Resumo
Este trabalho busca descrever e compreender as concepções psicanalíticas relativas aos transtornos alimentares, a partir dos saberes mobilizados na clínica psicanalítica na qual o trabalho de campo foi realizado. Trata-se de investigar as concepções a respeito da constituição de sujeito, sexualidade e gênero implicadas nos casos acompanhados pelas psicanalíticas da instituição. O propósito é descrever conceitos psicanalíticos, principalmente relativos à relação entre mãe e filha, a partir dos quais entende-se que ocorrem falhas na constituição do aparelho psíquico, gerando sintomas como a anorexia e a bulimia.
Gênero; Transtornos Alimentares; Psicanálise
Abstract
The work intend to describe and reflect about psychoanalytic concepts related to eating disorders, from the knowledge mobilised in the psychoanalyst clinic in which the fieldwork was conducted. It is about investigate the conceptions of the constitution of the subject, sexuality and gender involved in the cases analysed by the psychoanalyst of the institution. The purpose is to describe psychoanalytic concepts related to the relationship between mother and daughter from which flaws in the constitution of the psychic apparatus can occurs, causing symptoms such as anorexia and bulimia.
Gender; Eating Disorders; Psychoanalysis
Em visita recente ao Chile, uma imagem remeteu-me, surpreendentemente, às meninas que sofrem de Anorexia nervosa. Nas vinícolas dos grandes vales, ao pé da Cordilheira dos Andes, roseiras florescem na frente das colunas de vinhas. A visão, intrigante e de uma beleza extraordinária, sugere, inicialmente, o capricho do vinicultor e seu desejo de embelezar o vinhedo. No entanto trata-se de prevenção: no caso de uma praga atingir a região, as roseiras, por serem mais sensíveis, serão as primeiras a exibir os sinais da doença. Funciona, assim, como um alerta e permite que as uvas sejam salvas. Eis aí, pensei: essas meninas que morrem anoréxicas são meninas-roseira. Lindas e sensíveis, com sua morte silenciosa alertam para os males causados pela praga do momento, a exigência despropositada de magreza (Weinberg, 2007:76).
No excerto acima, a psicanalista especializada em transtornos alimentares compara as roseiras responsáveis por proteger os vinhedos à fragilidade de meninas diagnosticadas com anorexia, representando um alerta a respeito das implicações dos atuais padrões de beleza e magreza. O que esses fenômenos dizem sobre a nossa sociedade e o que as abordagens psicanalistas sobre esses casos falam/produzem sobre gênero na atualidade? Neste artigo, procurarei refletir sobre as concepções psicanalíticas relativas aos transtornos alimentares[2], bem como as concepções sobre constituição de sujeitos, sexualidade e gênero no contexto da instituição psicanalítica na qual a pesquisa etnográfica foi em parte realizada. Trata-se de uns dos elementos desenvolvidos em minha pesquisa de mestrado, na qual investiguei a produção de saberes psicanalíticos, nutricionais e biomédicos sobre os transtornos alimentares, a constituição de subjetividades em pacientes identificadas como anoréxicas e bulímicas, bem como um movimento que compõe esse fenômeno identificado como Pró-Anna e Mia, que considera a anorexia e a bulimia estilos de vida, e não patologias, positivando e deslocando as categorias psiquiátricas.
Do ponto de vista biomédico, os transtornos alimentares são tidos como distúrbio psiquiátrico cujo modelo mais aceito de explicação é aquele que considera as múltiplas causas, incluindo fatores biológicos, psicológicos e sócioculturais, o que justifica a abordagem multidisciplinar. Tanto no DSM-IV (Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais, da Associação Americana de Psiquiatria) quanto no CID-10 (Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento, da Organização Mundial da Saúde), manuais que regulamentam o diagnóstico e orientam as concepções e os tratamentos, a anorexia e a bulimia nervosas são as duas principais entidades nosológicas incluídas na categoria dos transtornos alimentares. Apesar de classificados separadamente, apresentam uma etiologia comum relativa à excessiva preocupação com o peso e distorção da imagem corporal.
O termo anorexia deriva do grego orexis, que significa desejo em geral (e não apenas desejo de comer), precedido do prefixo a de negação, resultando assim em negação do desejo.[3] Apesar de amplo debate sobre a adequação do termo – de tratar-se ou não de uma perda de apetite ou uma recusa alimentar, falta de desejo ou negação do desejo – nota-se que sua oficialização se deu por intermédio dos manuais de diagnóstico e longa trajetória na história da medicina, caracterizando-se pela severa perda de peso por meio de recursos extremos. O termo bulimia, que também deriva do grego, significa “fome de boi” e caracteriza-se pela ingestão de grande quantidade de alimentos em curto perído de tempo[4], seguida por métodos purgativos como o uso de laxantes e o vômito autoinduzido.
Podemos considerar que o aumento do número de casos desses transtornos e o evidente destaque dado à anorexia e à bulimia nos últimos anos estão relacionados ao surgimento de centros especializados, o que possibilita contabilizar e problematizar essa incidência, associado à centralidade do corpo para a constituição de identidades e subjetividades atualmente. O corpo é tido como um capital, cercado de investimento, esforço e dedicação. Trata-se de um corpo construído por meio de técnicas que visam à eliminação e à interdição a qualquer forma de gordura e “imperfeição”, cabendo aos indivíduos os “cuidados” necessários à sua manutenção e aprimoramento.
A anorexia e a bulimia são transtornos numérica e caracteristicamente femininos, relacionados a um ideal de feminilidade. Ainda que a exclusiva motivação estética possa ser questionada, há um desejo de emagrecer e enquadrar-se em padrões valorizados socialmente, que se confunde com uma obsessão pela magreza, pelo controle (especialmente no que diz respeito ao “tipo ideal” da anorexia), por leveza e purificação. Em relação à anorexia, emagrecer significa não apenas ficar magra, mas ser leve. Se realizar dietas radicais por um lado representa um sofrimento, por outro é o sacrifício necessário para alcançar um corpo magro, desejado. Menos que a dor da fome, pela qual algumas pessoas, sobretudo aquelas associadas à anorexia, descobrem certo “prazer viciante”, o que importa é a sensação de leveza, pureza e a busca pelo corpo perfeito, expressos nas metáforas de borboletas – tanto de serem borboletas, quanto de cultivarem apenas borboletas no estômago, da leveza aproximada ao ar, e a transparência à água. No entanto, é necessário ressaltar que, não só, o corpo perfeito é inalcançável, como o que ocorre é uma deformação do corpo pela excessiva magreza.
Diante do diagnóstico de transtornos alimentares, são recomendadas abordagens e tratamentos especializados, realizados por equipes compostas principalmente por psiquiatras, nutricionistas[5] e psicólogas/psicanalistas responsáveis por “recuperar” esses sujeitos, tratá-los, alimentá-los e ensinar-lhes novos hábitos e cuidados com o corpo e com a alimentação, especialmente nos casos de pacientes que insistem numa alimentação “problemática” ou em considerar-se gordas, mesmo quando estão muito emagrecidas. Nos principais centros multidisciplinares especializados de São Paulo, a abordagem psicológica mais presente é a cognitivo-comportamental, que convive com a abordagem psicanalítica, ambas vistas como complementares. Diferentemente das abordagens cognitivo-comportamentais, também comprometidas com a “eliminação de sintomas”, à psicanálise praticada naquela instituição cabe, sobretudo, possibilitar que a paciente elabore e descubra o que há por trás da obsessão pela magreza, controle e busca de um ideal. Nesse sentido, menos do que preocupar-se e ocupar-se dos sintomas relativos à alimentação, ou seja, os sintomas biomédicos[6], na abordagem da instituição psicanalítica na qual realizei parte da pesquisa etnográfica, a tarefa é ocupar-se da obsessão, da compulsão, da forma de relacionar-se e posicionar-se diante dos “conflitos”, que são sintomas que interessam na medida em que representam questões inconscientes, recalcadas, secretas e enigmáticas. Há algo por trás dos sintomas alimentares e biomédicos, que são apenas expressões de conflitos maiores, entendidos como os “verdadeiros problemas” e que precisam ser “desvendados”. Nesse sentido, a psicoterapia é o espaço de construção da individualidade, de afastar-se das “concepções prontas” sobre os transtornos alimentares e elaborar os enigmas que estão por trás deles.
