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Necrobiopoder: maternidade, raça e gênero entre Brasil e Portugal

A publicação desta entrevista com Berenice Bento (UnB e CNPq) vem no seguimento de um encontro público on-line entre a investigadora e ativista pelos direitos humanos e Karla Costa, no papel de representante da SaMaNe (Saúde das Mães Negras e Racializadas em Portugal)1 1 Karla Costa aparece como representante da SaMaNe, mas a entrevista contou com o apoio de mais dois membros da associação, Laura Brito e Carolina Coimbra. ola.samane@gmail.com , associação sediada em Portugal e criada, em 2020, como movimento social de base.

O percurso de Berenice Bento se fez nos estudos de gênero e queer (ou transviad@s, tradução para o português proposta pela autora) como campos de investigação e ação política. Nesses campos de investigação-ação, destacamos a publicação de duas obras fundamentais para os estudos transviad@s, particularmente no contexto de língua portuguesa: A reinvenção do corpo: gênero e sexualidade na experiência transexual (Bento, 2006BENTO, Berenice. A reinvenção do corpo: gênero e sexualidade na experiência transexual. Rio de Janeiro, Garamond, 2006.) e Transviad@s: gênero, sexualidade e direitos humanos (Bento, 2017BENTO, Berenice. Transviad@s: gênero, sexualidade e direitos humanos. Salvador, EDUFBA, 2017.); mas também o seu papel como organizadora do dossiê Mães contra o Estado: maternidade, luta, luto (Bento, 2021b), na Revista Cult, um documento que apresenta reflexões particularmente relevantes no que diz respeito ao contexto desta conversa.

Nesses trabalhos, a autora e ativista tem vindo a desenvolver conceitos como “dispositivo da transexualidade”, “heteroterrorismo”, “transfeminicídio” e “genocidade”. Contudo, num diálogo que parte do trabalho organizado pela SaMaNe em torno das questões da maternidade de pessoas racializadas em Portugal, priorizamos a discussão dos conceitos de “necrobiopoder” e “necrobiopolítica”. No artigo Necrobiopoder: Quem pode habitar o Estado-Nação (Bento, 2018BENTO, Berenice. Necrobiopoder: quem pode habitar o Estado-Nação. cadernos pagu (53), 2018, s.p. [https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/8653413 - acesso em: 27 jul. 2023].
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), a socióloga pensa a articulação entre gênero e raça nas suas interfaces com a questão da maternidade a partir de uma análise de arquivos parlamentares e legislativos que se fez entre Brasil e Portugal. Essa é uma travessia que remete para as hierarquias coloniais e raciais desenhadas desde, pelo menos, finais do século XV, e onde se destaca o tráfico atlântico de pessoas negras escravizadas, a quem a autora faz referência a partir de uma leitura particular da Lei do Ventre Livre, de 1871.

A organização da conversa – integrada num conjunto de ações promovidas por associações e movimentos sociais em todo o mundo em alusão ao Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha (25 de julho) e ao Dia Internacional da Mulher Africana (31 de julho) – e das perguntas ficou a cargo de Bruno Costa (CES-UC), Karla Costa (SaMaNe), Laura Brito (SaMaNe e CES-UC) e Carolina Coimbra (SaMaNe).

Karla Costa: No seminário que apresentou, em junho de 2023, no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES)2 2 Com o título Gênero, uma categoria útil de análise? A Lei do Ventre Livre no Brasil e em Portugal. , você questionou a utilidade da categoria de gênero ao analisar a Lei do Ventre Livre, de 1871. Poderia elaborar sobre os limites dessa categoria?

