Open-access INTERSECCIONALIDADE: UM EXERCÍCIO TEÓRICO A PARTIR DE UMA PESQUISA EMPÍRICA1

L’INTERSECTIONNALITÉ: UN EXERCICE THEORIQUE A PARTIR D’UNE RECHERCHE EMPIRIQUE

INTERSECCIONALIDAD: UN EJERCICIO TEÓRICO A PARTIR DE UNA INVESTIGACIÓN EMPÍRICA

Resumo

Neste ensaio proponho a retomada de uma abordagem da interseccionalidade que não se restrinja à dimensão da identidade individual, incluindo também as dimensões simbólica e estrutural da sociedade. O texto se inicia com a exposição do uso do conceito de gênero e de sua articulação com a estrutura de classe, em uma pesquisa empírica qualitativa sobre o trabalho docente nos anos iniciais do ensino fundamental. Em seguida discutem-se possíveis articulações com a desigualdade racial e a conclusão sugere alguns temas ligados à educação escolar que poderiam se enriquecer se analisados com base em uma abordagem interseccional desse tipo.

GÊNERO; CLASSE; RAÇA; PROFESSORAS

Résumé

Dans cet essai je propose la reprise d’une approche de l’intersectionnalité qui ne soit pas restreinte à la dimension de l’identité individuelle, en incluant également les dimensions symbolique et structurale de la société. Le texte débute par l’exposition de l’usage du concept de genre et de son articulation avec la structure de classe, dans une recherche empirique qualitative sur le travail enseignant dans les premières années de l’école primaire. Ensuite sont analysées les articulations possibles avec l’inégalité raciale et la conclusion suggère quelques thèmes liés à l’éducation scolaire qui pourraient être enrichis par une analyse selon cette approche intersectionnelle.

GENRE; CLASSE; RACE; ENSEIGNANTES

Resumen

En este ensayo, propongo el reinicio de un abordaje de la interseccionalidad que no se restrinja a la dimensión de la identidad individual, incluyendo también las dimensiones simbólica y estructural de la sociedad. El texto comienza con la exposición sobre el uso del concepto de género y su articulación con la estructura de clase, en una investigación empírica cualitativa sobre el trabajo docente en los años iniciales de la enseñanza primaria. Enseguida, se analizan las posibles articulaciones con la desigualdad racial y la conclusión sugiere algunos temas vinculados a la educación escolar que podrían enriquecerse si fueren analizados con base en un abordaje interseccional de este tipo.

GÉNERO; CLASE; RAZA; PROFESOR

Abstract

In this essay I propose to bring back an approach to intersectionality that is not restricted to the dimension of individual identity, but also includes the symbolic and structural dimensions of society. The article starts with a presentation of the use of the concept of gender and of its articulation with class structure in a qualitative empirical research about the work of elementary school teachers. Next, possible articulations with racial inequality are discussed, and then I conclude by suggesting a few themes linked to school education that might benefit from an intersectional approach of this type.

GENDER; CLASS; RACE; TEACHERS

Ao analisar a produção acadêmica sobre interseccionalidade, Patricia Hill Collins afirma que, à medida que crescia exponencialmente, o campo abandonava cada vez mais suas raízes ligadas à luta por justiça social, concentrando-se na diversidade de identidades individuais e deixando de abordar as relações de poder e as estruturas sociais (COLLINS, 2015b). Sirma Bilge (2013) complementa essa análise apontando que a despolitização dos estudos e o abandono da análise de desigualdades estruturais estão em sintonia com a abordagem neoliberal da vida social, que passa a ser interpretada com base na interação entre empreendedores individuais. Nesse contexto, a pesquisa enfraquece sua dimensão crítica, pois a diferença e seu reconhecimento são valorizados sem que isso traga consequências para a discussão da redistribuição de poder.

Na área educacional brasileira não é diferente, e a difusão de abordagens interseccionais tem evidenciado um foco nas experiências e identidades individuais, em consonância com o tipo de análise que predomina também nos estudos de gênero e educação no país.

Neste ensaio, parto de uma pesquisa empírica para expor como foi usado o conceito de gênero e como ele foi articulado com a estrutura de classe. O objetivo é propor a retomada de uma abordagem que enfatize as dimensões simbólica e estrutural da sociedade. Inicio expondo brevemente a pesquisa e procuro destrinchar qual conceito de gênero está presente na análise, para em seguida refletir sobre como articulá-lo com outras desigualdades na interpretação dos achados. Concluo sugerindo alguns temas ligados à educação escolar que poderiam se enriquecer se analisados com base em uma abordagem interseccional desse tipo.

Desde já enfatizo que, embora essas escolhas teóricas me pareçam frutíferas para a construção de análises, elas são um caminho dentre outros possíveis, pois considero que a pluralidade de conceitos de gênero tem sido uma das potencialidades do pensamento feminista.

O TRABALHO DOCENTE NOS ANOS INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL

Escolhi abordar minha pesquisa mais recente, encerrada em 2018, sobre o trabalho docente nos anos iniciais do ensino fundamental (CARVALHO, 2018; CARVALHO et al., 2018), na qual estudei, por meio de entrevistas e observações de aula, professoras e professores da rede estadual de São Paulo. Esse estudo me pareceu interessante para esta reflexão porque trata da articulação entre gênero e classe, que em geral é menos presente nos estudos educacionais brasileiros.

Em nosso país, predomina a compreensão da interseccionalidade como articulação entre gênero e raça, em acordo com a tradição norte-americana. Nos EUA, onde teve origem o termo interseccionalidade, a questão racial tem centralidade política e a preocupação com a articulação entre diferentes formas de dominação tem suas raízes na crítica das feministas negras à representação de mulher desenvolvida pelo feminismo branco. Embora a questão de classe estivesse presente nos primeiros tempos, na medida em que o debate se institucionalizou na academia, passou a predominar uma versão mais estreita de interseccionalidade, que se toma como sinônimo de feminismo negro (NASH, 2011). Já na tradição francesa, o tema da articulação entre diferentes relações de poder emergiu da crítica feminista ao marxismo, no esforço de compreender as formas de dominação das mulheres trabalhadoras, o que conduziu a uma ênfase na relação entre gênero e classe (JAUNAIT; CHAUVIN, 2012).

