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Nós, bissexuais, ainda somos invisíveis?

SHAW, Julia. InvisiBilidade: cultura, ciência e a história secreta da bissexualidadeSão Paulo-SP: Cultrix, 2023

Julia Shaw é uma psicóloga alemã-canadense que tem se dedicado à publicação de livros de pop science. Seu best-seller internacional, Making Evil: The Science Behind Humanity’s Dark Side (2019), cobriu uma variedade de discussões sobre comportamentos considerados “maus”, particularmente na psicologia de criminosos, mas também sobre a sexualidade tornada monstruosa ou patológica. Shaw passou a apresentar dois podcasts sobre o que vem sendo chamado de “true crime”, um deles na BBC. Em Making Evil, se declarou publicamente como bissexual, participando no mesmo ano da Parada Bi de Londres, que reuniu 1,3 mil pessoas. A partir de então, Shaw voltou-se para os estudos sobre bissexualidade para escrever o livro que gostaria de ler sobre o tema e que parecia não existir, o que a levou a cursar o mestrado em Queer History na Goldsmiths e a fundar o Bisexual Research Group. Em 2021, ela e seu grupo organizaram a International Bisexual Research Conference, o primeiro evento internacional voltado para a pesquisa sobre bissexualidade, que reuniu quase 500 pessoas e mais de 70 estudos, inclusive brasileiros. O resultado desse empreendimento foi o livro que chegou ano passado ao Brasil pela Cultrix, selo do grupo editorial Pensamento.

A proposta da obra é trazer para o grande público uma série de elementos históricos, debates políticos e evidências científicas que permanecem “nas sombras” (Shaw, 2023SHAW, Julia. InvisiBilidade: cultura, ciência e a história secreta da bissexualidade. São Paulo-SP, Cultrix, 2023.) e pensam as pessoas bissexuais como sujeitos cujo desejo rompe delimitações de gênero e que sofrem discriminação de homo e heterossexuais. Trata-se de uma elaboração contemporânea do problema e que pode ser observada também na bibliografia brasileira sobre bissexualidade, que cresceu a olhos vistos nos últimos anos, embora ainda se encontre principalmente no âmbito das pesquisas de graduação. Os estudos sobre bissexualidade no Brasil vêm majoritariamente da psicologia e das ciências sociais e têm uma forte interlocução com o movimento bissexual do país, este próprio também jovem e de crescimento recente, embora a origem de ambos remeta à década de 1990 (Saldanha; Monaco; Cruz, 2022). O livro de Shaw traz para o debate brasileiro diversas questões e informações atualizadas, mas com limitações teóricas que comprometem a contribuição da obra para além de seu apelo comercial.

A autora parte de um significado previamente definido da categoria “bissexualidade”, sem se aprofundar nas disputas políticas e nos debates teóricos que existem em torno dela. Suas conclusões miram as narrativas do movimento bissexual, como a ideia de “bifobia” para nomear um processo de violência e uma experiência social específicos, sem se preocupar em problematizá-la ou escrutiná-la. Esse pressuposto estaria já na própria dificuldade em publicar o livro, quando uma editora lhe respondeu que a “conversa” que ela propunha já havia sido feita. Shaw se pergunta se a frequência das notícias de celebridades se declarando bissexuais e de publicações sobre bissexualidade na internet realmente implicam na superação da invisibilidade. A questão é fundamental para o livro e necessária para o debate contemporâneo sobre o tema: como qualificamos o que está sendo chamado de “invisibilidade”?

