Mesmo em nossos dias, com a riqueza do debate interdisciplinar, como também com a mobilização de movimentos sociais diversos, a temática das ações afirmativas pode ainda ser mal interpretada ou considerada controversa, seja pelo preconceito com relação ao seu caráter inclusivo, seja pela falta de conexões teóricas que legitimem tais medidas. Com essa problemática em mente, a obra A teoria da justiça de John Rawls e as ações afirmativas: reparar as contingências em direção à igualdade, de Renivaldo Oliveira Fortes, aborda interdisciplinarmente pontos convergentes entre as ações afirmativas e a teoria da justiça do filósofo estadunidense John Rawls (1921-2002), especialmente a partir da estrutura conceitual presente nas obras Uma teoria da justiça (2008) e O liberalismo político (2011). Assim, Fortes busca fundamentar politicamente as ações afirmativas a partir da teoria da justiça como equidade de Rawls, partindo da hipótese de que os pressupostos filosóficos da teoria rawlsiana endossariam e legitimariam as ações afirmativas.
Introdutoriamente, Fortes oferece ao leitor um panorama geral do livro, em que apresenta um quadro histórico acerca das ações afirmativas, elabora um esboço da teoria da justiça de Rawls, destaca os objetivos da obra e as questões que pretende responder a partir dela, além de expor seus procedimentos metodológicos. Ademais, o autor ressalta que sua pesquisa é motivada pela carência de argumentos utilizados ao se discutir a justificação política das ações afirmativas.
No capítulo inicial, Fortes busca apresentar uma definição das ações afirmativas a partir de um olhar interdisciplinar, dando ênfase às dimensões histórica, jurídica e filosófica. Já nas primeiras linhas, declara seu entendimento das ações afirmativas. Diz o autor: “As ações afirmativas são entendidas como políticas públicas de teor corretivo, idealizadas para preencher a lacuna entre a igualdade formal de oportunidades e a igualdade equitativa de oportunidades” (p. 25).
Em seguida, apresenta uma perspectiva histórica do termo “ação afirmativa”, inicialmente destacando sua origem nos Estados Unidos, em 1961. Aborda então a rápida evolução do termo, que passou a designar também uma forma de incluir grupos sub-representados, objetivando compensar o histórico de injustiças sofridas no passado, como, por exemplo, os casos de negros e mulheres.
A nota conceitual jurídica é iniciada asseverando que as ações afirmativas possuem legitimidade constitucional no Brasil. Em seguida, Fortes trabalha alguns conceitos acerca das ações afirmativas sob a perspectiva de juristas, evidenciando o quão fundamental é assegurar às pessoas que elas sejam capazes de ser o que desejarem, bem como garantir sua participação na sociedade como membros cooperativos que tenham plenos direitos.
O autor inicia a nota conceitual filosófica apresentando outras noções acerca das ações afirmativas, dessa vez sob a ótica de teóricos, ligados ou não a Rawls, que têm se dedicado ao tema. Fortes faz diversas inferências, abordando temas como: a dicotomia entre a discriminação e as ações afirmativas; as diferenças entre ação afirmativa fraca e ação afirmativa forte, bem como a relevância de cada uma sob ponto de vista moral; e a importância das ações afirmativas como dispositivos (políticas públicas) que combatem os diversos tipos de exclusão e injustiças.
O segundo capítulo é dedicado ao escopo teórico-filosófico, descrevendo os aspectos primordiais de uma teoria da justiça como equidade e os princípios de justiça, com destaque para o princípio de diferença.
O autor busca responder se as ações afirmativas podem ser objeto de análise da filosofia política. Para esclarecer essa questão, são discutidos alguns papéis que este campo do saber exerce na vida pública de uma sociedade democrática, levando Fortes a inferir que tais papéis vinculam-se à ideia fundamental de construir uma sociedade formada por cidadãos livres e iguais, em consonância tanto com a teoria rawlsiana quanto com as noções acerca das ações afirmativas.
Em seguida, apresenta-se a teoria da justiça como equidade de Rawls, destacando que essa baseia-se, sobretudo, na ideia de que os cidadãos livres e iguais concordariam em viver sob a ordem de princípios decididos em conjunto (contrato social), capazes de garantir os direitos e as liberdades fundamentais e iguais dos cidadãos. Assim, a partir de um arranjo justo das principais instituições políticas e sociais, constituir-se-ia a “estrutura básica da sociedade”, com a função de superar as desigualdades e injustiças entre os cidadãos, sem suprimir o valor das subjetividades.
Fortes, então, aborda a concepção política de pessoa sob a perspectiva de Rawls. Para o filósofo estadunidense, o cidadão é concebido como livre e igual, portador dos direitos e deveres no exercício da cidadania, em uma relação política com os demais sujeitos. Assim, cada pessoa tem uma inviolabilidade fundada na justiça que não deve ser desconsiderada, ou seja, o indivíduo tem um valor intrínseco, uma dignidade humana que não se deve sobrelevar.