Berenice Bento: Antes de mais, muito obrigada pelo convite. Gostaria de parabenizar o trabalho que a SaMaNe vem realizando. É inédito o trabalho que vocês fazem, numa sociedade que ainda tem um verdadeiro pavor em discutir o racismo. Acho que a diferença do Brasil e de Portugal é que decidimos enfrentar esse debate. Estamos num processo de desconstrução, de pensar políticas de reparação e lidar com um fato inescapável: o Brasil é estruturalmente racista, o que joga por terra qualquer tentativa de defini-lo como democrático, porque o acesso aos materiais e simbólicos é determinado pela raça e etnia. Todos os casos de racismo que vivi, que escutei ao longo do ano em que morei em Portugal, sempre remetiam para a ideia de excepcionalidade. Após a descrição de cenas racistas, eu já sabia o que o/a ouvinte português/a me diria: “ah, mas isso é uma exceção”. A conferência no CES tinha como título uma pergunta: “O gênero é uma categoria útil de análise?”, em um diálogo com o artigo de Joan Scott (1995SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Tradução: Guacira Lopes Louro. Educação & Realidade, 20(2), 1995 [1986], pp.71-99 [ https://seer.ufrgs.br/index.php/educacaoerealidade/article/view/71721 - acesso em: 27 jul. 2023].
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[1986]). Eu fiz uma longa pesquisa sobre os debates que resultaram na Lei do Ventre Livre. Entre os meses de maio e setembro de 1871, o parlamento brasileiro discutiu uma proposição de lei que estabelecia que os/as filhos/as das mulheres escravizadas nasceriam livres, mas a mãe continuaria na condição de cativa. Os/as filhos/as fariam parte da população brasileira. Estamos diante de um debate em que os parlamentares discutiam o destino da primeira geração de crianças negras consideradas cidadãs. Outro tema que ocupava a agenda parlamentar referia-se à substituição da mão de obra escravizada por trabalhadores/as assalariados europeus, ou seja, a substituição da mão de obra escravizada. Eu estava estudando os debates em torno do que eles chamavam de “elemento servil”. Os parlamentares, entre eles o consagrado escritor José de Alencar, que todos/as nós lemos no Ensino Médio no Brasil e que, portanto, faz parte da construção de nossas subjetividades, foi um dos deputados contrários ao projeto da Lei do Ventre Livre. Ele afirmava textualmente: “Como é que vamos transformar uma turba de ignorantes, uma turba de selvagens, em cidadãos? Como vamos admitir que isso aconteça?”. A pessoa escravizada era o abjeto, e os termos acionados para qualificá-la eram: turba, selvagem, câncer. As mulheres escravizadas não tinham nome, nem sobrenome, não tinham direito à maternidade; inexistia o debate sobre paternidade. É como se essas mulheres tivessem um dom único de fazer filhos sozinhas. Muitos daqueles homens que estavam ali, discutindo aquele projeto, eram pais de pessoas escravizadas porque eles tinham acesso ilimitado aos corpos das mulheres escravizadas. Comecei a pensar se a categoria “gênero” dava conta do que eu estava lendo. Eu analisei todos os anais, ou seja, não fiquei limitada ao debate sobre o “elemento servil”. Quando eu saía das discussões sobre o projeto-lei que daria liberdade aos/às filhos/as das mulheres escravizadas e me movia para os outros pontos de pauta, a diferença entre as mulheres negras escravizadas e as mulheres livres gritou. Em várias passagens, o parlamento discutiu pensões para as viúvas. Ali as mulheres tinham nome, marido, sobrenome, endereço… Comecei a perceber que, naquela esfera do debate, o gênero estava operando. Eu conseguia ver uma identidade de gênero; uma mulher que, por conta de um atestado de viuvez, demandava algo ao Estado, e o Estado respondia a essa demanda. Quando me movia para a ordem do dia que discutia “elemento servil”, já não encontrava essa categoria… A conclusão é que, para entrar na categoria “gênero”, tinha de ter uma raça que autorizasse essa entrada. Só é considerada, portanto, mulher quem nascia de útero de mulher livre. Isto foi um dos achados da pesquisa: negar a possibilidade de dizer “mulheres” para se referir a ordens ontológicas opostas.

KC: Em Portugal existe esse mito da igualdade como base da república democrática. Ele foi estabelecido e continua muito presente desde o 25 de abril de 1974, perpassando todas as esferas da sociedade portuguesa. Ainda dentro da Lei do Ventre Livre, você acredita que a sua promulgação marca a entrada num outro estágio do sistema (re)produtivo?

BB: É importante precisar que a minha pesquisa analisou a Lei do Ventre Livre no Brasil, mas quase todos os países ou colônias escravocratas tiveram leis que libertavam o “útero”. Em Portugal, o Rei D. José publicou um Alvará, em 1773, onde tornava livres os/as filhos/as de mulheres escravizadas, mas essa lei foi válida só para a metrópole. Com relação aos efeitos da Lei no Brasil, último país a aprovar a libertação dos/as futuros/as filhos/as das mulheres escravizadas, acredito que foram tímidos. Ou seja, é importante lembrar, portanto, que a Lei não foi uma invenção made in Brazil. A Lei do Ventre Livre apresenta o útero como se fosse uma coisa que saísse passeando, com vida autônoma, independente da existência das mulheres negras. Foi um debate completamente controlado pela elite e que está em continuidade com o desejo de construir um processo abolicionista sob controle dos/as escravocratas. Isso não significa dizer que, a partir da aprovação dessa lei, as mulheres escravizadas não passaram a usar esse dispositivo legal para garantirem o acesso à maternidade; aliás, uma luta que segue atual, haja vista a luta das mulheres negras e periféricas para não terem seus filhos executados pelo Estado. Por exemplo, após a aprovação da Lei, a mãe continuava sendo comercializada (veja que coisa enlouquecedora que essa elite fez); o senhor e a senhora continuavam ainda com poderes absolutos sobre a sua existência. Ou seja, a mãe habitava a esfera da necropolítica: o/a seu/sua filho/a ia compor legalmente o Estado-nação, mas essa criança precisava da mãe para vingar, para não morrer abandonada. Um dos incisos da Lei determina que, se a mãe fosse vendida, o/a filho/a teria que acompanhá-la, mas isso não acontecia, como apontam as pesquisas historiográficas. Então, os/as senhores/as escravocratas, quando a mãe era vendida, não queriam deixar os filhos seguirem, o que acabou por produzir um outro campo de luta das mulheres negras escravizadas que entravam na justiça para que a lei fosse cumprida. De fato, ela não podia entrar na justiça, uma vez que não possuía o status de cidadã e não era sujeito de direito, mas um cidadão brasileiro podia representá-la. Tem vários outros incisos, como o direito de a pessoa escravizada fazer uma poupança para comprar a sua própria liberdade ou de membros da família (o chamado direito ao pecúlio). Muitas pessoas escravizadas economizavam esse dinheiro e falavam: “Olha, eu quero comprar minha alforria”, e a senhora escravocrata dizia: “Não! Não quero te vender!”. Outra vez, a pessoa escravizada ia à justiça através de um representante. Há um certo consenso na historiografia de que os efeitos da Lei foram limitados, e eu concordo, mas há outros efeitos não esperados na ampliação dos cenários de luta e resistência das pessoas negras escravizadas. Algo novo aconteceu: foi a primeira vez que se observa as disputas na esfera do Estado como um dos palcos de resistência. De fato, há registros históricos de iniciativas dessa ordem envolvendo, principalmente, as denúncias de maus tratos e torturas continuadas dos/as senhores/as, mas, na Lei do Ventre Livre, há vários incisos em que o próprio Estado passa a ser o terceiro termo da relação. As pessoas escravizadas inauguraram esse novo front de luta, a partir das brechas legais abertas, como, afinal, foi a história de todo o período escravocrata: a luta pela liberdade. Então, a Lei instaura um novo cenário de possibilidades de lutas políticas, no campo do Estado.

