Open-access Bakhtin e Wittgenstein: diálogos sobre ética e pesquisa em ciências humanas1

Bakhtin and Wittgenstein: dialogues on ethics and research in human sciences

Bakhtin et Wittgenstein: dialogues sur l’éthique et la recherche en sciences humaines

Bakhtin y Wittgenstein: diálogos sobre ética e investigación en ciencias humanas

RESUMO

Este texto aborda questões relativas à especificidade do conhecimento produzido pelas ciências humanas e, por consequência, as implicações desse conhecimento para a tarefa do pesquisador. Para isso, contaremos com as fundamentais contribuições de Bakhtin e Wittgenstein, dois filósofos da linguagem. A novidade do pensamento de ambos está na tentativa de libertar as ciências humanas de um modelo único de rigor, relativo à metodologia científica e, mais ainda, no convite ousado ao pesquisador, de quem esperam a singularidade e a responsabilidade no ato de pensar.

Palavras chave: Epistemologia; Linguagem; Ética; Ciências Humanas

ABSTRACT

This text approaches matters related to the specificity of the knowledge produced by human sciences and, consequently, the implications of this knowledge for the researcher’s work. In order to do that, we will count on the invaluable contributions of Bakhtin and Wittgenstein, two philosophers of language. The novelty of their thinking lies in the attempt to free human sciences from a single model of rigor concerning scientific methodology and, moreover, in the bold invitation to the researcher, from whom singularity and responsibility in the act of thinking is expected.

Keyword: Epistemology; Language; Ethics; Humanities

RÉSUMÉ

Ce texte aborde des questions ayant trait à la spécificité de la connaissance produite par les sciences humaines et, par conséquence, aux implications de celle-ci pour la tâche du chercheur. Pour cela, nous utiliserons les contributions fondamentales de Bakhtin et Wittgenstein, deux philosophes du langage. La nouveauté de leur pensée réside non seulent dans la tentative d’affranchir les sciences humaines d’un modèle unique de rigueur se référant à la méthodologie scientifique, mais encore dans la hardiesse de l’invitation faite au chercheur, singularité et de responsabilité dans l’acte de penser

Mots-clés: Épistémologie; Langage; Éthique; Sciences Humaines

RESUMEN

Este texto aborda temas relativos a la especificidad del conocimiento producido por las ciencias humanas y, por consiguiente, las implicaciones de dicho conocimiento para la tarea del investigador. Para ello contaremos con las fundamentales contribuciones de Bakhtin y Wittgenstein, dos filósofos del lenguaje. La novedad del pensamiento de ambos reside en el intento de liberar las ciencias humanas de un modelo único de rigor relativo a la metodología científica y, además, en la osada invitación al investigador, del cual se esperan la singularidad y la responsabilidad en el acto de pensar

Palabras-clave: Epistemología; Lenguaje; Ética; Humanidades

Apresentando os interlocutores

Bakhtin e Wittgenstein são pensadores contemporâneos pertencentes, porém, a contextos culturais completamente diversos. O primeiro, como filósofo e pesquisador, sempre se dedicou às manifestações artísticas pela via da crítica e análise literária. O segundo, pela via de uma filosofia de linguagem, durante a primeira fase, teve seu pensamento ligado à matemática e à lógica e, na segunda fase, passou a investigar a linguagem cotidiana em seus variados usos. Ambos desenvolveram suas ideias a partir de considerações sobre a linguagem e, se focalizarmos um determinado ponto da reflexão a que se dedicaram, podemos dizer que a consideravam como uma forma de ação, como um aspecto da vida humana que tem significação apenas em relação a contextos de forma de vida humana. É importante dizer que, em suas reflexões filosóficas, esses dois pensadores acabaram problematizando consensos estabelecidos por uma tradição de pensamento, na filosofia, que balizavam a produção do conhecimento científico.

Podemos recuar no tempo e, como exemplo, apontar a filosofia de Descartes, que adotou a visão de unidade da ciência, com a metafísica como a raiz de todo o conhecimento; a física, o tronco; a medicina, a mecânica; e os princípios morais, como ramificações. Mais tarde, já no final do século XIX, o positivismo elegeu a física enquanto ciência empírico- -formal como paradigma para todas as ciências, inclusive as humanas e sociais; esse paradigma garantiria o rigor necessário ao fazer científico.

Mas, ainda no século XIX, surgiu uma discussão sobre a natureza e a metodologia das ciências humanas e sociais, que têm um mundo diverso, múltiplo de sentidos, o que exigiria dessas ciências uma reflexão que permitisse ao homem o entendimento desse mundo, bem como o entendimento de si mesmo. Assim, se as ciências humanas e sociais tradicionalmente se viram na dependência das ciências naturais, também no campo da filosofia da ciência uma batalha livrou a investigação social dessa dependência. O argumento usado era que o conhecimento que os homens podem ter do mundo natural é diferente do conhecimento que os homens podem ter de si mesmos, sobre sua natureza, suas criações e formas de vida. Podemos dizer, assim, que é em um contexto de ruptura, ou de revolução de pensamento, que Bakhtin e Wittgenstein nos oferecem suas valiosas contribuições.

Segundo Hacker (2001), no caso de Wittgenstein, é fácil ficar com a impressão que ele é o modelo de um filósofo destrutivo, impressão essa à qual ele mesmo sucumbiu e, às vezes, chegou a cultivar. Isso pode ser explicado pelo fato de que os anos de 1929-31 foram aqueles durante os quais ele desmantelou o Tratactus, a obra representativa da primeira fase do seu pensamento.2 Seus sucessores, primeiro os positivistas e depois os teóricos do significado, aceitaram a maioria de suas ideias desse período. Mas o próprio Wittgenstein repudiou a maior parte delas e, embora tenha tentado corrigir a direção que, segundo ele, erradamente indicou aos que o seguiram, não foi bem-sucedido. Assim, ao reformular seu pensamento, passou a questionar o entendimento que formava a grande tradição filosófica europeia sobre metafísica, ontologia e lógica.