Por fim, apresenta-se a ideia da posição original da teoria rawlsiana, em que, hipoteticamente, seriam discutidos os princípios de justiça sob os quais as pessoas viveriam. Fortes destaca que, para garantir a imparcialidade e a equidade na escolha dos princípios de justiça, Rawls impõe um “véu de ignorância”, a fim de privar as partes de informações mais específicas sobre si mesmas, como cor, gênero, nível educacional e social, etc. Rawls defende que, desse modo, ninguém levaria vantagens, e as partes buscariam um arranjo social que as favoreceria, independentemente da posição social que ocupassem. No entanto, o autor brasileiro enfatiza que a teoria de Rawls não pretende extinguir as diferenças naturais e sociais homogeneizando indivíduos e sociedades, mas que compete às instituições de um Estado bem ordenado reduzir as disparidades.
No terceiro capítulo, é problematizada a relação entre os bens primários e as ações afirmativas. Na teoria de Rawls, a concepção razoável de justiça como equidade encontra-se nos limites da estrutura básica da sociedade. Em outras palavras, está na esfera da justiça social. A partir dessa concepção, Fortes pensa as ações afirmativas como uma questão de justiça social, e propõe que, quando políticas públicas dessa modalidade são asseguradas constitucionalmente, o Estado tem maior capacidade para lidar com as injustiças e os diversos problemas do seu tempo histórico, a exemplo do racismo, intolerância e discriminação.
Na sequência, são discutidos os princípios da justiça que, de acordo com a teoria rawlsiana, seriam escolhidos de forma consensual na posição original, quais sejam: a igual liberdade, a igualdade de oportunidade e o princípio da diferença. Fortes enfatiza este último, articulando suas especificidades com a questão dos menos favorecidos e das ações afirmativas. Na concepção de justiça política de Rawls, os indivíduos não tiram vantagens uns dos outros, uma vez que somente são permitidos benefícios recíprocos. Assim, destacam-se as ações afirmativas como medidas de justiça social que se traduzem em ações de reciprocidade e de fraternidade para com os menos favorecidos, indispensáveis para eliminar privilégios sociais e, por conseguinte, construir uma sociedade efetivamente justa.
Ao final do capítulo, o autor aborda a ideia fundamental do mínimo social, em que problematiza a questão do nível e do tipo de recursos que as pessoas necessitam para viver de modo minimamente decente na sociedade. Salienta a importância de preservar o mínimo social e a igualdade de oportunidades de modo equitativo para garantir a participação dos cidadãos na sociedade, fazendo a ponte entre essa problemática e o modo como as ações afirmativas devem ser conduzidas por um Estado democrático. Por fim, Fortes destaca que, mesmo sendo difícil determinar especificamente o conteúdo do mínimo social, os Estados que buscam garanti-lo, bem como assegurar a igualdade equitativa, podem adotar paliativamente medidas de ações afirmativas, sob a justificativa do ideal da igualdade de oportunidades como meio para alcançar a justiça compensatória.
O quarto capítulo, por sua vez, apresenta os argumentos que apontam para a possibilidade de justificar as ações afirmativas a partir dos princípios de justiça como equidade. Inicialmente, a ideia de bens primários é escrutinada, culminando na seguinte noção: “aquilo de que as pessoas livres e iguais precisam como cidadãs membros de uma sociedade decente” (p. 123). Coerente a essa proposição, o autor argumenta que, satisfeitas as exigências do mínimo social, as medidas de ações afirmativas podem ser compreendidas como formas de promover justiça às vítimas de injustiças históricas.
Entretanto, como a ideia de bens primários de Rawls recebeu críticas de autores importantes, como Martha Nussbaum (2012, 2013) e Amartya Sen (1979, 2011), Fortes não se eximiu de indicá-las em sua obra. Em resumo, Nussbaum (2013) sugere o enfoque nas capacidades como alternativa à concepção de bens primários de Rawls, de modo que os princípios de justiça levem em consideração o que cada pessoa tem em comum com todas as outras. No mesmo sentido, Amartya Sen (1979) defende que a igualdade de capacidades é um fator determinante para a justiça, uma vez que a abordagem de bens primários não considera a diversidade humana. Embora o enfoque analítico proposto no livro seja a teoria de Rawls, percebe-se o esforço em ampliar o debate trazendo perspectivas diferentes no trato das ações afirmativas que sugerem, dentre outras coisas, possíveis limites na própria abordagem rawlsiana.
