Um formato diferente
Apresentamos a seguir um conjunto de duas entrevistas com linguistas de diferentes tendências teóricas acerca da linguagem neutra. A linguagem neutra pode ser entendida, conforme entrevista feita por Magalhães (2022), como um formato para se referir a pessoas não binárias ou a um grupo de pessoas de diversos gêneros. Entre outros contextos, a linguagem neutra introduz uma forma de subverter o masculino genérico e que é respeitosa para se referir a pessoas que não se identificam com os pronomes “ele” e “ela”, associados ao feminino e ao masculino.
Sobre a linguagem neutra, de acordo com Oliveira (2023), existem diversas discussões, e o fenômeno pode receber diferentes tratamentos (dentro e fora dos estudos linguísticos). Essa heterogeneidade teórica, metodológica e mesmo fenomenológica pode ser comprovada também pela existência de diversas denominações que o fenômeno recebe, como, por exemplo: linguagem neutra, linguagem não binária, linguagem inclusiva, linguagem neutral, entre outras.
É relevante trazer essa conceitualização para quem nos lê, pois é necessário ter em mente o entendimento prévio do fenômeno para construir uma relação com as perguntas e respostas da entrevista. Isso cria uma base para que os leitores compreendam o contexto específico das discussões apresentadas nas entrevistas e a relevância do tópico. Esse tema, como é sabido, tem recebido atenção considerável tanto nos meios acadêmicos como na cultura em geral (imprensa, mídia, etc.). Assim, para o correto entendimento do que trazemos aqui, consideramos pertinente acompanhar as entrevistas de alguns comentários de natureza teórico-metodológica.
De início, é importante pontuar alguns aspectos relativos à forma de apresentação das entrevistas, colocadas aqui em conjunto. Ela não é, propriamente falando, comum. E isso se deve, na verdade, a um ponto específico: estão justapostas as opiniões de dois entrevistados, e não, como normalmente se faz, de apenas um. Ora, isso se deve ao tema abordado: a diversidade de discussões sobre a linguagem neutra1 não se circunscreve a apenas um ponto de vista. Nessa direção, acreditamos ser de uma riqueza considerável, de saída, já facultar à pessoa leitora a possibilidade de entrar em contato com a diversidade de pontos de vista.
Em segundo lugar, é fato que o assunto ultrapassa o debate acadêmico, estando presente nas redes sociais, nas salas de aula, nas conversas do cotidiano, entre outros. Facilmente, encontramos uma pluralidade de pontos de vista sobre o tema que vão desde a opinião de ativistas, favoráveis ao fenômeno, até pessoas que se insurgem contra o uso desse tipo de linguagem. O fato é que tais discussões têm repercussões práticas em diversas esferas de vida das pessoas: no âmbito escolar, sem dúvida, mas também no contexto familiar, no mundo do trabalho e nas relações institucionais. Enfim, de forma positiva e propositiva, não há unanimidade sobre a questão da linguagem neutra.
Em terceiro lugar, é indubitável que o tema seja caracterizado como transdisciplinar, havendo discussões a esse respeito nas mais diversas áreas do conhecimento: sociologia, antropologia, educação, filosofia, linguística, entre outras.
Nesse sentido, como será visto, o ponto de vista assumido pelas pessoas entrevistadas é o linguístico, e isso se deve, ao menos, a um motivo: a questão tem - em todas as arenas do debate - um forte apoio em argumentos de natureza linguística, o que nem sempre é feito de maneira correta ou imparcial. No entanto, nem sempre vemos os participantes desse debate fazerem uso de argumentos relevantes, quando avaliados de um ponto de vista linguístico. Portanto é fundamental que a informação respaldada cientificamente tenha ampla circulação. Somente assim podemos evoluir para uma discussão que seja proveitosa para todos.
Enfim, essas foram as circunstâncias que nos levaram a selecionar e entrevistar as pessoas especialistas. Tendo em vista a gama de discussões díspares sobre a questão da linguagem neutra, estas entrevistas surgem com a intenção de serem uma iniciativa de apoio ao debate bem fundamentado, de forma a apresentar diferentes perspectivas sobre o tema, o que pode contribuir para o campo de estudos da linguagem neutra.