De fato, há muitos aspectos que mostram que a filosofia da segunda fase de Wittgenstein não deve ser vista como destrutiva e negativa. Pelo contrário, ela se manifesta como vigorosa tentativa de proteger e conservar um domínio de conhecimento e forma de compreensão da erosão e distorção pelo espírito científico e, assim, pode-se ver a tarefa filosófica de Wittgenstein como uma defesa da autonomia do conhecimento humanístico contra a intrusão das ciências naturais. Hacker (2001) considera equivocada a doutrina da homogeneidade metodológica do conhecimento científico e humanístico. Por “estudos humanísticos”, propõe que se entenda uma gama de disciplinas intelectuais que estudam o homem como um ser cultural, social e histórico, o que inclui partes da psicologia e linguística, história, antropologia e ciências sociais, bem como aquelas que estudam os produtos culturais do homem, tais como o estudo da literatura e das artes. Para ele, a Doutrina da Unidade da Ciência, vigorosamente proposta pelos positivistas lógicos do começo do século XX, com raízes no positivismo do século XIX e, antes disso, no período pós-cartesiano, é uma forma de cientificismo na medida em que atrela a metodologia do estudo do homem ao modelo científico de conhecimento, ou seja, estende ilicitamente os métodos e formas de explanações das ciências naturais. Wittgenstein não estava diretamente preocupado com a questão do status do estudo do homem nas disciplinas humanísticas. Conforme nos diz Coutinho 3 (1988), grosso modo,

[...] o objetivo de Wittgenstein pode ser identificado com a tarefa atribuída por ele à filosofia, ou seja, a ordenação do nosso conhecimento sobre o uso da linguagem para que pudéssemos definir, assim, o que poderia ser dito sobre o mundo.

Sua principal preocupação, por todo seu percurso filosófico, foi com a natureza da representação, em particular com a representação linguística e, daí, com o sentido e a intencionalidade. Assim, a filosofia do segundo Wittgenstein dedica-se a descrever os usos das nossas mais variadas expressões na dependência de contextos de vida concretos, analisando a maneira pela qual estão integradas às ações, as pressuposições do seu uso e suas relações de implicação, bem como sua compatibilidade ou incompatibilidade com outras expressões. Essa “análise conectiva” pretende nos oferecer uma revisão quanto ao uso de nossas palavras, pois, para Wittgenstein, investigar a clareza de uma representação produzia precisamente o que, para ele, era de importância fundamental, ou seja, o entendimento que consiste em ver conexões e, por isso, nos habilita a achar nosso caminho em meio à rede da linguagem. Esse interesse levou-o a investigar conceitos psicológicos, bem como o caráter lógico de explicações da ação humana e, com isso, o resultado dessas investigações teve, e tem tido, profundas implicações para os estudos relativos ao homem. Nesse sentido, pode-se dizer que Wittgenstein oferece as linhas mestras para um tipo de filosofia antropológica e, por consequência, as fundações para o entendimento filosófico dos estudos humanísticos. Sob esse aspecto, seu trabalho constitui-se como defesa, muito necessária, contra o ilegítimo abuso da ciência em relação àquelas disciplinas que se dedicam ao entendimento de nós mesmos, nossa cultura e nossa sociedade. Afinal, há outras formas de investigações racionais que, ao conceber o homem como um ser cultural e social, desenvolvem formas de entendimento e explicações alheias às das ciências naturais. Em síntese, há outros domínios de investigação que adotam esse distanciamento das ciências naturais, como, por exemplo, no domínio do conhecimento estético, no entendimento dos mitos e rituais e, também, no da reflexão filosófica. E qual seria o valor da contribuição de Bakhtin nesse contexto de ideias?

Para começar, precisamos reconhecer Bakhtin como um intelectual que se dedicou ao estudo das artes, mais especificamente à literatura, como produto cultural humano. Assim, na linha do que foi dito anteriormente, sua contribuição ampliou a compreensão do próprio homem como “alma linguageira”, portanto criativa e em constante construção.

No prefácio à edição francesa de Estética da criação verbal (2003), Todorov reconhece em Bakhtin uma das figuras mais fascinantes e enigmáticas da cultura europeia de meados do século XX, destacando em seu pensamento diferentes desdobramentos e contribuições para as ciências humanas. Como diz Freitas (1994), Bakhtin é um autor que permite muitas entradas, na medida em que seus estudos abarcam muitas áreas do saber (a linguística, a crítica literária, a semiótica, a antropologia, a cultura, a filosofia, a estética, a teologia, a psicologia e a psicanálise), mediadas por sua concepção de linguagem como produção de sentido, que funciona como uma chave de leitura para abrir os caminhos de investigação por entre inúmeros campos do conhecimento.

Na tentativa de ampliar a compreensão de Bakhtin em seu contexto de ideias, sem impor ao seu pensamento uma unidade que ele não tem, Todorov propõe que pensemos nele como diferentes linguagens ou períodos. Assim, nomeia um desses períodos como sociológico ou marxista, em que Bakhtin faz a crítica da psicologia ou da linguística subjetivas, criticando essas disciplinas por conceberem suas teorias calcadas em uma concepção do homem sozinho no mundo. Também se contrapõe às teorias empiristas que se limitam ao conhecimento dos produtos observáveis da interação humana. Ao contrário dessas visões, ele afirma o caráter primordial do social, no qual a linguagem e o pensamento, constitutivos do homem, são necessariamente intersubjetivos.

A epistemologia das ciências humanas segundo Mikhail Bakhtin

Refletir sobre a construção da epistemologia das ciências humanas a partir da filosofia da linguagem de Mikhail Bakhtin exige do pesquisador dessa área enfrentar um desafio inicial, ou seja, a caracterização do que é conhecer um objeto e o que é conhecer um indivíduo, outro sujeito cognoscente. Para Bakhtin, essa distinção é fundamental, pois permite ao pesquisador caracterizar cada elemento, objeto e sujeito, em suas especificidades, nos seus próprios limites. Ao pensarmos no conhecimento que pode ser elaborado quando o sujeito se depara com um objeto, ou seja, a pura coisa, dotada apenas de aparência, desprovida de interioridade, observa-se que ela (a pura coisa) pode ser totalmente revelada por um ato unilateral do sujeito cognoscente e, portanto, tal conhecimento é da ordem do interesse prático. Em contrapartida, quando o sujeito cognoscente abre-se para o conhecimento de outro indivíduo, deve conservar certa distância, ao mesmo tempo em que se deixa afetar pelas questões que dizem respeito aos enigmas inteiramente humanos.

Abrir-se para o outro é, em certa medida, permanecer também voltado para si. O critério que orienta esse tipo de conhecimento não pretende alcançar exatidão, mas se preocupa com a densidade e a profundidade do que é revelado a partir do encontro do sujeito cognoscente (o pesquisador) e seu outro. O pesquisador do campo das ciências humanas está, portanto, transitando no terreno das descobertas, das revelações, das tomadas de conhecimento, das comunicações, das produções de sentido entre o eu e o outro. Nesse âmbito, vale destacar a importância dos segredos, das mentiras, das indiscrições, das ofensas, dos confrontos de pontos de vistas que inevitavelmente acontecem nas relações entre humanos. Vale dizer que aqui não importa o “certo” ou o “errado”, pois esse critério pertence ao interesse e registro de uma verdade que se pretende universal e que tem a pretensão de ser comprovada e validada a partir de critérios de exatidão. A exatidão pressupõe a coincidência da coisa consigo mesma, sendo apenas necessária quando estamos voltados para a assimilação prática das coisas que estão no mundo. Bakhtin, quando distingue o conhecimento produzido no interior das ciências exatas do conhecimento no âmbito das ciências humanas, diz o seguinte:

