RESUMO
Objetivo: mapear a Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência em Minas Gerais, com base na identificação dos pontos de atenção do componente de atenção especializada em reabilitação, suas modalidades e distribuição segundo a população.
Método: estudo observacional transversal descritivo. Foram utilizadas técnicas de geoprocessamento para descrição da distribuição dos dispositivos da atenção especializada da Rede de Cuidados, conforme levantamento em abril de 2014. Adotaram-se como unidades de análise as regiões do estado descritas no Plano Diretor de Regionalização do estado. Foram analisadas legislações nacional e estadual e dados disponíveis nos relatórios de gestão da Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais. Como variáveis, foram selecionadas a presença de pontos de atenção no território, o tipo de serviço ofertado e sua relação com a densidade populacional. Foram realizados: análise descritiva da distribuição espacial dos pontos de atenção, considerando as variáveis selecionadas, e georreferenciamento destes pontos, considerando tipo de serviço e modalidades de deficiência.
Resultados: a Rede de Cuidados é composta por 183 pontos de atenção com maior concentração ao sul do estado: 135 (73,8%) Serviços Especializados em Reabilitação da Deficiência Intelectual, 18 (9,8%) Serviços de Reabilitação Física, 15 (8,2%) Serviços de Reabilitação Auditiva, 3 (1,6%) Serviços de Reabilitação Visual e 12 (6,6%) Centros Especializados em Reabilitação com duas ou mais modalidades. Observou-se maior concentração de serviços nas regiões mais populosas.
Conclusão: a Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência possui grande desproporção entre as modalidades de reabilitação, com maior número de serviços voltados para reabilitação intelectual e distribuição não equânime, refletindo em vazios assistenciais.
Descritores: Avaliação em saúde; Saúde Pública; Pessoas com Deficiência; Regionalização; Serviços de Saúde; Distribuição Espacial da População
ABSTRACT
Purpose: To map the Care Network for People with Disabilities in Minas Gerais, based on the identification of the points of care in the rehabilitation specialized care component, its modalities and distribution according to the population.
Method: Cross-sectional descriptive study. We used geoprocessing techniques to describe the distribution of the specialized care devices of the Network Care, as surveyed in April 2014. The regions of the state described in the State Regionalization Master Plan were adopted as analysis units. We analyzed data from National and state legislations and data available in the management reports of the Minas Gerais State Health Department. The presence of points of care in the territory, the type of service offered and its relationship with the population density were selected as variables. We performed a descriptive spatial analysis of the distribution of the points care considering the selected georeferenced variables and the type of service as well as the modalities of disability.
Results: The Network Care is composed of 183 points of care with the higher concentration in the south of the state: 135 (73.8%) Specialized Services in Rehabilitation of Intellectual Disability, 18 (9.8%) Physical Rehabilitation Services, 15 (8.2%) Auditory Rehabilitation Services, 3 (1.6%) Visual Rehabilitation Services and 12 (6.6%) Specialized Rehabilitation Centers with two or more modalities. We observed greater concentration of services in the most populous regions.
Conclusion: The Network Care presents great disproportion between rehabilitation modalities, with a greater number of services aimed at intellectual rehabilitation, and unequal distribution reflected in the care gap.
Keywords Health Evaluation; Public Health; Disabled Persons; Regional Health Planning; Health Services; Residence Characteristics
INTRODUÇÃO
A constituição de redes regionalizadas e integradas de atenção à saúde é condição indispensável para qualificação e continuidade do cuidado. As redes representam instrumento para garantia do direito à saúde, por meio de ampliação do acesso e diminuição das desigualdades, e permitem a superação de lacunas assistenciais, racionalização e otimização dos recursos assistenciais disponíveis (1). A partir de 2006, com o Pacto pela Saúde e, mais tarde, com a publicação de portaria específica, o Ministério da Saúde vem buscando coordenar ações de estruturação das redes de atenção à saúde que favoreçam a integralidade da atenção (2). O conceito de redes abrange ações e serviços de diferentes densidades tecnológicas, que se integram por meio de sistemas de apoio técnico, logístico e de gestão, com o objetivo único de garantir a integralidade e a continuidade do cuidado (2). No campo da saúde coletiva, a descentralização desempenha um papel organizativo, estabelecendo uma importante relação com o processo de regionalização que deve ser compreendida como estratégia de organização das ações e dos serviços de saúde em uma região, com objetivo de assegurar a integralidade da atenção, gastos racionais e a otimização dos recursos e a equidade, com vistas à garantia do direito à saúde. Além disso, salienta-se o seu papel na integração das unidades e serviços que compõem a rede, considerando suas diferentes densidades tecnológicas (3,4).