As pessoas especialistas escolhidas para integrar este par de entrevistas são estudiosas da linguagem, todas pesquisadoras em instituições de ensino superior no Brasil. Essas pessoas foram escolhidas por acreditarmos que tenham um papel importante na formação de recursos humanos na área dos estudos da linguagem (professores, tradutores, etc.) entre nós. A todas, antecipamos os nossos agradecimentos.
A metodologia utilizada nas entrevistas teve um duplo enfoque: o da produção e o de sua aplicação. As perguntas produzidas são de dois tipos: há, incialmente, uma pergunta geral, identicamente formulada para cada pessoa entrevistada. Ao submetermos a mesma pergunta a diferentes pesquisadores, quisemos ilustrar a multiplicidade de pontos de vista que podem incidir sobre o tema. Como podemos notar, esse objetivo foi atingido. Em seguida, buscamos fazer uma pergunta específica para cada pessoa entrevistada, enfocando a sua área de especialidade.
Quanto à aplicação das entrevistas, assim procedemos: após um primeiro contato com os pesquisadores, via e-mail, em que explicamos nosso projeto, remetemos as questões, também via e-mail. Os pesquisadores, portanto, responderam às perguntas por escrito, sem nenhum limite quanto à extensão de suas respostas. As entrevistas são apresentadas da seguinte maneira: primeiramente, é trazida a pergunta geral com as respectivas respostas; em seguida, são colocadas as perguntas específicas.
Dito isso, é importante deixar claro ao leitor que o intento aqui não é formular uma perspectiva final ou síntese sobre o tema, até porque, como já dito, a linguagem neutra é um assunto que não permite apenas um ponto de vista. Acreditamos que, dando voz aos estudiosos e justapondo suas considerações sobre a temática, esse conteúdo poderá auxiliar outras pessoas que se interessam pela forma como a linguagem toca a vida de cada um de nós. Afinal, “bem antes de servir para comunicar, a linguagem serve para viver” (Benveniste, 2006, p. 222).
Questionamentos pertinentes
A seguir, encontram-se as primeiras perguntas feitas por um dos autores para cada uma das pessoas entrevistadas.
ARTHUR MARQUES DE OLIVEIRA (A.O.): Uma das grandes (e polêmicas) questões da atualidade sobre língua e linguagem - tanto dentro quanto fora do âmbito acadêmico - é a demanda por uma neolinguagem, linguagem neutra, inclusiva ou ainda não binária. Tendo em vista essa demanda, que aspectos, na condição de linguista, você considera relevantes para avaliar esse fenômeno?
IRAN FERREIRA DE MELO (I.M.): A.O., você sabe que a linguística é uma ciência ramificada em diferentes abordagens que costumamos chamar de disciplinas (Psicolinguística, Linguística Aplicada ao Ensino-Aprendizagem, Análise do Discurso, Pragmática...). É, portanto, uma grande árvore frondosa com muitos galhos que olham para o chão sob diferentes pontos de vista. Não deve ser novidade para você que parte da Linguística hoje tem se ocupado de problemas sociais que são desafios que as sociedades enxergam como obstáculos e que linguistas procuram, por meio de suas pesquisas, ajudá-las a superar.
Alguns desses problemas são tidos como desafios que impossibilitam que os povos vivam em condições de vida, com garantia de igualdade aos seus direitos básicos. Para exemplificar, muito restritamente, posso mencionar, dentre esses problemas, o racismo, a heteronormatividade,2 a xenofobia, etc. Sendo assim, a linguística hoje é também uma ciência social que pode engajar-se em projetos para a transformação da sociedade.
Em um mundo marcado por um legado cisnormativo,3 que classifica as pessoas em homens e mulheres, todas as outras possibilidades de viver o gênero são marginalizadas em um sistema de mundo que não as reconhece como possíveis. Desse modo, A.O, essa falta de reconhecimento abre espaço para o surgimento de uma preocupação crítica com o valor do gênero nas diversas culturas, especialmente em um mundo moldado pela cisnormatividade, uma vez que esse é um modelo que intensifica as desigualdades estruturais.
Para abordagens de uma Linguística com esse viés, as realidades empírica e metafísica são sempre informadas pela linguagem. Não é diferente com as ideologias e as práticas normativas. Todas elas são constituídas por linguagem, sabe? Cabe, portanto, a quem pesquisa nesse tipo de Linguística verificar como os problemas sociais se revelam pela linguagem, isto é, por uma dimensão da vida humana que é o discurso - o exercício regular das semioses que colocamos em prática comum no cotidiano.