KC: Isso se constituiria como uma transição – que parte das elites e do Estado, mas que é lida como mais um caminho onde é possível mobilizar uma luta – dentro do sistema de capitalismo racial?

BB: Um momento de transição? Não creio. A Lei do Ventre Livre é um momento de tensão num sistema que está em profunda crise a partir do fim do tráfico negreiro, em 1850. É nesse contexto que se nota que algumas orientações passam a ser dadas para cuidado tanto dos/as filhos/as quanto das mães escravizadas, em uma tentativa de diminuir a taxa de mortalidade que ultrapassava os 50%. Mas essas orientações também foram de pouca eficácia. Já estava consolidada, no Brasil, a cultura da descartabilidade de pessoas, introduzida por Portugal. Mas havia um fato inescapável: a reprodução do sistema não poderia mais contar com a reposição relativamente rápida via entrada de pessoas africanas sequestradas. Então, para fechar essa questão, a Lei do Ventre Livre não é uma referência para que possamos pensar novas formas do Estado ou do mercado lidarem com a questão dos direitos sexuais e reprodutivos. Ali você observa linhas de continuidade, e não de ruptura.

KC: Uma das afirmações que nos interpelou no seminário do CES está relacionada com a intersecção entre gênero e raça num contexto de maternidade, quando você se refere à sua negação, antes a mulheres negras escravizadas e hoje àquelas que vivem nas periferias do sistema-mundo. Ao apontar essa continuidade da violência estrutural que (d)escreve determinados corpos como exploráveis, dispensáveis e/ou matáveis, como lê a construção histórica de uma legibilidade/inteligibilidade de gênero?