As ciências exatas são uma forma monológica de saber: o intelecto contempla uma coisa e emite um enunciado sobre ela. Aí só há um sujeito: o cognoscente (contemplador) e falante (enunciador). A ele só se contrapõe a coisa muda. Qualquer objeto do saber (incluindo o homem) pode ser percebido e conhecido como coisa. Mas o sujeito como tal não pode ser percebido e estudado como coisa porque, como sujeito e permanecendo sujeito, não pode tornar- se mudo; consequentemente, o conhecimento que se tem dele só pode ser dialógico. (Bakhtin, 2003, p. 400)

A epistemologia das ciências humanas de Bakhtin, pautada em sua filosofia da linguagem, tem como premissa problematizar a forte presença do positivismo no pensamento ocidental moderno, criando outra possibilidade de se produzir conhecimento no interior das ciências humanas. Ao levar em conta a particularidade do encontro do pesquisador com o seu outro e, consequentemente, a especificidade do conhecimento que pode ser gerado a partir dessa condição, o que se destaca é a produção de um conhecimento inevitavelmente dialógico e alteritário. Para Bakhtin, há que se considerar a complexidade do ato bilateral e da profundidade do conhecimento que se constitui e se revela na relação dialógica eu-outro. Dialogismo e alteridade, na obra de Bakhtin, são conceitos que não podem ser pensados separadamente. Alteridade, na sua concepção, não se limita à consciência da existência do outro, tampouco se reduz ao diferente, mas comporta também o estranhamento e o pertencimento. O outro é o lugar da busca de sentido, mas também, simultaneamente, da incompletude e da provisoriedade. Essa perspectiva apresenta a condição de inacabamento permanente do sujeito, o vir-a-ser da condição do homem no mundo. Assumir o dialogismo e a alteridade como marcas das relações estabelecidas no contexto da pesquisa significa compreender o encontro com o outro, nesse contexto, para compartilhar experiências, conhecimento e valores que se alteram mutuamente. O sujeito da pesquisa é visto como alguém cuja palavra se confronta com a do pesquisador, exigindo-lhe resposta. Em contrapartida, a palavra do pesquisador recusa-se a assumir a aura da neutralidade e integra-se à vida, participando das relações e das experiências, muitas vezes contraditórias, que o encontro com o outro proporciona. O autor sublinha que o objeto das ciências humanas é o ser expressivo e falante e que esse ser nunca coincide consigo mesmo, sendo por isso inesgotável em seu sentido e significado.

A investigação se torna interrogação e conversa, isto é, diálogo. Nós não perguntamos à natureza e ela não nos responde. Colocamos as perguntas para nós mesmos e de certo modo organizamos a observação ou a experiência para obtermos a resposta. Quando estudamos o homem, procuramos e encontramos signos em toda parte e nos empenhamos em interpretar o seu significado. (BAKHTIN, 2003, p. 319)

Desse modo, o conhecimento que se revela a partir do encontro do pesquisador com o outro não pode, ele mesmo, ser forçado a um enquadramento que o limite, mas deve se manter livre e, ao se manter livre, não oferece garantias. As ciências exatas procuram garantias, buscam explicar o que permanece imutável em todas as mudanças. Em síntese, buscam encontrar a finalização de uma análise em um dado texto. Mas a formação do ser não pode ser engessada, capturada por um ato de conhecimento que transforme o ser em um único texto. A formação do ser deve estar livre para correlacionar um dado texto com outros textos possíveis. Cabe às ciências humanas encontrar as estratégias metodológicas que deem conta dessa dimensão de liberdade que deve ser a principal garantia para nos mantermos, como pesquisadores, fiéis à especificidade das ciências que estudam o homem. Dado que o conhecimento é provocado por uma pergunta, ele não pode se constituir na ausência de uma resposta. Não há resposta que não gere uma nova pergunta. Perguntas e respostas compõem a engrenagem que movimenta a construção do sentido e do conhecimento na pesquisa.

Perguntas e respostas não são relações (categorias) lógicas; não podem caber em uma só consciência (una e fechada em si mesma): toda resposta gera uma nova pergunta. Perguntas e respostas supõem uma distância recíproca. Se a resposta não gera uma nova pergunta, separa-se do diálogo e entra no conhecimento sistêmico, no fundo impessoal. (BAKHTIN, 2003, p. 408)

Vale dizer que, ao assumirmos a teoria da linguagem de Bakhtin como fundamento de nossas preocupações epistemológicas no âmbito da pesquisa em ciências humanas, o ato mesmo de pesquisar passa a se constituir a partir de uma peculiaridade que precisa ser explicitada. O que importa aqui é apreender aquilo que é da ordem da singularidade da experiência humana, ou melhor, tudo que seja revelação de novidade e criação, em detrimento da busca por explicações do que permanece imutável no sujeito.

Há no encontro do pesquisador e seu outro um compromisso ético com a produção de um conhecimento desinteressado.4 Bakhtin, ao apontar para essa necessária condição de produção de conhecimento nas ciências humanas, traz à tona o tema da ética na pesquisa. Esse tema é anunciado em uma de suas primeiras manifestações na imprensa, na forma de um pequeno e denso texto intitulado Arte e responsabilidade, de 1919. Nesse texto, Bakhtin afirma alguns aspectos importantes relativos ao compromisso ético da arte com a vida, que serão aqui retomados para incitar a reflexão sobre o pesquisador e seu compromisso ético na produção do conhecimento nas ciências humanas. Para o autor, quando um conhecimento é puramente mecânico, unindo seus elementos - ciência, arte e vida - no espaço e no tempo por uma relação externa, não penetra a unidade interna do sentido. Vejamos alguns excertos desse texto em que o autor faz crítica ao modo como o conhecimento produzido no âmbito da ciência e da arte, por ser frequentemente instrumental, além de não ser desinteressado, não pode estar verdadeiramente integrado à unidade da experiência do indivíduo.