A associação do ensino para crianças com a feminilidade é um fenômeno internacional bem documentado e muito debatido. No Brasil, o estudo seminal de Luís Pereira (1969),2O magistério primário numa sociedade de classes, estabeleceu as bases dessa discussão, retomada por muitos ângulos nas décadas seguintes. O autor estudou as professoras primárias de escolas estaduais na cidade de São Paulo e indicou a intensa relação estabelecida por elas entre a docência, a maternidade e o que seria uma “natureza feminina”. Quatro décadas depois, em 1999, investigando o que naquele momento eram as séries iniciais do primeiro grau, em uma escola da mesma rede de ensino, encontrei ainda uma presença marcante desse modelo de professora maternal, cuja prática identifiquei como “cuidado”, significando a atenção individualizada e integral aos alunos (CARVALHO, 1999b).

Assim, minha pesquisa recente partiu da constatação de que as novas formas de gestão da educação, chamadas de “nova gestão pública” ou gerencialismo, introduziram elementos associados à masculinidade nesse espaço historicamente entendido como feminino. Do trabalho das professoras3 passa-se a esperar eficiência, competitividade, foco na ascensão na carreira e em benefícios financeiros. Sendo um trabalho até então compreendido por marcas tais como dedicação, envolvimento emocional, vocação, trabalho por amor e por realização, estaria havendo um processo de masculinização da docência no ensino fundamental 1? Não se tratava de saber se havia mais homens lecionando, mas de compreender se as características desse trabalho, as formas de entendê-lo e os modelos de referência estavam mudando e se afastando dos significados de feminilidade.

Ao longo do ano de 2016 foi feito um estudo qualitativo, com uso de observações e entrevistas semiestruturadas. Foi selecionada a rede pública estadual de São Paulo, por sua representatividade nacional e pela presença de uma política de gestão do trabalho docente baseada na avaliação padronizada da aprendizagem, com o estabelecimento de metas e o pagamento anual de bônus. Buscando a maior diversidade possível no que se refere a sexo, idade e tempo de experiência, foram entrevistadas nove professoras, dois professores e uma coordenadora pedagógica, que atuavam nos anos iniciais do ensino fundamental em nove escolas localizadas em diferentes zonas da capital paulista ou em municípios da região metropolitana. As aulas de oito delas foram observadas em uma ou duas seções.

A rede estadual de educação básica de São Paulo abrange 5.300 escolas, nas quais estudam 4,3 milhões de alunos e trabalham 148.738 professores. Destes, 29.662 (19,94%) regem classes dos anos iniciais do ensino fundamental, sendo 91,2% do sexo feminino, segundo o Censo Escolar (INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS ANÍSIO TEIXEIRA - INEP, 2018). Governado desde 1995 pelo mesmo partido (PSDB), o estado de São Paulo tem assistido a certa continuidade nas políticas educacionais, pautadas por propostas de reduzir custos e melhorar a eficiência por meio de reforma administrativa baseada nos princípios do gerencialismo. Essa política pode ser compreendida por meio de dois eixos complementares: de um lado, a implantação de uma sistemática de avaliação do desempenho dos alunos por meio de testes padronizados (Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar do Estado de São Paulo - Saresp) e da criação em 2007 de um índice estadual (Índice de Desenvolvimento da Educação do Estado de São Paulo - Idesp), que, além dos resultados do teste, considera também o fluxo escolar; e de outro lado, a premiação financeira dos(as) educadores(as), seja com base nos resultados desses testes e no cumprimento de metas (bonificação por resultado), seja pela avaliação dos(as) professores(as) para progressão na carreira (prova de mérito) (CASSETARI, 2010; ZATTI, 2017).

Essas políticas de gestão foram implementadas de cima para baixo, o que no caso dos anos iniciais do ensino fundamental significa que foram impostas a professoras e professores que historicamente partilhavam um modelo de trabalho baseado em características tidas como femininas. Por exemplo, 92,5% das professoras primárias que responderam aos questionários de Luís Pereira em 1959 afirmaram que a profissão era mais adequada às mulheres, e justificaram: “À mulher é mais fácil transformar a escola num segundo lar. Há inúmeros alunos que sentem essa falta em classe de professor”; “na minha opinião, a mulher está por natureza e instinto mais ligada à criança” (PEREIRA, 1969, p. 49). Em 1999, reencontrei essas características expressas em falas e concretizadas em práticas de cuidado. Nas palavras de uma jovem professora, então com 21 anos:

Eu acho que mulher tem mais paciência que homem, não é? Principalmente aquelas que são mães, se você é mãe e tem aluno, eu acho que tem mais paciência, entende melhor as crianças. [...] Eu acho que é serviço sim, do professor, ajudar também na família. O professor, ele não tem que só passar conteúdos, porque às vezes você conversando com um aluno, você conversando com o pai ou a mãe, você dá um jeito em muitos problemas. (CARVALHO, 1999b, p. 76)

As entrevistas realizadas em 2017 trouxeram indicações de que essa tradição ainda está muito presente, como nessas falas de Ester e de Celina:4

[O bom professor] em primeiro lugar, ele tem de amar, em primeiro lugar, amar os alunos. [...] Desde os primeiros anos, eu sempre trabalhei com muito coração, né, naquilo que eu faço. Depois que eu tive a minha filha, ficou mais presente ainda, porque eu via os alunos como se fossem meus filhos, e sempre pensei assim: eu quero dar o máximo do que eu puder pra eles, porque era como se fosse a minha filha que estava sentada ali naquela carteira. (Ester)

Eu procuro dar a atenção que eles precisam, dar o carinho, porque, às vezes, eles sentem muita falta disso. [...] Tem alguns que a gente percebe que são bem carentes de atenção, de carinho. E às vezes essa é a única atenção que eles têm, aqui com a gente. [...] Quando estamos fazendo alguma atividade que eles têm mais dificuldade, eu pego a cadeira, eu sento junto com ele, vou explicando, vou conversando. Aí, às vezes, a gente entra em questões particulares do aluno, também, que ele acaba contando, se abrindo. (Celina)

Ao longo das seis décadas que decorreram desde o estudo de Luís Pereira, muita coisa mudou nas relações entre homens e mulheres no Brasil, assim como nas hierarquias de gênero e nas formas de interpretá-las. As professoras já não falam em instinto maternal e natureza feminina, falam em inteligência emocional, carência afetiva, empatia. Mas permanece a associação de seu trabalho com a feminilidade, assim como a importância atribuída ao desenvolvimento integral dos alunos (práticas de cuidado).