Historicamente, a assistência à pessoa com deficiência se deu em um contexto de omissão do Estado em garantir os direitos educacionais e sociais dessas pessoas, o que obrigava suas famílias a recorrerem a instituições de caráter filantrópico assistencial, que posteriormente assumiram também ações de assistência à saúde (5).
Em 2011 foi instituído o Plano Nacional da Pessoa com Deficiência - Plano Viver sem Limite e, em 2012, criada a Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência no SUS. A Rede, além de instituir novos pontos de atenção, busca ampliar seu papel e promover a articulação entre os serviços, de modo a ofertar atenção integral às pessoas com deficiência temporária ou permanente; progressiva, regressiva ou estável; intermitente ou contínua. A composição desta rede abrange três componentes: atenção básica; atenção especializada em reabilitação auditiva, física, intelectual, visual e múltiplas deficiências, os Centros Especializados em Odontologia (CEO); e atenção hospitalar e de urgência (6).
A atenção especializada no SUS, compreendida como um conjunto de ações, conhecimentos e técnicas assistenciais marcadas por processos de trabalho de maior densidade tecnológica, ainda expressa iniquidades regionais no país. Nesse sentido, tem-se destacado esse nível de atenção como aspecto crítico no acesso integral à saúde, especialmente com a expansão da atenção básica e consequente aumento da demanda por procedimentos especializados (7).
A conformação de uma rede deve considerar o perfil demográfico e epidemiológico de sua população. De acordo com o CENSO 2010, no Brasil mais de 45 milhões de pessoas declararam possuir algum tipo de deficiência. Em Minas Gerais são mais de 5 milhões de pessoas com deficiência, com a seguinte distribuição por tipo: deficiência visual (15,7%), motora (6,2%), auditiva (3,9%) e intelectual (1,0%)(8). No estado de Minas Gerais, a Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência foi instituída em 2012 e vem exigindo novas conformações de funcionamento e articulação entre os serviços.
Devido à recente implantação e organização, tornam-se necessárias avaliações permanentes da configuração e funcionamento dessadesta rede, com o objetivo de aprofundar a compreensão de sua estrutura, a análise do acesso, da distribuição populacional e dos pontos de atenção especializada no território. As informações geradas podem contribuir para a identificação de desigualdades territoriais e de vazios assistenciais, possibilitando a construção de abordagens e estratégias para reorganização da rede.
Assim, este estudo tem como objetivo mapear a Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência em Minas Gerais, a partir da identificação dos pontos de atenção do componente da atenção especializada em reabilitação, suas modalidades e distribuição, segundo a população residente no estado.
MÉTODO
Trata-se de estudo observacional transversal, de natureza descritiva, utilizando-se técnicas de geoprocessamento para descrever a distribuição dos dispositivos que compõem a estrutura Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência em Minas Gerais. Para tanto, adotou-se como unidades de análise as regiões ampliadas e as regiões de saúde, de acordo com o Plano Diretor de Regionalização de Minas Gerais, plano esse considerado diretriz organizativa da atenção à saúde no Sistema Único de Saúde.
Em Minas Gerais, compreende-se como Região de Saúde o espaço geográfico contínuo constituído por agrupamento de municípios limítrofes, delimitado por meio de identidades culturais, econômicas e sociais e de redes de comunicação e infraestrutura de transportes compartilhados, com a finalidade de integrar a organização, o planejamento e a execução de ações e serviços de saúde. As Regiões Ampliadas de Saúde, por sua vez, constituem o nível regional (agrupamento de Regiões de Saúde) correspondente ao nível de atenção terciário, considerando os conceitos de economia de escala e escopo, em função da densidade tecnológica, e são os territórios de abrangência das redes de atenção à saúde.