Os três campos da cultura humana - a ciência, a arte e a vida - só adquirem unidade no indivíduo que os incorpora à sua própria unidade. Mas essa relação pode se tornar mecânica, externa. Lamentavelmente, é o que acontece com maior frequência. [...] O que garante o nexo interno entre os elementos do indivíduo? Só a unidade da responsabilidade. Pelo que vivenciei e compreendi na arte, devo responder com a minha vida para que todo o vivenciado e compreendido nela não permaneçam inativos. [...] O poeta deve compreender que a sua poesia tem culpa pela prosa trivial da vida, e é bom que o homem da vida saiba que a sua falta de exigência e a falta de seriedade das suas questões vitais respondem pela esterilidade da arte. [...] Arte e vida não são a mesma coisa, mas devem tornar-se algo singular em mim, na unidade da minha responsabilidade. (BAKHTIN, 2003, p. 1-2)

É importante perceber que, nessas citações, Bakhtin mostra sua crença na singularidade da experiência subjetiva e nos convida a perceber que ela se nutre no campo da vida, dos acontecimentos em que somos habitados pelas vozes de muitos outros. É aí que ele convoca o Ser a viver sua existência sem escapar da responsabilidade que lhe cabe na unicidade de sua vida. A intenção aqui é refletir sobre a responsabilidade tanto do pesquisador como do artista, uma vez que o ato de pesquisar, bem como o ato de criação de um objeto artístico, pode ser entendido como acontecimentos únicos. No caso da criação artística, esse momento singular e único acontece, inicialmente, entre o artista e seu objeto de criação e, posteriormente, entre o objeto criado e o contemplador da obra. No caso da pesquisa, podemos nos referir a dois momentos distintos e complementares, o encontro entre o pesquisador e seu outro e, posteriormente, entre o pesquisador e a escrita do texto que pretende mostrar, para um leitor potencial, o que se viveu durante a experiência da pesquisa realizada. Em ambos os casos, o que está em pauta é a responsabilidade do ato de mostrar na obra o conhecimento que foi gerado.

O texto em que Bakhtin trata especificamente desse tema é um escrito de sua juventude, intitulado Para uma filosofia do ato, que até quase o fim de sua longa vida permaneceu desconhecido.5 Esse texto foi produzido entre 1919-1921 e é reconhecido como um dos seus textos mais antigos e, curiosamente, manteve-se inacabado. Nele, Bakhtin constata uma cisão entre o pensamento teórico discursivo (das ciências, da filosofia e da arte) e a experiência histórica do ser humano no acontecimento real de sua existência, expressa num conjunto de atos ou ações no campo da vida. Ou seja, o aspecto abstrato do pensamento teórico que pretende explicar os atos humanos na vida, ao funcionar como um pensamento ou juízo universalmente válido, só tem valor na medida em que permaneça em seu domínio apropriado, ou seja, o domínio teórico.

Bakhtin manifesta seu incômodo em relação ao juízo universalmente válido6 porque, para ele, embora esse esteja incluído na avaliação de qualquer ato ou ação individual, não esgota a compreensão desse ato em sua singularidade. No entendimento do filósofo, a vida de alguém, como um conjunto singular de pensamentos e atos realizados, compõe uma experiência que escapa à pretensão de um juízo universalmente válido, pois esse, em sua imaterialidade, é completamente impenetrável à materialidade da existência situada e responsável de alguém. Assim, cada um que esteja pensando e, portanto, seja responsável pelo seu ato de pensar, não está presente no juízo teoricamente válido, ou por outra, a vida singular de cada um de nós não existe em uma perspectiva de veridicidade formal ou teórica. Nesse sentido, o pensamento de Bakhtin postula a existência de dois mundos que se confrontam e que não mantêm absolutamente comunicação entre si - o mundo da vida e o mundo da cultura. O mundo da vida, sendo o único em que nós contemplamos, criamos, vivemos e morremos, é também o mundo que oferece um lugar para os nossos atos, os quais são realizados uma única vez no decorrer singular e irrepetível da nossa vida realmente vivida e experimentada. E o mundo da cultura é aquele no qual os atos da nossa atividade são objetivados ou representados.

Bakhtin deixa claro que não há um plano unitário e único que possa determinar uma relação de unidade entre esses dois mundos: pelo contrário, o mundo da vida e o mundo da cultura são impenetráveis. Somente o evento único da existência do Ser, em seu acontecer, pode constituir essa unidade. Desse modo, a expressão de um conteúdo teórico ou estético deve ser determinada como um momento constituinte do evento único da existência do Ser, embora esse momento não seja mais visto em termos teóricos ou estéticos e sim como um ato ou ação responsável. O ato responsável instaura um plano unitário e singular que se abre em duas direções: na construção de seu sentido ou conteúdo e na construção do próprio Ser como evento único. Assim, no ato se unificam o mundo da cultura e o mundo da vida, ou seja, a responsabilidade do ato é a única via pela qual a perniciosa divisão entre a cultura e a vida poderia ser superada (BAKHTIN, 2010).

Para Bakhtin, tomar o dever como a mais alta categoria formal é a expressão de um equívoco, pois ele só pode funcionar como fundamento ou marcar uma presença real de referência na vida singular de alguém em um tempo histórico concreto em que a vida desse alguém se desenrola. Ainda assim, ele se apresentará como referência em relação à qual alguém sempre poderá se posicionar. Para Bakhtin, o momento da veridicidade teórica é necessário, mas não suficiente, para fazer de um juízo um juízo de dever para mim. O fato de um juízo ser verdadeiro não é suficiente para transformá-lo num ato de dever do pensamento (BAKHTIN, 2010). Ao pensar sobre o dever, Bakhtin argumenta que, se ele fosse um momento formal de juízo, não haveria ruptura entre o campo da vida e o campo da cognição ou campo da cultura, o que não acontece de fato. A afirmação de um juízo como verdadeiro depende de sua relação com certa unidade teórica; entretanto, essa unidade teórica, ainda que consistente, não é, de modo algum, a unidade histórica da minha vida (BAKHTIN, 2010).

De que modo Wittgenstein participa dessa reflexão?

É necessário retomar as diferenças da reflexão wittgensteiniana a partir de dois momentos distintos.

Já vimos que o primeiro Wittgenstein trabalhava com a lógica em um período da história da filosofia em que ela foi considerada como linguagem ideal, compreendida como ciência normativa de juízos que estudava as leis normativas do pensamento, ou seja, de que maneira as inferências deveriam ser conduzidas, o que deveria ser concluído das premissas dadas, etc. Nessa fase, Wittgenstein foi um pensador extremamente rigoroso que, ao enfrentar os impasses da lógica, buscava solucionar, de vez, os problemas epistemológicos da filosofia. Por dez anos, o filósofo abandonou seu ofício, acreditando que tinha desincumbido- se de sua tarefa ao concluir o Tractatus, sua única obra publicada em vida. Ele a termina com uma de suas mais conhecidas afirmações: “Sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar” (WITTGENSTEIN, 1921/2001). Esse encerramento peremptório conclui uma complexa reflexão que tentaremos simplificadamente explicar.

Por esse tempo, Wittgenstein, ligado à lógica, mostrava-se partidário de uma racionalidade altamente seletiva e restritiva. Era também um pensador quase místico e, para propor a ética como um dos grandes temas humanos, trouxe para sua reflexão o campo da transcendência, o “fora do mundo”.