O discurso como um trabalho cisnormativo acontece em diferentes contextos. Uma Linguística que interrogue a cisnormatividade por uma análise do discurso, ou seja, das práticas em sua dimensão semiótica, tem sido chamada hoje de Linguística Queer, uma vez que é escopo dessa perspectiva queerificar o trabalho de análise do discurso. E isso, A.O., é feito à medida que percebemos que é preciso questionar relações de poder, como a cisnormatividade, que normalizam corpos, desejos e subjetividades em nome de estruturas coloniais. O queer é compreendido como uma categoria de questionamento sobre normatividades e normalizações típicas da colonialidade, que alinham as existências humanas numa visão binária de mundo, relacionada a uma matriz cultural que corresponde tipos fixos de corpos biológicos a gêneros, desejos sexuais e práticas sexuais, de forma essencializada. Um bom exemplo disso se dá na concepção que costumamos chamar de heterossexualidade compulsória,4 qual seja, o imaginário que impõe a relação heterossexual a todas as pessoas a partir da relação heterogênea de duas possibilidades de vida: uma formada num corpo composto pelo sistema próstata-pênis-testículo e a outra pelo sistema útero-ovário-vagina, cujas generificações se dão, respectivamente, pelas identidades de homem e mulher; sendo, inclusive, essa relação heterossexual de caráter essencialista em termos de performance erótica-sexual, pois é definida a partir de práticas específicas denominadas ativas para o homem e passivas para a mulher.
Olha então o link, A.O. Cabe a uma Linguística Queer, seja ela sob qualquer modelo epistêmico (por exemplo, dos estudos enunciativos, sociolinguísticos, semânticos, entre outros, nas suas mais variadas vertentes), inquirir também a relação de poder instaurada na constituição de um corpo generificado, perguntando como atribuímos gênero a alguém. Numa sociedade como a nossa, o gênero é uma herança colonial, que nos modela pela divisão dicotômica da matriz cultural que eu mencionei; logo, divide-nos entre os espectros masculino e feminino, que têm seus arquétipos num ideal tipificado do masculino por meio do homem e do feminino pela mulher. Qualquer pessoa, como eu já falei, que não se identifique com uma apenas dessas vivências binárias não é abarcada pelo sistema cultural vigente.
Existem muitas pessoas que não se sentem confortáveis nesses arquétipos e são chamadas de não binárias. Elas, para realizarem as suas experiências de vida, além do dimorfismo de gênero convencional, lançam mão de recursos de linguagem que não correspondem aos modelos de discurso típicos do masculino e feminino. Isso está presente nas roupas, nos antropônimos, nas formas de tratamento e designação, dentre outros mecanismos das linguagens. Diante disso, surgem pesquisas na Linguística Queer que vão olhar para o esforço discursivo das pessoas não binárias de proporem modos de linguagem que lhe darão reconhecimento. Há inúmeros traços desse esforço que podem servir como aspectos a serem ressaltados.
Talvez, um desses aspectos que saltam aos olhos, A.O., seja a manifestação das expressões de gênero que tecnologizam o corpo físico não binário. Em outros termos, quero falar de algo que aparece como dado de linguagem antes mesmo de a palavra vir: a comum fusão entre expressões típicas do masculino e do feminino abrigadas no mesmo corpo, como barba e batom, saia e pelos nas pernas, entre outras. Essas expressões já apontam para uma política que instaura uma disrupção de gênero no corpo físico (em geral, porta de entrada para o exercício identitário), porque não ganha inteligibilidade na racionalidade binária tão comum. Mas outros aspectos também chamam a atenção, como as marcas de designação de gênero, que são formações de palavras atributivas ao gênero - presentes nas classes substantivo, adjetivo e artigo.
Tem havido um exercício muito comum implementado por pessoas não binárias de romper construções morfossintáticas correspondentes aos modelos gramaticais que funcionam para representar gênero (a exemplo de morfemas desinenciais de gênero). Isso acontece como nos casos do uso de um arquétipo estrutural para tentar criar uma outra saída diferente da marcação tradicional de masculino e feminino: no português, os morfemas “-o” e “-a”, comuns para, respectivamente, representações de homem e mulher, na terminação desinencial de muitas palavras dentre aquelas três classes que eu citei. Contudo, o morfema “-e” também é um modelo, mas não arquetípico de gênero (por isso, ele vem de uma herança de formas chamadas de neutras na língua latina). Ele é usado em substantivos como “estudante” - denominados comuns de dois gêneros -, que, embora tenham esse morfema final, não vão encontrar relação com outros vocábulos na sintaxe da frase (por exemplo, dizemos “o primeiro estudante”, e não “e primeire estudante”).