Um dos temas clássicos e caros à psicanálise, importante para se compreender qualquer patologia, entre elas os transtornos alimentares, é a constituição do aparelho psíquico e o modelo evolutivo da mente humana. Embora não caiba entrar em detalhes sobre o funcionamento do aparelho psíquico e as diversas fases pelas quais passam os indivíduos para se constituírem enquanto sujeitos, faz-se necessário apontar para alguns aspectos fundamentais para compreender as concepções sobre os transtornos alimentares.
As psicanalistas Gonzaga e Weinberg, na tentativa de entender um aspecto relevante da subjetividade dessas pacientes – os “ideais impossíveis”, “passionais” e “absurdos” – partem da compreensão freudiana sobre o “processo de identificação e constituição do aparelho psíquico, considerando as forças pulsionais como seu motor” (Gonzaga, Weinberg, 2010:117).
De acordo elas, Freud propôs um modelo evolutivo[7] do aparelho psíquico maleável e passível de adquirir diferentes configurações ao longo da vida. Os aspectos originários desse aparelho podem adquirir diferentes configurações, motivadas por novos arranjos ao longo de seu desenvolvimento no decorrer da vida.
Segundo as autoras, baseando-se nos desenvolvimentos de outros psicanalistas, entre eles, Silvia Bleichmar, o primeiro tempo da vida psíquica é marcado pela instauração da pulsão, inaugurada por um adulto imbuído de sexualidade (sobretudo a mãe). A tarefa do bebê, nesse momento, é encontrar vias de descarga ou de ligação para as quantidades excedentes da pulsão. Em seguida, o segundo tempo é dado pela constituição do recalque originário, a partir do qual se dá a saída do autoerotismo e a instauração do ego, constituído pelo narcisismo e pela base das identificações. Desse processo derivaria um terceiro tempo de instauração das instâncias ideais, que tem como referente as identificações. As autoras procuram mostrar a importância e a “complexidade desses tempos inaugurais” e seus “desdobramentos clínicos”:
Ainda segundo Bleichmar, se prevalecem identificações narcisistas na constituição do ego, essas bases perecem em sua função de estabilidade e prevalece, na formação de agências superegóicas, o ego ideal narcisista. O que seria próprio às patologias graves que, “apesar de não serem consideradas como psicóticas, não chegam também à neurose: pseudo-self, estruturação borderline” (Gonzaga; Weinberg, 2010:117).
Para além da compreensão desse conteúdo, trago esse trecho para ilustrar a complexidade e o truncamento de toda a teoria psicanalítica, baseada nas tópicas freudianas de ego, superego e id. O trecho refere-se ao predomínio de identificações narcisistas na constituição do ego, o que pode acarretar problemas nos primeiros tempos de instalação do aparelho psíquico. Ainda segundo as autoras:
Considerar essa compreensão dos primeiros tempos de instalação do aparelho psíquico, que inclui a constituição do ego e sua derivação para as instâncias ideais sob a regência das identificações narcísicas, nos parece fundamental para discutirmos os aspectos dinâmicos que se encenam na Anorexia Nervosa (Gonzaga; Weinberg, 2010:116).
Além da questão relativa às falhas primárias, fortemente relacionada ao desenvolvimento de transtornos alimentares, outro tema relevante comentado pelas psicanalistas da clínica é a questão de se considerar ou não essas pacientes como “sujeitos constituídos”. Questionei cada uma das psicanalistas entrevistadas por mim sobre o significado dessa colocação e a reação de todas elas parecia indicar que esse era um tema delicado e complexo. Para uma das psicanalistas entrevistadas, que aborda em um artigo a questão de entender o outro como todo integrado, a ideia de “sujeito constituído” faz referência a uma linguagem francesa, e significa ser capaz de simbolizar. Outra psicanalista apontou para a complexidade do tema, dado que antes de se perguntar se é um “sujeito constituído” é preciso compreender primeiro o que é sujeito para a psicanálise, o que parecia não ser possível responder prontamente. A respeito de uma paciente sobre a qual se questionava tratar-se de sujeito constituído ou não, uma delas nos diz:
Júlia – Para cada abordagem dentro da psicanálise, o termo sujeito designa um conceito diferente, por isso essa questão é infinitamente complexa. Para respondê-la teríamos que saber, antes, o que é sujeito para a psicanálise.
Marisol – Era uma paciente muito comprometida e que tinha questões pré-edípicas. Então fiquei pensando se haveria um desenvolvimento “normal”, “saudável” pelo qual os sujeitos passam pra se constituir e que nesse caso haveria falhas nesse desenvolvimento… São as chamadas falhas primárias?
Júlia – Sim, são as chamadas falhas primárias, que se dão em estágios muito precoces do desenvolvimento… Dificilmente algum psicanalista, independentemente de sua abordagem, diria que o que acontece nos primeiros tempos da vida não importa, mesmo que a qualidade do relacionamento que se estabeleceu entre mãe e bebê seja algo difícil da memória recuperar…
Por outro lado, outra psicanalista ressaltou que o termo sujeito na psicanálise refere-se ao sujeito do inconsciente e que sujeito não constituído alude a um processo anterior à constituição, ou seja, pessoas que se expressam de maneira mais concreta e menos simbólica, que é um sintoma que pode ser encontrado em alguns casos de anorexia, segundo ela:
Alice – Assim, se a gente pensar no termo sujeito, o que o termo sujeito significa para a psicanálise, eu acho que se trata do sujeito do inconsciente, no meu entendimento. Então assim, acho que pode ter algumas pessoas com sintomas de anorexia que estão num processo anterior à constituição… não à constituição do inconsciente, mas que se expressam de uma maneira mais concreta, não elabora tanto… quer dizer, tem um conflito, mas o conflito não passa pela elaboração psíquica da coisa. Eu acho que é uma maneira de viver menos simbólica, menos representativa, mais na ação… eles falam muito das patologias do agir, e que as pessoas têm saídas para os conflitos mais pela via do comportamento e que não passam pela elaboração psíquica. (…) a gente não pode falar de um sujeito, como se sujeito do inconsciente fosse algo mais elaborado. Tanto que falam que os pacientes com transtornos alimentares são casos mais regredidos, que não alcançaram a questão edípica, é anterior a isso, são questões mais arcaicas…
Marisol – Você saberia me dar um exemplo do que seria essa constituição pré-edípica?
Alice – Constituição pré-edípica?
Marisol – É! Como foi que você formulou agora pouco? Conflitos pré-edípicos.
Alice – Conflitos pré-edípicos! Deixa-me pensar um pouco na questão da castração. A castração é universal. Não só no sentido de que o Freud fala de que o menino tem o pênis e a menina não tem, e a questão de não poder tudo, do menino não poder ter acesso à mãe e a menina acesso ao pai, que são seus objetos de amor que é o que ele fala um pouco sobre a questão do complexo de Édipo… (…) Pela teoria nem todos os sujeitos alcançam a constituição edípica. (…) Então o que seria esse funcionamento pré-edípico? Eu acho que é um funcionamento que não alcançou a resolução do complexo de Édipo. O que seria a resolução do complexo de Édipo? Primeiro, o objeto de amor de todo ser é o cuidador, que geralmente é a mãe. No menino, à medida que ele cresce, ele tem aquela relação dual com a mãe, de que a mãe precisa dele e tal, só que é necessário que o pai faça sua entrada, o terceiro paterno, para mostrar para o bebê que a mãe é a mãe do bebê, mas ela também é a mulher do pai, que ela tem as amigas, que ela tem o trabalho, que ela tem outros investimentos e outros interesses além da própria criança. É o que falamos a respeito da falha narcísica, do narcisismo, que é quando o sujeito se dá conta de que ele não é tudo para a mãe. E ele é castrado nesse sentido.