BB: Na verdade, são muitas as reflexões que eu poderia fazer com relação a essa questão. Vou tentar me concentrar na questão da inteligibilidade de gênero. O que se pode você observar é que existe uma construção hegemônica eurocentrada do que é ser homem e ser mulher, fundada no dimorfismo. Mulher é quem tem vagina; homem é quem tem pênis. A partir dessa informação, primária e fundante, se constrói um conjunto de expectativas para os comportamentos generificados. No entanto, esses “dados biológicos” se desfazem quando nos movemos no mundo da escravidão. Aliás, os “dados biológicos” como fundamentos da identidade sempre se desfazem. Nós sabemos que a vagina e o útero da mulher livre não são os mesmos da mulher escravizada, ainda que estejam sob o mesmo significante, daí ser um erro considerar o significante como determinante de produção de realidades. Sob o mesmo significante, habitam construções ontológicas distintas. A vagina da mulher escravizada era o orifício mediante o qual não saíam bebês, mas “peças”. É um orifício, portanto, que não irá impactar na sua identidade de gênero. É um corpo que dá leite, mas o leite não é exatamente para dar de mamar aos/às seus/suas filhos/as, porque esse leite era um insumo precioso, tanto para alimentar os/as filhos/as de suas donas quanto como aluguel. Era um insumo que fazia parte do mercado, e o corpo da mulher branca estava inserido em outras relações e transitava por outras instituições, como exemplo, a família. O que definia a mulher branca era a fragilidade, a emotividade, pouca ou nenhuma racionalidade. Podemos construir três colunas: na primeira, a mulher livre; na segunda, o homem livre; na terceira, a mulher negra escravizada. Depois, façamos a distribuição dos atributos construídos socialmente para cada um desses corpos: vamos observar que as mulheres livres são construídas assimetricamente em relação aos homens livres, formando pares de oposição funcionais. Essa assimetria é o fundamento da heteronormatividade, uma vez que as diferenças supostamente naturais dos corpos sexuais encontram, na ideia da complementaridade, o sentido articulador das diferenças. As mulheres negras, no entanto, não estão em relação; não se articula um campo comparativo porque elas estão fora da inteligibilidade do gênero; são abjetadas da condição de gênero. A condição escrava definia toda sua existência. Equivocadamente, quando se discute a condição das mulheres, por exemplo, no século XIX, não se pontua, não se precisa, que as mulheres escravizadas não faziam parte do gênero feminino. Acontece que essas normas de gênero eurocentradas operaram também na subjetividade das mulheres negras – antes escravizadas; hoje livres. Eu quero falar disso porque certamente nós vamos discutir a questão trans. Por que as famílias negras expulsam seus/suas filhos/as trans de casa? As narrativas das violências contra as pessoas trans aparecem transversalmente. Não há um lugar, uma família segura, que proteja suas existências. Isso são efeitos perversos da construção eurocentrada para as identidades de gênero, que considera que a verdade de nós mesmos está na diferença sexual. Nesse contexto, o lugar contra-hegemônico na desconstrução dessa inteligibilidade de gênero, atualmente, é a existência trans. E a existência trans tem de lidar, inclusive, com suas famílias negras que operam suas visões de mundo a partir do olhar do colonizador. Por muitos anos, quase quatro séculos, as mulheres negras escravizadas foram expulsas da categoria “gênero”; não eram reconhecidas dentro da categoria “gênero” e foram socializadas dizendo: “Aquela é uma mulher de verdade, porque ela tem vagina, porque ela reproduz, porque ela tem direito à maternidade”. Isso passa, portanto, a produzir seus efeitos quando ela começa a demandar a sua identidade de gênero nos moldes do que é ser mulher de verdade. O que é inteligibilidade de gênero? É um modelo eurocentrado dimórfico, fundado na genitália. Se não o era há 400, 300, 200 anos, hoje ele é o hegemônico. Quem hoje luta para quebrar essa hegemonia são as pessoas trans. Falamos da herança maldita da colonização na relação com a diferença, localizando-a na violência, no cristianismo institucionalizado, mas o gênero, a identidade de gênero, é uma dessas heranças malditas em que estamos todos imersos, seja lutando para desconstruí-la, seja para reafirmá-la como verdade.

KC: No trabalho que temos vindo a desenvolver com mães negras e racializadas em Portugal, um dos relatos mais frequentes sobre a experiência na sala de parto está relacionado com a predisposição para (e resistência à) dor dos corpos negros – por exemplo, a afirmação de que essas mulheres não gritam durante o parto porque elas aguentam melhor a dor. Que relação estabelece, a partir do seu trabalho, com esses relatos mediados pela ciência moderna e, em particular, pelo discurso biomédico?

BB: A minha pesquisa tem como questão orientadora a problematização da categoria “gênero” e a negação da categoria “patriarcado”. E o que me impressiona são as linhas de continuidade, no presente, com esse passado colonial e escravocrata. O objetivo da minha pesquisa nunca foi entender as disputas da segunda metade do século XIX. Eu quero entender as agendas dos feminismos negros em relação a feminismos “patriarcalistas”. Quando você começa a analisar as agendas, pode-se concluir que o significante “feminismo” escamoteia diferenças substanciais entre as formas de lidar, por exemplo, com a relação entre Estado/gênero/raça e que terão desdobramentos nas políticas de alianças, inclusive com os homens. Em linhas gerais, observei que há um enorme campo de intersecção do feminismo negro heterossexual com as lutas das pessoas trans. Esses dois campos feministas estão lutando para terem gênero, para terem suas identidades de gênero reconhecidas. O que estou dizendo é que o trabalho do gênero já foi feito a ponto de elas [mulheres negras] lutarem para verem reconhecidos os direitos que outras já têm. Vejamos o exemplo que você pontua: a questão da dor. Vou ler três linhas de um livro que eu recomendo enfaticamente para quem se interessa: Ventres livres?: Gênero, maternidade e legislação (Machado et al., 2021). No artigo O trabalho do parto: trabalho escravo, saúde reprodutiva e a influência da Lei do Ventre Livre no pensamento obstétrico, séculos XIX e XX, Roth (2021ROTH, Cassia. O trabalho do parto: trabalho escravo, saúde reprodutiva e a influência da Lei do Ventre Livre no pensamento obstétrico, séculos XIX e XX. In: MACHADO, Maria Helena P. T. et al. (org.). Ventres livres?: gênero, maternidade e legislação. São Paulo, Editora Unesp Digital, 2021. Livro eletrônico, posições 124-148.: posição 135) afirma: “Um estudante de obstetrícia e ginecologia que estagiou no hospital [do Rio de Janeiro] discutiu, em 1887, como as mulheres negras sentiam menos dor durante o parto e davam à luz mais facilmente do que as parturientes brancas”. Então você me fala das queixas de mulheres que chegam até vocês, em Portugal, falando dessa questão da dor, e eu estou lendo um texto do final do século XIX. Aqui é possível notar uma grossa linha de continuidade, quase um eco que atravessa a história e se apresenta diante de nós. Ainda nesse artigo, encontramos informações de como eram os procedimentos para fazer os fórceps, para tirar a criança de um útero de uma mulher negra. Esses procedimentos dilaceravam as entranhas das mulheres escravizadas, que chegavam a morrer depois de longas sessões de tortura. Raramente os/as filhos/as sobreviviam. Parte considerável do conhecimento que se tem do funcionamento dos corpos das mulheres, hoje, é fruto do grande teatro de horrores que foi feito nos corpos das mulheres escravizadas negras. Essa construção de que o corpo negro não sente dor significa dizer que eu posso dar menos anestesia nesse corpo em um procedimento cirúrgico. Quando falo isso, vem uma sinapse muito forte na minha cabeça. Eu perdi um cachorro há um ano e eu lembro que a veterinária sempre falava que ele não sentia dor (o que acredito ser uma bobagem). Mas, quando ela me dizia isso, eu me conectava imediatamente com essa compreensão biomédica dos corpos das mulheres negras que, ao falar que elas não sentem a mesma dor, está mobilizando um processo de animalização. Então, essa compreensão desse corpo negro animalizado está aqui, agora, entre nós. Eu não vejo mulheres brancas discutindo essa questão da violência obstétrica. São as heranças de uma compreensão de gênero que continua aqui entre nós, definindo agendas políticas e definindo o olhar do outro sobre os corpos. E mais uma vez: as mulheres brancas têm uma identidade de gênero, conferida pela raça; as mulheres negras lutam para ter gênero.

