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Pensando sobre diferentes lugares e papéis

Colonizar ou ser colonizado é a escolha necessária? Essas são as únicas alternativas?

Vamos restringir a argumentação para a Fonoaudiologia.

No que diz respeito à oferta de serviços, somos colonizados quando assumimos que a melhor forma de atender à população são as seções individuais, algumas vezes por semana. Também somos colonizados quando importamos métodos e modelos de avaliação e intervenção produzidos em outra língua e em contextos muito diferentes das realidades brasileiras.

Na ciência, somos colonizados quando reproduzimos modelos de pesquisas desenvolvidos e ajustados para contextos muito diferentes dos nossos. A necessidade de divulgar a ciência brasileira em inglês – mesmo pensando que essa é a “língua da ciência” – é mais um indício de colonização, assim como a busca por indexação em bases de dados internacionais. Não é o meu objetivo aqui discutir a necessidade de publicações “indexadas internacionalmente” para o reconhecimento dos pesquisadores brasileiros, mas acho que podemos pensar em o quanto isso coloca esse reconhecimento fora da nossa realidade.

Por outro lado, colonizamos quando trabalhamos com a noção de que dominamos um conhecimento e temos o dever (e a autoridade) de informar a população sobre parâmetros e técnicas que dominamos. Por exemplo, quando um fonoaudiólogo propõe uma ação de prevenção, em que pais e cuidadores recebem informações sobre o desenvolvimento da linguagem, esse profissional está transmitindo conhecimentos que podem ser tão diferentes das realidades das famílias e das dificuldades (ou questões) reconhecidas por elas, que o resultado é a falta de interesse ou de adesão ao programa de prevenção. Em ciência, colonizamos quando impomos a pesquisadores brasileiros parâmetros relacionados a o que é ciência, como se eles fossem indiscutíveis; quando consideramos que as pesquisas realizadas no Brasil devem ter as mesmas características, independentemente da realidade pesquisada.

Discussões sobre o apagamento de grupos minoritários (ou simplesmente menos poderosos) estão presentes na mídia e em atividades acadêmicas. Tem ficado cada vez mais claro como o hábito de descrever a realidade a partir da perspectiva do grupo dominante gera um empobrecimento para esse mesmo grupo. O desafio atual é o de ampliar o olhar e incluir o objeto de estudo na própria análise.

Não se trata de rejeitar todos os processos anteriores de construção. A Fonoaudiologia brasileira desenvolveu-se e forma consistente a partir da aplicação e da adaptação de conhecimentos produzidos em outras realidades. O desafio de publicar em outra língua e de apresentar o conhecimento a respeito da população brasileira de forma a gerar interesse a esse respeito em publicações relacionadas a outras línguas e realidades continua sendo relevante e gerou perspectivas diferentes nas diversas áreas da Fonoaudiologia. Por exemplo, fica claro que informações a respeito de audição, voz e sistema motor oral provavelmente encontrarão menos barreiras linguísticas do que aquelas relacionadas à linguagem, em que especificidades de uma certa língua podem não gerar interesse. Essa realidade tem mudado recentemente, provavelmente como resultado da mobilidade populacional e a necessidade de adaptar refugiados e migrantes em contextos diferentes. Algumas publicações a respeito de outras línguas – que não o inglês – tem sido mais frequentes e diversos periódicos internacionais. Entretanto, a maioria dessas publicações considera essa como a segunda língua. A construção de um volume de publicações em periódicos internacionais já coloca a Fonoaudiologia brasileira num lugar de destaque internacional.

O trabalho consistente, dedicado e rigoroso de editores científicos, revisores e autores, ao longo de décadas, possibilitou a indexação de diversos periódicos científicos da Fonoaudiologia brasileira em bases de dados internacionais e, sem dúvida, a indexação da CoDAS na Web of Sciences é uma vitória importantíssima.

Será, então, que não podemos pensar em ampliar nossos horizontes?

