra de ver associado ao espírito alemão o primeiro espírito reto da história do espírito, o espírito no qual a verdade leva a julgamento a falsificação de quatro milênios” (EH/EH, O caso Wagner, 3, KSA 6.361).
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21
Idem, 2001.NIETZSCHE, F. A gaia ciência, Trad. Paulo César Souza, São Paulo: Companhia das Letras, 2001. Trad. Paulo César Souza. São Paulo: Companhia das Letras, p. 248..
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22
Idem, Crepúsculo dos Ídolos, p. 83.
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23
Idem, Ibidem.
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24
DRUMMONT, 2012DRUMMOND, Carlos A. A rosa do povo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012., p. 11.
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25
NIETZSCHE, 1944NIETZSCHE, F. Despojos de uma tragédia, Trad. Ferreira da Costa, Lisboa: Relógio D’água, 1944., p. 237.
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26
Cf. Carta de 28 de julho de 1883 ao Barão de Gersdorff em que Nietzsche afirma: “O meu Zaratustra, que te enviarei esta semana, revelar-te-á a elevação do voo da minha vontade. Não te deixeis enganar pela forma legendária do meu livro. Atrás das suas simples e estranhas palavras, está a minha mais profunda seriedade e toda a minha filosofia”.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
05 Abr 2024 -
Data do Fascículo
Jan./Apr. 2024
Histórico
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Recebido
01 Nov 2023 -
Aceito
10 Dez 2023