Desse modo, o que fazem, com isso, as pessoas não binárias? Ou usam a mesma estrutura de “estudante” para repetir a formação não arquetípica binária em palavras faladas e escritas dentro da convenção arquetípica, como a transformação de “menino” ou “menina” em “menine”, ou diante de palavras comuns de dois gêneros, como “integrante”, para alterar as construções a elas ligadas, a exemplo dos artigos e adjetivos, como em “e integrante capacitade”.
Em tempo, cabe ressaltar que o artigo é uma classe que sofre variação e mudança com menos frequência nessas disrupções - ao mesmo modo que na língua em geral -, por isso, vemos mais comumente algo como “o integrante capacitade”. Todavia pessoas não binárias têm mobilizado outros recursos ainda mais disruptivos para registrar suas identidades por meio da palavra. Notações anticonvencionais com a escrita portuguesa têm sido muito mobilizadas, por exemplo “@” (“alun@”), “x” (“alunx”), “_” (“alun_”) e elipse de letra para o lugar de uma representação escrita do morfema desinencial (“alun”). Todas essas formas são disrupções notacionais, só acontecem na escrita. Elas não têm pauta sonora convencional, como, por exemplo, quando falamos o morfema “-a”, que pronunciamos /a/. Esse é até um dos gargalos para o reconhecimento da linguagem não binária, pois muitas pessoas alegam não conseguir ler textos com essas notações e nos lembram de que, para uma audiodescrição, esses recursos não seriam potentes, já que aplicativos ledores para pessoas cegas não são capazes de dar conta de uma leitura de algo sem pauta sonora ainda.
A.O., é compreensível essa preocupação com a relação grafofônica, mas é importante lembrar que qualquer escrita é uma convenção e, por isso, somos capazes de criar modos para ler símbolos novos empregados nas palavras. Gosto de dar como exemplo o “#”, que lemos “hashtag”, uma forma de indexicalizar informações na web. Esse item foi acoplado às palavras compondo uma nova sintaxe nos últimos anos. Quando enunciamos “#forabolsonaro”, temos uma emergente maneira de escrever uma sentença que não possuíamos antes desse processo tecnológico indexicalizador - numa atitude analógica, por exemplo, em cartazes escritos à mão nos protestos de rua. Se lembrarmos as passeatas em favor do impeachment de Fernando Collor, vemos que lá escrevíamos nos cartazes algo como “Impeachment já!”. Com a hashtag, hoje, escreveríamos “#impeachmentja”, e leríamos “hashtag impeachment já”. A sonorização dessa leitura do indexicalizador nos aponta que é possível ler formas notacionais que não são típicas da língua.
Talvez uma saída, para ler, por exemplo, “todxs” seja oralizar “todas e todos” ou “todos e todas” ou “todes”. Os próprios sistemas de leitura em aplicativos, se são programados para serem usados com uma nova pauta sonora, conseguem ser ajustados completamente. Lembro- -me do uso da notação “o/a”, que ainda hoje temos dificuldade de ler em registros, como “professor/a”. Muitas pessoas passaram a oralizar “professor barra a”, mas também podemos dizer “professor e professora” ou “professor ou professora”. Vejamos, A.O., que aqui nós podemos mexer na língua. Por mais que dizer “hashtag” ou “barra” seja novo para nós, como uma atitude metalinguística, esse pode ser um normal que conseguiríamos assumir ao ler um texto com notações diferentes.
Neopronomes também têm sido muito usados para designar gênero não binário no nosso português. Trata-se de uma variação dos pronomes que indicam terceira pessoa, como “ele”, “dele”, “daquilo”. Formas como “ilu” e “elu” têm sido propostas, mas essas maneiras são ainda mais disruptivas do que o uso vocalizado do morfema “-e” que eu citei. É interessante que aqui não é apenas uma não identificação com a relação forma-função da morfossintaxe para transformar, digamos, “pesquisador” em “pesquisadore”, mas é primordialmente uma desidentificação com a função, por mais que se proponha uma nova forma. Se, no português, só temos “ele” e “ela” (e suas formas derivadas), ou seja, designações das funções masculino e feminino, as pessoas não binárias criam outra. Daí nascem os neopronomes. Mas, A.O., é bom lembrar que eles são muito guetalizados ainda. Têm pouca passabilidade linguística, que é o reconhecimento da norma de prestígio na nossa língua.