Alice recupera e desenvolve concepções caras à psicanálise, assim como às críticas a ela formuladas, na medida em que se trata de uma elaboração que submete a ideia de formação do sujeito a questões de gênero e sexualidade. Desde o pioneiro e fundacional trabalho de Rubin (1986) que busca compreender as relações que instituem a opressão das mulheres e seu brilhante esforço de esmiuçar os sistemas de relações que tornam as mulheres domesticadas nas teorias de Levi-Strauss e Freud, entre outras coisas, sabemos que há um forte vínculo entre gênero, sexualidade e parentesco. Para Rubin, a psicanálise é uma teoria sobre os mecanismos de reprodução dos padrões sexuais que, no entanto, mais do que uma simples teoria atua como um mecanismo de reprodução de padrões sexuais, além de serem teorias que implicam em um imperativo heterossexual. Comprometida com a preocupação em torno da natureza e da origem da opressão e da subordinação social das mulheres, Rubin procura iluminar os efeitos da problemática teoria da feminilidade, que segundo ela constitui uma racionalização da subordinação da mulher.
Desde suas críticas à cegueira de Freud a respeito das implicações de seu discurso, por fornecer instrumentos conceituais a partir dos quais é possível produzir lócus de opressão das mulheres, conhecemos a ameaça presente em tais produções. Obviamente, tal debate foi atualizado, tanto no que diz respeito às críticas internas à psicanálise quanto às críticas formuladas por teorias feministas e análises socioantropológicas, como se torna evidente no trabalho de Judith Butler (2003), que coloca em questão a própria ideia de sexo como pré-discursivo, desmontando o binômio natureza e cultura relacionado a sexo e gênero.
No entanto, não se trata de confrontar críticas de gênero ao discurso psicanalítico aqui abordado, assim como a questão não é tensionar as teorias psicanalíticas de forma geral a (certas) análises femininas, mas sim investigar o rendimento de elaborações psicanalíticas específicas e localizadas, sobretudo no que diz respeito à constituição de sujeitos relacionados aos transtornos alimentares no contexto da clínica acompanhada ao longo da pesquisa etnográfica. Isso significa não somente que este artigo não tem pretensões de confrontar teorias psicanalíticas gerais, como também implica em circunscrever-se ao campo empírico da clínica psicanalítica, aos rendimentos das intervenções clínicas no contexto da pesquisa, olhando para a prática e para a utilização específica de determinadas teorias psicanalíticas. Não é um tratado teórico crítico sobre a maneira como a psicanálise produz teorias marcadas por gênero, mas um olhar etnográfico sobre a prática psicanalítica relativa aos transtornos alimentares. As teorias psicanalíticas aqui são consideradas enquanto instrumento clínico utilizado na prática psicoterapêutica pelas psicanalistas especializadas. Interessa, portanto, descrever e analisar o que produzem tais práticas e a utilização de tais teorias na clínica psicanalítica. Portanto, trata-se de dispor nosso olhar para as teorias acionadas pelas psicanalistas, considerando a prática clínica como produtora de relações gendradas e genereficadas.
Nesse sentido, ainda que as concepções a respeito da constituição do sujeito e de constituição pré-edípica não apareçam explicitamente na prática clínica, elas informam as interpretações e intervenções sobre os casos de anorexia e bulimia. E ainda que críticas internas à psicanálise já tenham sido feitas no sentido de reconsiderar os papéis de homens e mulheres na criação das crianças, parece haver ainda concepções relativas às atuações feminina e masculina, assim como implicações de gênero na constituição dos sujeitos, como explicita Alice abaixo, quando questionada a respeito da castração e do complexo de Édipo:
Marisol – E esse é um processo que todos passam?
Alice – É, vamos dizer assim…
Marisol – Alguns elaboram de forma bem-sucedida e outros não?
Alice – E tem casos que esse terceiro não é eficaz… não é o pai físico, não é o pai enquanto presença… é a lei. Por exemplo, pode ter uma mãe que não tem um marido, que faz uma produção independente, mas nas referências dela, no psiquismo dela existe essa mediação que é a lei paterna, e que vai mostrar pra ela que o filho não é tudo pra ela, que ele preenche um espaço, mas que tem outros seres na vida dela que são importantes. Mas eu acho que têm mães, têm pais, sujeitos que não conseguem fazer esse corte paterno e aí a criança fica muito colada na mãe, não tem essa entrada desse terceiro que faz esse corte e fala que a mãe não é só da criança. Tem casos graves de psicose… é como se a criança fosse a própria mãe. Não é um sujeito separado da mãe, não é um psiquismo separado. Então o (complexo de) Édipo é universal, pois acontece em diferentes culturas e independente de onde a pessoa viva, mas não é todo mundo que alcança, que faz a resolução do (complexo de) Édipo. Então o pré-edípico eu acho que seria muito essa fase do bebê com a mãe e que ainda não tem essa entrada do terceiro, esse corte paterno, a lei que vai separar essa criança da mãe. De forma simples acho que é mais ou menos isso. Então, por exemplo, nos transtornos alimentares a gente vê pela experiência esse pai pouco eficaz, essa lei paterna pouco eficaz, às vezes é pouco eficaz, não chega a ser uma psicose, mas é uma lei frouxa.
Ainda que para algumas interpretações de cunho mais lacaniano, como a expressa por Alice acima, seja possível repensar a figura paterna na criação e na constituição de uma criança (podendo ser exercida pela própria mãe), notamos distinções em torno de gênero e ideais de masculinidade e feminilidade que se mantêm em tais teorias. Isso nos interessa, sobretudo no que diz respeito à ineficácia do corte da lei paterna, que dificulta o afastamento entre a mãe e a bebê.
Algumas importantes questões foram indicadas acima em relação à ideia de sujeito constituído, como a questão do pensamento simbólico e a capacidade de simbolizar, a elaboração psíquica dos conflitos, a capacidade de expressar-se de maneira menos concreta, sem deixar que o pensamento seja substituído pelo agir, assim como o surgimento de falhas primárias que ocorrem em estágios muito precoces do desenvolvimento, sobre a constituição pré-edípica na qual a triangulação da resolução do complexo de Édipo não se efetua e a lei paterna não faz o corte necessário para que a filha desenvolva um psiquismo independente do psiquismo materno. São todos considerados “processos” importantes e relacionados à ocorrência de transtornos alimentares, embora não específicos dessas patologias.
Para a psicanálise, de maneira geral, as relações familiares, especialmente a relação entre mãe e filhos, são muito importantes e marcam a subjetividade dos sujeitos desde os primeiros momentos e os primeiros contatos. Para a psicanálise especializada em transtornos alimentares não é diferente. A tarefa, no que diz respeito a essas patologias, do ponto de vista psicanalítico, é a de romper a relação simbiótica entre mãe e filha, provocar reflexão onde há ação, possibilitar a constituição de uma subjetividade própria onde há uma unidade fusional. Devemos destacar, portanto, que a psicanálise, no geral, entende que os sujeitos se constituem a partir de diferenciações de gênero, que são manifestas em termos de identificação ou diferenciação em relação à mãe. Além de produzir gênero, no caso dos transtornos alimentares as relações objetais podem ser associadas a falhas no desenvolvimento psíquico.
Segundo a psicanalista Marina Ramalho Miranda, psicanalista especializada em transtornos alimentares, anorexia e bulimia são manifestações de um sofrimento psíquico que escondem angústias ligadas a momentos primitivos da constituição da psique, especialmente no que concerne, segundo ela, a rupturas precoces na relação com a figura materna internalizada.[8] Além disso, a família, e especialmente a mãe, estão relacionadas aos transtornos alimentares na medida em que há uma herança transgeracional, ou seja, conteúdos internos não elaborados são transmitidos de geração para geração. O que se passa é que uma trama que perturba o processo que deveria desfazer a unidade fusional entre mãe e filha se instala. E os sintomas corporais, a forma de se relacionar com o corpo e com a alimentação são formas de defesas, mecanismos que expressam uma cisão entre corpo e mente, além de falhas primárias no relacionamento entre mãe e filha que não possibilitaram uma diferenciação entre elas. Segundo Miranda:
Essa dinâmica tão complexa se intensifica pela não entrada da figura paterna, muitas vezes impossibilitada pela força dessa aliança feminina que expulsa o homem desse universo em que mãe e filha permanecem em fusão. Encarceram-se e eternizam essa retroalimentação, em que uma não pode parar de nutrir a outra (2009:8, 9).