Os dois primeiros dos seis capítulos são, juntos, uma contextualização histórica. O título do primeiro, A Opção Bi, é uma referência ao livro pioneiro de Fritz Klein: The Bisexual Option (1993), que apontava a necessidade de pensar criticamente as formas pelas quais a bissexualidade é concebida e percebida socialmente. Shaw elege três nomes centrais para entendermos o desenvolvimento da noção de bissexualidade enquanto categoria relacionada ao desejo: o alemão Richard von Krafft-Ebing, o estadunidense Alfred Kinsey e o próprio Klein, psiquiatra e ativista bissexual. A Kinsey e sua escala de classificação é atribuído erroneamente o princípio de que todas as pessoas são bissexuais. Normalmente, se atribui esse princípio (também erroneamente) a Sigmund Freud, que estava, por sua vez, tensionando a noção de “bissexualidade originária” que já aparecia na literatura científica sobre homossexualidade desde meados do século XIX (Freud, 2016). O psicanalista estava interessado em explorar os limites das teorias biológicas em favor de uma concepção de psiquismo cujo princípio evolucionista da bissexualidade originária dos seres vivos o provocou em suas teorias sobre a sexualidade. Causa estranhamento, portanto, que Shaw não o tenha incluído entre esses nomes fundamentais, a despeito de sua formação como psicóloga. Preferindo Krafft-Ebing e Havelock Ellis, contemporâneos de Freud, ela privilegia uma determinada definição de bissexualidade baseada no desejo e em uma noção de desejo distinta de gênero e sexo. Essa é uma definição da atualidade e, ao deixar de considerar as mudanças constantes no sentido dessas categorias, sua leitura é de que Freud as confundiu, e não de que a distinção entre elas foi um processo histórico que se deu de forma gradual e por meio dos debates levantados por autores como ele próprio.

Um capítulo com o título irônico Nada Além de Mamíferos é muito original (embora com suas limitações) ao inserir, para o grande público, a bissexualidade no debate entre construcionismo e essencialismo, isto é, sobre as origens da sexualidade por fatores naturais ou sociais. Como descrito por comentadoras como Carole Vance (1995) VANCE, Carole S. A antropologia redescobre a sexualidade: um comentário teórico. Physis, 5(1), 1995, pp.7-31 [ https://doi.org/10.1590/S0103-73311995000100001 - acesso em: 16 jan. 2024].
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e Anne Fausto-Sterling (2002)FAUSTO-STERLING, Anne. Dualismos em duelo. cadernos pagu (17-18), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2002, pp.9-79 [https://doi.org/10.1590/S0104-83332002000100002 - acesso em: 24 abr. 2023].
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, parte importante da literatura chamada de construcionista foi composta de estudos históricos e sociológicos que se propuseram a pensar a homossexualidade como produto histórico, questionando tanto explicações genéticas quanto a própria estabilidade das identidades relacionadas ao que se entende como classificações sociais. Fausto-Sterling, a propósito, conclui que os estudos sociais sobre homossexualidade colocam em questão a própria ideia de bissexualidade, sem perguntar-se pela bibliografia sobre essa categoria ou atentar-se nesse sentido para um dos autores com quem engaja criticamente: o supracitado Fritz Klein. Mesmo que essa controvérsia já pareça, para alguns autores, superada pelas problematizações pós-estruturalistas da oposição entre natureza e cultura, o essencialismo se atualiza, seja pelas novas pesquisas sobre supostas causas genéticas para a sexualidade de seres humanos, carneiros e girafas, seja por referências culturais muito difundidas, como a música Born This Way, lançada pela cantora pop Lady Gaga em 2011, um grande sucesso comercial que remete à aceitação da identidade homossexual. É esse o lado do debate priorizado por Shaw, mesmo sendo ela própria uma das principais vozes acadêmicas contra as tentativas de comprovação fisiológica da bissexualidade (Engelberg; Lawton; Shaw, 2021). Ainda que uma desconcertante maioria da literatura construcionista tenha desprezado a bissexualidade, os poucos e importantes trabalhos que se voltaram para ela poderiam ter sido aproveitados por ela.

