Acessibilidade / Reportar erro

Apresentação do Programa Integral de Reabilitação Vocal para o tratamento das disfonias comportamentais

Resumos

A reabilitação vocal é a primeira opção de tratamento nos quadros de disfonia comportamental e tem como objetivo a melhoria da produção vocal e da qualidade de vida nos aspectos relacionados à voz. Muitos esforços estão sendo feitos para que a prática clínica fonoaudiológica seja baseada em evidências, o que inclui o desenvolvimento de protocolos terapêuticos específicos como opção para o aprimoramento clínico e científico. É necessário definir o foco/objetivo, tipo de abordagens e tempo de tratamento para estabelecer critérios de intervenção nas disfonias. Este artigo registra a organização de um programa de tratamento da disfonia comportamental, que consiste em abordagens utilizadas há mais de duas décadas na clínica vocal, denominado Programa Integral de Reabilitação Vocal, e apresenta os seus conceitos, teoria e fundamentos práticos. O programa tem abordagem eclética e associa trabalhos de corpo, fonte glótica, ressonância e coordenação pneumofônica, aliados aos conhecimentos de higiene vocal e atitude comunicativa. A proposta inicial sugere intervenção mínima com seis sessões de terapia, que podem ser adaptadas ao tempo de aprendizado e desenvolvimento do paciente. A intenção é oferecer uma prática terapêutica racional e estruturada, que possa ser reproduzida em outros cenários.

Voz; Disfonia; Terapêutica; Fonoaudiologia; Comportamento


Voice rehabilitation is the main treatment option in cases of behavioral dysphonia, and it has the purpose of enhancing the quality of vocal production and voice-related life aspects. Several efforts have been made to offer a clinical practice that is based on evidence, including the development of specific therapeutic protocols as an option for clinical and scientific improvement. It is necessary to define the focus/objective of the dysphonia treatment, type of approach, and duration in order to establish the intervention criteria. This paper describes the organization of a program of behavioral dysphonia treatment, based on an approach that has been used for over twenty years, named Comprehensive Vocal Rehabilitation Program, and also to present its concepts, theory, and practical fundamentals. The program has an eclectic approach and associates body work, glottal source, resonance, and breathing coordination in addition to knowledge about vocal hygiene and communicative behavior. The initial proposal suggests a minimum time of intervention of six therapeutic sessions that can be adapted according to the patient' s learning curve and development. The goal is to offer a rational and structured therapeutic approach that can be reproduced in other scenarios.

Voice; Dysphonia; Therapeutics; Speech-language pathology and audiology; Behavior


INTRODUÇÃO

A reabilitação vocal é considerada a melhor forma de tratamento para disfonia comportamental. Seu foco consiste em melhorar a produção da voz e reduzir o impacto negativo na qualidade de vida do paciente. Apesar dos esforços científicos, a literatura apresenta somente pequena quantidade de evidências que comprovam a efetividade da reabilitação fonoaudiológica como tratamento dos distúrbios vocais comportamentais( 11. Ruotsalainen J, Sellman J, Lehto L, Verbeek J. Systematic review of the treatment of functional dysphonia and prevention of voice disorders. Otolaryngol Head Neck Surg. 2008;138(5):557-65. , 22. Bos-Clark M, Carding P. Effectiveness of voice therapy in functional dysphonia: where are we now? Curr Opin Otolaryngol Head Neck Surg. 2011;19(3):160-4. ). Uma das limitações na obtenção de evidências de qualidade não é a ausência de efeito terapêutico positivo, mas a imprecisão metodológica dos experimentos, particularmente quanto ao detalhamento do programa empregado( 22. Bos-Clark M, Carding P. Effectiveness of voice therapy in functional dysphonia: where are we now? Curr Opin Otolaryngol Head Neck Surg. 2011;19(3):160-4. ).

A tradição terapêutica brasileira na reabilitação vocal tem grande enfoque sintomático e holístico( 33. Beuttenmüller G, Laport N. Expressão vocal e expressão corporal. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1974. , 44. Brandi E. Voz falada: estudo, avaliação e tratamento. Rio de Janeiro: Atheneu, 1990. ). O reconhecimento do uso de abordagens múltiplas de modo organizado e racional é evidente em alguns textos que propõem intervenção eclética( 55. Behlau M, Pontes P. Avaliação e tratamento das disfonias. São Paulo: Lovise, 1995. ) com aspectos de diversas orientações filosóficas.