O jovem Wittgenstein trabalhava com Frege e Russell e participava de suas crenças quanto à possibilidade da descrição científica do mundo por meio das técnicas de análise lógica. Mas também foi influenciado por Mauthner, que, ao radicalizar sua crítica em relação à linguagem, manifestou sua descrença na capacidade da linguagem para descrever a realidade, razão pela qual deveríamos parar de fazer perguntas e nos refugiar no silêncio místico. Na verdade, Wittgenstein assumiu grande desafio ao tentar conciliar a análise lógica com o projeto ético. Para Giron (2002), o filósofo almejou conciliar o idealismo transcendental, característico da cultura alemã, com a filosofia britânica. Assim, na cabeça do filósofo juntaram-se os dois hemisférios do planeta filosófico do século XX, que ele tentaria ultrapassar por meio de uma filosofia aforística, fragmentária e radical, tarefa própria do que se poderia chamar de “gênio romântico”. O fato é que Wittgenstein, para dar conta de sua tarefa, optou por estabelecer, no interior da própria linguagem, o que poderia ser ou não ser dito.

O Tractatus mostra o quão rigidamente ele traçava os limites do pensamento, pois esse funcionaria para representar configuração de objetos, nada mais. Nessa estreita concepção de racionalidade, o que escapava da representação como imagem de fatos era considerado nonsense (sem sentido). Nesse contexto de ideias, podemos entender que a ética não pertenceria à categoria do que poderia ser pensado, ou seja, representado na linguagem, ou ainda, dito:

Eu só poderia descrever meu sentimento a este propósito por esta metáfora: se um homem pudesse escrever um livro sobre a ética, que fosse realmente um livro sobre ética, este livro, como uma explosão, aniquilaria todos os outros livros deste mundo. [...] A ética, se ela existe, é sobrenatural, enquanto que nossas palavras só querem exprimir fatos. (Wittgenstein , 1929/1992, p. 145, 147)

Numa conferência sobre ética, Wittgenstein tenta deixar clara sua compreensão que nossas expressões religiosas e éticas mostram um emprego abusivo da linguagem porque nossas palavras, ainda que tentem, não são capazes de transmitir significação. Ele as compara a uma xícara de chá, que não conterá mais que o seu recipiente ainda que despejemos nela um litro d’água. O filósofo constatava que havia uma tendência nobre do ser humano em empurrar os limites (ou muros) da linguagem e toda essa tentativa é ética, apesar de não haver esperança quanto a essa possibilidade. Esse é o sentido da afirmação de que a ética, como um dos grandes temas humanos, não pode ser dita, só pode ser mostrada.

O segundo Wittgenstein, apesar de ter sua reflexão ligada à tradição filosófica da lógica, rompe com essa tradição ao transferir seu interesse para a linguagem ordinária. Ao se dedicar a analisá-la, Wittgenstein percebe que a multiplicidade de significados de seus termos é derivada de seu uso e, desse modo, o filósofo percebe que a linguagem ordinária se opõe à doutrina de uma linguagem ideal, logicamente perfeita. Assim, nessa fase passou a concentrar-se numa cuidadosa discussão sobre nosso uso ordinário da linguagem.

O conceito de jogos de linguagem é uma formulação central na teoria de linguagem do segundo Wittgenstein. Ele o introduz, dizendo que esses jogos são as formas de linguagem com as quais uma criança começa a falar. Segundo o filósofo, essas formas primitivas de linguagem aparecem sem o confuso pano de fundo de processos de pensamento mais elaborados e complicados. Desse modo, chama a atenção para as formas simples de linguagem para nos mostrar que o que vemos são atividades, reações, que são claras e transparentes. Para ele, essas formas simples de linguagem não são separadas por uma ruptura de nossas formas de linguagem mais elaboradas. Na verdade, podemos construir formas mais complicadas a partir das mais primitivas, acrescentando, gradualmente, novas formas (WITTGENSTEIN, 1965). Assim, já em meados dos anos 1930, podemos falar da concepção wittgensteiniana de formas de vida.

Wittgenstein chama as regras para o uso das palavras e expressões de gramática de uma linguagem: como essas não têm um só uso essencial a elas, seu significado vem dos sistemas concretos ou jogos de linguagem em que nós as empregamos, ou seja, seus significados se manifestam em suas condições de uso. Além disso, sendo os critérios que regulam nossos jogos de linguagem construídos em contextos sociais concretos, a análise de uma linguagem envolve a abrangência de um todo social que existe em práticas de uma comunidade e não, somente, um objeto psicológico que existe “entre as orelhas de um falante”. Desse modo, são as práticas de uma comunidade linguística que estabelecem os padrões para o uso de palavras e expressões e a própria linguagem é concebida como uma prática social. Esse é o sentido da linguagem como parte de uma forma de vida.

A própria noção de jogo de linguagem fortalece a ideia que as expressões linguísticas somente podem ser entendidas se percebemos como elas estão integradas em padrões de atividade. Por isso, podemos dizer que são inumeráveis os jogos de linguagem, segundo as variadíssimas funções de utilização de nossas palavras e expressões para os diferentes fins de nossa vida.

É importante mencionar que, para o primeiro Wittgenstein, o limite da linguagem e do pensamento era dado pela essência deles mesmos, sendo o eu (falante/pensador) totalmente impotente para alterar aqueles limites. Porém, à medida que a linguagem passa a ser concebida como parte de uma forma de vida, esses limites são compreendidos como função que nós exercemos na vida e eles não são, absolutamente, rígidos. Essas marcações, uma vez definidas, podem ser redefinidas ou mesmo ignoradas. Ainda que tenhamos que sofrer alguma penalidade, certo grau de liberdade é possível.

Para sermos coerentes com a filosofia do segundo Wittgenstein, não poderíamos conceber a ética como algo fora do que conseguiríamos pensar ou dizer; no entanto, o filósofo fez silêncio sobre o tema em sua filosofia tardia. Tal silêncio dá muito que pensar e é preciso muito cuidado para entendê-lo em sua profundidade. Para Bouveresse (1973), um dos estudiosos do pensamento do filósofo, no entendimento de Wittgenstein, os julgamentos que fazemos só têm sentido tendo por referência um sistema. Mas será um equívoco supor que os diferentes sistemas se remetem, implicitamente, a qualquer coisa estabelecida definitivamente. Certamente podemos apontar razões quando julgamos. Porém, fazer isso é uma atividade que obedece a regras humanas e que é reveladora não de algo superior, mas essencialmente da maneira segundo a qual nós pensamos e vivemos. Nesse sentido, o silêncio de Wittgenstein advém de uma crença: que não existe um só sistema a partir do qual pudéssemos estudar a ética em sua essência ou pureza. Na verdade, empregamos o termo “ético” em sistemas de pensamento variados e, para a filosofia, essa variedade é algo importante no entender do filósofo.