Mais ainda, a tradição não se repete idêntica na contemporaneidade: ela é ressignificada no contexto das novas formas de gestão do trabalho docente. Pode dar margem a mecanismos de controle e exploração do trabalho, tais como culpabilização, responsabilização individual da professora, aceitação de controle externo e de más condições de trabalho. Por exemplo, o bom funcionamento da proposta curricular pressupõe o uso de equipamentos e recursos próprios das professoras, como relata Cecília:

O próprio EMAI [Ensino de Matemática nos Anos Iniciais - material oficial do estado], ele fala: você tem que dar lição de casa. Eu dou lição de casa para os meus alunos. Quem faz? Sou eu. Quem imprime? Sou eu, eu compro a folha, eu compro tinta. (Cecília)

Da mesma forma, novas obrigações introduzidas pela gestão gerencialista aumentaram o tempo de trabalho em casa e na escola, além de diversificar as tarefas, seja pelo aumento das exigências burocráticas, com um grande número de planilhas e relatórios a entregar; seja pela obrigatoriedade de fazer cursos e reuniões de formação, que não estão incluídos no tempo de trabalho pedagógico pago pelo estado. Assim, se os tempos de lazer e de trabalho das professoras historicamente vêm sendo superpostos e misturados, as novas formas de gestão se valem da tradição feminina da categoria para avançar em direção à flexibilização total do trabalho ou, nos termos propostos por Abílio (2019), na criação da trabalhadora just in time.

O caso da professora Zuleica é emblemático, não apenas no que diz respeito à disponibilidade do tempo, mas também quanto à polivalência e à precariedade. Com quase 30 anos de magistério, ela não era efetiva e descreveu a si mesma como “professora multiuso”, referindo-se à sua tripla jornada de trabalho escolar, pois chegava diariamente à escola onde foi feita a entrevista às 7 horas da manhã e ficava até as 11h45 “na disposição”, isto é, a postos para substituir alguma professora que faltasse. Às 12h30 entrava em sala de aula em outra escola, na qual regia uma classe, e à noite voltava à primeira escola, para substituir professores do ensino fundamental 2.

Eu venho na tentativa, porque é mais fácil, né? Trago algumas atividades, e se tiver alguém que falte, estou eu pronta, porque eu gosto de preparar a aula também, qualquer série que eu entro, eu acho que a gente tá aqui para dar o nosso melhor. (Zuleica)

Se nenhum colega faltasse, “é um dia dispensado”: Zuleica ficava à disposição e não recebia nada. Trata-se de precariedade, polivalência e disponibilidade total que não foram criadas pela nova gestão da rede escolar, mas são inteiramente funcionais a ela e sobrevivem fortalecidas ao lado da modernidade propalada e do aparato técnico mobilizado.

Contudo as características tradicionalmente associadas à feminilidade também podem originar resistências, visíveis nas práticas de manter a atenção individualizada e integral a cada aluno (práticas de cuidado), apesar dos testes padronizados, das metas e dos bônus; nas críticas às soluções massificadas impostas pelo sistema escolar; assim como na possibilidade de agir movida não apenas pelo interesse financeiro e de se sentir realizada com o significado do trabalho.

Todas as professoras (incluindo os dois homens entrevistados) falaram da importância das recompensas não monetárias do seu trabalho, que foi classificado como gratificante e significativo. Elas disseram que adoravam dar aula, que era um trabalho em que viam resultados, em que podiam fazer a diferença e olhar para o futuro, um trabalho encantador, em que eram felizes. Como exemplificam Marlucy e Valter:

Ah, eu acho que o mais importante é ver a aprendizagem do aluno. Para mim, o que mais me gratifica é ver que o meu aluno aprendeu, sabe?, que ele está progredindo, que ele está evoluindo. [...] Isso me faz muito, muito bem. Eu acho que é o mais importante, porque ganhar dinheiro, a gente acaba ganhando com outras coisas também, se a gente for atrás. [...] Tem gente, às vezes, que deve fazer mais dinheiro do que eu, por dia, vendendo doce no metrô. Mas por que que a gente continua na sala de aula? Eu acho que é por causa desse sentimento mesmo, gratificante, de verdade. (Marlucy)

O salário [na empresa em que trabalhava] era melhor, era o triplo da Educação. [...] Abri mão de muita coisa, materialmente falando, mas não me arrependo não, porque eu consegui fazer o que eu gosto. (Valter)

Elas tinham, assim, grande envolvimento com seus alunos e compromisso com o ensino. E, se isso abria as portas para a intensificação do trabalho, era também fonte de crítica e insatisfação com o sistema padronizado e controlado de gestão. Ao enfatizar sua responsabilidade com as crianças e não com números, ao lembrar a dimensão individual da aprendizagem, ao retomar a ideia de uma educação que não se restringe à transmissão de conteúdos, parte das professoras articulava críticas à gestão em vigor nas escolas:

Se você atinge a meta, você ganha bônus, a escola recebe o bônus; se não atinge a meta, não recebe. E tem o fluxo também, se tem algum problema de evasão, não recebe o bônus. Então, tem escolas que é um desespero para ir atrás dos alunos que estão faltando. E não é preocupação com o aluno, é por causa do bônus. (Amanda, grifo nosso)

É como se fosse um bolo [o currículo oficial]: você pode até rechear, mas é muito pouco, você não pode ir buscar muitas fontes. Corre o risco de atrasar. Fica assim, massificado, né? [...]. Então, eu sou assim, eu busco ir além, eu recheio esse bolo com outras fontes, mas não é o objetivo, ela deixa bem claro, a minha coordenadora. (Cláudia)

Não se trata, portanto, nem de uma simples substituição de modelos de trabalho feminino por masculino, nem apenas de uma instrumentalização de características tidas como femininas a fim de garantir a superexploração do trabalho das professoras. Trata-se de convivência e combinação desses modelos de trabalho docente, constituindo tradições reinventadas e produzindo “novas antigas relações de trabalho” (ABÍLIO, 2014).

ONDE ESTÁ O GÊNERO NESSA ANÁLISE?

O conceito de gênero utilizado nessa interpretação é devedor de trabalhos como o clássico de Sandra Harding, Science question in feminism (1986). Logo no início da obra, Harding apresenta seu conceito de gênero e o retoma ao longo de toda a análise sobre a ciência. Ela insiste na necessidade de considerar três dimensões: o simbolismo de gênero, a estrutura de gênero e o gênero individual, sempre destacando que cada dimensão está envolvida na construção de relações de poder.