KC: Isso que você falou agora é contextualmente muito relevante. A questão da agenda política no sentido que você apontou talvez seja uma realidade no contexto brasileiro, porque, se olharmos para Portugal, essa agenda só ganha destaque ao ser mobilizada por mulheres brancas. Aqui não é dada sequer a oportunidade às mulheres negras para exporem esse problema como mulheres negras. Nós surgimos exatamente para mobilizar esse debate, para que mulheres brancas não falassem por nós. Então, é uma agenda que em Portugal ainda se desenvolve em torno dos corpos brancos, de mulheres brancas. Agora, voltando ao ponto antes mencionado, se pensarmos nos corpos trans também como corpos ininteligíveis – com potencial de legibilidade apenas através da intervenção médica (cirurgia de redesignação sexual), que o reinscreve dentro de estruturas heteronormativas –, de que forma olha para a maternidade trans? A maternidade – essencial para a naturalização da feminilidade – é, nesse contexto, negada? Como?

BB: É bastante interessante como Portugal e a Europa resolveram a questão do racismo: afirmam o erro do racismo científico e do eugenismo e decretam, agora, que raça não existe. De fato, raça como marcador biológico foi uma invenção moderna europeia – não existe –, mas o racismo está presente e opera em todos os níveis da vida social. Portanto, os Estados europeus não desenvolvem nenhuma política de combate, criminalização e conscientização em torno da questão do racismo. O que você aponta com relação às mulheres negras acontece de forma rizomática em todos os níveis das estruturas sociais. Com relação aos direitos sexuais e reprodutivos das pessoas trans, nos movemos em um terreno no qual todas as disputas e fissuras postas em cena pelas existências trans, no interior das normas de gênero, são potencializadas. Recentemente eu participei de uma banca interessantíssima de um projeto de tese de doutorado, sobre o direito de os homens trans engravidarem, porque eles têm o aparato biológico, eles têm útero. Como se construiu essa ideia de que, para os homens trans, está interditada a gravidez? Como se chegou ao ponto de naturalizar essa castração simbólica? As normas de gênero definem como uma lei o vínculo entre paternidade e os corpos inteligíveis dos homens – quem nasce homem, com pênis, com testosterona – e o de maternidade e os corpos das mulheres – cisgênero, com útero. A força regulatória da norma de gênero, ou da cisnormatividade, faz com que os corpos que têm essa potência tenham que se submeter à castração. O que se observa é o recuso crescente de homens e mulheres trans que se negam a se submeterem ao poder da norma e demandam o direito ao parentesco biológico. Esse é mais um deslocamento que as existências trans trazem para a norma de gênero. A questão trans explicitou o caráter ficcional de uma identidade de gênero (e seus desdobramentos, a exemplo da reprodução) fundada no imperito do biológico, mas essa ficção já estava lá durante a escravidão. De fato, o que concluí com a minha pesquisa sobre a Lei do Ventre de Livre foi que a aparência de gênero nunca foi a garantia para que homens e mulheres escravizadas pudessem ser reconhecidas como membros de um determinado gênero. A raça lhes retirava essa possibilidade, e aqui se nota algo bastante interessante: tanto as pessoas trans (que negam a identidade assignada) quanto as pessoas negras lutam para serem reconhecidas como membros legítimos de um determinado gênero porque compartilham os signos do dimorfismo sexual com as pessoas brancas. Isso nos revela que, mesmo compartilhando determinados atributos ditos naturais, o biológico nunca foi o determinante da posição que os corpos ocupam na ordem de gênero. Portanto, narrar a história das relações de gênero e dos/as seus/suas excluídos/as nos joga inevitavelmente no âmbito das relações de poder, que, no contexto brasileiro, estão atravessadas pelo passado colonial e escravocrata. Uma pessoa, quando diz: “Eu sou uma mulher trans e eu demando o meu direito à maternidade”, instaura uma disputa que desloca radicalmente a ideia de um “corpo certo” para que a possibilidade da vida se efetive. Mas essa demanda já tinha sido posta pelas mulheres negras escravizadas que também não tinham direito à maternidade, mesmo sendo mulheres cis. Até muito pouco tempo atrás, havia um consenso de que as pessoas trans não podiam ter herdeiros biológicos. Se perguntava: “Como é que um homem trans vai ter um herdeiro biológico?”; “Ora! Vai engravidar, ser um pai e amamentar. Qual o problema?”. O movimento que as pessoas trans fazem de deslocar o gênero de um referente biológico – vagina e pênis – continua acontecendo em outros níveis, como, por exemplo, a questão da própria sexualidade. Se supunha que uma pessoa transicionava porque havia uma demanda pela heterossexualidade e uma negação radical da homossexualidade. Essa foi uma das rupturas mais desestruturantes das normas de gênero, uma vez que a identidade de gênero “liberta-se” da sexualidade. Uma mulher trans lésbica, um homem trans gay, um homem trans gay que quer ser pai porque tem essa potência biológica – tem útero, tem ovários – e demanda a experiência porque quer ter filhos biológicos. Aqui vemos a ideia do filho biológico gestado dentro de uma família heterossexual e cis, como a relíquia da coroa, a última joia do sistema.