Essa dinâmica ocorre especialmente entre mãe e filha porque há uma identificação entre elas, pois pertencem ao mesmo gênero e à linguagem feminina, segundo Miranda, que se concretiza com a maternidade.[9] Mas nos casos em que um transtorno alimentar se instaura, além de haver identificação, não há reconhecimento da individualidade da filha, havendo pouca diferenciação psíquica entre elas. E cada dupla de mãe e filha é reeditada na geração seguinte se não houver nenhum trabalho de elaboração dos conflitos e dificuldades.[10]
Ana Paula Gonzaga e Cybelle Weinberg (2009) também ressaltam o vínculo de dependência e relação bastante tumultuada entre mãe e filha, apoiadas em estudos psicanalíticos que apontam para a dificuldade dos laços mais arcaicos da relação materna, especialmente na época da adolescência, como fatores importantes no desencadeamento da anorexia nervosa.[11] Segundo elas, as pacientes revelam uma indiscriminação de papéis e lugares na relação com suas mães. Além do mais, a relação mãe-filha pode também apresentar uma inversão de papéis, com “mães infantilizadas” e filhas “mães de suas mães”.
Segundo a psicanalista Jaqueline Pinto Cardoso (2009), na anorexia o investimento libidinal materno parece ter sido inadequado, ou seja, insuficiente ou exagerado, parecendo haver falhas na constituição do corpo como objeto psíquico. Ao longo da pesquisa, ouvi diversos relatos que exemplificariam o que seria esse investimento materno inadequado já nos primeiros contatos entre mãe e bebê, e que muitas vezes continuam sendo reproduzidos até a adolescência ou idade adulta, ou até que uma cisão nessa relação simbiótica entre mãe e filha seja efetuada, o que parece ser algumas vezes o trabalho da psicoterapia com essas pacientes com transtornos alimentares, segundo o relato das psicanalistas. Portanto, a relação entre mãe e filha é descrita como problemática, uma vez que a identificação de gênero pode levar a dificuldades de diferenciação psíquica diante de investimentos libidinais inadequados. Nesse sentido, as formulações psicanalíticas no contexto da clínica pesquisada reforçam a caracterização dos transtornos alimentares como femininos, o que significa inclusive que casos de anorexia e bulimia entre homens representam desafios à prática clínica e à interpretação dos casos.
Em relação à questão do vínculo fusional das pacientes com suas mães na prática clínica, em alguns casos as psicanalistas se questionavam se seria apropriado aproximar a mãe do processo psicoterápico para que ela não dificultasse o andamento do processo para, em seguida, distanciar mãe e filha e fazê-las perceber as implicações dessa relação, o que significava fazer com que a filha criasse um ponto de vista crítico em relação à mãe. Uma das psicanalistas relatou o incômodo da mãe diante do tratamento, pois considerava que o filho se tornara rebelde, o que foi interpretado pela psicanalista como uma mudança no posicionamento do filho, que não mais se submetia às vontades da mãe. Outro caso foi o de uma paciente que apresentou melhoras e que, depois disso, sua mãe apresentou sinais de depressão, o que foi interpretado pela psicanalista como uma impossibilidade da filha de continuar ocupando o lugar desejado pela mãe. Algumas situações que são recorrentemente citadas e associadas a vínculos inadequados entre mães e filhas são: mães que amamentam demais suas filhas, sempre que elas choram, ou, por outro lado, mães que não dão a devida atenção ou não alimentam suficientemente suas filhas, ou mães que colocam suas filhas para dormir em suas próprias camas, muitas vezes retirando os pais de seus lugares, às vezes por muitos anos.
A psicanalista Aline Camargo Gurfinkel (2010) fala de uma paciente que foi submetida pela mãe a um regime para sua festa de primeiro ano, para que a filha estivesse “mais bonitinha” e que na adolescência passou a lhe dar remédios para emagrecer. A psicanalista descreve a relação entre mãe e filha como marcada pela “indistinção geracional”, uma vez que mãe e filha se tratavam como amigas, o que é muito frequente nos casos de transtornos alimentares, segundo ela. Tal indistinção geracional é também interpretada como um vínculo problemático entre mãe e filha, pois novamente se trata de falta de cortes e distinção.
O psicanalista Alfredo Jerusalinsky (2004), olhando para a posição paterna, conta o caso de uma paciente com anorexia grave, numa família na qual o pai ocupava uma posição subalterna do ponto de vista sociocultural e econômico, era desprezado pela mãe e pela filha, que reproduzia a concepção da mãe de que o pai era um idiota. Segundo ele, essa paciente só melhorou quando conseguiu perceber que seu pai não era idiota e que a idiota era ela por deixar-se enganar pela sua mãe e por acreditar e reproduzir o que a mãe falava. O trecho a seguir apresenta esse momento no qual o psicanalista “corta o gozo da mãe”, bem como quando conseguiu provocar uma virada no tratamento afastando a mãe da cena e abrindo espaço à filha e ao pai:
– Seu pai não é um idiota.
A menina me pergunta:
– Então quem é o idiota?
Eu lhe digo:
– Você. Você porque deixou-se enganar pela sua mãe. E se você continuar a se deixar enganar pela sua mãe, não há vômito que tire sua mãe de sua barriga. Você poderá vomitar até o infinito, mas não conseguirá retirar sua mãe de seu interior se continuar a se deixar enganar por esse pedaço de comida como se ele fosse a sua mãe (Jerusalinsky, 2004:34).
Há outra situação, na qual o psicanalista procura incluir o pai nas decisões sobre o destino de sua filha, quando ela manifesta que seu único desejo é retornar ao balé, que havia sido contra-indicado pelos médicos e proibido pela mãe. Diante do questionamento, o pai paralisa e o psicanalista então reforça:
– O senhor tem que responder.
Então ele diz:
– Se é a única coisa de que ela gosta, é a única esperança… então eu acho que ela deveria ir ao balé. Não lhe parece?
Eu respondo:
– Concordo. Que ela retorne ao balé.
Aí digo à Aline:
Com uma condição: uma aula de balé – um sanduíche. Você faz o que gosta, mas tem que ter a preocupação para que isso não implique baixar o peso. Então uma aula de balé – um sanduíche. Só que esse sanduíche quem vai preparar é o senhor. Não a mãe.
Ela diz:
– Mas meu pai não sabe preparar nem um sanduíche.
– Não lhe parece que ele pode aprender?
– Sim.
– Sua mãe não toca nem no presunto. Nem na alface. Nada. Retira-se da cozinha. O senhor prepara o sanduíche. Com a sua mãe expulsa da cozinha, proibida de botar o pé na cozinha, proibida de olhar para o sanduíche, e você come o sanduíche na cozinha com seu pai. Isso é uma indicação (Jerusalinsky, 2004:39).
Em seguida, esclarecendo o que poderia ser compreendida como uma intervenção mais “comportamental” em termos teóricos e da prática psicanalítica,[12] ele diz:
Vocês se perguntarão: “mas isso é psicanálise?”
É. Porque estou colocando o significante ali onde ele faz falta. Precisamente na posição que tem o significante na anorexia: ele vale como ato. Ou seja, no modo em que ele é capaz de produzir uma falta, um significante ali onde não está expulso às trevas exteriores, devorado pela boca materna. Ou seja, coloco o pai em posição de falar. Única chance dessa menina. Eu também digo à mãe:
– Você está proibida. E se você é tão sensível às indicações dos comportamentalistas, desta vez vai fazer caso a mim (Jerusalinsky, 2004:39, 40).
Ele descreve que, quando a mãe se retira de cena, o tratamento sofre uma virada, pois é quando consegue cortar o “gozo da mãe” e implicar o pai e as filhas na condução da casa. Esses casos parecem apontar para o que as psicanalistas chamam de investimento libidinal inadequado, relação fusional e simbiótica, indiferenciação na relação entre mãe e filha que são responsáveis por uma “dinâmica complexa”. O investimento libidinal inadequado, ao lado da identificação, na qual ocorre fusão – e não ocorre individuação – podem desencadear falhas na constituição do sujeito e causar transtornos, entre eles os alimentares.