O território deste estudo é o estado de Minas Gerais, que possui extensão territorial de 586.519,73 km2, 853 municípios, população de 19.597.330 habitantes com 18% a 58% da população com renda inferior a meio salário mínimo. Dos 853 municípios que compõem o estado, 92,2% apresentam população menor que 50 mil habitantes, sendo a maior parte com população abaixo de 10 mil habitantes (8) (Tabela 1).
Distribuição da população residente nas regiões ampliadas de saúde e proporção de população com renda inferior a meio salário mínimo, Minas Gerais, 2014
A pesquisa foi desenvolvida no contexto da Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência no estado de Minas Gerais, especificamente no componente de atenção especializada em reabilitação.
A atenção especializada em reabilitação da Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência ocorre em estabelecimentos de saúde de modalidade única de reabilitação, em Centros Especializados em Reabilitação (CER) ou em Centros de Especialidades Odontológicas (CEO). Ainda de acordo com a organização da Rede, as oficinas ortopédicas e serviços especializados em reabilitação da pessoa ostomizada podem ser vinculados a serviços de reabilitação física ou a CER com modalidade de reabilitação física (9).
As informações utilizadas no estudo referem-se à situação da Rede em abril de 2014. Foram analisados: legislações nacional e estadual referentes à Rede de Cuidados e dados disponíveis nos relatórios de gestão da Coordenadoria de Atenção à Saúde da Pessoa com Deficiência da Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais. Como variáveis, foram selecionados a presença de pontos de atenção no território, o tipo de serviço ofertado e sua relação com a densidade populacional.
Quanto ao tipo de serviço, foram considerados os Serviços de Reabilitação em modalidade única e os Centros Especializados em Reabilitação. Os Serviços de Reabilitação em modalidade única foram habilitados pelo Ministério da Saúde ou credenciados pela Secretaria de Estado de Saúde, anteriormente à criação da Rede de Cuidados (2012) e responsáveis pela reabilitação de apenas uma das modalidades de deficiência: auditiva, física, visual ou intelectual. Os Centros Especializados em Reabilitação são os principais pontos da atenção especializada da Rede de Cuidados. São classificados quanto ao tipo, de acordo com o número de modalidades de deficiência que atendem (reabilitação auditiva, física, intelectual e visual). O CER II é responsável pelo atendimento de duas modalidades, o CER III por três modalidades e o CER IV por todas as modalidades de deficiência.
Para a análise, procedeu-se ao georreferenciamento dos pontos de atenção especializada nos municípios que os sediam, considerando o tipo de serviço e as modalidades de deficiência.
Foi realizada análise descritiva da distribuição espacial dos pontos de atenção no estado, considerando as variáveis selecionadas. Foram consideradas como unidades espaciais de análise as 13 regiões ampliadas de saúde.
Os resultados foram apresentados em mapas temáticos de pontos e proporções, representando a distribuição espacial dos dispositivos da Rede no estado. Os dados foram organizados em planilha do software Excel®, e as informações processadas e analisadas no programa SPSS IBM Statistics 19 e MapInfo 10.0.
Esse projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais sob o parecer 33703914.8.0000.5149. Cabe ressaltar que, por se tratar de um estudo que analisou a distribuição de serviços baseado em banco de dados e não envolveu a coleta de dados com seres humanos, houve a dispensa do Termo de Consentimento Livre Esclarecido.
RESULTADOS
Em Minas Gerais, os Serviços de Reabilitação com modalidade única de reabilitação são: Serviços de Reabilitação Física, Serviços de Reabilitação Auditiva, Serviços de Reabilitação Visual e Serviços Especializados em Reabilitação da Deficiência Intelectual (SERDI). Os CER seguem as mesmas características e nomenclaturas definidas pelo Ministério da Saúde.
A Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência é composta por 183 pontos de atenção: 135 (73,8%) Serviços Especializados em Reabilitação da Deficiência Intelectual (SERDI), 18 (9,8%) Serviços de Reabilitação Física (SRF), 15 (8,2%) Serviços de Reabilitação Auditiva (SRA), 3 (1,6%) Serviços de Reabilitação Visual e 12 (6,6%) Centros Especializados em Reabilitação (CER) com duas ou mais modalidades (Tabela 2).