KC: Buscando outro deslocamento, se a gente olhar para as agendas dos direitos humanos referentes à questão de direitos sexuais, de gênero e de raça propostas por organizações de governança globais e regionais, como a ONU, o FMI, a UE, o Banco Mundial, etc., elas estão cada vez mais centradas nos direitos individuais e atreladas ao conceito de Estado de direito e segurança. A partir daí, para você, qual é a lógica desse paradigma na regulação das relações entre o Norte e o Sul Globais?

BB: Tem problemas porque ela passa a ser uma retórica de poder hegemônica, o critério de modelo civilizacional mediante o qual todas as outras realidades serão avaliadas e distribuídas em uma escala de mais-menos desenvolvida. Por exemplo, eu fiquei muito impactada quando participei de eventos do Orgulho Gay na Europa (Barcelona, Bruxelas, Paris, Berlim e depois Lisboa). Me impressiona como os Estados, que são absolutamente desumanos com os ex-colonizados, que (n)os tratam como lixo, ousam falar dos direitos humanos das pessoas LGBTQIA+. Vamos separar a questão que você propõe em duas dimensões. Primeiro, reconhecer que, de fato, existe a questão de as pessoas lutarem para terem direito a casar com pessoas do mesmo sexo, ou seja, a construção de agendas políticas em torno daquilo que era impensável há 100 anos. Reconhecer o caráter político dessa luta significa afirmar que o Estado foi construído com fundamento na heteronormativa branca e gerou seus descontentes que, por sua vez, construíram um gramática própria de luta por reconhecimento. Há uma considerável complexidade tanto analítica quanto política quando estamos diante de movimentos sociais, de sujeitos coletivos, que se estruturam em torno de um único marcador social da diferença e desigualdade, que não produz interseccionalidades. Todos os movimentos sociais que se fecham em torno de um marcador, a exemplo das feministas “patriarcalistas” que adotam o gênero como ponto de partida e chegada de suas políticas, tendem a se tornar reféns das narrativas do poder instituído. Parece-me que o movimento feminista negro está mais resguardado dessa cooptação, uma vez que operam suas políticas no cruzamento de classe/gênero/raça. A luta pelo fim da opressão de gênero das mulheres não será alcançada enquanto durar o genocídio da população negra por parte do Estado. Ou seja, a insígnia “meu corpo minhas regras” também está ali presente na agenda feminista negra, mas com uma intensidade muito menor do que em outros movimentos feministas que têm o individualismo como estruturante e fecham-se em torno das questões referentes à identidade de gênero. Dessa forma, é necessário que se reconheça que há, nesse guarda-chuvas “lutas identitárias/avanço do individualismo”, uma considerável pluralidade de discursos em disputa. A segunda questão: precisamos ficar muito atentos e atentas a como os Estados, os ex-países colonizadores e os países imperialistas (Estados Unidos, Inglaterra e França, principalmente), acionam e instrumentalizam nossas agendas do feminismo, por exemplo, para justificarem suas opressões no mundo. Vejam o que fizeram no Afeganistão; por 20 anos pilharam esse país. O legado dos EUA e da OTAN para Afeganistão? Miséria. O país hoje exibe um dos piores indicadores de desenvolvimento humano do mundo. Qual era o grande argumento para fazer esse movimento de terra arrasada, de pilhagem? “Vamos salvar as mulheres!” A ponto de o feminismo “patriarcalista” ir para as ruas defender a invasão do Afeganistão. Portanto, quando eu falo “cuidado!”, estou precisamente chamando a atenção para a necessidade de interseccionalizarmos as lutas pelos direitos individuais – direito ao aborto, direito ao casamento LGBTQIA+, toda uma agenda vinculada ao corpo – com uma questão de justiça social, com uma agenda anticapitalista, com uma agenda de luta anticolonial, com uma agenda contra o Apartheid e colonialismo que acontece hoje em Israel.