Há, portanto, falhas na constituição do processo de subjetivação e do corpo, instalada pelo vínculo simbiótico entre mãe e filha, devido ao investimento materno inadequado. Diante disso, para proteger a mente de uma possível desorganização, defesas são criadas pelo ego, defesas essas que, no caso dos transtornos alimentares, são expressas pelos sintomas da anorexia e bulimia, que encontram no corpo e na comida uma forma de expressão.
De acordo com a psicanalista Lawrence (2003) os distúrbios alimentares podem ser considerados como “mecanismos usados para apoiar as defesas maníacas contra a dor depressiva associada à realidade da situação edipiana”. Segundo essa autora, os objetos internos (tanto a mãe quanto o pai) são vítimas de ataques violentos, mortos de fome e vítimas de sofrimento até que se submetam e renunciem a relação entre si. Ou podem ser empanturrados até ficarem horrivelmente imensos e desamparados.
Expressões de conflitos relativos à relação simbiótica com a mãe e falhas do corte paterno, expressas nos exemplos citados acima em relações concretas ocupadas por mães, pais e suas filhas, os transtornos alimentares são interpretados pelas psicanalistas como uma defesa criada pelo ego no processo de instauração do complexo de Édipo e da constituição do sujeito. Esse processo produz e define papéis de gênero, caracterizados a partir de definições de sexo nas relações familiares.
Em um artigo em que questionam se os transtornos alimentares são questões culturais, as psicanalistas Ana Paula Gonzaga e Cybelle Weinberg (2005) iniciam sua reflexão resgatando Selvini-Palozzoni, que estabeleceu uma relação entre transtornos alimentares e abundância, baseando-se na escassez de casos registrados durante a segunda guerra mundial na Itália e o aumento de frequência desses transtornos paralelamente à recuperação econômica do país, concluindo que um sujeito só pode impor-se um rígido jejum quando o alimento é abundante. Para elas, entretanto, é possível transportar esse pensamento para outro contexto e compreender esses processos como um apelo do sujeito que foi atendido em suas necessidades:
(…) Seguindo Lacan, a criança mimada pela mãe pode recusar o alimento para recriar uma falta que esta preencheu. “Em lugar daquilo que não tem, (a mãe) empanturra-a com o mingau sufocante daquilo que tem, isto é, confunde seus cuidados com o dom do seu amor” [citado por Bidaud,1998] (Bidaud, 1998, apudWeinberg; Gonzaga, 2005:35).
Não se trata, no entanto, de culpar a mãe ou responsabilizá-la pelo transtorno alimentar do filho. Segundo Marina Ramalho Miranda:
Sentimos o quanto as mães precisam da nossa escuta, o quanto sofrem e o quanto se sentem confusas diante de tantas recusas da filha, impotentes e desamparadas. Não foi erro, não foi descaso, não foi descuido. Talvez excessos na forma de amar? Será que podemos pensar assim? Um amor que arrasta para identificações com a bebê nascida, tão grande a ponto de ter vontade de devorá-la e devolvê-la ao útero? Melanie Klein nos conta muito bem essa história, ensinando que uma das primeiras fantasias inconscientes da jovem mãe é a de devorar o bebê, coincidente com uma das primeiras angústias que invade o bebê ao nascer que é a angústia de aniquilamento, ou seja, mãe e filha correm o grande risco de se engolfarem, desafiam a paixão, mergulham nela tanto que transbordam os limites e se unem. Dessa união fusional, nasce a sobreposição de corpos e a sensação de ter sido engolida pela mãe e a mãe, por sua vez, não consegue viver sua própria vida, tão atormentada pelos riscos que ameaçam as vidas e as relações afetivas (Miranda, 2011:9, 10).
Assim, a relação mãe-filha tem um papel fundamental na gênese dos transtornos alimentares, ainda que não se deva atribuir culpa ou responsabilidade à mãe, pois se trata de uma dinâmica complexa entre mãe e filha. E o pai é parte dessa dinâmica, especialmente por não se colocar no papel e fazer o corte entre a mãe e a filha. Todos, portanto, implicados na gênese dos transtornos alimentares, assim como em sua manutenção e tratamento. Nesse sentido, Lawrence (2003) ressalta que as dificuldades partem também dos filhos:
Em certo sentido, a dificuldade psíquica experimentada por essas pacientes não é pouco habitual. Na verdade, como ressaltaram diversos autores contemporâneos – especialmente Britton (1988), a aceitação dos pais como casal sexual, separados do sujeito, e com sua relação exclusiva própria, é um dos aspectos mais difíceis de serem negociados do complexo de Édipo, e o fracasso dessa negociação está na raiz de diversas formas de psicopatologia (Lawrence, 2003:183).
A família aqui aparece sintetizada basicamente na figura materna e paterna, que aparentemente podem ser papéis ocupados por qualquer indivíduo, e não apenas os pais biológicos, mesmo no que diz respeito à herança transgeracional. O que se espera, no entanto, é que haja uma hierarquia nessa relação, de acordo com Gurfinkel (2010), uma distinção geracional, para que a dinâmica dessa relação possa se desenvolver mais “adequadamente”.
O psicanalista uruguaio Gonzalo Varela Viglietti (2001) apresenta características frequentemente encontradas nos pais dos pacientes entrevistados, procurando mostrar quem são essas mães e esses pais. Segundo ele, são mulheres insatisfeitas com sua vida conjugal, deprimidas, distantes e pouco empáticas com suas filhas. Os pais em geral são homens bem sucedidos, que se destacam na vida profissional e no trabalho, incapazes de valorizar suas esposas e reconhecer seus sofrimentos, muito frequentemente é um pai inexistente. São famílias normalmente coesas e que funcionam “como se fosse uma boa família”, havendo um esforço para aparentar certa normalidade. Em sua opinião, os sintomas do distúrbio alimentar tornam-se um tipo de identidade, uma técnica de sobrevivência não apenas para as pacientes, mas também para suas famílias:
(…) A enfermidade da filha se constitui numa garantia para o vínculo familiar ou conjugal perturbado. De outro modo, o grupo se veria defrontado com seus próprios conflitos, cujo conhecimento é evitado por todos os meios (Viglietti, 2001:105).
Viglietti parece falar de famílias que procuram se enquadrar num perfil de família visto como “adequado”, que aparenta certa “normalidade”, que é espaço de amor e afeto, e não de conflito, lugar de acolhimento e cuidado. Embora esses psicanalistas não estejam falando de um modelo de família como aquele implícito no discurso psiquiátrico, no qual qualquer irregularidade na família nuclear, monogâmica e unidomiciliar é vista como problemática, na concepção psicanalítica parece haver um modelo de família e desenvolvimentos ideais, bastante difícil de ser alcançado, dado que até mesmo heranças psíquicas inconscientes podem ser transmitidas, a despeito do amor e desejo de cuidado.
Ao falar em família, os psicanalistas estão se referindo especialmente a mães e filhos. E mesmo que eles possam ser substituídos por outros “cuidadores” é necessário que haja sempre figuras maternas e paternas. Além disso, há na elaboração psicanalítica um modelo do que é considerado o desenvolvimento normal de constituição de uma criança dentro de sua família – e na falha desse desenvolvimento é que surgem patologias e a necessidade de intervenção.
Nesse sentido, talvez seja possível dizer que o modelo familiar considerado ideal para que não ocorram transtornos é aquele capaz de promover uma herança adequada, tanto em termos biológicos e genéticos, como em termos culturais (tradições e costumes) e psíquicos. E, embora não deva culpar-se pelas patologias de seus filhos, a família – entendida principalmente como mães e pais ou figuras que ocupem esses papéis complementares – deve assumir responsabilidade e se implicar no tratamento dos filhos.
As concepções psicanalíticas relativas aos transtornos alimentares reforçam, portanto, a compreensão de Rubin de que a psicanálise é uma teoria sobre a reprodução do parentesco, sobre a produção da sexualidade humana, descrevendo os mecanismos pelos quais os sexos são divididos e instituídos. No caso dos transtornos alimentares, mais do que a violência psíquica e repressão implícitas no processo de criação da “feminilidade” nas mulheres no curso da socialização, como sugere Rubin, o que se passa é a produção de defesas que se manifestam em termos de sintomas relativos ao corpo e à alimentação. Posta a importância da família nos processos tanto de constituição desses sujeitos como no desenvolvimento dos transtornos alimentares, abordaremos agora seu papel e seus desdobramentos nos processos de tratamento.