Além desses aspectos, ainda podemos considerar como disrupção de gênero, na língua portuguesa do Brasil, um uso corrente de formas típicas para a designação do feminino por palavras como “mulher”, “ela”, “mana” e outras, quando dirigidas a homens gays femininos, ou, como costumamos chamar, homens-bichas, em interações êmicas (de grupo). Gosto de chamá-lo de feminino-bicha. Você consegue enxergar, nesse uso, uma função disruptiva também da binariedade de gênero, A.O.?
Aqui, o tratamento é no feminino, em tom de ironia, pois não há nenhum interesse, entre os falantes, que as suas identidades de homem sejam questionadas. Há, sim, uma tentativa de mostrar, em certa medida, que dados das performances do que se convencionou chamar de feminino existem também no corpo, na vida, na linguagem de tais homens gays - homens afeminados, maricas. Constatar o atravessamento do feminino numa existência que se diz masculina é observá-la, A.O., como um ente fora da binariedade; é ver a performance significar, pela palavra, o gênero como movimento.
Além disso, esse dispositivo do feminino-bicha acaba por se tornar um contradiscurso ao masculino generalizante que costumamos usar no português - o típico tratamento pela via do masculino percebido como não marcado e dado a um grupo heterogêneo de pessoas. Estou-me referindo ao uso de “eles”, “alunos” e “moradores”, por exemplo, quando o coletivo ao qual se refere é formado não apenas por quem se reconhece e ganha reconhecimento como homem. O feminino-bicha é um mecanismo de ordem pragmática, que não altera a forma das palavras, por isso não sofre disrupção formal, mas é subversivo em relação à referencialidade, já que palavras que ele manifesta são usadas em direção a homens, e não a mulheres.
Podemos enxergar ainda a função disruptiva da binariedade numa marcação de feminino que altera a forma de palavras que, em geral, não marca a individualidade de uma pessoa, mas grupos de pessoas, territórios e ações coletivas. É o caso de marcações de palavras como “corpa”, “quilomba” e “mandata” para substituírem “corpo”, “quilombo” e “mandato”. A alteração do morfema que, entre outras funções, indica gênero gramatical masculino, como “-o”, de “corpo”, substituído por aquele que indica o feminino, “-a”, é um trabalho que transgride o funcionamento da semiose linguística no português em nome não de uma substituição de um suposto polo de gênero para um outro, mas em nome de um trabalho de provocação, a fim de mostrar que as estruturas masculinistas podem ser demolidas.
Quando a deputada de São Paulo Erica Malunguinho, travesti negra e nordestina, nomeia seu mandato de “mandata”, está interrogando o poderio masculino da nossa história por meio da língua e mostrando que existem outros corpos possíveis, não apenas o corpo alternativo da mulher, como arquétipo do tido como lado oposto ao gênero gramatical que marca a palavra. Por isso, A.O., esse dispositivo de um feminino assim na montagem da palavra é muito relevante para uma política não binária da linguagem. Eu o chamo, às vezes, de um feminino subversivo; porém, como enxergo que todos os mecanismos aqui de não binariedade promovem a subversão da linguagem, tenho preferido chamá-lo de feminino transcendente; pois, assim, eu consigo acessar uma ideia de que esse feminino, além de promover uma lógica de subversão, tende a transcendê-la, apresentando outros significados a modelos convencionais de marcação do gênero feminino.
Posso ainda citar como um dos mais sutis e bem elaborados dispositivos disruptivos de binariedade de gênero na linguagem o simulacro discursivo, que é um processo de ressignificação de palavras que funcionam como insultos, a exemplo de “vadia”, “bicha”, “trava”, mas que são absolvidas por pessoas vítimas dos insultos e se tornam itens de autorrepresentação no discurso delas. Isso é instaurado como uma micropolítica de autoafirmação diante da dor, modificando o sentido, mas também possibilitando um trabalho de novas relações com a palavra - que passa a ser compreendida com um diferente valor - e também uma nova relação com o sujeito vítima do insulto - que passa também a ser visto com mais poder, pois manobra o discurso do algoz.