Após indicar a presença universal e muito antiga de sistemas simbólicos baseados no gênero e afirmar que significados de gênero impregnam nossos sistemas de crença, nossas instituições, toda nossa vida social, Harding afirma:

A vida social gendrada é produzida por meio de três processos distintos: é o resultado da atribuição de metáforas dualísticas de gênero a diversas dicotomias que percebemos e que raramente têm qualquer coisa a ver com a diferença sexual; é a consequência do recurso a esses dualismos de gênero para organizar a atividade social, para dividir atividades sociais entre diferentes grupos de pessoas; e é a forma de identidades individuais socialmente construídas, só imperfeitamente correlacionadas com a “realidade” ou a percepção das diferenças sexuais.5 (1986, p. 17, tradução nossa)

Definições de gênero próximas a essa, destacando três ou quatro dimensões (simbólica, estrutural ou institucional, e individual) estão presentes em outros textos dos anos 1980, como no conhecido artigo de Joan Scott (1995), “Gênero, uma categoria útil de análise histórica”. Originalmente publicado em 1986, o texto de Scott propõe que “o gênero implica em quatro elementos inter-relacionados”: “os símbolos culturalmente disponíveis”; os “conceitos normativos que expressam interpretações dos significados dos símbolos”; a política, as instituições e a vida social; e “a identidade subjetiva” (p. 86-87).

Com uma abordagem diferente, Raewyn Connell, no livro Gender and power: society, the person and sexual politics, de 1987, sugere quatro dimensões nas relações de gênero: poder, produção (em que inclui a divisão sexual do trabalho), simbolismo e catexia (relações emocionais e vínculos pessoais). Connell enfatiza a importância de considerar as relações de gênero como relações de poder e reafirma que considerar as dimensões estruturais não significa negar a mudança e a ação dos sujeitos.

O que quero destacar nessas abordagens é o fato de não reduzirem a compreensão do gênero nem às estruturas sociais, nem aos sistemas simbólicos, tampouco às identidades e relações pessoais. Elas indicam a necessidade de articular essas diferentes dimensões.

Já Patricia Hill Collins, em artigo publicado originalmente em 1989, cita exatamente a definição de Harding (1986) e dá um importante passo adiante, ao trabalhar as dimensões simbólica, institucional e individual não apenas de gênero, mas também de raça e classe, considerando que a proposição de Harding é útil para uma análise mais abrangente, interseccional (COLLINS, 2015a). Sem desconhecer a possibilidade de ação individual, a autora destaca as dimensões estruturais:

Relações sistêmicas de dominação e subordinação estruturadas por meio de instituições sociais, tais como escolas, empresas, hospitais, locais de trabalho e agências governamentais, representam a dimensão institucional da opressão. Tanto o racismo quanto o machismo e o elitismo podem ser concretamente localizados em instituições. (COLLINS, 2015a, p. 20)

Atualmente, quase sempre o que vemos nas análises de gênero e em análises interseccionais é um foco restrito à dimensão da identidade individual. Dessa forma, a abordagem interseccional se limita muitas vezes à descrição de que mulheres negras de baixa renda ocupam tal ou qual lugar na sociedade; ou homens brancos de camadas médias exercem tal tipo de poder, etc. E fica impossível avançar na análise sociológica, ir além dos aspectos descritivos. Ao mesmo tempo, as relações de poder e as desigualdades sociais saem do foco.

A definição de Scott, muito utilizada nos estudos educacionais no Brasil, embora distinga praticamente as mesmas três dimensões propostas por Harding, foi lida principalmente na sua dimensão simbólica e num contexto de ênfase na produção discursiva das identidades, com base na influência do pós-modernismo e pós-estruturalismo.

Para debater esse tipo de leitura, vale a pena lembrar que Harding (1986), por exemplo, destaca a dimensão simbólica, mas não o faz no campo restrito da construção de identidades:

Como sistema simbólico, a diferença de gênero é a mais antiga, universal e poderosa origem de muitas conceituações moralmente valorizadas sobre tudo que nos cerca. [...] Tão longe na história quanto podemos ver, organizamos nossos mundos social e natural em termos de significados de gênero dentro dos quais foram construídos instituições e significados. [...] Desde que começamos a teorizar o gênero - a definir gênero como uma categoria analítica dentro da qual os humanos pensam e organizam sua atividade social, mais do que como uma consequência natural da diferença sexual, ou ainda como uma simples variável social atribuída a indivíduos de forma diferente de uma cultura para outra - pudemos começar a avaliar a extensão na qual os significados de gênero impregnaram nossos sistemas de crença, instituições e até mesmo fenômenos aparentemente sem gênero como nossa arquitetura e planejamento urbano.6 (HARDING, 1986 p. 17-18, tradução nossa)

Scott se expressa em termos muito semelhantes: “Estabelecidos como um conjunto objetivo de referências, os conceitos de gênero estruturam a percepção e a organização concreta e simbólica de toda a vida social” (SCOTT, 1995, p. 88). E também exemplifica esse movimento citando fenômenos que aparentemente nada têm de gênero, como a diplomacia e a agricultura.

Sobre a identidade, Harding (1986) insiste que o gênero não pode ser tomado como uma característica dos indivíduos e de seus comportamentos, já que faz parte das estruturas sociais e dos esquemas conceituais. Para ela, é dentro dessas estruturas e esquemas que identidades individuais generificadas são constituídas.

Está muito presente nos estudos interseccionais brasileiros, especialmente no feminismo negro, a ênfase na experiência. Trata-se de um esforço importante para quebrar o silêncio e a omissão sobre as vidas das mulheres negras, já que negar a realidade da experiência de uma pessoa ou um grupo é uma maneira de desumanizá-los. Mas essa ênfase não tem ajudado a analisar as dimensões institucionais e estruturais da desigualdade.

Collins (2015a, p. 18) aponta a diferença que pode haver entre a experiência vivida e a postura teórica que propõe a natureza imbricada das opressões: “Raça, classe ou gênero podem estruturar uma situação, mas podem não ser igualmente visíveis e/ou importantes nas auto definições das pessoas”. Para ela, as dimensões simbólica e institucional formam um pano de fundo sobre o qual nós vivemos nossas vidas e traçamos caminhos de aceitação ou transformação - há escolhas individuais, mas elas não se dão fora de contexto.

Para essas autoras, portanto, insistir nas estruturas não significa abandonar a perspectiva de ação dos sujeitos, nem analisar apenas permanências, já que estruturas e esquemas conceituais têm história, são contraditórios e mutáveis.