O papel da família no tratamento dos transtornos alimentares e a necessidade de adequações da técnica psicanalítica
O trabalho familiar nos permitirá influir no modo como a família se encontra envolvida na tarefa de sustentar o sintoma, mas, além disso e sobretudo, nos permitirá trabalhar a enorme dificuldade de estabelecer uma aliança terapêutica com uma paciente que não a solicita. O trabalho com a família será o que possibilitará abrir essa porta (Viglietti, 2001:100).
Assim como nas elaborações do psicanalista citado acima, no contexto da instituição analisada e suas parceiras, existiam arranjos temporariamente estabilizados a respeito da importância de se incluir a família no tratamento dos transtornos alimentares. No entanto, além de ser problemático falar em consenso dos diversos profissionais especializados – ou mesmo internamente, em cada especialidade – sobre a necessidade de uma abordagem familiar, é preciso ressaltar que tal concordância está longe de ser, de fato, um consenso estabelecido há muito, como demonstra a antropóloga Helen Gremillion (2003).
Em sua etnografia em um centro psiquiátrico norte americano especializado em anorexia nervosa, Gremillion descreve os discursos dominantes a respeito dessa patologia como historicamente situados, relacionados a concepções específicas de gênero, individualismo e vida familiar. A respeito especificamente da necessidade de intervenção da equipe médica na dinâmica familiar, havia uma indicação de transferência de autoridade para os profissionais da saúde para que pudessem quebrar padrões destrutivos na interação familiar. Gremillion demonstra que a terapia familiar, que implica afastamento e ao mesmo tempo envolvimento da família no tratamento, foi instituída a partir dos anos 1970.[13]
A autora recupera certa história da patologização da relação com a mãe em construções psiquiátricas, elucidada pelo processo denominado nos anos 1950 como “schizophrenogenic”, relacionado à tendência de mães de produzir esquizofrenia em seus filhos. Nesse contexto, embora as relações entre mães e filhos fossem descritas como simbióticas, indiferenciadas, bastante similares ao que conferimos nos discursos a respeito dos transtornos alimentares na atualidade, a ideia de família naquele momento era entendida como um ambiente natural situado inteiramente fora do âmbito da intervenção terapêutica. Nos anos 1970, entretanto, a família tornou-se objeto de análise terapêutica. Tal processo naturalizou a estrutura familiar e cada vez mais o papel da mãe é marcado pelo caráter patológico, sobretudo a respeito da ideia de que as interações simbióticas são atribuídas a ela.[14] De acordo com a análise de Gremillion a respeito das concepções de Minuchin – psiquiatra a quem é atribuída parte da elaboração da terapia familiar –, embora qualquer membro da família possa se envolver em interações simbióticas, essas relações são quase sempre identificadas como maternas.
Semelhante ao que é descrito no contexto da pesquisa de Gremillion, há entre as psicanalistas da instituição estudada o pressuposto de que é preciso influir na dinâmica familiar e incluir os pais no tratamento. Tal pressuposição se convertia em algumas situações em realizar sessões conjuntas, em que os pais também participavam, tomando o cuidado para não desrespeitar o que muitas vezes era o único espaço destinado exclusivamente às pacientes[15], no qual os pais, especialmente a mãe, não conseguiam interferir. Além de realizar sessões conjuntas, outra possibilidade assinalada pelas psicanalistas em alguns casos era sugerir que os próprios pais também iniciassem terapias individuais, considerando que não apenas as pacientes, mas também os familiares, poderiam ter conflitos internalizados a serem elaborados.
Para além da participação nas sessões ou no atendimento terapêutico, outras práticas poderiam ser recomendadas às famílias, como a participação nos grupos psicoeducativos, atividade voltada aos familiares e cuidadores, tida como uma oportunidade de encontrar outras famílias que enfrentavam os mesmos conflitos e dificuldades, além da possibilidade de esclarecer e tirar dúvidas a respeito desses transtornos, favorecendo a adesão ao tratamento dos filhos.
Estavam implícitos no discurso das psicanalistas da instituição, portanto, pressupostos a respeito da necessidade de “reestruturar” os vínculos familiares, tomados como patológicos, especialmente na relação entre mãe e filha. Ainda que menos implicado, o pai não é poupado de ocupar o papel de “corte” nessa relação. A participação da família e a reestruturação da dinâmica familiar são tomadas como um pilar para o tratamento, contribuindo para estabelecer vínculos e adesão ao tratamento, o que ocorre mediante inúmeras resistências.
Nesse sentido, para Viglietti (2001), é necessário ajudar a paciente e sua família a pensar sobre o sofrimento psíquico oculto nos transtornos alimentares, sendo a abordagem familiar uma condição que torna o tratamento possível, uma vez que a dinâmica familiar se reproduz na dinâmica da patologia e da própria análise. Segundo Viglietti:
(…) Eles, que se queixam desta filha que só pensa em calorias, também não conseguem pensar de modo diferente, não expressam sentimentos de dor, mas sim de desgosto, e as censuras e demandas não deixam lugar à compreensão. Os assinalamentos do analista chocam-se contra uma muralha defensiva tão consistente quanto a construída por suas filhas. Parece que pensar não é possível. Tudo isto mobiliza no analista fortes sentimentos de decepção, impotência e frustração em relação a esses pais que não entendem, o que frequentemente alimenta uma contratransferência carregada de hostilidade. Eles nos fazem experimentar o penoso sentimento de não ser entendido nem escutado, como o que suas filhas sentiram no curso de seu desenvolvimento. Desse modo, o analista pode compreender o sofrimento de sua paciente, abrindo-se assim a possibilidade de encontrar outros destinos para ele, que não passe pelo retorno ao próprio corpo (Viglietti, 2001:104).
Diversos psicanalistas e profissionais da saúde no contexto da pesquisa etnográfica apontavam para a dificuldade de se estabelecer um vínculo com pacientes com transtornos alimentares, pois além de tratar-se de indivíduos que normalmente não possuem demanda para um processo psicoterapêutico, muitas vezes por não se considerarem doentes, sendo levadas por suas famílias ou amigos, há as características da própria patologia, nas quais as dinâmicas particulares dos transtornos alimentares são reproduzidas na transferência com as psicanalistas, demandando uma forma particular de atendimento e acolhimento. Por isso, as psicanalistas ressaltam a necessidade de haver adequações na técnica psicoterápica, sendo consideradas pacientes de difícil manejo. Sobre essa questão, um trecho ilustrativo retirado de um artigo de uma revista especializada que circulava pela instituição:
(…) podemos pensar que há diferenças no modo como anoréxicas e bulímicas se apresentam na análise e como se vinculam ao analista. As anoréxicas percorrem um caminho de contra-investimento e de evitamento da relação com o analista: geralmente falam pouco sobre si ou sobre sentimentos, permanecem em silêncio como se nada tivessem a dizer. Nas bulímicas, pelo contrário, percebe-se um excesso pulsional, presente no falar demais e na dificuldade de digerir as intervenções do analista (Cardoso, 2009:9).
Desafios no estabelecimento de vínculos e transferências que reproduzem a dinâmica típica do próprio sintoma são ambos associados à importância da abordagem familiar e à necessidade de adequação da técnica nos casos de transtornos alimentares. Além disso, Brusset (1999) aponta para alguns cuidados necessários, como o uso limitado do silêncio, neutralidade associada a uma atitude ativa para que a paciente não pense que o analista está indiferente ao conteúdo apresentado. Ele defende que a experiência de análise ou psicoterapia só é suportável para essas pacientes quando é contida pelo enquadre, ou seja, com a duração fixa das sessões, neutralidade do analista e sua recusa de entrar nas comunicações interativas e de responder às provocações. De acordo com Brusset, a “boa distância” deve ser encontrada em cada caso e em cada momento, procurando evitar a “inanição psíquica” ou a “excitação excessiva”.