Para Wittgenstein, a ideia da avaliação da conduta de alguém (feita até mesmo por esse alguém) só é possível no interior de certo sistema que, por sua vez, constrói o sentido para algumas maneiras comuns de se pensar e agir, ou seja, para certa forma de vida.

No pensamento de Wittgenstein, é muito importante destacar a tensão permanente entre o jogo de linguagem próprio de cada cultura, o qual inevitavelmente molda em grande parte a produção subjetiva, e o jogo de linguagem singular e subjetivo que, em face de situações na vida, pode ser criativo, surpreendente e, até mesmo, transformador.

A visão do filósofo pode nos dar a impressão que, em matéria de ética, não pode haver deliberação nem discussão ou certeza. Mas, como nos ajuda a ver Bouveresse (1973), é errado sugerir que pela sua proposta não poderia haver um debate real sobre um problema ético ou um sistema ético, ou que uma decisão ética, que não se baseia em nenhuma razão propriamente verdadeira, não pode ser justificada. Ou ainda que, quando as pessoas discordam sobre uma questão moral, elas nunca chegarão a uma posição comum, ou mesmo que eu nunca possa estar absolutamente certo de que algo que eu, ou alguém, tenhamos feito seja o bem ou o mal. Na verdade, nós deliberamos e discutimos frequentemente sobre problemas que envolvem decisões éticas e até podemos chegar, depois de certo tempo, a respostas e soluções para algumas situações. Porém, isso não quer dizer que existe de antemão uma resposta para ser aplicada a todos os casos, ou que nós podemos sempre achá-la e convencer qualquer um que é uma boa resposta ou solução. Quando encontramos, por assim dizer, a solução de algum problema, isso simplesmente significa que nós nos ativemos a certa maneira de considerar os vários aspectos da situação e que isso passou a nos satisfazer. Assim, para Wittgenstein, o procedimento que consiste em produzir e inventar razões é muito importante em filosofia, ainda que tal procedimento nunca faça que uma boa razão funcione como tal em todos os casos. Desse modo, deve haver, e há de fato, no contexto de decisões éticas, influências da educação, persuasão, acordos, etc. Mas, ainda assim, a ideia de que uma concordância de pontos de vista é possível, desde o começo, porque se trata de ver as coisas “como elas são”, é completamente desprovida de sentido. Como nos diz Bouveresse (1973), uma pessoa pode estar certa do que deve fazer ou pode ter certeza de que uma ação é boa ou má, da mesma forma que sabe que dois e dois são quatro. Mas isso não significa que ela possa partilhar sua certeza do mesmo modo que poderia convencer alguém da verdade de uma proposição matemática. Na verdade, essas questões não são triviais e não devem ser descartadas sob a alegação de relativismo. Elas nos mostram, sem dúvida, que a decisão deve vir da pessoa que está implicada na situação. Não se pode negar, então, que o problema nunca será o mesmo de uma pessoa a outra. Por tudo isso, no contexto das decisões éticas, constata-se uma tendência muito característica no pensamento de Wittgenstein em considerar que um “problema moral” implicaria, antes de tudo, uma resolução pessoal, mas não como um problema que pode ser resolvido segundo normas construídas pessoalmente ou privadamente, mas um problema que se coloca à pessoa, à singularidade da experiência de cada um.

Sobre a ética, um acordo possível?

O que vimos até aqui nos mostra que, ao pensar sobre a ética, Bakhtin e Wittgenstein se depararam com algumas questões similares.

O segundo Wittgenstein opta pela recusa a qualquer teoria para falar sobre ética. Também poderíamos dizer que a ética deveria ser mostrada, de modo que uma coerência entre nossas palavras e ações a apresentasse em nossos atos na experiência vivida em suas várias modalidades. Nesse sentido, a cada um de nós caberia agir, tomar decisões e fazer escolhas ao longo de toda a vida. Já vimos, também, que as escolhas e decisões, embora sejam questões que se apresentam à compreensão de cada um, têm como base critérios construídos socialmente, no sentido que esses farão parte do que levaremos em conta para agir; ou seja, nossos atos, palavras e pensamentos vão mostrar de que maneira nos posicionamos em relação a esses critérios.

No caso de Bakhtin, apesar do desconforto, ele mantém a existência do mundo teórico como referência necessária. Na verdade, seu pensamento, ao postular dois mundos impenetráveis, o mundo da cultura e o mundo da vida, mantém uma tensão que se manifesta em sua exposição da seguinte maneira:

O homem contemporâneo sente-se seguro de si, prospero e inteligente, quando ele próprio não está essencialmente e fundamentalmente presente no mundo autônomo de um domínio da cultura e de sua lei de criação imanente. Mas ele se sente inseguro, deficiente e destituído de compreensão, quando se trata dele mesmo, quando ele é o centro emissor de atos e ações responsáveis, na vida real e única. Isto é, nós agimos com segurança apenas quando o fazemos não como nós mesmos, mas como alguém possuído pela necessidade de significado imanente de algum domínio da cultura. (Bakhtin, 1993, p. 33)

Como explica Amorim (2006), o pensar verdadeiro se torna um dever ético ao correlacionar a verdade com o ato de pensamento real. Assim, a responsabilidade por aquilo que penso em um dado momento, ou seja, a assinatura do meu ato de pensar, concretiza o dever ético. A assinatura é o que me compromete com o dever e não uma proposição teórica: essa não me obriga a nada. A verdade da situação está no que se apresenta como singular, no que surge e é totalmente novo, algo que nunca existiu e nunca se repetirá.

Essa complexa exposição de Bakhtin se assemelha à reflexão de Wittgenstein quando ele acaba por descartar a existência de uma verdade ou juízo universalmente válido. Para Wittgenstein, a existência de uma verdade universal tornaria a adesão a ela uma necessidade lógica em termos de realização. Bakhtin, no entanto, mantém a validade da verdade em si, apesar de reivindicar o ato ou ação responsável como condição para que ela, a verdade, ao se mostrar no campo da vida, supere a divisão entre o mundo teórico e o mundo da experiência vivida. Aliás, é no apego à dimensão da experiência vivida, como um lugar de pensamentos, atos e linguagem humanos, que o olhar dos dois, sem dúvida, se encontra e a conversa entre eles adquire um tom de concordância.