O modelo de atendimento apresentado foi inicialmente proposto no Instituto da Laringe (INLAR) na década de 1970 e expandido para utilização nos Ambulatórios de Laringe e Voz da Universidade Federal de São Paulo, passando a ser disseminado no Curso de Especialização em Voz do Centro de Estudos da Voz na década de 1990. A abordagem descrita a seguir foi denominada Programa Integral de Reabilitação Vocal (PIRV), uma consolidação da experiência anterior. A publicação das bases do PIRV, na década de 1990( 55. Behlau M, Pontes P. Avaliação e tratamento das disfonias. São Paulo: Lovise, 1995. ), foi ampliada e reorganizada na década de 2000( 66. Behlau M, Madazio G, Feijó D, Azevedo R, Gielow I, Rehder MI. Aperfeiçoamento vocal e tratamento fonoaudiológico das disfonias. In: Behlau M. Voz: o livro do especialista. Rio de Janeiro: Revinter, 2005. p. 410-565. ) e consta de três pilares: orientação, psicodinâmica e treinamento vocal.

Para entender a filosofia do programa é necessário refletir sobre os aspectos que podem comprometer o sucesso do tratamento: cronicidade do distúrbio, natureza da alteração da voz, histórico médico, presença ou ausência de ganhos secundários com a disfonia, variabilidade das técnicas vocais, duração do tratamento( 77. Van Lierde KM, Claeys S, De Bodt M, van Cauwenberge P. Long-term outcome of hyperfunctional voice disorders based on a multiparameter approach. J Voice. 2007;21(2):179-88. ), habilidades e conhecimento do clínico( 77. Van Lierde KM, Claeys S, De Bodt M, van Cauwenberge P. Long-term outcome of hyperfunctional voice disorders based on a multiparameter approach. J Voice. 2007;21(2):179-88. , 88. Andrews ML, Schmidt CP. Congruence in personality between clinician and client: relationship to ratings of voice treatment. J Voice. 1995;9(3):261-9. ) e personalidade do clínico( 99. Stemple JC. Voice research: so what? A clearer view of voice production, 25 years of progress; the speaking voice. J Voice. 1993;7(4):293-300. ). Além destes, também são apontadas a motivação do paciente( 1010. Behrman A. Facilitating behavioral change in voice therapy: the relevance of motivational interviewing. Am J Speech Lang Pathol. 2006;15(3):215-25. , 1111. van Leer E, Hapner ER, Connor NP. Transtheoretical model of health behavior change applied to voice therapy. J Voice. 2008;22(6):688-98. ), confiança no tratamento( 77. Van Lierde KM, Claeys S, De Bodt M, van Cauwenberge P. Long-term outcome of hyperfunctional voice disorders based on a multiparameter approach. J Voice. 2007;21(2):179-88. , 88. Andrews ML, Schmidt CP. Congruence in personality between clinician and client: relationship to ratings of voice treatment. J Voice. 1995;9(3):261-9. ), adesão( 1212. van Leer E, Connor NP. Patient perceptions of voice therapy adherence. J Voice. 2010;24(4):458-69. , 1313. Teixeira LC, Rodrigues ALV, Silva AFG, Azevedo R, Gama ACC, Behlau M. Escala URICA-VOZ para identificação de estágios de adesão ao tratamento de voz. CoDAS. 2013;25(1):8-15. ), necessidade de faltar ao trabalho para comparecer ao tratamento e dificuldade de modificar o comportamento vocal( 1414. Patel RR, Bless DM, Thibeault SL. Boot camp: a novel intensive approach to voice therapy. J Voice. 2011;25(5):562-9. ).

Um programa definido aumenta as chances do vínculo terapêutico e da adesão do paciente, por conhecer antecipadamente as etapas do trabalho e os objetivos a serem alcançados. A premissa do PIRV é entender o indivíduo com alteração comportamental vocal de forma ampla e seguir uma proposta segmentada de aprendizado do processo terapêutico. O tratamento envolve identificação, conscientização e modificação de hábitos vocais negativos, proposição de técnicas de associação corpo-voz, ajuste glótico e equilíbrio ressonantal. Estes aspectos, associados à precisão articulatória dos sons da fala, impactam na coordenação pneumofonoarticulatória e na projeção vocal.