O simulacro discursivo é um exercício muito comum nos movimentos identitários que visam à autovalorização de atores políticos nas demandas por representatividade e representação social, mas, ao mesmo tempo, ele nos mostra, A. O., que a disputa de sentidos por meio das manobras que fazemos na linguagem é o que constitui as coisas, o mundo, e que, em se tratando de gênero, as palavras não são admitidas apenas na lógica da dicotomia do insulto. Este tem em sua base o ideário de uma formação antagonista que aponta para os fenômenos insultados uma significação do erro, da falha, da impossibilidade, encaixando-os numa lógica oposta àquela de quem insulta. Essa mobilização bilateral de errado e certo, ruim e bom, está na fundamentação da matriz cultural que eu havia citado, e, quando o simulacro discursivo quebra tal mobilização, desmonta uma relação binária, simplesmente ao dizer que uma mesma palavra é escorregadia, podendo servir a sentidos adversos e até opostos. Algumas pessoas chamam esse dispositivo de evocação performativa queer, pois joga luz sobre o rompimento das identidades como fixidez, mas, por entender que toda evocação é performativa e em alusão ao jogo de mudança que acontece na enunciação dos termos, eu prefiro chamar de contrabando discursivo.
Ele é sutil e muito bem elaborado, porque, para acessarmos, precisamos entender o contexto de uso do insulto para atribuirmos o sentido necessário à autoafirmação e também porque não altera a semiose para ressemantizar o insulto. Não se trata de um movimento simples do insulto ao orgulho; mas do insulto, da injúria, da difamação à autoafirmação como um modo de reunir, num mesmo discurso, a memória de vulnerabilidade e o exercício de autoestima. Por isso também é um dispositivo não binário. O contrabando discursivo prima, então, pela não binariedade porque propicia a quebra de bipolaridade entre insulto e autoafirmação, seja pela admissão de sentidos antagônicos numa mesma ordem discursiva, seja pela dimensão constitutiva da vulnerabilidade numa determinada palavra. Aqui a não binariedade não é exatamente romper com a linha masculino-feminino, mas torar uma visão de mundo heteronormativa, que, como eu já sinalizei, é colonial e violenta.
Para finalizar esta resposta, A.O., gostaria de lhe dizer que a não binariedade de gênero pode ser tratada como uma identidade. Existem pessoas trans não binárias, que, como eu já falei, são aquelas que, além de não se identificarem com a atribuição de gênero que lhe deram ao nascer, também não se identificam com nenhum dos dois espectros de gênero normalizados em nossa sociedade, ou se identificam com os dois ao mesmo tempo. Contudo, podemos significar a não binariedade de gênero como uma performance, isto é, como um dado característico do processo de movimento que é o trabalho identitário de gênero - assim, não interpretando o gênero apenas como uma norma, mas como uma norma que se realiza na interação social que é cravada por linguagem e todas as instâncias. Esses entendimentos sobre a não binariedade são muito importantes para criarmos uma praxeologia de uma pesquisa como a minha, cujo título é “Deixe a minha língua lamber o que quiser - linguagem disruptiva de gênero no Brasil”, e outras tantas sobre gênero, identidade, performatividade e poder. Mas esse é um papo para um outro momento, A.O.
NAI MONTEIRO (N.M.): De início, acredito ser pertinente demarcar o lugar a partir do qual enuncio: sou linguista e pessoa não binária. Julgo importante fazer tal marcação, uma vez que a linguagem não binária me interessa tanto do ponto de vista teórico quanto do prático, por viver as experiências de ser uma pessoa que extrapola o binarismo de gênero. Para mais, parto do pressuposto de que não existe “linguagem neutra”, a linguagem não binária, ou disruptiva, não visa a neutralizar a língua, como advogam erroneamente algumas pessoas, mas a criar deslocamentos dentro da lógica binária de gênero - masculino versus feminino. A ideia de “neutralização da língua” cria obstáculos para o entendimento dessa manifestação linguística. Um segundo ponto importante para a discussão diz respeito ao fato de que a dinamicidade da língua é impactada pelo agenciamento de sujeites linguísticos, ou seja, a língua não é estática ou estável, mas muda a partir das vivências linguísticas de seus usuários. Por que, então, tantas pessoas acham necessário “preservar” a língua como se a linguagem não binária oferecesse algum tipo de ameaça? A questão não está em proteger a língua, porém em manter o status quo ignorando a demanda de falantes que querem, também, serem representados linguisticamente. Há argumentos no sentido de que a linguagem não binária é impositiva e pretende obrigar falantes ao seu uso, o que nada mais é do que um equívoco. Tal manifestação existe fora da academia, e agora está recebendo atenção de áreas como a Linguística, no entanto divide opiniões de estudiosos. Proponho, então, que é preciso decolonizar a Linguística para que se discutam as lógicas de dominação e controle, por meio da língua, e se considerem formas outras de usos.