Ao problematizar a abstração do mundo teórico, Bakhtin parece ficar preocupado em não cair num relativismo puro e simples e talvez por isso afirme a “autonomia da verdade em sua pureza”. Ele argumenta que é precisamente pela condição de ser pura que ela pode participar responsavelmente no Ser-evento e, assim, “a validade da verdade é suficiente por si, absoluta e eterna, e um ato de cognição responsável leva em conta essa peculiaridade sua” (BAKHTIN, 1993a, p. 27). Em contrapartida, quando focaliza o campo da vida, o filósofo constata que não se pode falar de nenhuma espécie de normas éticas, de nenhum dever com determinado conteúdo, pois ele não teria um conteúdo especificamente teórico. Bakhtin explica que o dever apareceria em conjunto com qualquer coisa válida em seu conteúdo, mas nenhuma proposição teórica contém o momento do dever, nem é fundada por ele. Aqui, Bakhtin se aproxima bastante do segundo Wittgenstein, pois, como explica Liapunov7 (1993), no prefácio à edição americana de Toward a philosophy of the act, o filósofo, ao discutir o dever como uma espécie de problema moral, também se afasta da crença ilusória na existência de uma ética absoluta e autossuficiente. Segundo Liapunov, de um lado, a experiência mostra que o domínio da “ética como tal” ou “ética pura” é apenas uma posição formal que introduz o que “deve ser”. Em contrapartida, a ética “não dogmática” ou “sem pressuposição” não nos dirá exatamente o conteúdo do dever, ou seja, o que deveria fazer o sujeito do dever ou em que bases esse dever está fundado. Nesse sentido, podemos pensar que Bakhtin situou-se diante dessa questão, focalizando o princípio ético como um modo de relacionar-se com valores e não uma fonte de valores. Daí a fundamental responsabilidade do ato na vida como evento singular, daí o não álibi na existência do Ser. Um ato, ou ação responsável, guarda o reconhecimento da obrigatória singularidade da minha vida, vista tanto como necessariamente dada, quanto também projetada como algo-ainda-por-ser-alcançado, ou ainda como ação a se realizar.

Considerações para a continuidade do diálogo

No início deste artigo nos propusemos a refletir sobre a construção de uma epistemologia das ciências humanas a partir das contribuições de Bakhtin e Wittgenstein. A compreensão em relação à proposta teórica dos dois filósofos não se limita ao plano intelectual ou teórico: à medida que propõe mudanças na maneira de pensar, também gera consequências que darão o tom à metodologia da pesquisa e à tarefa do pesquisador. No que se refere a Bakhtin, vimos que ele convida o pesquisador a fazer justiça ao “objeto falante” de sua investigação, deixa-se afetar por ele, o que implica, desde o início, um tipo peculiar de coragem e interesse na dimensão intersubjetiva das formas de pensar e agir.

Quanto a Wittgenstein, seu trabalho incansável de análise e esclarecimento o tornava consciente de que fazia, essencialmente, propaganda de certo estilo de pensamento; na verdade, uma contrapropaganda destinada a combater o pensamento que se cristaliza e impõe a hegemonia de um modo “correto” de ver as coisas. A crítica filosófica de Wittgenstein, ao combater a pretensão da explicação totalizadora e racionalista, nos convida a ver que os jogos de linguagem (inclusive científicos), estando associados a formas de vida, ou seja, sendo construídos por nós, dão sentido e consistência a termos que pertencem à inescapável lógica da pesquisa científica, impondo às ciências humanas a utilização de conceitos, tais como, justificação, explanação e razão, sem a devida problematização do sentido conferido a tais conceitos em determinados contextos.

Wittgenstein detecta que nosso pensamento, mergulhado em um determinado tempo histórico e cultural, não consegue se desvencilhar de certas formas de pensar, e nossos jogos de linguagem mostram essas formas mais ou menos estáveis de ver, ou compreender, a realidade dos acontecimentos que nos interessam. Mas, para o filósofo, o problema maior surge quando essas formas de ver cristalizam-se em figuras gramaticais e engessam nosso pensamento, na medida em que tais figuras gramaticais parecem representar a realidade objetiva das coisas em si mesmas e não um dos modos possíveis de sua representação na linguagem. Assim, o convite à alteração da nossa sensibilidade estaria na tentativa de nos libertar de padrões repetitivos de pensamento; a liberdade estaria, para Wittgenstein, em não haver, de antemão, “modo de ver as coisas”, no sentido de que a mente deveria passear livremente sem se prender a nenhuma conexão formal.

A proposta teórica de Bakhtin e Wittgenstein parece legitimar ou reintroduzir a subjetividade do pesquisador na tarefa de demarcar, enquadrar e explicitar os objetivos de sua pesquisa. A coragem necessária do pesquisador estaria em rejeitar as ilusórias garantias de esquemas interpretativos construídos a priori.

Em Bakhtin aparece o convite a um procedimento “desinteressado”, na medida em que o conhecimento do outro - o sujeito da pesquisa - requer despojamento. O filósofo alerta-nos quanto à nossa tarefa como pesquisadores e afirma a necessária condição do conhecimento dialógico no âmbito das ciências humanas. Para o autor, o monólogo solitário do pesquisador desconsidera a existência de outra consciência responsiva que possa proferir um discurso diferente ou até mesmo uma resposta que possa surpreender e alterar a própria consciência do pesquisador. Bakhtin chama a nossa atenção para o perigo de o pesquisador aderir ao monólogo, tornando-se, assim, surdo à resposta do outro, não reconhecendo nela a oportunidade decisiva de uma compreensão diferente, tanto da vida como das coisas do mundo. O pesquisador que “passa sem o outro” reifica toda a realidade. Pretende ser a última palavra (BAKHTIN, 2003).

É importante dizer que a proposta dessa concepção epistemológica, como nos diz Edwards (1982), um estudioso de Wittgenstein, não despreza nem diminui a atividade intelectual na interpretação da realidade do mundo, mas aproxima o pensar como forma de amar: “O olhar humano tem isto de próprio, ele pode dar valor às coisas; é verdade que então elas se tornam mais caras” (WITTGENSTEIN, 1929/2002, p. 52).

Assim, tanto para Bakhtin como para Wittgenstein, pensar se transforma numa extraordinária atenção para tudo aquilo que está diante de nós. Bakhtin dirá que a atenção “interessada”8 de alguém se fixa em torno daquele que é o único centro de valores, ou seja, o trabalho de construção se desenvolve em torno dele:

[...] desamor, indiferença, nunca serão capazes de gerar poder suficiente de demorar-se atentamente sobre um objeto, segurar e esculpir cada detalhe e particularidade nele, por mínimos que sejam. Apenas o amor é capaz de ser esteticamente produtivo; apenas em correlação com o amado é possível a multiplicidade plena. (Bakhtin, 1993, p. 81-82)

Tal atenção, ao exigir todo nosso cuidado e reconhecimento em relação ao inacabamento da nossa tarefa de descoberta, exige um pensamento responsável. Dessa maneira, nossa boa vontade não é suficiente para fazer frente à realidade que temos diante de nós: um paciente, flexível e extenuante trabalho espera nossa adesão ao compromisso de construir o sólido entendimento humano, para o qual já não se trata de heroicamente superar o mundo e sim de, com reverência, se dedicar à sua revelação. Nesse sentido, seria um grave erro imaginar que a visão do sólido entendimento humano possa desconsiderar o trabalho rigoroso, necessário a qualquer tipo de pensamento, seja ele artístico, filosófico ou científico. Cada um deles deve construir sua qualidade própria de atenção para cumprir o compromisso com a especificidade de sua tarefa.