O pilar de orientação vocal diz respeito às questões de higiene ou bem-estar vocal, por meio da identificação de comportamentos e hábitos negativos à saúde vocal, oferecendo substitutos validados pelo paciente.

Para o trabalho de psicodinâmica vocal, utilizam-se arquivos de áudio e vídeo na identificação dos desvios vocais e análise do impacto das vozes alteradas, dos pontos de vista profissional, social e emocional. A imagem vocal é trabalhada com o paciente, que define os aspectos que gostaria de modificar.

O terceiro pilar, de treinamento vocal, é crucial nas terapias diretas( 1515. Gartner-Schmidt JL, Roth DF, Zullo TG, Rosen CA. Quantifying component parts of indirect and direct voice therapy related to different voice disorders. J Voice. 2013;27(2):210-6. ) e consiste em exercícios para os subsistemas da fala, durante as sessões e nos seus intervalos, de três a cinco vezes ao dia, registrados em mídia para auxiliar a execução. A prática diária oferece aumento de resistência e massa muscular da laringe e aprendizado em nível cortical, retenção da aquisição e memorização do aprendizado( 1414. Patel RR, Bless DM, Thibeault SL. Boot camp: a novel intensive approach to voice therapy. J Voice. 2011;25(5):562-9. ).

O programa privilegia cinco aspectos: corpo-voz, fonte glótica, ressonância, coordenação pneumofonoarticulatória e atitude comunicativa. A integração corpo-voz tem papel fundamental nos disfônicos; trabalha-se com a postura corporal durante a fala e a percepção do envolvimento da musculatura cervical e da cintura escapular, utilizando-se de feedback visual, auditivo e cinestésico. Em profissionais da voz são discutidos aspectos relacionados às situações específicas de trabalho.

O trabalho na fonte glótica exige raciocínio fisiológico e consiste na seleção de técnicas que melhoram a coaptação glótica e aumentam a eficiência vocal, além de exercícios que mobilizam a mucosa das pregas vocais, aumentando a amplitude de vibração.

A intervenção sobre a ressonância vocal é feita com exercícios de integração fonte-filtro, para favorecer a produção da voz sem esforço excessivo. A percepção e o controle sobre a ressonância são difíceis para o paciente, e o desafio é calibrá-lo com pistas cinestésicas para facilitar a transferência para a fala.

O controle pneumofonoarticulatório é um recurso de utilização da respiração diretamente na construção da comunicação oral. Os exercícios contribuem para a coordenação entre os subsistemas respiratório, fonatório, ressonantal e articulatório, favorecendo a qualidade vocal, fluência e inteligibilidade da fala. Embora o processo possa ser inicialmente consciente, o objetivo é automatizá-lo.

A atitude comunicativa permeia todo o processo; não apresenta estratégias específicas, mas se baseia no vínculo terapeuta-paciente e na forma pela qual a comunicação se desenvolve nas sessões, com reforço positivo e apresentação de situações desafiadoras. O paciente não deve realizar os exercícios mecanicamente, e sim focar no controle do ajuste solicitado e buscar ativamente o gesto motor associado à produção vocal ideal.

O processo de aprendizagem é variado entre os indivíduos e a proposta inicial de seis sessões, com frequência semanal e exercícios para casa, podendo ser adaptada de acordo com a evolução de cada paciente (Quadro 1).

Quadro 1
Descrição das seis sessões do Programa Integral de Reabilitação Vocal

INDICAÇÕES CLÍNICAS PARA O PROGRAMA

O PIRV foi atualizado e organizado para o trabalho com disfonia comportamental, particularmente em profissionais da voz, podendo ser empregado em casos de disfonia por tensão muscular.

O programa segue os princípios gerais de aprendizagem motora, permitindo controle das fases do tratamento. Sua sistematização, sugestão de procedimentos alternativos, incentivo à prática diária, além da validação de novos hábitos vocais, aliados à construção de uma imagem vocal competente, contribuem para o sucesso do atendimento.