Sua conclusão, portanto, conversa mais com a longa tradição de leituras evolucionistas da (bis)sexualidade do que com as de historiadores sobre uma categoria polissêmica e em constante transformação: “Talvez o motivo pelo qual é tão difícil identificar um único gene para os desejos pelo mesmo sexo seja porque todos nós carregamos conosco o código genético para o comportamento bissexual, e em algumas pessoas esse código nunca foi ativado” (Shaw, 2023SHAW, Julia. InvisiBilidade: cultura, ciência e a história secreta da bissexualidade. São Paulo-SP, Cultrix, 2023.:93). Ainda assim, Shaw revê uma afirmação sua, de Making Evil, de que a orientação sexual é natural, ao levantar os estudos que teriam chegado, no máximo, a uma faixa de 8 a 25% de “comportamento sexual com o mesmo sexo” relacionada a marcadores genéticos. A autora afirma que, na próxima vez que ouvir a música de Lady Gaga, ainda a cantará alto, mas agora com o verso: “‘I'm on the right track, baby, I was 8 to 25 percent born this waaaay’ [Estou no caminho certo, baby, eu nasci de 8% a 25% desse jeito]” (Shaw, 2023SHAW, Julia. InvisiBilidade: cultura, ciência e a história secreta da bissexualidade. São Paulo-SP, Cultrix, 2023.:71, grifos do original). O verso na letra original, que está no refrão da canção, diz “I’m on the right track, baby, I was born this way”, ou, em português: “Estou no caminho certo, querido, eu nasci assim”.

Os impactos da dupla discriminação sofrida por pessoas bissexuais são descritos em forma de números e conclusões de especialistas científicos, estratégia própria do gênero literário no qual Shaw se propõe a se especializar. Ela apresenta também muitos textos das últimas décadas que defendem o reconhecimento de bissexuais como vítimas de uma violência ampla e profunda. Geralmente pensada, inclusive por ela, pela noção de “bifobia”, essa discriminação tem os mais variados impactos na saúde, no trabalho, na família e na educação dessas pessoas. Sua ênfase em uma potência política da assunção individual da identidade “bi”, porém, contrasta com um esquecimento das iniciativas de organização coletiva de bissexuais e de suas conquistas.

O incentivo de Shaw à assunção da identidade tem duas dimensões. A primeira é a do empoderamento como forma de enfrentar a discriminação. Por exemplo, se bissexuais tendem a ser menos remunerados e a encontrar menor acolhimento em espaços de trabalho, Shaw diz sempre afirmar sua bissexualidade em entrevistas de emprego para avaliar se há uma reação de desconforto ou preconceito. Neste caso, um espaço acolhedor para pessoas queer não necessariamente o será necessariamente para pessoas bissexuais. A segunda dimensão é a ideia de que bissexuais pensam “fora da caixa”, característica descrita quase como inerente, seja essa ideia um desdobramento idealista do essencialismo ou não.

O termo “queer” merece uma consideração. Shaw o utiliza como antônimo de “heterossexual”, sem maiores contextualizações, ou ainda como um sinônimo de LGBT, mesmo quando se refere a momentos nos quais nenhuma das duas categorias existia. Não acredito que o emprego da palavra seja problemático, uma vez que se trata de um de seus usos correntes, mas uma maior aproximação dela com os debates associados à chamada “teoria queer”, produzidos nas últimas três décadas na interface com os desdobramentos do pós-estruturalismo e do feminismo, poderia ajudá-la a superar com maior profundidade a sua dependência da oposição entre natureza e cultura. Se contrastada com outros comentários sobre o debate entre construcionismo e essencialismo, como o de Fausto-Sterling, é possível perceber como mesmo essa oposição teórica deve ser nuançada e problematizada.

Além disso, se pessoas bissexuais pensam fora de parâmetros binários e se veem fora deles, essa é uma forma de pensamento que está restrita a determinados contextos ou referências culturais. Antes da recente difusão da narrativa política do movimento bissexual contemporâneo sobre a bifobia, era fácil encontrar, dentre as pessoas autoidentificadas como bissexuais, aquelas que se apresentavam dentro de parâmetros rígidos de gênero e sexualidade, ou que tinham formas múltiplas de se entender em relação a eles, como apontaram pesquisas sobre homens brasileiros (Santos Filho, 2012; Seffner, 2016SEFFNER, Fernando. Derivas da masculinidade: representação, identidade e diferença no âmbito da bissexualidade masculina. Jundiaí-SP, Paco Editorial, 2016.).

