Acessibilidade / Reportar erro

Leandro Feitosa Andrade (1960-2018): a tradução da sensibilidade profissional na luta pela igualdade de gênero

Nunca se conhece totalmente uma pessoa em toda a sua plenitude, mesmo que a conheçamos há décadas. Esse pensamento ocorreu-me quando fui levada a rememorar minha relação de amizade e coleguismo profissional com Leandro Feitosa, em busca de inspiração para escrever uma justa homenagem a ele, em razão de sua precoce morte, em maio de 2018. Leandro trabalhou na Fundação Carlos Chagas (FCC) desde 2003 até 2012, particularmente no Programa Internacional de Bolsas de Pós-Graduação da Fundação Ford (International Fellowships Program - IFP), coordenado por Fúlvia Rosemberg. Eu conheci Leandro muito antes disso, em 1996 ou 97, no Grupo de Estudos sobre Sexualidade Masculina e Paternidade (Gesmap), criado pela Ecos - Comunicação em Sexualidade, em 1995, com apoio da Fundação Ford e da Fundação MacArthur. O Gesmap, como era conhecido, fora um dos primeiros grupos no Brasil a dedicar-se a aprofundar conhecimentos sobre meninos e jovens rapazes, numa perspectiva relacional da teoria de gênero. Com o objetivo de refletir coletivamente sobre a construção social das masculinidades, o grupo reunia 13 pesquisadoras/res, profissionais de diversas áreas que atuavam em projetos de pesquisa e intervenção, em particular no campo da saúde e da prevenção. Leandro era um deles. Nosso grupo reunia-se mensalmente para atividades de estudos, de debates com acadêmicos nacionais e internacionais. Em pouco tempo, o Gesmap viu a necessidade de ampliar o diálogo e a disseminação de nossas reflexões, o que nos levou a ter como meta a escrita de uma coletânea que reunisse e sistematizasse as discussões do grupo, apresentando as metodologias abraçadas em nossas pesquisas e intervenções, mas também trouxesse relatos de experiências pessoais e profissionais no trabalho com masculinidades. É nesse eixo que se enquadra a rica e incomum contribuição de Leandro. Incomum porque o artigo relata a experiência vivida por ele na intervenção com mulheres na prostituição em atividades de prevenção de doenças sexualmente transmissíveis (DSTs/Aids), saúde e direitos. Naquela época, ter homens (heterossexuais) trabalhando numa perspectiva de direitos humanos das mulheres e com a proposta de ressignificar as representações masculinas, sobretudo aquelas relacionadas à prostituição, não era usual e, por vezes, criticado, inclusive pelo movimento feminista. É nesse relato de experiência que encontro a sensibilidade profissional, numa perspectiva masculina, e minha melhor lembrança de Leandro, que corresponde à sua lealdade e marca profissional:

O impacto inicial atordoa como flashes. Vacila-se em enfrentar o olhar objetivo dessas mulheres. Seus olhares são como lâminas afiadas que cortam qualquer barreira ideológica e intelectual. Despemnos e tocam nos nossos instintos mais básicos de satisfação. Após esse estonteante impacto, mais ou menos realinhado, procuro ampliar o meu olhar. Na conversa entre elas, na relação com os filhos, num momento de descanso, na hora das refeições, com alguém de estima. Conhecê-las não no papel de mulheres na prostituição. Como olham ao pedir a um padre benção, a um filho, atenção, à mãe, opinião, ao balconista, comida, ao médico, saúde, ao companheiro, amor? Quem sabe assim poderei desconstruir a dura visão do impacto inicial. Desvio meu olhar do desconcertante olhar da prostituta e procuro observar o olhar da mãe, da filha, da companheira, da amiga, da cliente. Procuro o olhar cansado, o olhar alegre, descomprometido, criança, preocupado. Na procura de ver outros olhares, reajusto o meu foco para outros papéis. ( ANDRADE, 1998 ANDRADE, Leandro Feitosa. Uma relação diferente entre homens e mulheres na prostituição feminina. In: ARILHA, Margareth; UNBEHAUM, Sandra; MEDRADO, B. (Org.). Homens e masculinidades: outras palavras. São Paulo: 34, 1998. p. 271-284. , p. 275-276)

O tema da prostituição o levou a pesquisar na pós-graduação, no campo da Psicologia Social, a exploração sexual de crianças e adolescentes na mídia. Orientado por Fúlvia Rosemberg, Leandro analisou vasto material jornalístico atento ao tratamento dado ao tema, cujo resultado é o estigma de crianças e adolescentes pobres, sem o devido questionamento das determinações sociais, éticas e psicológicas que levam adultos a elegerem parceiros sexuais não adultos. A pesquisa levou-o diretamente ao doutorado e à premiação como melhor tese, resultando na publicação de um livro, com o apoio da Fapesp (ANDRADE, 2004ANDRADE, Leandro Feitosa. Prostituição infanto-juvenil na mídia: estigmatização e ideologia. 1. ed. São Paulo: Educ, 2004. v. 1. 252 p.).