Assim, no livro já citado, a linha geral do raciocínio de Harding (1986) é: se o gênero - em sua dimensão simbólica, mas não somente nela - impregna toda a vida social e se a ciência é uma construção social, então a ciência está estruturada em termos de gênero. Ora, o raciocínio na minha pesquisa é paralelo: se a atividade de ensinar nos anos iniciais do ensino fundamental é socialmente construída, então ela também é estruturada em termos de gênero, no caso associada a uma feminilidade. Da mesma forma, o gerencialismo está significado e organizado em termos generificados, produzindo subjetividades marcadas por características atribuídas a uma masculinidade, tais como a competitividade, a racionalidade técnica, o utilitarismo e a motivação financeira.

Nesse movimento de análise, não se trata de indagar se são mulheres ou homens que exercem a atividade de ensinar, nem de conhecer seus processos individuais de construção de identidades. Trata-se de compreender como feminilidades e masculinidades estruturam a prática de lecionar, num contexto histórico específico.

E A CLASSE SOCIAL?

Minha preocupação, portanto, não era entender como aqueles homens e mulheres constituíam suas identidades de gênero e de classe, mas como lidavam com esses significados múltiplos que estruturam sua atividade docente. Assim, para fazer a articulação entre gênero e classe não me bastaria definir o pertencimento de classe dos sujeitos da pesquisa, ou sua renda. E constatar, por exemplo, que a maioria das professoras do fundamental 1 na rede estadual de São Paulo são mulheres originárias de famílias de camadas médias baixas.7

Era preciso encontrar a forma de articulação estrutural do capitalismo contemporâneo, trazer também a discussão sobre classe para o plano da estrutura social, para além da renda individual e do pertencimento de classe dos sujeitos. Pois não se tratava de adicionar um elemento econômico (classe) a uma dimensão simbólica (gênero), já que considero que tanto gênero quanto classe têm dimensões econômicas, sociais, políticas e simbólicas.

Da mesma maneira que podia perceber o gênero organizando toda a nossa vida social, era preciso entender como a estrutura de classes do capitalismo contemporâneo fazia o mesmo, estruturando símbolos, instituições e identidades individuais.

Encontrei essa abordagem nos estudos que têm apontado o neoliberalismo como “nova razão do mundo”, título do livro de Dardot e Laval (2016). São interpretações que vão muito além do economicismo e mostram a constituição de subjetividades baseadas na concorrência e no empreendedorismo como forma atual de controle no capitalismo globalizado.

De maneira muito sintética, podemos dizer que para Dardot e Laval (2016), o neoliberalismo não significa apenas uma mudança econômica, mas representa uma nova racionalidade, baseada na lógica empresarial, que reorganiza e passa a reger desde a subjetividade de cada um até o Estado: política, sociedade e economia se juntam sob a razão empresarial, baseada no custo-benefício, na expansão ilimitada, no risco e na concorrência. Os autores levam em consideração as mudanças econômicas e tecnológicas, como o predomínio do capital financeiro, a globalização e mudanças significativas nos processos de trabalho, mas indicam que se trata também de alterações profundas no funcionamento e no papel do Estado, assim como a constituição de um novo sistema disciplinar, um dispositivo que apela à liberdade de escolha e à possibilidade de resolver, por meio de técnicas de gerência, todos os problemas sociais e individuais. O mercado passa a ser o modelo lógico universal e pregnante, assentando uma visão utilitarista do ser humano, visto como empresa de si mesmo.

São, portanto, análises que também circulam entre os campos do simbólico, do institucional e do individual, entre economia, política e subjetividade. Incorporar essas interpretações em minha compreensão das novas formas de gestão implantadas nas escolas da rede estadual paulista permitiu perceber a introdução da lógica de empresa nas salas de aula, com o incentivo à concorrência entre professoras, a valorização da performance e o suposto de que as educadoras se organizavam com base em metas numéricas e colocavam em primeiro lugar a recompensa financeira.

O próprio problema de pesquisa se constitui, portanto, no encontro entre classe e gênero. Considerar também as relações de gênero tornou possível perceber que essas características da gestão neoliberal são culturalmente associadas a uma masculinidade: a introdução dessas formas de gestão do trabalho estaria levando a um processo de masculinização da docência? O que estava acontecendo com as características tidas como femininas no ideal de professora, diante da subjetividade empresarial pressuposta nessa gestão?

Nas falas e práticas das educadoras foi possível perceber uma intensa articulação entre gênero e classe, revelando como se combinam essas estruturas nos planos simbólico e institucional. As professoras diziam ficar angustiadas e perder noites de sono com as dificuldades de aprendizagem das crianças e colocavam seus sentimentos, seu compromisso e sua responsabilidade social a serviço do cumprimento das metas em testes padronizados, percebidos como único indicador de uma educação de qualidade e como sinônimo da realização do direito ao conhecimento. Enfim, elas se dispunham a cumprir as metas por amor aos alunos:

Hoje mesmo a coordenadora mostrou para a gente a meta do ano passado, do Idesp, a gente superou a meta; mas obviamente que não é perfeito... Sempre tem aquele aluno que chega no 5º ano sem saber ler e escrever. Isso é uma angústiamuito grande para a gente, dar conta desses alunos, então... (Cintia, grifo nosso)

Independente da gente ter bônus ou não, a gente vai ensinar aquilo para o aluno, aquilo que a gente tem obrigação, que é dever nosso ensinar e é direito dele saber. [...] O que as coordenadoras propõem a gente acata, porque a gente pensa nos alunos. (Renata, grifo nosso)

E era também no encontro contraditório entre gênero e classe que se teciam as resistências: a recompensa monetária era muito menos valorizada que o prazer e a realização por meio do sucesso dos alunos, a carreira era menos importante que a esperança e a possibilidade de transformar seu entorno. A atenção individualizada e afetiva às crianças era fonte de críticas à padronização dos testes e das soluções propostas de cima para baixo:

Às vezes, chegam projetos prontos, da Diretoria de Ensino, que eles falam: “Esse projeto é para ajudar os alunos não alfabéticos.” Mas, às vezes, é uma coisa que não faz muito sentido para o meu aluno. E aí depois vem a outra cobrança, que é a cobrança de colocar em prática aquilo que eles mandaram pronto. [...] Porque aquela criança, para a Diretoria de Ensino, ela é só um número, ela é só uma corzinha lá na tabela que está dizendo que ela não é alfabética ainda. A Diretoria de Ensino não tem o cuidado de ir lá e saber quem é esse aluno, que dificuldade que ele tem, quem é a família desse aluno; então, esse cuidado não tem. (Cecília, grifo nosso)

Mesmo quando não formulavam críticas explícitas, as professoras diariamente contestavam, em suas práticas, o foco em resultados quantificáveis, ao valorizar as relações afetivas com os alunos e envolver-se com seu desenvolvimento integral. Dessa forma, se historicamente a feminilidade atribuída às professoras foi associada com o não profissionalismo, e se ela tem efetivamente tensões e contradições, essa feminilidade envolve também a oposição à padronização do ensino, à racionalidade concorrencial, à despersonalização das relações e à simplificação decorrente da medição - enfim, oposição à lógica empresarial.