Indo mais fundo nessa discussão
A.O.: Recentemente, você foi mediador de uma live no canal Abralin sobre a temática da linguagem não binária. Como os estudos da Análise Crítica do Discurso da atualidade comportam recursos teórico-metodológicos que permitam a discussão dessa temática?
I.M.: A.O., a Análise Crítica do Discurso contempla há muito tempo estudos sobre gênero, mas compreendendo ainda, na maior parte de seus estudos, gênero apenas como atributo identitário e o associando à marcação do feminino. Muito provavelmente isso é reflexo da história colonial dessa perspectiva, que ainda é bem tributária de corpos e modelos hermenêuticos brancos, eurocentrados e masculinos.
Norman Fairclough, Maria Izabel Magalhães, Carmen Caldas-Coulthard e Ngela Figueredo, por muito tempo, dedicaram-se aos estudos sobre gênero, mas ainda olhando para o feminino da mulher branca. Há poucos ou quase nenhum estudo com uma análise queer e crítica do discurso. Sem esse precedente, não é possível contemplar os estudos de uma linguagem não binária, que, fundamentalmente, necessitaria de uma abordagem queer como pano de fundo.
Manu Rodrigues e eu estamos realizando esforços para trazer o queer à Análise Crítica do Discurso no Brasil, e é provável que, nos próximos anos, tenhamos alguns diálogos a partir dessa empreitada.
A.O.: Levando em consideração suas pesquisas no campo da formação de professorxs e nas interfaces entre gênero, sexualidade e educação, como você avalia o papel que a discussão atual sobre “lugar de fala” tem em relação ao debate em torno da linguagem não binária? Na sua visão, quais os possíveis impactos da linguagem neutra, inclusiva ou ainda não binária e neolinguagem em termos de representação linguística e social de pessoas de gênero dissidente?
N.M.: Argumento que há um problema em algumas discussões sobre linguagem não binária, inclusive por parte de linguistas e demais estudiosos da língua, pois fala-se sobre a linguagem não binária e alguns de seus usos mais prototípicos (“e”, “x” e “@”), porém apaga-se do debate a comunidade que produziu tais usos disruptivos: pessoas não binárias. Clarice Lispector (1999), em seu livro A descoberta do mundo, afirma: “A palavra é o meu domínio sobre o mundo”. A partir disso, a palavra é um modo de dominar o mundo e, acrescento, de agenciar-se linguisticamente. Assim, a língua marca o lugar de fala de seus usuários não pretendendo um sectarismo, mas no sentido de uma demarcação para validação das vidas, mesmo aquelas que Judith Butler, estudiosa do pensamento queer, denomina como “corpos matáveis” (2016, p. 32), por serem desviantes das normas de gênero e sexualidade. Todo discurso é social, cultural e historicamente marcado, admite Antônio Marcuschi (2008), no livro Produção textual, análise de gêneros e compreensão, ou seja, enunciamos de um determinado lugar, e essa demarcação coopera para a legitimação das existências várias. Diante disso, questiono: de qual modo corpos dissidentes de gênero - que se afastam das normatizações e regras de gênero - podem ser representades por meio da língua? A linguagem não binária é uma das possibilidades. Além disso, segundo Grada Kilomba, em seu livro Memórias da plantação: Episódios de racismo cotidiano (2019, pp. 12-13), é preciso ratificar a “importância de um percurso de conscientização coletiva - pois uma sociedade que vive na negação, ou até mesmo na glorificação da história colonial, não permite que novas linguagens sejam criadas”. Fazendo paralelo com as críticas à linguagem não binária, quem se sente representado no binarismo de gênero sem questioná-lo, muitas vezes, não verá necessidade de novas formas de uso linguístico. Mas a língua deve representar a todes, ou só a uma parcela da população? Concluo afirmando que a linguagem não binária não pretende destruir a língua, tampouco será um uso hegemônico como temem algumas pessoas; por outro lado, ela pode cooperar para a representação linguística e social, bem como para o agenciamento de pessoas que são dissidentes de gênero.
