Escrevendo no momento em que ocorre a crise social e econômica provocada pela pandemia de Covid-19, Boaventura de Sousa Santos busca analisar a forma como os países neoliberais estão lidando com seus impactos. Para tanto, o autor identifica os preceitos que orientam o capitalismo financeiro na atual sociedade e como as desigualdades foram evidenciadas no período de maior tensão do século XXI.
Santos busca estabelecer a ideia de uma crise global presente no decurso estratégico da sociedade capitalista contemporânea. Dessa maneira, a condição de uma normalidade da exceção, como postula, é a percepção de uma crise gerada no capital com intencionalidade ideológica para fins político-dominantes em uma sociedade que utiliza esse dispositivo enquanto mecanismo de dominação econômica; para o autor: “O objectivo da crise permanente é não ser resolvida” (SANTOS, 2020, p. 5-6). Torna-se, assim, a função pela qual se justificam os contínuos cortes nos setores sociais, culminando na acumulação de riqueza.
O segundo conceito trabalhado pelo autor é o de elasticidade social, que se refere aos modos como os sujeitos vivem e estão presentes na sociedade ao longo da história. A lógica do consumo, que foi imposta à sociedade da segunda metade do século XX até a atualidade, pressiona as pessoas à racionalidade econômica hipercapitalista, pautada no princípio de internalização dos mecanismos disciplinares nessa sociedade. Em outros termos, o homem foi instruído ao consumo e ao trabalho de forma a gerar lucro ao grande capital, acreditando que aquele é o estado social ideal e, assim, completa Santos, viu sua rotina sofrer uma grande cisão. Se o capital apreciado na lógica neoliberal moldou a sociedade presente e constringiu investimentos para fins de direitos sociais, a quebra de seu ritmo frenético impôs ao mesmo neoliberalismo a ampla dependência do Estado que tanto negou.
Para Santos, junto dessa longínqua vivência neoliberal que se estabeleceu em bases sólidas estão as relações sociais entre sujeitos de uma elite econômica e oprimidos pelo sistema; se a primeira parcela sente seguridade de vida - por meio de soluções financeiras, apólices e recursos para diversas finalidades, como situa o autor -, o mesmo não se pode dizer para os demais. Entretanto, uma vez dado o estopim de igualdade do ser que vive - a experiência da doença - pelo surgimento da pandemia, a segurança se dissipa e está exposta à fragilidade humana. Mais adiante no seu texto, Santos (2020, p. 21) afirma que “a quarentena não só torna mais visíveis, como reforça a injustiça, a discriminação, a exclusão social e o sofrimento imerecido que elas provocam”.
Se a pandemia exige resposta de emergência, a crise ecológica se mostra irreversível, aponta o autor, mas ambas as situações estão interligadas. Ele atribui tal situação ao modelo de produção iniciado no século XVIII, que utiliza desenfreadamente os recursos naturais sem identificar a capacidade do planeta de se recuperar. Por outro lado, Enrique Leff (2009), na obra Ecologia, capital e cultura: a territorialização da racionalidade ambiental, relaciona essa racionalidade econômica em oposição à racionalidade ambiental; produzimos além do que precisamos, sob a forma de exploração dos sujeitos com vistas a um sistema de lucros que sobrecarrega os ecossistemas, negando as diferenças socioculturais, por meio do processo de massificação da população (conceito bastante presente nas obras de Hannah Arendt) que certamente culminaria em uma queda do capital ou sua reformulação, porque o planeta não suporta a velocidade do desgaste fomentado pelo sistema. “É este o modelo que está hoje a conduzir a humanidade a uma situação de catástrofe ecológica” (SANTOS, 2020, p. 24). Não em percepção ecológica, apenas, pois o termo é parte de um todo, mas é possível compreender que a crise é de cunho ambiental; ou seja, complexa, ampla, afetando todos os setores historicamente constituídos, bem como as estruturas pensadas para a sociedade.