A respeito das interpretações feitas pelos psicanalistas ao longo das sessões, Brusset acredita que não suscitam recusa ou revolta, mas normalmente acarretam ou em fuga e interrupção da terapia, ou no empobrecimento não apenas do material na sessão, mas da vida psíquica, relacional e social da paciente. Por isso, as intervenções têm mais chances de serem aceitas e compreendidas se forem fragmentadas e progressivas, possibilitando certa ambiguidade, ou seja, possibilidades de compreensão diversas. Em relação aos efeitos dos ataques contra o enquadre, diz ele:
Aos ataques contra o enquadre (ausências repetidas sem prevenir, atrasos de pagamento, indução da intervenção de terceiros, etc.) são às vezes associadas provocações masoquistas (colocar-se em situações catastróficas ou perigosas), e modos de falar percebidos pelo analista como obstáculos à sua atividade de compreender, memorizar e pensar, o que pode lhe dar sentimentos de incapacidade ou levá-lo a procurar introduzir à força coerências (Brusset, 1999:180).
A psicoterapeuta infantil Francis Tustin (1990) aposta na relação de transferência como principal instrumento e segue os princípios delineados por Melanie Klein, o que significa que os aspectos negativos e positivos da relação de transferência são considerados. Em sua técnica, há uma ênfase na situação de transferência que evoca experiências pré-verbais primitivas, particularmente na fase preliminar do tratamento, pois é nessa fase que surge a dificuldade de fazer contato com pacientes sofrendo de anorexia devido a extremos reticência e retraimento. Segundo ela, em situações em que há uma escassez de associações verbais, outros detalhes terão que ser usados como evidências para interpretações, como leves mudanças de postura, expressões faciais e minúsculos movimentos de mão. E a dificuldade de lidar com material primitivo dessa maneira, em sua opinião, é ter que reconstruir o jogo de afetos experimentado no estágio pré-verbal do desenvolvimento em um instrumento sofisticado de palavras. Sobre sua técnica ela diz:
(…) Eu não oferecia comida a minha paciente ou reafirmava-lhe que era certo comer. Eu não a visitava na enfermaria do hospital, ou lhe dava presentes, ou a tranquilizava contra seu desespero de que era intratável e indigna de amor (a integração deste desespero na trama de sua personalidade sendo o objetivo terapêutico). Entretanto, eu tentava chegar pontualmente para suas sessões. Eu raramente cancelava ou alterava suas sessões e, como se pode imaginar, esta menina provocava em mim muita reflexão, tanto dentro como fora da situação analítica (Tustin, 1990:195).
Uma das psicanalistas da instituição certa vez falou sobre uma paciente que a afrontava e a desafiava a entrar numa comunicação do tipo “ping-pong”, fazendo com a que psicoterapeuta falasse muito mais do que o desejado e respondesse às provocações da paciente. Segundo ela, quando conseguiu conter-se e não cair no jogo proposto pela paciente pode perceber um avanço nas sessões. Esse é apenas um dos casos sobre o qual as psicanalistas discutiam a respeito da importância de saber controlar a distância, não falando demais ou oferecendo muitas interpretações, não replicando todos os comentários, mas também não se silenciando.
As psicanalistas da clínica apontavam para a impossibilidade de lidar com esses transtornos a partir de técnicas clássicas da psicanálise e recordam que o próprio Freud contraindicou a psicanálise nos casos de anorexia. São necessárias, portanto, adaptações da técnica, pois é preciso levar em conta o risco de morte e a necessidade de preservar a integridade da paciente. [16]
A despeito das diversas tensões entre linhagens e escolas existentes na psicanálise, em geral, no que concerne à abordagem especializada da instituição estudada, sobretudo a respeito da dificuldade do manejo dos casos de transtornos alimentares, parece haver uma espécie de consenso minimamente estabilizado a respeito da importância da abordagem familiar e das interpretações relativas ao vínculo familiar problemático.
A inserção da família no processo terapêutico e o papel da psicanalista (e outros especialistas) na intervenção familiar apontam para a concepção da equipe médica como uma espécie de família terapêutica substituta, como demonstra Gremillion. Tais pressupostos reforçam a importância dos profissionais da saúde como cuidadores capazes de romper padrões familiares inadequados, descritos (no caso específico do discurso psicanalítico existente na instituição) por meio das relações simbióticas entre mãe e filha, dos vínculos libidinais inadequados e da indiferenciação entre mãe e filha diante da inexistência do corte paterno, desdobrando-se em uma complexa dinâmica familiar que deve ser reestruturada.
Para encerrar, busquei aqui apresentar as concepções psicanalíticas sobre constituição de sujeito, sexualidade e relações familiares, buscando demonstrar que essas ideias estão totalmente imbricadas, compondo especificidades nas interpretações sobre os transtornos alimentares, que demandam adequações da técnica psicanalítica no trato com essas pacientes. Há no discurso de algumas psicanalistas especializadas em transtornos alimentares a ideia de que a constituição do sujeito se dá sobretudo a partir da instauração da sexualidade e que esse processo pode apresentar “falhas” decorrentes de investimentos libidinais inadequados, excessivos ou limitados, o que pode causar respostas nos sujeitos, expressas em transtornos como a anorexia e a bulimia, consideradas manifestações de sofrimentos psíquicos maiores, que escondem angústias ligadas a momentos primitivos da constituição da psique. Entretanto, é preciso ressaltar o aspecto cultural contemporâneo desse sintoma, associado ao desejo de enquadrar-se a ideais de magreza, beleza e feminilidade, o que faz dessas jovens meninas-roseira, como as chamou Weinberg (2007).
Trata-se, no entanto, de uma visão específica, localizada, de uma certa psicanálise, a partir da qual se dá a produção gendrada e sexada de sujeitos, em que a (re)produção de mulheres – mães que produzem filhas – só se consuma de forma saudável através do corte masculino efetuado pela figura paterna – seja ela encarnada pelo pai ou pelo(a) psicanalista, como demonstram os casos citados acima a respeito das adequações de técnica psicanalíticas e da atuação desses profissionais mediante a transferência das pacientes no enquadre da psicoterapia, que normalmente reproduzem as dinâmicas relacionais do próprio transtorno alimentar.
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1
Jerusalinsky (2004:34). Agradeço à Marcio Zamboni por destacar a importância dessa sentença.
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Utilizarei itálico para as categorias “nativas” e conceitos êmicos, das quais fazem parte também terminologias biomédicas e psicanalíticas. Paciente refere-se a uma categoria “nativa”, na medida em que é o modo como normalmente as psicanalistas referem-se às pessoas atendidas pela instituição. Embora haja uma discussão sobre seu uso problemático no que diz respeito à relação entre analista e analisando (ou analisante) na psicoterapia, não cabe a mim resolver esse impasse, apenas apontar para um debate existente.
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3
Essa explicação é apresentada por Miranda (2004). Outra versão para a origem do termo pode ser encontrada em Ida (2008), para quem o termo também deriva de orexis, que, no entanto, significa apetite e, quando acrescido do prefixo an significa perda de apetite.
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De acordo com Romano e Philippi (2004), episódios de compulsão (comer compulsivo) são definidos pelo DSM-IV como “a ingestão, em um curto espaço de tempo, de uma quantidade de alimento definitivamente superior ao que a maioria das pessoas conseguiria comer durante um período de tempo igual e sob circunstâncias similares”. Porém, do ponto de vista nutricional, essa caracterização é muito ampla, pois o tempo e as quantidades não são definidos: o tempo é curto em relação a quê? E o que a maioria das pessoas não consegue comer? Por isso, os autores ressaltam a necessidade de especificação do conceito e considerar que a compulsão alimentar não está relacionada apenas ao número de calorias, mas também a sentimentos, perda de controle e ingestão de determinados tipos de alimentos (especialmente aqueles que tendem a ser excluídos da dieta habitual por medo de ganhar peso).