O capítulo que dá nome à edição brasileira do livro, Invisi-bi-lidade, é o de discussões mais profundas e no qual a trajetória pessoal de Shaw é mais evidente. A angústia de ser lida sempre como homo ou heterossexual, que parece ser comum entre pessoas bissexuais, apareceu para ela na forma de ameaças e chacotas. O que a autora entende como maneiras de tornar a bissexualidade “visível” parece corresponder a torná-la inteligível. Os esforços recentes de criação de um estilo ou de multiplicar e aprimorar os poucos personagens bissexuais na televisão e no cinema são descritos por ela em sua importância e em suas limitações. Sobre o estilo, Shaw descreve como “fofo” o que viu na Parada Bi de Londres: combinações de cores, pandas, luas e cosplayers de animes, que ela interpretou como uma forma de bissexuais se afastarem de estereótipos hipersexualizados. Podemos entender esses elementos, porém, como tendências de consumo entre jovens e um possível indicador geracional e de classe desses espaços e do interesse por essa questão.

Sobre os espaços bissexuais, Shaw entende que são na maioria das vezes temporários, na forma de eventos de curta duração, periódicos ou não, relacionando-os ao conceito de heterotopia de Michel Foucault (2009)FOUCAULT, Michel. Outros espaços. In: FOUCAULT, Michel. Estética: literatura e pintura, música e cinema (Ditos e escritos, III). Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2009, pp.411-422., no sentido de uma suspensão ou inversão da configuração social que circunda esses espaços. Também se entra em uma questão ainda insuficientemente discutida no Brasil e que é um diferencial no livro: uma tensão histórica relacionada à predominância de pessoas brancas na construção e participação desses espaços. Em relação ao conceito de Foucault, porém, parece faltar em sua instrumentalização a consideração de que as heterotopias só são possíveis a partir das sociedades nas quais se localizam. Assim, os espaços contemporâneos de afirmação da identidade bissexual soam como o argumento foucaultiano de que a relação entre poder e produção do sujeito se dá como uma conversa. Ao construírem eventos e publicarem livros com arcabouços científicos, por mais disruptivos e libertadores que fossem, estariam contribuindo para a interpretação de um fenômeno constitutivo da história da sexualidade como um dispositivo de poder. A discussão com Foucault no livro, portanto, é superficial e se reflete também no uso da ideia de repressão da sexualidade para reiterar a noção de “armário”. A falta de engajamento teórico com esse autor (e esse é o ponto mais importante) não é suprida por outra escolha que afine de forma mais coesa os argumentos do livro.

Os dois últimos capítulos são complementares, ao apresentar cada um seu teor específico: violência e liberdade. A violência de Estado é descrita com uma certa alteridade geopolítica, como própria de outras partes do mundo que não o Reino Unido, e que Shaw tenta superar defendendo que estamos vulneráveis em qualquer parte do mundo, seja em países que criminalizam a “homossexualidade”, seja em seu próprio país. Aqui, chama atenção para a atualidade e gravidade das demandas por asilo de pessoas perseguidas por sua sexualidade nos países de origem. Trata-se de um debate que, nos estudos sobre bissexualidade, é relativamente mais forte entre britânicos. O número de pedidos de asilo negados a pessoas que se apresentam como bissexuais é crescente e, para Shaw, isso se deve à impossibilidade de se provar a orientação de alguém, como se espera legalmente que se faça. Ainda há, acredito eu, uma necessidade de aprofundar o debate sobre o tema no que diz respeito aos tensionamentos que a bissexualidade traz aos processos legais e classificatórios impostos aos refugiados para além de países como Reino Unido e Canadá, e, especialmente no Brasil, aos processos de Estado de forma geral.