Ambos os autores afirmam que o capitalismo não consegue se prolongar da forma como está estabelecido. Entretanto, na mais recente produção de Santos, é possível identificar a ideia de que o capitalismo financeiro poderá se estabelecer como uma parcela menor dentro de uma estrutura maior, análoga ao capital. E mais, o neoliberalismo não se sustenta por muito tempo, uma vez que todos os países - dentre eles os Estados Unidos, maior representante neoliberal no mundo - tomaram, perante a pandemia, decisão de imediata insuflação do Estado na defesa da saúde e da própria economia.
Dessa forma, é possível compreender que novas maneiras de pensar a condição da vida dos sujeitos podem finalmente se sobrepor à dominação da extrema exploração da lucratividade. Então, parcelas políticas extremistas de direita, que aliam ideologia religiosa a uma prática neoliberal ortodoxa, perderiam força. Conseguem lidar melhor com a crise na saúde países com lógica diferente daquela neoliberalista, afirma Santos. Contudo, a fase crítica economicamente falando será com o fim da pandemia, “a pós-crise será dominada por mais políticas de austeridade e maior degradação dos serviços públicos onde isso ainda for possível” (SANTOS, 2020, p. 25).
Então se evidenciam novas práticas de emergência, no isolamento de tom unificador dos sujeitos e na ação de socorro à economia. Afirma Santos que abrandar os mecanismos de produção trouxe boas notícias aos diversos ecossistemas, apesar do grande impacto financeiro. Por outro lado, se saímos de uma guerra de mercado entre China e Estados Unidos, a crise sanitária evidencia a disputa da narrativa entre formas do comércio internacional.
Trata-se de um tipo de implosão societária daquela que foi estruturada no período após o século XVIII; o mercado torna-se, ao mesmo tempo, fluído e presente em todas as regiões do planeta, enquanto o patriarcado já existente e o colonialismo moldam os sujeitos moral e ideologicamente. Afirma Boaventura de Sousa Santos (2020, p. 12) que “todos os seres humanos são iguais (afirma o capitalismo); mas, como há diferenças naturais entre eles, a igualdade entre os inferiores não pode coincidir com a igualdade entre os superiores (afirmam o colonialismo e o patriarcado)”. Por outro lado, acredita o autor que, enquanto existir o capital, também devem coexistir o colonialismo - que afeta as relações de dominação, em especial dos países em desenvolvimento sul-americanos e africanos -, o patriarcado - que oprime a mulher - e o capacitismo - que exclui o deficiente físico. Somados, esses grupos são aqueles violados historicamente e que o Estado neoliberal não consegue proteger, comenta o autor.
Por seu contexto de exclusão histórica, os grupos do sul, segundo Santos, são os mais afetados nesse contexto de pandemia. Outras grandes vítimas são as mulheres que, majoritariamente, estão na linha de frente do combate ao vírus e, se estão mais expostas a adoecer, afirma o autor, também enfrentam o machismo com o crescente aumento dos índices de violência contra a mulher. “O confinamento das famílias em espaços exíguos e sem saída pode oferecer mais oportunidades para o exercício da violência contra as mulheres (SANTOS, 2020, p. 16).
Já os trabalhadores autônomos e informais, afirma o autor, viram seus rendimentos baixarem vertiginosamente, uma vez que, para muitos, o rendimento provém do ato laboral diário. Somando-se a essa condição a precarização do trabalho nos últimos 40 anos no capital, compreendemos uma dupla opressão para essas pessoas. Em outras palavras, “significa que potencialmente milhões de pessoas não terão dinheiro sequer para acorrer às unidades de saúde se caírem doentes ou para comprar desinfetante para as mãos e sabão” (SANTOS, 2020, p. 17). Para os que trabalham com entrega, o período é diferente, pois colocam-se no atendimento de diversas pessoas e violam a quarentena, mesmo sem querer, aponta o autor. Ambos os sujeitos veem violados os direitos à seguridade alimentar e ao trabalho salubre, seguro e estável.