Na sequência, contudo, Fortes destaca a resposta de Rawls a seus críticos. Para o filósofo estadunidense, em primeiro lugar, a abordagem das capacidades avaliza a visão moral abrangente, ou seja, pressupõe sua aceitação e, por isso, vai contra os exageros do neoliberalismo. Além disso, Rawls problematiza o ato de medir e avaliar as capacidades. Diferentemente de Nussbaum e Sen, Rawls infere que, mesmo que as pessoas não tenham iguais capacidades, ainda têm, por menor grau que seja, as faculdades morais, intelectuais e físicas que lhes permitem participar e colaborar com a sociedade da qual fazem parte. Do mesmo modo, o filósofo destaca que problemas como doenças crônicas e deficiências devem ser de responsabilidade do Estado. Nessa direção, Fortes sublinha que medidas de amparo social são exemplos de ações afirmativas.
O capítulo final busca demonstrar que as ações afirmativas são admitidas pelo princípio de justiça rawlsiano. Para tanto, inicia-se com um diálogo entre Rawls e o teórico Thomas Nagel (2003), que parte da questão sobre quais são as implicações da justiça como equidade na política de ações afirmativas. Desse modo, a partir do resgate de obras de Nagel, Fortes infere que este filósofo reforça a ideia de que, à luz da teoria da justiça como equidade, as ações afirmativas são compatíveis com os princípios de justiça. Mutatis mutandis, Nagel ratificaria as proposições de Rawls acerca das ações afirmativas.
Em seguida, o autor trabalha a ideia das ações afirmativas como medidas necessárias para garantir um sistema fundamentado na igualdade equitativa de oportunidades. Nessa linha, são abordadas questões como a superação do preconceito para com os menos favorecidos ainda presentes na esfera pública, bem como a legitimação das ações afirmativas a partir de uma concepção política de justiça. Defende ainda que sua obra busca, baseada no princípio da igualdade equitativa de oportunidades, justificar a elaboração de leis, políticas e práticas afirmativas que garantam o acesso a educação, cargos e posições aos menos favorecidos, num processo que gere uma ampla inclusão social, econômica e política, ao passo que contribua para superar qualquer forma de preconceito ou discriminação, especialmente de cunho étnico-racial e de gênero.
Nas considerações finais, são apresentados os resultados sobre a hipótese de a ação afirmativa ser compatível com a teoria da justiça como equidade. Fortes salienta que seu livro não tem o objetivo de apresentar um léxico das noções rawlsianas que legitimem, por si só, as ações afirmativas, mas, ao escrutinar o conteúdo dos escritos do filósofo e de outros teóricos que o discutiram, buscar pontos de convergência que possam justificá-las.
Assim sendo, Fortes conclui que as ações afirmativas estão alinhadas aos pressupostos da teoria rawlsiana, contribuindo com a realização do princípio da liberdade, do princípio da igualdade de oportunidades, bem como do princípio da diferença. Para além disso, estão conectadas com o mínimo social e com as noções de bens primários. Desse modo, as ações afirmativas são, segundo as análises propostas no livro, validadas nos princípios de justiça, uma vez que o autor visualizou elementos suficientemente razoáveis para garantir sua legitimidade. Por fim, é destacada a importância do debate acerca das ações afirmativas nas sociedades atuais, do mesmo modo que se defende que essas práticas sociais e institucionais estejam presentes nas democracias constitucionais hodiernas, a fim de garantir às minorias desfavorecidas o acesso a condições minimamente necessárias de dignidade para que possam se desenvolver. E, se pensarmos no atual problema da crescente desigualdade no Brasil e em tantos outros países, o imperativo político da justiça social - gerador das ações afirmativas - é um desafio social e institucional e, concomitantemente, condição sine qua non para a consolidação da vida eticamente sustentável em nosso planeta.
REFERÊNCIAS
- FORTES, Renivaldo Oliveira. A teoria da justiça de John Rawls e as ações afirmativas: reparar as contingências em direção à igualdade. Porto Alegre: Fi, 2019.
- NAGEL, Thomas. Rawls and liberalism. In: FREEMAN, Samuel (org.). The Cambridge Companion to Rawls. Nova York: Cambridge University Press, 2003. p. 62-85.
- NUSSBAUM, Martha Craven. Fronteiras da justiça. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013.
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NUSSBAUM, Martha Craven. Women and human development. Nova York: Cambridge University Press, 2012. Disponível em: https://genderbudgeting.files.wordpress.com/2012/12/nussbaum_women_capabilityapproach2000.pdf Acesso em: 23 maio 2017.
» https://genderbudgeting.files.wordpress.com/2012/12/nussbaum_women_capabilityapproach2000.pdf - RAWLS, John. O liberalismo político. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.
- RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes - Selo Martins, 2008.
- SEN, Amartya. A ideia de justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
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SEN, Amartya. Equality of what? Palo Alto, CA: Stanford University, 1979. Disponível em: http://tannerlectures.utah.edu/_documents/a-to-z/s/sen80.pdf Acesso em: 21 abr. 2016.
» http://tannerlectures.utah.edu/_documents/a-to-z/s/sen80.pdf
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
28 Out 2020 -
Data do Fascículo
Jul-Sep 2020
Histórico
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Recebido
05 Mar 2020 -
Aceito
18 Mar 2020