Descrição do número de pontos de atenção do componente especializado da Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência por tipo de serviço, Minas Gerais, 2014
Ao se considerar as modalidades de deficiência, independentemente se organizadas em serviços de modalidade única ou CER, observa-se a composição da Rede com 74,5% de pontos responsáveis pela reabilitação da deficiência intelectual, 14,8% pela reabilitação da deficiência física, 8,2% pela reabilitação da deficiência auditiva e 2,5% pela reabilitação da deficiência visual.
A Figura 1 apresenta a localização e distribuição dos pontos de atenção por modalidade de deficiência nas regiões ampliadas de saúde do estado. Observa-se distribuição irregular com maior concentração de pontos de atenção para reabilitação da deficiência intelectual e grande desproporção entre essaesta modalidade e a reabilitação visual. Observa-se também maior concentração de serviços, independentemente da modalidade de deficiência, nas regiões sul, centro, sudeste e triângulo do norte.
Distribuição dos serviços de atenção especializada por tipo de deficiência nas regiões ampliadas de saúde do estado de Minas Gerais, 2014
A Figura 2 apresenta a distribuição dos pontos de atenção da Rede de Cuidados no território de Minas Gerais. Observa-se distribuição desigual entre as regiões do estado. Há uma grande concentração de pontos de atenção nas regiões centro, sul, sudeste e triângulo do norte, com vazio assistencial no norte, nordeste e Jequitinhonha.
Distribuição dos pontos de atenção do componente de atenção especializada da Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência no território do estado de Minas Gerais por região de saúde, 2014
Na Figura 03 pode-se observar que a maior concentração de pontos de atenção ocorre nas regiões de saúde mais populosas do estado, como as regiões de Belo Horizonte, Uberlândia, Juiz de Fora, Ipatinga, Alfenas, Varginhae, Montes Claros.
Distribuição dos pontos de atenção do componente de atenção especializada da Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência e população residente no território do estado de Minas Gerais por região de saúde, 2014
DISCUSSÃO
Observa-se, em Minas Gerais, uma predominância de serviços de reabilitação em modalidade única. Os Centros Especializados em Reabilitação foram criados para atuar como nós integradores da Rede de Cuidados, com o papel de articulador com outros componentes e serviços e romper com a fragmentação da reabilitação por deficiência (9).
Dentre tais serviços de modalidade única, há menor número daqueles voltados à atenção a pessoas com deficiência auditiva e visual em todas as regiões ampliadas de saúde. Os serviços voltados à atenção à saúde auditiva foram implantados em doze das treze regiões ampliadas, e são responsáveis pela avaliação, diagnóstico, seleção e adaptação de Aparelho de Amplificação Sonora Individual (AASI), terapia fonoaudiológica e acompanhamento em todos os segmentos da população para reabilitação e habilitação auditiva (10). Cabe, no entanto, análise mais aprofundada sobre a necessidade e sustentabilidade de novos serviços, considerando a complexidade e custo das ações de diagnóstico, adaptação de AASI, reabilitação, as alternativas de transporte dos usuários no território e o financiamento necessário ao custeio de tais unidades.
Em relação aos serviços de modalidade única de reabilitação visual, nota-se a maioria das regiões ampliadas sem oferta, o que demonstra a persistência de vazios assistenciais, embora iniciativas de melhoria da atenção à saúde ocular venham ocorrendo, especialmente com a criação de política nacional específica em 2008 (11).
No presente estudo, o número expressivo de serviços que atendem à modalidade da deficiência intelectual (Figura 1) pode estar relacionado à organização histórica desses serviços pela sociedade civil (5). Também pode ter contribuído o fato de que a Portaria Ministerial não exigia o procedimento de habilitação e não estabelecia diretrizes assistenciais, o que permitiu autonomia aos estados para estabelecimento de diretrizes assistenciais de acordo com suas necessidades e capacidade instalada. Dessa forma, em 2003, algumas destas instituições foram credenciadas pela Secretaria de Estado de Saúde. Mais recentemente, em 2013, 135 desses serviços foram incorporados à Rede de Cuidados (Tabela 2) como Serviços Especializados em Reabilitação da Deficiência Intelectual ou CER, após reestruturação assistencial, quando foram qualificados inicialmente os serviços já credenciados.