Ao final, Shaw se envolve com questões suscitadas pelas relações entre bissexualidade, “monogamia compulsória” e sexo a três e com as noções de liberdade que delas emergem. O desafio novamente é como tornar a identidade bissexual inteligível quando as práticas e relações interpessoais são lidas segundo uma classificação que a exclui. Como a autora afirma, “há uma noção de que, assim que as pessoas se casam, o gênero de seu parceiro ou de sua parceira é indicativo de sua sexualidade ‘real’” (Shaw, 2023:220). É necessário, para ela, que a bissexualidade transpareça para além dessas convenções classificatórias, que ela se torne visível.

Em geral, voltando à questão do essencialismo, esse livro indica como ele está longe de desaparecer do debate público. Mesmo que não seja a face central da obra, a persistência do apelo de experimentos sobre a causa da “homossexualidade” e o surpreendente engajamento de Shaw com a noção de um princípio bissexual atualizam a necessidade de pensarmos como o conhecimento científico sobre esses temas tem circulado e se atualizado. Afinal, seu livro não está tão fora de lugar no conjunto de narrativas contemporâneas sobre a identidade bissexual, geralmente relacionadas à noção de uma experiência de sofrimento, muitas vezes essencialista, como observou a antropóloga brasileira Helena Monaco (2020)MONACO, Helena Motta. "A gente existe!": ativismo e narrativas bissexuais em um coletivo monodissidente. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social), UFSC, 2020 [ https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/216098 - acesso em: 23 abr. 2023].
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Shaw observou na bibliografia, de forma muito perspicaz, que a bissexualidade parece ter ganhado evidência várias vezes ao longo do tempo e que essa evidência sempre é descrita como nova e inédita, especialmente quando associada a estilo, juventude e consumo. Dessa vez, porém, pode ser que outro elemento esteja sendo incluído: a sua dimensão política. Se a bissexualidade vem sendo recentemente reconhecida como uma identidade política e a noção de bifobia tem se difundido, não parece por acaso que a publicação de seu livro no Brasil tenha sido tão rápida. Podemos nos perguntar, e talvez ter respostas nos próximos anos, se este é mais um momento de evidência temporária, ou se estamos alcançando a tão almejada visibilidade.

O título original do livro, Bi, não foi traduzido literalmente, como o subtítulo. Essa escolha editorial por parte da Cultrix parece ter relação e ser uma forma de evitar confusões com a recente publicação no Brasil de Bi: Notas Para uma Revolução Bissexual, da ativista israelense Shiri Eisner (2021)EISNER, Shiri. Bi: notas para uma revolução bissexual. São Paulo-SP, Linha a Linha, 2021.. A editora Linha a Linha trouxe a influente obra de Eisner para o público brasileiro quase uma década após a sua publicação original, em 2013, e mediante uma campanha de financiamento coletivo que mobilizou pessoas engajadas ou interessadas em ativismo bissexual ou em pesquisa sobre o tema. A edição da Cultrix, já no ano seguinte da publicação do livro de Shaw em inglês, é um acontecimento surpreendente. InvisiBilidade também destoa de Bi ao falar da visibilidade como algo possível, enquanto Eisner acreditava que a bissexualidade jamais será incorporada pelas instituições e pelos meios de difusão dos paradigmas vigentes. Contando as duas obras, os livros publicados sobre o tema, de teor acadêmico ou que conversem com a produção acadêmica, somam os dedos de uma mão no Brasil.

Mas o debate sobre bissexualidade aumentou o seu alcance no Brasil de forma surpreendente na última década, graças à luta árdua do movimento bissexual. Episódios recentes, como um vídeo estrelado pelos cantores Pedro Sampaio e Lulu Santos e exibido no festival Lollapalooza em 2023, em que ambos se apresentam como bissexuais, parecem indicar uma mudança no nível de reconhecimento da bissexualidade como uma identidade política no Brasil e um nível de evidência no qual ela pode inclusive ser capitalizada. Curiosamente, tive notícia da tradução do livro de Shaw através da ativista e pesquisadora Talitta Cancio, que recebeu um exemplar da editora, prática comum de divulgação comercial nos meios digitais. Conforme sugerido no próprio trabalho de Cancio sobre bissexualidade feminina nas telenovelas brasileiras (Santos, 2021 SANTOS, Talitta Oliveira Cancio dos. Sim, elas são bissexuais: representação de personagens femininas nas telenovelas da Globo. Trabalho de Conclusão de Curso, Comunicação Social (Marketing), UFRN, 2021 [ https://repositorio.ufrn.br/handle/123456789/34458 - acesso em: 25 abr. 2023].
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), o mercado é um meio importante no qual sexualidade e identidade são mediadas e disputadas, e a bissexualidade tem tido historicamente um reconhecimento limitado nesse âmbito.