KC: Considerando o significado dessa liberdade num contexto neoliberal – que você mencionou – onde se valorizam o indivíduo e a família mononuclear como possibilidades dominantes e quase únicas, como você lê a recorrente crítica a lutas descritas como identitárias?

BB: Lutas identitárias não são secundárias. Se eu entendo que sexualidade, gênero e raça são questões constitutivas do Estado-nação e que, portanto, esse Estado-nação tenta produzir uma determinada concepção do que é mulher de verdade e define a heterossexualidade como norma, não se pode afirmar que os sujeitos coletivos que se organizam em torno dessas agendas não estão fazendo luta política com grande poder de transformação. No entanto, conforme eu apontei, há o risco da cooptação desses movimentos pelo Estado e pela lógica do mercado, caso não haja a articulação de outros marcadores sociais da diferença e da desigualdade em suas reflexões e ativismos. As concepções de família e moral que orientam o Estado também operaram na esfera produtiva. Podemos observar que, onde há leis de respeito aos direitos civis, ali também encontraremos empresas que buscam ajustar políticas internas a esse corpo legal. E aqui, na esfera do mercado, o caráter de instrumentalização da agenda “diversidade sexual e de gênero/feminismos” se apresenta fortemente. Empresas que passam a fazer marketing com a moeda “nós respeitamos a diversidade”. Ora, o nível de exploração dos/as trabalhadores/as atinge níveis desumanizadores, a exemplo de empresas dos aplicativos. Quando nos movemos em campos de luta que estão imersos em disputas morais, as temporalidades diferenciam-se das lutas econômicas. Mas, claro, há conexões entre as questões econômicas e morais. Pagar salários menores às mulheres; não contratar pessoas trans; demitir um funcionário porque se descobre que ele é gay são efeitos de concepções morais, ou seja, os efeitos de determinada concepção sobre o bom/mau, sobre o certo/errado, desdobram-se em todas as esferas da vida social. Mas as disputas acontecem, de fato, em torno de disputas morais. Ter claro o conteúdo dessas disputas nos leva a entender que estamos lidando com estruturas de percepção de mundo autorizadas que formam um sistema de valores, o que significa afirmar que, nessa esfera, não há um momento para se afirmar “conquistamos o poder!”. Em 1917, o mundo conhecia a primeira experiência longeva de uma revolução socialista. O aparelho de Estado foi posto a serviço de uma visão de mundo que implicou mudanças radicais nas relações de produção e nas relações sociais. Após cerca de 100 anos da revolução, a Rússia é considerada um dos enclaves mais perigosos para gays, lésbicas, trans e feministas viverem. As pessoas LGBTQIA+ que saem às ruas para fazer manifestação nem precisam ser reprimidas pela polícia. Posso falar da polícia de Putin? Posso! Mas não é o Putin; é uma estrutura que vem antes dele, um conjunto de valores que vai continuar depois dele. Essas lutas estão vinculadas a valores morais; elas não têm a mesma temporalidade de uma luta de classes. Cuba fez a revolução socialista em 1959. As pessoas LGBTQIA+ foram perseguidas, e, em algum momento, inicia-se um debate interno na sociedade sobre os direitos humanos de gays, mulheres, trans, lésbicas. Hoje é uma referência na discussão e nas políticas públicas da questão da transexualidade e nos debates e ações sobre famílias plurais. As lutas em torno de concepções morais não têm um ponto de chegada (tomada de poder). Elas acontecem antes, durante e depois dos processos de transformações econômicas e têm impactos nessa esfera. Essa questão dos direitos individuais, do direito ao corpo, não são agendas burguesas, não é uma agenda secundária; são lutas fundamentais, mas, volto a repetir, se não houver interseccionalidade política com questões de justiça social, podem se tornar retóricas de poder que justificam opressões e violências. Por exemplo, o movimento LGBTQIA+ não pode fazer concessão a Israel, ou ao Pinkwashing. Eu vi grandes empresas como a IBM, em Bruxelas, com a bandeira do movimento, mas a exploração dessas empresas com os trabalhadores do mundo é impressionante, então é pura peça de marketing. E, se há trabalhadores LGBTQIA+ conscientes da cumplicidade dessa empresa com o colonialismo israelense, seria o caso de solicitar a retirada da bandeira.