A literatura (12) aponta proposta de desenho assistencial que sugere maior capilaridade aos serviços de reabilitação da deficiência intelectual e reabilitação física ao se considerar a facilidade de acesso a esses usuários. No entanto, diante dessadesta premissa, serviços de reabilitação física não tiveram frequência semelhante aos serviços de reabilitação da deficiência intelectual. A necessidade de maior densidade tecnológica na reabilitação física também dificulta a identificação de unidades para habilitação. De acordo com levantamentos da Coordenadoria de Atenção à Saúde da Pessoa com Deficiência, observa-se que ambulatórios gerais de fisioterapia dos municípios estão assumindo a responsabilidade de reabilitação da deficiência física, de forma desarticulada com a Rede de Cuidados e, portanto, sem organização de informações em âmbito estadual.
As disparidades observadas entre as regiões ampliadas se expressamexpressa também na distribuição dos serviços de atenção especializada nas 77 regiões de saúde, quando se compara o estado a partir de um eixo imaginário que o divide em dois grandes territórios - norte e sul. Notou-se nesse estudo maior densidade de pontos de atenção dessa Rede ao sul, com evidentes vazios assistenciais em diversas regiões de saúde ao norte do estado. A distribuição espacial dos equipamentos observada parece indicar, portanto, melhor estruturação da Rede ao sul e pior ao norte. Esse fato reproduz dados de desenvolvimento regional do estado. Dados do PNUD apontam que nas Regiões Ampliadas de Saúde Norte, Jequitinhonha e Nordeste, lugares com vazios assistenciais identificados no presente estudo, estão as menores rendas per capita de Minas Gerais, enquanto as regiões sul e sudeste apresentam rendas mais elevadas (13). Assim, a disparidade evidenciada em outros indicadores sociais se reproduz na oferta e acesso aos serviços de saúde da Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência no Estado de Minas Gerais. A distribuição geográfica heterogênea de serviços de reabilitação é observada em outros locais no Brasil nos quais se identifica predomínio em regiões urbanas e economicamente mais favorecidas (14,15).
Esse cenário de menor oferta de serviços em locais com piores indicadores socioeconômicos torna-se ainda mais preocupante ao se considerar que a população com maior escolaridade tende a utilizar os serviços públicos de saúde para atividades preventivas. Nesse sentido, locais com populações de menor escolaridade utilizariam mais serviços para tratamento e reabilitação, o que geraria maior demanda da atenção especializada (16).
É possível que essa concentração de serviços de reabilitação nas áreas economicamente mais favorecidas (Figura 2) tenha relação com a participação de organizações ligadas às pessoas com deficiência na construção do SUS na década de 1980, que levou à criação dos primeiros serviços nesses locais (17).
Considerando os serviços já existentes na Rede, é importante que as articulações regionais já organizadas e os elementos que contribuem para o fortalecimento da identidade regional sejam aproveitados no processo de estruturação e implantação do conjunto de serviços (18).
A distribuição heterogênea de serviços de saúde observada na Figura 2 remete à iniquidade de acesso à Rede de Cuidados. De acordo com a a literatura, o acesso, tomado como acessibilidade aos serviços de saúde, é a capacidade de um sistema de atenção à saúde responder às necessidades de saúde de uma população, que inclui as dimensões sócio-organizacional e geográfica (19). Características relacionadas aos sistemas logísticos das redes de atenção à saúde, como oferta de serviços, acesso regulado e sistemas de transporte em saúde, influenciam a conformação operacional dos serviços e, consequentemente, o acesso da população. Assim, é fundamental a participação de usuários, gestores e trabalhadores para o cumprimento da garantia de acesso, superando as dificuldades políticas, financeiras, técnicas e de gestão (20). Além disso, na perspectiva da pessoa com deficiência, é importante a consolidação de redes de apoio, sejam familiares ou na comunidade, visando aà facilidade de acesso inclusive aos serviços de saúde de forma mais integral (21).