COMO ARTICULAR COM RAÇA?

Nessa análise, não fiz a articulação entre gênero e raça. Para não ficar na mera descrição de quais professoras se declaravam como brancas ou como negras, e apreender a raça para além de características dos corpos, precisaria ter em mãos análises das relações raciais que também transitassem nas três dimensões: estrutural/institucional, simbólica e individual. Seria preciso avançar na direção proposta por Luciana Alves (2010, p. 14) e elaborar “um objeto de pesquisa que não se baseasse em sujeitos e identidades, mas em concepções sobre a brancura [e a negritude] e sobre a raça, investigando como essas concepções dão forma às relações estabelecidas pelas pessoas, independentemente de sua pertença racial”. E, tal como Harding (1986) observou sobre as identidades de gênero, essa abordagem deveria assumir que as identidades raciais somente em parte têm a ver com características corporais percebidas nas pessoas, por vezes uma correlação remota.

Mais além, não bastaria uma discussão atemporal e imprecisa. Seria necessário ter claro o peso das relações raciais no contexto específico do ensino escolar para crianças no Brasil contemporâneo. A feminilidade historicamente associada a essa ocupação está associada também à branquitude? O que exatamente isso significa?

A noção de interseccionalidade nasceu das críticas das feministas negras norte-americanas ao feminismo predominante naquele país nos anos 1970, que se pretendia universal, mas se baseava na experiência de opressão das mulheres brancas de camadas médias. Pensadoras ligadas ao feminismo antirracista e lésbico apontaram, entre outros problemas, que características da feminilidade que vinham sendo identificadas pelo movimento, tais como a fragilidade, a domesticidade, a ênfase nas emoções e nas relações interpessoais, diziam respeito apenas ao grupo das mulheres brancas, heterossexuais e de setores médios.

No caso dos EUA, estudos históricos como os de Phyllis Palmer (1989) e Bell Kaplan (1987) indicam como a feminilidade idealizada da dona de casa branca se construiu menos em oposição a uma masculinidade do que em contraponto às características atribuídas à empregada doméstica não branca (forte, rude, desleixada, etc.). Essas análises sugerem que apenas a complexa inter-relação entre divisões de gênero, classe e raça permite compreender como as mulheres estão hierarquicamente localizadas no processo cotidiano da reprodução, o que tem consequências até mesmo nas definições de feminilidade.

Pensando de forma específica no conceito de cuidado, ele também parece ter sido inicialmente construído com base na experiência das brancas de classe média. É referido à esfera doméstica e ao trabalho gratuito para seus próprios familiares, não permitindo compreender nem criticar a posição das mulheres de origem popular, particularmente as negras (e migrantes, como as latinas), majoritariamente empregadas no serviço doméstico - prestando, portanto, serviços de cuidado remunerado a pessoas que não são de sua família. Mais ainda, Hillary Graham (1991, p. 66) indica que não se trata apenas de saber que o trabalho remunerado de cuidar é exercido por mulheres não brancas, mas de tomar “a estruturação racial do trabalho de cuidado como objeto de análise”.8

No feminismo norte-americano, dessa forma, há uma discussão consolidada, e essa discussão talvez ajude a compreender também nosso país. Se para as mulheres brancas de classe média o trabalho doméstico é um divisor de águas entre a vida pública e a vida privada, a família é sinônimo de esfera privada e os trabalhos relacionados ao cuidado a seus familiares são vividos como confinamento e opressão, o mesmo não pode ser afirmado para todas. Para as negras, desde a escravidão até o serviço doméstico assalariado, o trabalho fora de suas próprias famílias - frequentemente um trabalho de cuidar da família dos outros - teve precedência sobre as necessidades de seus filhos e parentes. E a ausência de uma esfera privada claramente definida, mais do que sua presença, estruturou suas experiências de opressão. Basta lembrar das amas de leite e mais recentemente das empregadas domésticas residentes no emprego, os filhos criados pelas avós nas localidades de origem dessas trabalhadoras. Para as mulheres negras, a possibilidade de cuidar de sua própria família e mantê-la unida teria o sentido de conquista, liberdade e resistência à opressão racial e de classe; enquanto o trabalho remunerado de cuidar da família dos outros seria vivido como situação emblemática de sua opressão.

Como essa questão reverbera atualmente no trabalho das professoras brasileiras? O fato de o modelo ideal de docência para crianças incorporar práticas de cuidado e elementos de uma feminilidade - tais como dedicação, amorosidade, delicadeza - está relacionado também à branquitude e à origem de classe?

Esbocei essa análise na interpretação do trabalho de Alda, uma das professoras que entrevistei e observei em meu doutorado (CARVALHO, 1999a, 1999b). Alda era a única professora negra da escola investigada e também a única de origem popular. Mais do que suas colegas, ela percebia o magistério como seu trabalho, não falava em vocação, nem de uma paixão por ensinar que viesse da infância, embora partilhasse do ideal de professora dedicada e envolvida emocionalmente com as crianças. Ao mesmo tempo, o trabalho como empregada doméstica (ocupação mais comum entre as mulheres da família de Alda) parecia assombrar sua relação com os alunos, filhos dos outros a solicitar sua atenção, seu envolvimento, seu tempo (“eu não sou babá”). As falas e atitudes de Alda indicavam que a delimitação de uma esfera privada em sua vida era um privilégio precariamente estabelecido, pelo qual ela ainda precisava lutar, sublinhando as diferenças entre trabalho profissional e trabalho doméstico, enfatizando as dimensões técnicas do trabalho docente e refreando seu envolvimento afetivo na escola. Se para as demais professoras o trabalho de ensinar parecia significar a realização de sua feminilidade, Alda aparentava enfrentar uma situação mais contraditória.

Essa análise, contudo, estava focada na interpretação de um caso específico e, ainda que apontasse as mesmas questões, não explicitava um debate sobre a dimensão racial envolvida no ideal de professora dedicada e afetiva. Além disso, até onde consegui me informar, não teve sequência em outras pesquisas.

Repito, não se trata de saber se as professoras são brancas ou negras, mas se o trabalho docente no ensino fundamental é percebido como feminino e também como branco. Por meio dessa percepção social, tanto homens quanto mulheres, negrxs e brancxs, precisam se posicionar e construir suas formas de trabalho, práticas de conformismo e de resistência.