Logo após o doutorado, Leandro atuaria na FCC, cuidando de toda a organização e sistematização de uma base de dados do Programa Bolsa, além de gerenciar o processo de difusão, seleção e atendimento às candidaturas. Várias eram as responsabilidades assumidas, inclusive a produção, em coautoria com Fúlvia Rosemberg, de artigos acadêmicos (ROSEMBERG; ANDRADE, 2013ROSEMBERG, Fúlvia M. de B. M.; ANDRADE, Leandro F. Indígenas no Programa Internacional de Bolsas de Pós-Graduação da Fundação Ford e os aportes do Trilhas de Conhecimento. In: LIMA, Antonio Carlos de Souza; BARROS, Maria Macedo (Org.). Povos indígenas e universidade no Brasil. 1. ed. Rio de Janeiro: E-papers, 2013. p. 133-162., 2008). Num deles, publicado em Cadernos Pagu (2008ROSEMBERG, Fúlvia M. de B. M.; ANDRADE, Leandro F. Ação afirmativa no ensino superior brasileiro: a tensão entre raça/etnia e gênero. Cadernos Pagu, Campinas, n. 31, p. 419-438, 2008), a partir do perfil de candidatos ao Programa Bolsa, escreveram um ensaio no qual discutem a sub-representação das mulheres no ensino superior e na pós-graduação, contraditório ao melhor desempenho educacional delas. Nesse artigo, Leandro desenvolve junto com sua mentora importante discussão sobre a não sincronia das desigualdades sociais, chamando nossa atenção para o efeito não cumulativo das desigualdades de gênero, raça, idade e classe e o risco de simplificar as incoerências existentes nas instituições educacionais.

A escuta e o olhar acurados e críticos do cotidiano no Programa Bolsa se fez presente em sua análise da experiência vivida em uma década, num relato fiel ao que representou o desenvolvimento de uma metodologia inovadora de ação afirmativa para a pós-graduação e para a qual Leandro muito contribuiu:

No cotidiano do Programa todos e tudo foram alvos de altas expectativas e exigências, mesmo assim, nem sempre agradamos e nem sempre estávamos satisfeitos, muitas vezes, com nós mesmos - a insatisfação produtiva foi, e ainda é, a tônica na gestão. Insatisfação que levou a uma busca, muitas vezes, obsessiva de integrar parâmetros éticos, teóricos, técnicos, profissionais e humanos. E por falar em humano, todos foram por demais humanos: pacientes, metódicos, tolerantes, eufóricos, apressados, estressados, preocupados, desesperados. Erramos, por várias vezes, erramos, mas nunca o erro foi tão bem vindo, visto, revisto, avaliado, destrinchado e, na maioria das vezes, superado. O Programa deixa tatuado em todos, que por aqui passaram, lições de empenho, dedicação, compromisso, trabalho, respeito e ética. Uma etapa da vida, muito bem vivida. ( Relatório Final do Programa Internacional de Bolsas de Pós-Graduação da Fundação Ford, 2012 FUNDAÇÃO CARLOS CHAGAS. Relatório Final do Programa Internacional de Bolsas de Pós-Graduação da Fundação Ford: Brasil. São Paulo , 2012. , p. 161)