IMPLICAÇÕES PARA A PRÁTICA CLÍNICA E A PESQUISA

É importante desenvolver estudos clínicos randomizados e controlados para determinar o nível de efetividade dos tratamentos em voz, a dose de sessões e exercícios e o seguimento para garantir o resultado obtido.

A influência do tempo da queixa e do número de sintomas na duração e resultado do programa precisa ser mais bem explorada, além de se comprovar ou não o benefício de afastar o sujeito de sua atividade profissional durante a reabilitação.

CONCLUSÃO

O PIRV sistematiza o conhecimento de mais de duas décadas de atendimento de pacientes com disfonia comportamental. A proposta inclui seis sessões iniciais, de dificuldade crescente, explorando aspectos inicialmente apresentados na abordagem global nas disfonias. É uma abordagem holística que entende o distúrbio vocal como multifatorial, o que exige diversas perspectivas de intervenção.

* MB e PP pela criação, elaboração e definição do programa; MB e VP foram responsáveis pela redação do texto inicial, MB, VP, RY e GM pela elaboração do quadro; todos os autores pela correção e revisão do manuscrito final

REFERÊNCIAS

  • 1
    Ruotsalainen J, Sellman J, Lehto L, Verbeek J. Systematic review of the treatment of functional dysphonia and prevention of voice disorders. Otolaryngol Head Neck Surg. 2008;138(5):557-65.
  • 2
    Bos-Clark M, Carding P. Effectiveness of voice therapy in functional dysphonia: where are we now? Curr Opin Otolaryngol Head Neck Surg. 2011;19(3):160-4.
  • 3
    Beuttenmüller G, Laport N. Expressão vocal e expressão corporal. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1974.
  • 4
    Brandi E. Voz falada: estudo, avaliação e tratamento. Rio de Janeiro: Atheneu, 1990.
  • 5
    Behlau M, Pontes P. Avaliação e tratamento das disfonias. São Paulo: Lovise, 1995.
  • 6
    Behlau M, Madazio G, Feijó D, Azevedo R, Gielow I, Rehder MI. Aperfeiçoamento vocal e tratamento fonoaudiológico das disfonias. In: Behlau M. Voz: o livro do especialista. Rio de Janeiro: Revinter, 2005. p. 410-565.
  • 7
    Van Lierde KM, Claeys S, De Bodt M, van Cauwenberge P. Long-term outcome of hyperfunctional voice disorders based on a multiparameter approach. J Voice. 2007;21(2):179-88.
  • 8
    Andrews ML, Schmidt CP. Congruence in personality between clinician and client: relationship to ratings of voice treatment. J Voice. 1995;9(3):261-9.
  • 9
    Stemple JC. Voice research: so what? A clearer view of voice production, 25 years of progress; the speaking voice. J Voice. 1993;7(4):293-300.
  • 10
    Behrman A. Facilitating behavioral change in voice therapy: the relevance of motivational interviewing. Am J Speech Lang Pathol. 2006;15(3):215-25.
  • 11
    van Leer E, Hapner ER, Connor NP. Transtheoretical model of health behavior change applied to voice therapy. J Voice. 2008;22(6):688-98.
  • 12
    van Leer E, Connor NP. Patient perceptions of voice therapy adherence. J Voice. 2010;24(4):458-69.
  • 13
    Teixeira LC, Rodrigues ALV, Silva AFG, Azevedo R, Gama ACC, Behlau M. Escala URICA-VOZ para identificação de estágios de adesão ao tratamento de voz. CoDAS. 2013;25(1):8-15.
  • 14
    Patel RR, Bless DM, Thibeault SL. Boot camp: a novel intensive approach to voice therapy. J Voice. 2011;25(5):562-9.
  • 15
    Gartner-Schmidt JL, Roth DF, Zullo TG, Rosen CA. Quantifying component parts of indirect and direct voice therapy related to different voice disorders. J Voice. 2013;27(2):210-6.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Out 2013

Histórico

  • Recebido
    07 Ago 2013
  • Aceito
    18 Set 2013
Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia Al. Jaú, 684, 7º andar, 01420-002 São Paulo - SP Brasil, Tel./Fax 55 11 - 3873-4211 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revista@codas.org.br