REFERÊNCIAS

  • AMORIM, Marilia. Ato versus objetivação e outras oposições fundamentais no pensamento bakhtiniano. In: FARACO, Carlos Alberto; TEZZA, Cristovão; CASTRO, Gilberto (Org.). Vinte ensaios sobre Mikhail Bakhtin. Petrópolis: Vozes, 2006. p. 14-24.
  • Bakhtin, Mikhail. Para uma filosofia do ato. Tradução de Carlos Alberto Faraco e Cristovão Tezza. Austin: University of Texas Press, 1993a.
  • Bakhtin, Mikhail. Toward a philosophy of the act. Texas: University of Texas Press, 1993b.
  • Bakhtin, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
  • Bakhtin, Mikhail. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro & João, 2010.
  • Bouveresse, Jacques. Wittgenstein: la rime et la raison. Paris: Les Editions de Minuit, 1973.
  • Coutinho, Anamaria Ribeiro. On language and sensations: Wittgenstein on the language of inner experience (mimeogr.), 1988.
  • EDWARDS, James C. Ethics without philosophy: Wittgenstein and the moral life. Flórida: University Presses of Florida, 1982.
  • Freitas , Maria Teresa de Assunção. Vygotsky e Bakhtin. Psicologia e educação: um intertexto. São Paulo: Ática, 1994. 168 p.
  • Giron, Luís Antonio. Uma mente em chamas. Revista Cult, São Paulo, v. 60, p. 46-50, ago. 2002.
  • Hacker, Peter Michael Stephan. Wittgenstein and the autonomy of humanistic understanding. In: Allen, Richard; Turve y, Malcolm (Ed.). Wittgenstein: theory and the arts. London: Routledge, 2001. p. 39-74.
  • HOLQUIST, Michael. Prefácio. In: BAKHTIN, Mikhail. Toward a philosophy of the act. Austin: Universityof Texas Press, 1993.
  • PONZIO, Augusto. A revolução bakhtiniana: o pensamento de Bakhtin e a ideologia contemporânea. Tradução de Valdemir Miotello. São Paulo: Contexto, 2008.
  • Wittgenstein , Ludwig. The blue and brown books. New York: Harper Torchbooks, 1965.
  • Wittgenstein, Ludwig. Leçons et conversations surl’esthétique, la psychologie et la croyance religieuse. Paris: Gallimard, 1992. (1ª edição publicada em 1929).
  • Wittgenstein, Ludwig. Investigações filosóficas. Petrópolis: Vozes , 1996.
  • Wittgenstein, Ludwig. Tractatus logico-philosophicus. São Paulo: Edusp, 2001. (1ª edição publicada em 1921).
  • Wittgenstein, Ludwig. Remarques mêlées. Paris: Flammarion, 2002. (1ª edição publicada em 1929)
  • 1
    Pesquisa realizada durante Estágio Sênior na Université de Vincennes Saint Denis - Paris VIII, França, com apoio financeiro da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Capes.
  • 2
    Por conta dessas duas fases de pensamento bem marcadas, fala-se em primeiro e segundo Wittgenstein.
  • 3
    O texto On language and sensations: Wittgenstein on the language of innerexperience é de autoria de Anamaria Ribeiro Coutinho (1940- -2002), escrito em 1988, mas não publicado. O acesso a esse texto deu-se a partir de suas aulas no curso de pós-graduação do Departamento de Psicologia na PUC-Rio..
  • 4
    Segundo Ponzio (2008), um estudo comparativo das posições filosóficas de Bakhtin e Lévinas leva à compreensão mais profunda da consistência teórica da reflexão bakhtiniana. O conceito de “des-interesse” (dés-interessement) na obra de Lévinas coloca o indivíduo em uma situação de compromisso ilimitado, de responsabilidade absoluta como indivíduo, como único, um indivíduo que é insubstituível em sua responsabilidade. Também Bakhtin, desde seus primeiros ensaios, estabelece a relação de recíproco compromisso entre unidade, singularidade, não intercambialidade e responsabilidade, entendida como absoluta, sem “álibis”. Assim, a produção de conhecimento, para ele, não é resultado da ação de uma consciência que tematiza ou explicita a relação cognoscitiva sujeito-objeto, mas se dá na individualidade da minha vida responsável, na qual nenhum outro pode ocupar meu lugar
  • 5
    O nome de Bakhtin (1895- -1975) desapareceu da imprensa russa por quase um quarto de século, até mais ou menos 1963. No fim da vida, livre da extrema cautela que sempre precisou ter, admitiu para amigos próximos a existência de um esconderijo em que guardava seus primeiros escritos. O texto Para uma filosofia do ato (1993a) foi inicialmente traduzido por Carlos Faraco e Cristovão Tezza e circulou entre os leitores brasileiros, nos anos 1990, em forma de manuscrito. A versão utilizada atualmente é a publicação de 2010 (Pedro & João Editores). Segundo Liapunov, o responsável pela tradução da edição americana de 1993, nesse texto, em que faltavam as páginas de abertura, Bakhtin oferece a visão de um projeto que planejava realizar, ainda que esse escrito tenha permanecido inacabado. Reconhecido como um dos textos mais antigos de Bakhtin, foi provavelmente produzido entre 1919-1921. Consideramos importante constar na bibliografia as três publicações consultadas pelas autoras.
  • 6
    Segundo Holquist (1993), enquanto Bakhtin trabalhava em Para uma filosofia do ato, lia Kant em profundidade, bem como debatia e dava aulas sobre o filósofo. Assim talvez possamos considerar que esse texto foi uma espécie de réplica à mobilização que o pensamento de Kant operou no próprio Bakhtin, ou seja, a expressão do dialogismo na construção do conhecimento, uma ideia que Bakhtin veio a desenvolver mais tarde.
  • 7
    Notas de Vadim Liapunov (1993b), tradutor da edição americana da obra de Bakhtin Toward a philosophy of the act.
  • 8
    Aqui, vale a pena esclarecer uma aparente contradição: já vimos que, para Bakhtin, o pensador, em sua atividade intelectual “desinteressada”, mostra um compromisso ilimitado, uma responsabilidade total com o ato de pensar. Nesse sentido, para ele, o conhecimento desinteressado é desprovido de segundas intenções. Assim como para Wittgenstein, para ele, a atenção “interessada” e “singular” do pesquisador se manifesta no seu compromisso ilimitado frente ao seu objeto de pesquisa

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2017

Histórico

  • Recebido
    Mar 2016
  • Aceito
    Ago 2016
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