É nesse contexto, quando parece crescer uma demanda comercial pela bissexualidade, que o livro de Shaw chega ao Brasil, nos provocando a pensar (em seu conteúdo e em sua própria edição) se a noção de invisibilidade ainda é suficiente para compreendermos as formas pelas quais a bissexualidade é percebida e incorporada no país no contexto histórico no qual nos encontramos? Os limites desse fenômeno já podem começar a ser mensurados. Alguns pontos pouco aprofundados no livro de Shaw, como as contribuições do pós-estruturalismo para os estudos de gênero e sexualidade, ou que parecem ideias novas, como a noção de “espaços bissexuais”, já estão sendo explorados em uma considerável literatura que permanece indisponível em português, como no livro Bisexual Spaces, de Clare Hemmings (2002)HEMMINGS, Clare. Bisexual spaces: a geography of sexuality and gender. Nova Iorque, Routledge, 2002., publicado vinte anos antes, mas de foco muito mais acadêmico. A crescente produção intelectual sobre bissexualidade do Brasil ainda está longe de ter uma presença firme no mercado editorial que já se desenvolve no país, de ficção e não-ficção LGBTI+. Se os estudos sobre o tema no país compartilham das preocupações políticas do ativismo, há ainda muitos horizontes a serem perseguidos, embora questões como imagem, estilo e representação venham sendo cada vez mais exploradas.

Referências bibliográficas

  • EISNER, Shiri. Bi: notas para uma revolução bissexual. São Paulo-SP, Linha a Linha, 2021.
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  • FAUSTO-STERLING, Anne. Dualismos em duelo. cadernos pagu (17-18), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2002, pp.9-79 [https://doi.org/10.1590/S0104-83332002000100002 - acesso em: 24 abr. 2023].
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  • FOUCAULT, Michel. Outros espaços. In: FOUCAULT, Michel. Estética: literatura e pintura, música e cinema (Ditos e escritos, III). Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2009, pp.411-422.
  • FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: FREUD, Sigmund. Obras completas, volume 6: Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Análise fragmentária de uma histeria ("O caso Dora") e outros textos (1901-1905). São Paulo-SP, Companhia das Letras, 2016, pp.13-173.
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  • MONACO, Helena Motta. "A gente existe!": ativismo e narrativas bissexuais em um coletivo monodissidente. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social), UFSC, 2020 [ https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/216098 - acesso em: 23 abr. 2023].
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  • SANTOS, Talitta Oliveira Cancio dos. Sim, elas são bissexuais: representação de personagens femininas nas telenovelas da Globo. Trabalho de Conclusão de Curso, Comunicação Social (Marketing), UFRN, 2021 [ https://repositorio.ufrn.br/handle/123456789/34458 - acesso em: 25 abr. 2023].
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  • SANTOS FILHO, Ismar Inácio dos. A construção discursiva de masculinidades bissexuais: um estudo em linguística queer. Tese (Doutorado em Letras), UFPE, 2012 [ https://repositorio.ufpe.br/handle/123456789/11663 - acesso em: 20 abr. 2023].
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  • SEFFNER, Fernando. Derivas da masculinidade: representação, identidade e diferença no âmbito da bissexualidade masculina. Jundiaí-SP, Paco Editorial, 2016.
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    » https://doi.org/10.1590/S0103-73311995000100001

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    30 Abr 2023
  • Aceito
    09 Jan 2024
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