Referências
- Benveniste, É. (2006). Problemas de linguística geral II. Pontes.
- Butler, J. (2016). Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. Civilização Brasileira.
- Kilomba, G. (2019). Memórias da plantação: Episódios de racismo cotidiano. Cobogó.
- Lispector, C. (1999). A descoberta do mundo. Rocco.
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Magalhães, E. (2022, 4 fevereiro). Linguagem neutra. Jornal da AdUFRJ, 1214. https://adufrj.org.br/index.php/pt-br/noticias/arquivo/80-atual/4194-linguagem-neutra
» https://adufrj.org.br/index.php/pt-br/noticias/arquivo/80-atual/4194-linguagem-neutra -
Maracci, J. G., & Favero, S. (2022, 9 fevereiro). Por que falamos em cisnormatividade? Le Monde Diplomatique Brasil. https://diplomatique.org.br/por-que-falamos-em-cisnormatividade
» https://diplomatique.org.br/por-que-falamos-em-cisnormatividade - Marcuschi, A. (2008). Produção textual, análise de gêneros e compreensão. Parábola Editorial.
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Oliveira, A. M. de. (2023). Língua(gem), sociedade e cultura: Um estudo enunciativo-antropológico sobre a pessoa falante e a linguagem neutra [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul]. Repositório Digital da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. https://lume.ufrgs.br/handle/10183/261772
» https://lume.ufrgs.br/handle/10183/261772 - Rich, A. (2010). Heterossexualidade compulsória e existência lésbica. Bagoas, 4(5), 17-44.
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É importante destacar que, para melhor entendimento e leitura, no decorrer do texto será utilizado o termo “linguagem neutra”. Optou-se por ele por ser um dos termos mais difundidos atualmente. Para aferir a diversidade de discussões, basta uma rápida busca na internet e constatar que há um enorme debate em torno dessa questão dentro e fora das redes sociais.
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É um termo que se refere a uma visão de mundo em que a heterossexualidade é considerada a norma padrão e é socialmente privilegiada, enquanto outras orientações sexuais são vistas como desviantes ou menos válidas. Essa perspectiva impõe a ideia de que relacionamentos heterossexuais são os únicos aceitáveis e esperados, contribuindo para a exclusão ou marginalização de outras orientações sexuais. O termo “heteronormatividade” não foi cunhado por uma única pessoa, mas sim desenvolvido ao longo do tempo por acadêmicos e ativistas que exploraram as normas sociais relacionadas à orientação sexual. No entanto, uma das primeiras referências notáveis ao conceito ocorreu nos anos 1990, com o lançamento da obra Gender trouble, publicada em 1990 por Judith Butler, em que autora discute ideias de performatividade de gênero e de como a heteronormatividade influencia as normas sociais (Butler, 2016).
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O conceito de cisnormativo, conforme Maracci e Favero (2022), também advém da obra Gender trouble, de Judith Butler. Nessa obra, a autora reconhece uma “matriz heterossexual de inteligibilidade”, que performa a pretensa congruência entre sexo, gênero e desejo. Sinteticamente, trata-se da ideia de que uma pessoa que nasce com pênis tornar-se-á homem e terá seu desejo sexual voltado a mulheres, e vice-versa.
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Segundo Rich (2010), a ideia de heterossexualidade compulsória serve para descrever a pressão social e cultural que muitas pessoas enfrentam para se identificar como heterossexuais, independentemente de sua orientação sexual real. Em outras palavras, refere-se à ideia de que a sociedade assume automaticamente que todos são heterossexuais, e há uma expectativa de conformidade a essa norma. Essa pressão pode ser internalizada pelas pessoas, levando-as a acreditar que a heterossexualidade seja a única orientação sexual válida e aceitável. Isso pode resultar em pessoas assumindo identidades e relacionamentos que não refletem verdadeiramente suas orientações sexuais apenas para se encaixarem nas expectativas sociais. A heterossexualidade compulsória destaca a importância de reconhecer e respeitar a diversidade de orientações sexuais, criando um ambiente mais inclusivo e acolhedor para todos.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
21 Out 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
20 Jul 2023 -
Aceito
17 Abr 2024