Discussões sobre uma prática profissional efetivamente inclusiva seguramente vão ter que levar em conta diferentes hábitos, crenças e costumes da população-alvo, possibilitando trocas de aprendizado entre quem oferece e quem recebe o serviço(11 Held MB. Decolonizing science: undoing the colonial and racist hegemony of western science. J Multidiscip Eval. 2023;19(44):88-101. http://doi.org/10.56645/jmde.v19i44.785.
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, 22 Higgins M, Kim EJA. De/colonizing methodologies in science education: rebraiding research theory–practice–ethics with Indigenous theories and theorists. Cult Stud Sci Educ. 2019;14(1):111-27. http://doi.org/10.1007/s11422-018-9862-4.
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). Da mesma forma, quando consideramos um sistema universal de saúde, é fundamental pensar em alternativas eficazes para garantir os serviços de Fonoaudiologia a toda a população; e parece pouco provável que isso seja atingido no modelo de sessões individuais de intervenção. A tecnologia digital, a inteligência artificial e o letramento digital são temas que tem sido abordados de forma inconsistente em Fonoaudiologia; eles podem resultar em algumas soluções, mas também podem ampliar as dificuldades se não forem abordados de forma consciente e ética. Esses são alguns dos temas a serem considerados por quem aceitar o desafio de descolonizar a prática profissional em Fonoaudiologia.

Nesse contexto, o papel da CoDAS na discussão de alterativas para a descolonização da Fonoaudiologia é fundamental. Não se trata de ignorar as normas internacionais para publicações, nem de colocar em risco a indexação conquistada. Mas estou convidando editores, revisores e autores a pensarem sobre alternativas viáveis para isso. Seria possível criar uma sessão “Fora da Caixa” para artigos que não se encaixem em normas rigorosas de publicação? Um ponto fundamental seria identificar porque não se encaixam ou se esse exercício causaria a perda de dados relevantes. Outra alternativa seria a identificação de mentores que pudessem trabalhar com os autores de um manuscrito com potencial mas que dificilmente seriam tornados adequados para publicação através do sistema de revisão tradicional(33 Bermúdez JM, Muruthi BA, Jordan LS. Decolonizing research methods for family science: creating space at the center. J Fam Theory Rev. 2016;8(2):192-206. http://doi.org/10.1111/jftr.12139.
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). A história pessoal de autores e/ou grupos de pesquisa podem ser um tema a ser abordado nessa descolonização. Autores com necessidades especiais podem oferecer perspectivas enriquecedoras para a abordagem de necessidades específicas. Autores de diferentes grupos sociais (como povos originários, migrantes ou refugiados) podem contribuir para a discussão de estratégias de inclusão.

Não tenho dúvidas de que há inúmeros temas, possibilidade e dificuldades para o início de um processo de descolonização. Mas somos fonoaudiólogos e sabemos que a melhor forma de começar um processo é pensar a respeito dele. Esse é o meu convite.

  • Trabalho realizado na Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo – USP - São Paulo (SP), Brasil.
  • Fonte de financiamento: nada a declarar.

Referências

  • 1
    Held MB. Decolonizing science: undoing the colonial and racist hegemony of western science. J Multidiscip Eval. 2023;19(44):88-101. http://doi.org/10.56645/jmde.v19i44.785
    » http://doi.org/10.56645/jmde.v19i44.785
  • 2
    Higgins M, Kim EJA. De/colonizing methodologies in science education: rebraiding research theory–practice–ethics with Indigenous theories and theorists. Cult Stud Sci Educ. 2019;14(1):111-27. http://doi.org/10.1007/s11422-018-9862-4
    » http://doi.org/10.1007/s11422-018-9862-4
  • 3
    Bermúdez JM, Muruthi BA, Jordan LS. Decolonizing research methods for family science: creating space at the center. J Fam Theory Rev. 2016;8(2):192-206. http://doi.org/10.1111/jftr.12139
    » http://doi.org/10.1111/jftr.12139

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    19 Jan 2024
  • Aceito
    29 Jan 2024
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