Assim também encontramos as pessoas que não possuem abrigo, os que moram em situação suburbana - favelas, palafitas, barriadas - em condições precárias de higiene e em grandes aglomerados familiares e, também, os internados nos campos de refugiados; todos eles, antes da pandemia, já encontravam barreira de acesso à saúde. Esses indivíduos buscam o direito à moradia, porém “habitam na cidade sem direito à cidade, já que, vivendo em espaços desurbanizados, não têm acesso às condições urbanas pressupostas pelo direito à cidade” (SANTOS, 2020, p. 18). Sua condição é de quem enfrenta as inseguranças sanitária, alimentar e trabalhista.
Outra ideia imposta na sociedade atual versa sobre a opressão que sofrem os deficientes físicos: se, por um lado, sua condição é reconhecida na sociedade, por outro, a própria sociedade não oferta estrutura suficiente para incluí-los. A última condição de dominação apontada por Santos é a dos idosos; em uma mesma cidade, quem envelhece mais rápido, quem falece mais cedo e quem dispõe de condições de acesso aos recursos médicos? Outro ponto situado pelo autor é o contexto de a crise econômica propiciar o aumento da vida produtiva do sujeito, avançando a idade, pela interferência da ciência, tanto quanto possa contribuir para o lucro do capital. Se Santos fala sobre vida ativa, Foucault analisa a sociedade em que o poder interfere no prolongamento da capacidade produtiva dos humanos - biopolítica.
A questão que se coloca é: qual deve ser o modelo social e econômico suficientemente solidário, igualitário e principalmente democrático pelo qual deva se direcionar o mundo pós-pandemia? Devemos, portanto, pensar em uma “democracia participativa ao nível dos bairros e das comunidades e na educação cívica orientada para a solidariedade e cooperação, e não para o empreendedorismo e competitividade a todo o custo” (SANTOS, 2020, p. 8). Ao considerar soluções de produção e consumo mais adequadas do que aquelas impostas pelo sistema vigente, torna-se imprescindível pensar em uma democracia ambiental, como postula Leff (2009), pautada no respeito às populações autóctones.
Na ideia da democracia está a excepcionalidade da situação pandêmica, do pensamento caótico no contexto de normalidade. Santos volta-se às análises do filósofo Giorgio Agamben, em especial ao conceito de “Estado de exceção” (presente na obra de mesmo nome, publicado na primeira metade do século XX), ou ao momento em que o conjunto jurídico constitucional de determinado país suspende o ordenamento dos direitos do cidadão para defender o próprio Estado. Porém, na própria teoria de Agamben, “teremos de distinguir no futuro não apenas entre Estado democrático e Estado de excepção, mas também entre Estado de excepção democrático e Estado de excepção anti-democrático” (SANTOS, 2020, p. 14), e se há, nessa conjuntura, a exceção de ordenamento democrático. Em uma percepção maior, a situação da pandemia é a exceção das exceções, postula o autor.
A questão que se levanta é: qual o limite do direito à educação na situação da exceção das exceções? Existe educação - principalmente básica - viável em tempos de pandemia? Quais são os limites das tecnologias de informação aplicadas em educação? Os espaços virtuais conseguem abarcar a complexidade de uma sala de aula?
Finalmente, com a falácia do Estado neoliberal, a partir de um histórico de, pelo menos, 40 anos de capital financeiro e crescente precarização dos serviços públicos ofertados, a ideologia que acabou de ser testada mostrou que, além de não atender às particularidades da crise sanitária, também evidencia a desigualdade que culmina do desgaste das políticas públicas de proteção ao sujeito. Dessa maneira, não apenas o Estado ultraliberal de direita é minado, mas a pandemia abre caminhos para repensar todo o sistema produtivo do capital. Até a quais implicações sociais os sujeitos são expostos por uma lógica de dominação total para preservação da lucratividade é a ideia central do texto de Santos, uma vez que o capitalismo, tal qual como conhecemos, está falido.
REFERÊNCIAS
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
30 Nov 2020 -
Data do Fascículo
Oct-Dec 2020
Histórico
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Recebido
17 Abr 2020 -
Aceito
30 Set 2020