OUTROS PROBLEMAS DE PESQUISA

Finalmente, é bom enfatizar que é bastante razoável e possível desenvolver esse tipo de estudo sobre múltiplos outros objetos - e foco meus exemplos no campo da educação formal. Se concordamos com Harding (1986) que os conceitos de gênero impregnam todo nosso sistema simbólico e institucional e abrangem fenômenos aparentemente sem gênero - e ela exemplifica com a arquitetura e o planejamento urbano, tal qual Scott (1995) exemplifica com a agricultura e a diplomacia; e mais, se concordamos com Collins (2015a) que esse é um caminho fértil para construir análises interseccionais, então podemos nos colocar muitas novas questões.

Em estudos anteriores analisei as diferenças de desempenho escolar entre meninos e meninas, considerando também as desigualdades econômicas e raciais, e procurando entender se o sucesso na escola é percebido como masculino, feminino, branco, negro (CARVALHO, 2009). Essa se mostrou uma questão complexa e multifacetada e, apesar de diversas(os) pesquisadoras(es) terem desenvolvido teses e dissertações nessa trilha (TOLEDO, 2016; SENKEVICS, 2015; PEREIRA, 2008, 2015; ARTES, 2009), ainda restam muitas perguntas, tais como as razões das diferenças de resultados em testes padronizados; os desempenhos diferenciados em disciplinas específicas, como Português e Matemática; a influência da faixa etária de alunos e alunas; as variações encontradas entre escolas urbanas e rurais, públicas e particulares, ou que atendem famílias de diferentes classes sociais; ou ainda os modos como acontece a classificação racial no interior da escola, em relação com gênero e classe.

Da mesma forma, pesquisas têm indagado sobre a associação da indisciplina escolar com certos tipos de masculinidade (NEVES, 2008; SANTOS, 2007; SILVA NETO, 2019). Essa também tem se mostrado uma questão complexa e avessa a simplificações, o que se evidencia quando se pensa nas formas de indisciplina das meninas, nas diferenças entre crianças e jovens, nas maneiras como a indisciplina é relacionada à percepção da negritude e da pobreza ou como as educadoras(es) definem o que seriam comportamentos indisciplinados.

Assim como a pesquisa sintetizada nesse ensaio focou o trabalho docente nas séries iniciais do ensino fundamental, Saboya (2004) e Oliveira (2019) estudaram a direção de escolas: seria ela vista como masculina ou feminina? Em que aspectos as mudanças decorrentes da “nova administração pública”, ao levar às escolas a lógica do empreendedorismo e da concorrência, aproximaram gestores e gestoras de um modelo de masculinidade? Cabe destacar que essas pesquisas não enfrentaram a pergunta se esses modelos são associados com a brancura e seus significados.

Na verdade, caberia investigar também o trabalho docente nos diferentes níveis e modalidades de ensino, da creche ao ensino superior, assim como o conjunto da hierarquia de cargos no sistema educacional, desde as merendeiras - cujo trabalho é intensamente associado ao serviço doméstico, portanto à feminilidade, à negritude e à pobreza - até os secretários e ministros da educação (cargos associados à masculinidade, à brancura e a melhores remunerações). Pode-se considerar, por exemplo, que o Ministério da Educação é mais feminino que o da Economia? Estão ambos igualmente associados à brancura?

Ou ainda: os espaços escolares estão organizados em termos de gênero, classe e raça? Como essa organização influencia a hierarquização dos espaços e sua ocupação por diferentes sujeitos? O pátio de recreio, a diretoria, a quadra, a cozinha, as carteiras mais próximas ou mais distantes da professora - como são pensados no cotidiano? Que relações de poder estão aí envolvidas?

Seria possível prosseguir indefinidamente na sugestão de objetos de estudo do campo educacional, que não se baseiam em sujeitos e identidades, mas em noções sociais sobre gênero, classe e raça. Entretanto, quero apenas deixar em aberto algumas provocações, na esperança de incentivar novas pesquisas.