As Redes de Atenção à Saúde possuem diretrizes como a integralidade do cuidado e a regionalização, considerando sua territorialização, população e necessidades de ações em saúde, com pontos de atenção devidamente caracterizados e organizados por meio de acesso regulado e sistema de governança definido ((22.23)). O estado apresenta grandes distâncias entre vários municípios e diversidades socioeconômicas expressivas, que pode influenciar na implantação de serviços de maior densidade tecnológica.
A regionalização, como diretriz para a organização do SUS, deve se concretizar nos espaços de gestão regional, como processo político e organizado, em resposta às restrições de acesso aos serviços (4,23). Dessa forma, outros aspectos precisam ser mais bem compreendidos no nível loco-regional em processo de análise mais detalhado quanto à adequação da estrutura da Rede de Cuidados em Minas Gerais.
O apoio matricial é uma das estratégias para a qualificação das redes de atenção à saúde. A troca de conhecimento entre os profissionais dos pontos e níveis de atenção amplia a organização de projetos terapêuticos, propicia abordagem clínica ampliada e favorece a integração entre especialidades ou profissionais. Ações de matriciamento agregam recursos de saber, potencializam a capacidade resolutiva das equipes, melhoram o desempenho da atenção básica e dão sustentabilidade para construção de redes integrais e universais (24,25). Mais recentemente, no âmbito de Minas Gerais, a implantação de serviços descentralizados que compõem a política estadual de saúde auditiva, com a criação ou qualificação de serviços de menor densidade tecnológica no nível municipal, trouxe avanços no sentido de aproximar o cuidado à pessoa com deficiência aos recursos e realidades locais. Tais serviços abrangem ações de promoção da saúde auditiva, prevenção e acompanhamento terapêutico para os casos que não necessitarem de supervisão técnica dos serviços de referência. Essa conformação de rede focada no território e que sustente a criação de projetos terapêuticos singulares favorece o acesso, o cuidado integral e as possibilidades de equidade (9,26).
Este estudo apresentou a distribuição dos pontos de atenção especializada da Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência. No entanto, vale destacar que a utilização de dados secundários, advindos de diferentes fontes de informações, e a não inclusão na análise do paciente ostomizado por falta de informações consolidadas no período do estudo são limitações a serem consideradas.
Para uma análise integral, são necessários outros estudos que avaliem os demais aspectos relacionados à operacionalização de uma rede assistencial como fluxos assistenciais, sistemas logísticos, modelo de atenção, satisfação dos usuários, gestores e profissionais, a fim de produzir dados mais completos para melhorias na implementação dessas redes.
CONCLUSÃO
O presente estudo trouxe contribuições para a discussão da configuração espacial da Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência e na produção de inferências acerca do acesso aos serviços especializados em reabilitação. A análise aponta haver ainda um número expressivo de serviços de modalidade única de serviços especializados e com distribuição não equânime, refletindo em vazios assistenciais.
Ao analisar a distribuição dos pontos de atenção por tipos de serviços ofertados, nota-se maior número de pontos de atenção voltados para atenção da pessoa com deficiência intelectual em comparação com as outras deficiências. Observa-se ainda importante disparidade regional, evidenciada pela grande concentração dos serviços ao sul quando comparado com as regiões ao norte do estado.
Nota-se concentração de serviços na modalidade de reabilitação intelectual, alocados principalmente nas Regiões Ampliadas de Saúde Sul, Centro e Sudeste, com vazio assistencial e baixa oferta da assistência nas demais modalidades de reabilitação. Assim, observa-se que a Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência ainda está em fase de implantação, com necessidades de adequação para que se alcance a equidade no acesso aos serviços especializados. A integração entre os pontos de atenção, a garantia da integralidade e do acesso a todos os cidadãos do estado, com alocação de serviços de reabilitação de acordo com realidade e demanda local, ainda é um desafio a ser alcançado.
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Trabalho realizado no Departamento de Fonoaudiologia, Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG - Belo Horizonte (MG), Brasil.
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Fontes de financiamento: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG) - Edital 14/2012 - Programa de Pesquisa para o SUS - PPSUS-REDE. Número do processo: APQ-03617-12.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
15 Jun 2020 -
Data do Fascículo
2020
Histórico
-
Recebido
13 Set 2018 -
Aceito
10 Jul 2019