Em paralelo à sua atuação no Programa Bolsa, Leandro coordenou grupos de homens autores de violência contra mulheres em uma organização feminista, no Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde (desde 2009), ao lado do filósofo e amigo Sérgio Barbosa, também integrante do Gesmap. O tema da violência se fez presente na trajetória profissional desde a conclusão da graduação em Psicologia na PUC-SP. Ao lado de Heleieth Saffioti, então professora do Programa de Ciências Sociais naquela universidade, colaborou nas pesquisas “A violação do tabu do incesto” e “Violência doméstica: uma questão de polícia ou da sociedade”. Mas foi a violência vivida ou praticada por homens que tornaria Leandro uma referência nos estudos e intervenção com foco nas masculinidades (ANDRADE, 2014ANDRADE, Leandro Feitosa. Grupos de homens e homens em grupos: novas dimensões e condições para as masculinidades. In: BLAY, Eva Alterman (Org.). Feminismos e masculinidades. 1. ed. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2014. p. 173-210.; OLIVEIRA et al., 2015OLIVEIRA, Isabela V. de; ANDRADE, Leandro F.; PRATES, Paula L.; FURTADO, Tales M. Tensões e desafios na intervenção com homens autuados pela Lei Maria da Penha: o caso dos grupos reflexivos no coletivo feminista sexualidade e saúde. Revista do Gênero & Direito, v. 1, p. 219-240, 2015.). Com a aprovação, em 2006, da Lei n. 11.340/06, conhecida como lei Maria da Penha (BRASIL, 2006BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006. 2006Disponível em: <Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm >. Acesso em:13 jun. 2018.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
), a experiência de Leandro na intervenção nas áreas de saúde e prevenção, bem como sua inserção no debate crítico de gênero sob a perspectiva masculina, como uma referência para pensar as relações sociais e sexuais, levou-o a coordenar grupos reflexivos com homens, colaborando na construção de uma metodologia de enfrentamento da violência contra as mulheres. Nessa perspectiva, os homens são levados a assumir sua responsabilidade pelo ato violento, contrapondo-se à patologização ou naturalização da violência como comportamento masculino; ao contrário, intenta-se a ressignificação do comportamento e compreensão dos processos de constituição da violência.

Essa breve memória não traduz a integra da pessoa, do psicólogo, do colega, do homem dedicado a mostrar para outros homens, como ele, a existência de diversas possibilidades de ser, de existir e de conviver, não sendo a violência contra as mulheres e contra outros homens, e, em consequência, contra si mesmos a única narrativa de comunicação possível. Apazigua imaginar que a sensibilidade do Leandro possa ter tocado a outros tantos homens.

REFERÊNCIAS

  • ANDRADE, Leandro Feitosa. Grupos de homens e homens em grupos: novas dimensões e condições para as masculinidades. In: BLAY, Eva Alterman (Org.). Feminismos e masculinidades 1. ed. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2014. p. 173-210.
  • ANDRADE, Leandro Feitosa. Prostituição infanto-juvenil na mídia: estigmatização e ideologia. 1. ed. São Paulo: Educ, 2004. v. 1. 252 p.
  • ANDRADE, Leandro Feitosa. Uma relação diferente entre homens e mulheres na prostituição feminina. In: ARILHA, Margareth; UNBEHAUM, Sandra; MEDRADO, B. (Org.). Homens e masculinidades: outras palavras. São Paulo: 34, 1998. p. 271-284.
  • BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006. 2006Disponível em: <Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm >. Acesso em:13 jun. 2018.
    » http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm
  • FUNDAÇÃO CARLOS CHAGAS. Relatório Final do Programa Internacional de Bolsas de Pós-Graduação da Fundação Ford: Brasil. São Paulo , 2012.
  • OLIVEIRA, Isabela V. de; ANDRADE, Leandro F.; PRATES, Paula L.; FURTADO, Tales M. Tensões e desafios na intervenção com homens autuados pela Lei Maria da Penha: o caso dos grupos reflexivos no coletivo feminista sexualidade e saúde. Revista do Gênero & Direito, v. 1, p. 219-240, 2015.
  • ROSEMBERG, Fúlvia M. de B. M.; ANDRADE, Leandro F. Indígenas no Programa Internacional de Bolsas de Pós-Graduação da Fundação Ford e os aportes do Trilhas de Conhecimento. In: LIMA, Antonio Carlos de Souza; BARROS, Maria Macedo (Org.). Povos indígenas e universidade no Brasil 1. ed. Rio de Janeiro: E-papers, 2013. p. 133-162.
  • ROSEMBERG, Fúlvia M. de B. M.; ANDRADE, Leandro F. Ação afirmativa no ensino superior brasileiro: a tensão entre raça/etnia e gênero. Cadernos Pagu, Campinas, n. 31, p. 419-438, 2008

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2018
Fundação Carlos Chagas Av. Prof. Francisco Morato, 1565, 05513-900 São Paulo SP Brasil, Tel.: +55 11 3723-3000 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: cadpesq@fcc.org.br