REFERÊNCIAS

  • ABÍLIO, Ludmila Costek. Sem maquiagem: o trabalho de um milhão de revendedoras de cosméticos. São Paulo: Boitempo, 2014.
  • ABÍLIO, Ludmila Costek. Uberização: a edição da velha ideia do trabalho amador. Entrevista. Revista IHU On-Line, ago. 2019. Disponible at: http://www.ihu.unisinos.br/159-noticias/entrevistas/591603-uberizacao-a-edicao-da-velha-ideia-do-trabalho-amador-entrevista-especial-com-ludmila-abilio Access on: Feb. 6, 2020.
    » http://www.ihu.unisinos.br/159-noticias/entrevistas/591603-uberizacao-a-edicao-da-velha-ideia-do-trabalho-amador-entrevista-especial-com-ludmila-abilio
  • ALVES, Luciana. Significados de ser branco: a brancura no corpo e para além dele. 2010. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.
  • APPLE, Michael. Relações de classe e de gênero e modificações no processo de trabalho docente. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 60, p. 3-14, fev. 1987.
  • ARTES, Amélia Cristina Abreu. O trabalho como fator determinante da defasagem escolar dos meninos no Brasil: mito ou realidade? 2009. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.
  • BILGE, Sirma. Intersectionality undone. Du Bois Review, v. 10, n. 2, p. 405-424, 2013. DOI:10.10170S1742058X13000283
    » https://doi.org/10.10170S1742058X13000283
  • CARVALHO, Marília Pinto de. A história de Alda: ensino, classe, raça e gênero. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 25, n. 1, p. 89-106, 1999a.
  • CARVALHO, Marília Pinto de. No coração da sala de aula: gênero e trabalho docente nas séries iniciais. São Paulo: Xamã; Fapesp, 1999b. v. 1. 247p.
  • CARVALHO, Marília Pinto de. Avaliação escolar, gênero e raça. Campinas: Papirus, 2009. v. 1. 128p.
  • CARVALHO, Marília Pinto de. As professoras e o pagamento de bônus por resultado: o caso da rede estadual de São Paulo. Educar em Revista, Curitiba, v. 34, n. 72, p. 187-207, dez. 2018.
  • CARVALHO, Marília Pinto de; TOLEDO, Cinthia Torres; OLIVEIRA, Ivana Gonçalves de; MODESTO, Ângela Esteves; SILVA NETO, Cláudio da. Cuidado e gerencialismo: para onde vai o trabalho das professoras. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 34, dez. 2018.
  • CASSETARI, Natalia. Remuneração variável para professores: revisão da literatura e desdobramento no estado de São Paulo. 2010. Dissertação (Mestrado em Educação) -Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.
  • COLLINS, Patricia Hill. Toward a New Vision: Race, Class, and Gender as Categories of Analysis and Connection. Race, Sex & Class, v. 1, n. 1, p. 25-45, Fall 1993.
  • COLLINS, Patricia Hill. Intersectionality’s definitional dilemmas. Annual Review of Sociology, v. 41, p. 1-20, 2015. DOI: 10.1146/annurev-soc-073014-112142
    » https://doi.org/10.1146/annurev-soc-073014-112142
  • CONNELL, Raewyn. Gender and power: society, the person and sexual politics. Palo Alto: Stanford University Press, 1987.
  • DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. The new way of the world: on neoliberal society. London: Verso, 2013.
  • GRAHAM, Hilary. The concept of caring in feminist research: the case of domestic service. Sociology, v. 25, n. 1, p. 61-78, Feb. 1991.
  • HARDING, Sandra. The Science question in feminism. Ithaca: Cornell University Press, 1986.
  • INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS ANÍSIO TEIXEIRA. Censo Escolar 2017. Brasília: Inep, 2018.
  • JAUNAIT, Alexandre; CHAUVIN, Sébastien. Représenter l’intersection. Revue Française de Science Politique, v. 62, p. 5-20, 2012. DOI: 10.3917/rfsp.621.0005
    » https://doi.org/10.3917/rfsp.621.0005
  • KAPLAN, Bell. I don’t do no windows: competition between the domestic worker and the housewife. In: MINER, Valerie; LONGINO, Helen (org.). Competition: a feminist taboo. New York: Feminist Press, 1987. p. 92-105.
  • NASH, Jennifer C. “Home truths” on intersectionality. Yale Journal of Law and Feminism, New Haven, v. 23, n. 2, p. 445-470, 2011.
  • NEVES, Paulo Rogério C. As meninas de agora estão piores do que os meninos: gênero, conflito e violência na escola. 2008. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.
  • OLIVEIRA, Ivana Gonçalves de. Gestão escolar e gênero: análise do trabalho de diretoras(es) no contexto das reformas educativas. 2019. Dissertação (Mestrado em Educação) -Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019.
  • PALMER, Phyllis. Domesticity and dirt: housewives and domestic servants in the United States, 1920-1945. Philadelphia: Temple University Press, 1989.
  • PARO, Vitor Henrique. Trabalho docente na escola fundamental: questões candentes. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 42, p. 586-611, ago. 2012.
  • PEREIRA, Fábio Hoffmann. Encaminhamentos a recuperação paralela: um olhar de gênero. 2008. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.
  • PEREIRA, Fábio Hoffmann. Configurações do ofício de aluno: meninos e meninas na escola. 2015. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015.
  • PEREIRA, Luís. O magistério primário numa sociedade de classes. São Paulo: Pioneira, 1969.
  • SABOYA, Maria Clara Lopes. Direção escolar: na interface do masculino e do feminino. 2004. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004.
  • SANTOS, Lilian Piorkowsky dos. Garotas indisciplinadas numa escola de ensino médio: um estudo sob enfoque de gênero. 2007. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.
  • SCOTT, Joan Walach. Gender: a useful category of historical analysis. The American Historical Review, v. 91, n. 5, dec. 1986.
  • SENKEVICS, Adriano Souza. Gênero, família e escola: socialização familiar e escolarização de meninas e meninos de camadas populares do município de São Paulo. 2015. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015.
  • SILVA NETO, Claudio Marques da. Relações de gênero e indisciplina escolar: masculinidades em jogo. 2019. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019.
  • TOLEDO, Cinthia Torres. Ser menino e “bom aluno”: masculinidades e desempenho escolar. 2016. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016.
  • ZATTI, Antonio Marcos. Avaliação do desempenho docente nas redes públicas estaduais de ensino do Brasil e sua relação com a remuneração. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal de São Paulo, Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Guarulhos, 2017.
  • 1
    Este artigo é um dos resultados de minha participação na mesa-redonda “Interseccionalidade e educação: desafios teóricos e metodológicos” realizada durante a 39ª Reunião Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped), em outubro de 2019. Agradeço a Maria Carla Corrochano pelo convite e a Luciana Alves e Cinthia Torres Toledo pela leitura do manuscrito, comentários e sugestões.
  • 2
    Publicado em 1969, o livro de Luís Pereira resulta de sua tese de doutorado, defendida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) em 1961, cuja pesquisa de campo foi realizada em 1959.
  • 3
    Utilizo o feminino pela presença de uma maioria de mulheres na categoria (91,8%) e no grupo investigado.
  • 4
    Todos os nomes são fictícios.
  • 5
    No original: “Gendered social life is produced through three distinct processes: it is the result of assigning dualistic gender metaphors to various perceived dichotomies that rarely have anything to do with sex differences; it is the consequence of appealing to these gender dualisms to organize social activity, of dividing necessary social activities between different groups of humans; it is a form of socially constructed individual identity only imperfectly correlated with either the ‘reality’ or the perceptions of sex differences.”
  • 6
    No original: “as a symbol system, gender difference is the most ancient, most universal and most powerful origin of many morally valued conceptualizations of everything else in the world around us […] As far back in history as we can see, we have organized our social and natural worlds in terms of gender meanings within which historically specific racial, class, and cultural institutions and meanings have been constructed. Once we begin to theorize gender - to define gender as an analytic category within which humans think about and organize their social activity rather than a natural consequence of sex difference, or even merely as a social variation assigned to individual people in different ways from culture to culture - we can begin to appreciate the extent to which gender meanings have suffused our belief systems, institutions, and even such apparently gender-free phenomena as our architecture and urban planning.”
  • 7
    Outra discussão que tem sido feita diz respeito à natureza do trabalho docente, se se trata de um trabalho proletário ou não (APPLE, 1987; PARO, 2012).
  • 8
    No original: “the racial structuring of caring as the object of analysis” (1991, p. 66).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Set 2020
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2020

Histórico

  • Recebido
    08 Jan 2020
  • Aceito
    05 Mar 2020
location_on
Fundação Carlos Chagas Av. Prof. Francisco Morato, 1565, 05513-900 São Paulo SP Brasil, Tel.: +55 11 3723-3000 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: cadpesq@fcc.org.br
rss_feed Acompanhe os números deste periódico no seu leitor de RSS
Acessibilidade / Reportar erro