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Dentro da equipe multidisciplinar, a abordagem psiquiátrica é responsável por diagnosticar os transtornos alimentares a partir dos critérios de diagnóstico dos manuais DSM e CID, avaliar os riscos e condições dos pacientes do ponto de vista fisiológico, a existência de outras comorbidades e a necessidade de medicação. Além disso, cabe à equipe psiquiátrica considerar os danos e complicações clínicas ocasionadas por esses transtornos, que envolvem complicações físicas, endócrinas, no sistema gastrointestinal, no sistema músculo-esquelético, no sistema hematológico, no sistema cardiovascular, no sistema nervoso central, distúrbios renais e hidroeletrolíticos, psicológicos, etc. As nutricionistas especializadas em transtornos alimentares são responsáveis, sobretudo, por identificar os hábitos considerados errôneos e as crenças em relação à alimentação nessas pacientes, promover alterações e mudanças no estado nutricional debilitado pela doença, ajudá-las a entender suas necessidades, alcançando uma dieta balanceada e suficiente para atender as demandas do corpo, baseando-se nos princípios nutricionais vigentes.
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Um ponto importante a ser destacado é a distinção entre sintomas biomédicos e psicanalíticos. Os sintomas biomédicos são entendidos como alterações da percepção normal que cada pessoa tem do seu corpo, do seu metabolismo, de suas sensações, que podem ou não ser indícios de uma patologia. Para a psicanálise, os sintomas não são necessariamente alterações e também não precisam ser eliminados. Os sintomas biomédicos são aqueles descritos e diagnosticados por meio dos manuais DSM-IV e CID-10 e são, portanto, mais “padronizados”, enquanto o sintoma psicanalítico é mais “particular de cada sujeito” – é a solução encontrada por ele para os seus conflitos. De acordo com uma das psicanalistas, o sintoma biomédico, além de ser algo que deve ser eliminado, não tem seu significado dado pelo próprio paciente, mas sim pelo médico. No sintoma psicanalítico, entretanto, o significado é encontrado na experiência analítica pelo sujeito e deve ser substituído por “algo enigmático”, como um conflito, que deve ser decifrado. Desse modo, as pacientes que chegam à instituição psicanalítica com sintomas de anorexia e bulimia encontrarão ali um espaço no qual poderão construir um sintoma psicanalítico particular. Ambas as concepções estão presentes e são consideradas na clínica e nem sempre essas categorias aparecem distintas ou claramente estabelecidas nas falas das interlocutoras.
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Esse modelo evolutivo permite definir estágios de desenvolvimento psicossexual, que se caracterizam por mudanças da zona erógena e por conflitos entre a busca de prazer e a realidade que o limita, que vão condicionar a criação de instâncias do aparelho psíquico e a relação dinâmica entre elas. Simplificadamente, Freud propôs duas tópicas sobre a constituição do aparelho psíquico. A 1ª tópica é: Consciente, Pré-consciente e Inconsciente. A 2ª tópica é: Superego, Id e Ego. Cada fase de desenvolvimento é marcada por uma organização da libido (que é uma fonte original de energia afetiva que mobiliza o organismo a perseguir seus objetos), em torno de uma zona erógena, resultando em uma fantasia e um tipo de relação de objeto. Há uma tendência natural para o desenvolvimento sucessivo das fases, que são: Fase Oral, Fase Anal, Fase Fálica, Período de Latência e Fase Genital. É na fase fálica que o pai deve se colocar como um interceptor entre o filho a mãe, acontecimento importante e problemático na questão dos transtornos alimentares.
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Retirado do resumo da tese publicado nos Cadernos Ceppan – Revista de Transtornos Alimentares. Edição n.2, junho de 2008. O título da tese de Marina Ramalho Miranda é Anorexia Nervosa e Bulimia à luz da psicanálise – a complexidade da relação mãe-filha.
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Miranda parece naturalizar gênero ao considerar que as características sexuais associadas ao sexo feminino suscitam “psiquismos” ou certas experiências psíquicas determinadas.
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Vale ressaltar que muitos autores e pesquisadores utilizam o termo anorexia nervosa como sinônimo de transtornos alimentares. Há momentos inclusive em que ocorre uma confusão de termos, especialmente em comunicações orais, não sendo possível identificar se estão se referindo aos transtornos alimentares de maneira geral, ou especificamente à bulimia ou à anorexia.
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Agradeço a atenciosa leitura da colega Maíra Volpe que chamou atenção para a atuação “pouco psicanalítica” do psicanalista, o que me fez reler o texto e inserir esses trechos para esclarecer a defesa que o próprio autor faz de si mesmo em relação à sua intervenção.
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A terapia familiar é quase sempre recomendada para o tratamento da anorexia, segundo a autora, em referência à sua experiência de pesquisa etnográfica. Tal abordagem terapêutica baseia-se na estratégia de substituição dos cuidados da família (biológica) pela equipe médica (família terapêutica) e seu objetivo central é minimizar as estruturas familiares, como por exemplo padrões disfuncionais de autoridade. Ela demonstra como apenas a partir dos anos 1970 a abordagem familiar se tornou estabelecida e a dinâmica familiar se tornou objeto da gestão terapêutica. Para Gremillion, essa abordagem está relacionada à ideia de maternidade ideal, minimizada, que foi sendo reduzida desde os anos 1950. As premissas dessa abordagem familiar, que naturalizam a maternidade e atribuem a ela um caráter quase sempre patológico, são utilizadas para justificar a exclusão da mãe de muitos aspectos do processo de tratamento, segundo a autora, além de ajudar, paradoxalmente, a criar mães percebidas como envolvidas de maneira patológica no tratamento das filhas.
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Segundo Gremillion (2003:79): “Like NRTs (new reproductive technologies), family therapy is only a few decades old, and it also seems to challenge the naturalness of the family, given therapists' willingness to question and restructure family relationships. Until relatively recently, mental health professionals viewed the family as part of individual patients' ‘natural environment’. During the 1950s and 1960s, the decades in which family therapies were first beginning to take shape, therapy meetings often did not include direct clinical interventions. But, during the 1970s, therapists began to see the family as a system of patterned, interpersonal interactions that they could work to alter. However, even with such a therapeutic ‘destructuring’ (and reconstruction) of the family, the naturalness of motherhood in particular is retained. (…) So, as with discourses surrounding parenting that are linked to NRTs, family therapy helps to create the maternal "natures" they appear only to serve. And like contemporary representations of reproductive desire, maternal nature appears in a form that is ideologically minimized”.
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As psicanalistas conheciam e algumas delas também participavam do trabalho multidisciplinar em uma instituição psiquiátrica e ouviam queixas algumas vezes de pacientes naquele contexto, que se incomodavam com o fato de não ter espaço para se expressar quando suas mães participavam das dinâmicas terapêuticas. Tendo esses dados como referência, elas sabiam da importância de priorizar o espaço das pacientes, mas ao mesmo tempo preconizavam a inclusão da família no processo psicoterápico.
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Assim como as psicanalistas apontam para a necessidade de adaptação da técnica, também as nutricionistas especializadas apontam para a necessidade de alterações e dizem serem mal vistas por outros profissionais, por serem nutricionistas que são contrárias à prescrição de dietas, não apenas em relação aos pacientes com transtornos alimentares. Para elas, dietas promovem obsessão pela comida, o que pode ocasionar transtornos alimentares, além de não funcionarem para perder peso a longo prazo. Por isso defendem uma abordagem diferenciada, considerando que claramente vivemos em uma cultura que não sabe lidar com a comida e com o corpo, uma vez que de um lado existem os transtornos alimentares e de outro a obesidade, que representam dois aspectos de uma mesma cultura incapaz de se relacionar bem com a comida. As nutricionistas defendem o argumento de que dieta não é considerada uma forma de comer, o que está explicito em frases recorrentes, como: “Não estou comendo, estou de dieta”. Desse modo, essas nutricionistas propõem novas concepções por considerar que dietas podem não funcionar para ninguém e que esses profissionais são responsáveis pela mentalidade de que dietas fazem emagrecer, não por serem mal-intencionados, mas por seguirem uma convenção. Entretanto, essas “adequações” podem ser mal vistas e incompreendidas por profissionais “não especializados”, tanto na nutrição quanto na psicanálise.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Abr 2016
Histórico
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Recebido
10 Fev 2014 -
Aceito
26 Out 2015