KC: Se você puder, gostaria que expusesse melhor o conceito de “necrobiopolítica”, que tem atravessado o seu trabalho e esteve implícito durante toda a nossa conversa.

BB: Eu comecei a observar que os estudos das identidades abjetas, que são aqueles sujeitos que não têm sua humanidade reconhecida – como as pessoas trans que não têm um nome, não têm inteligibilidade –, articulavam um tipo de par de oposição nas análises: morte e vida, em que o Estado aparece como o centro produtor da morte. O corpo teórico dessas pesquisas gira em torno dos conceitos de “necropoder” (Mbembe, 2018MBEMBE, Achille. Necropolítica. Tradução: Renata Santini. São Paulo, n-1 edições, 2018 [2003]. [2003]); “homo sacer” (Agamben, 2010AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer. O poder soberano e a vida nua. Tradução: Henrique Burigo. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2010 [1998]. [1998]); “biopoder” e “poder soberano” (Foucault, 1988FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: a vontade de saber. Tradução: Maria Thereza da Costa Albuquerque e J.A. Guilhon Albuquerque. vol.1, Rio de Janeiro, Edições Graal, 1988 [1976]. [1976]); um conjunto de conceitos da Judith Butler, como “vida precária”, “vida não inteligível”, “abjeção” (Butler, 2019 [1993]); e também do debate sobre se “pode a subalterna falar” (Spivak, 2018SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar?. Tradução: Sandra Regina Goulart Almeida, Marcos Pereira Feitosa e André Pereira Feitosa. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2018 [1988]. [1988]). Pode-se afirmar que esses conceitos e teóricos formam o cânone dos estudos das identidades abjetas. Então, esse corpo teórico vai apontar, entre outras dimensões, as técnicas de produção da morte dos corpos que são abjetados, aqueles que não têm inteligibilidade ontológica; mas essa produção continuada de seres abjetos só existe porque está articulada ao biopoder. Então, como uma analítica do Estado, não posso separar os dois termos (vida e morte). O Estado tem de ser pensado como um conjunto de políticas que distribui, diferencial e hierarquicamente, políticas para a promoção da morte e para a promoção da vida. Voltemos aos debates que aconteceram nas entranhas do Estado e que resultaram na Lei do Ventre Livre. Aqueles deputados, quando se debruçavam no ponto de pauta “elemento servil” (qualificação da época para o trabalho escravizado), moviam-se na esfera da produção da morte. No entanto, quando eu me movia para outras partes dos anais, eu me encontrava com a esfera da biopolítica. Produção da morte e da vida são termos indissociáveis: um Estado não vive só de biopolítica e um Estado não vive só de necropolítica. Da análise dos Anais à política atual, é possível observar as necrobiopolíticas atuando, como quando as mulheres negras falam: “O Estado mata meu filho, e eu tenho que entrar no Estado para pedir reparação e nem isso eu tenho”. Ou seja, o mesmo Estado que promove a morte torna-se o lugar em que se vai para pedir reparação, tornando, assim, as dimensões necro e bio inseparáveis.

KC: Como a gente consegue, então, lançar estratégias de resistência, por um lado, para evitar simplificações e estratégias de cooptação e, por outro, para combater uma política que necessita da morte e da distribuição de desigualdades para potenciar a vida e a acumulação de riqueza, ou que abraça os direitos de alguns em detrimento dos direitos de outras?

BB: Eu tenho pensado muito sobre isso. Eu tive um giro na minha forma de teorizar sobre isso a partir de 2014, quando eu estava morando em Nova York. Naquele momento, aconteceu o massacre em Gaza – em algumas semanas, Israel matou 2.400 palestinos, entre eles quase 500 crianças. No mesmo período, aconteceu a parada gay na cidade de Nova Iorque, e eu fiquei perplexa. As corporações econômicas participavam do evento, e as pessoas LGBTQIA+ usavam os uniformes da empresa. Então eu pensei: “O que que está acontecendo aqui?”. Eu estava vendo, diante dos melhores, os sentidos do termo “cooptação”. Certamente alguns eram soldados que serviram às forças armadas do império que espalha pelo mundo sua máquina de morte. Portanto, é necessário articular as lutas individuais (que, de fato, não são individuais) com as lutas por justiça social e com políticas de aliança locais e globais com os/as excluídos/as. Ou seja, as lutas dos dissidentes sexuais e de gênero, se não forem antirracistas e anticapitalistas, podem, de fato, ser recursos retóricos dos ditos países civilizados contra os “bárbaros”. O sistema entendeu isso muito bem, e hoje esses tropos do discurso – direitos humanos, liberdades individuais, etc. – se tornaram tropos de guerra, que servem às tropas, a verdade é essa, servem para justificar a matança continuada realizada pelos países centrais.

KC: Por fim, de modo a fazer um apanhado da conversa, gostaria de saber como você vê o processo contemporâneo de resistência e reconstrução de um orgulho negro e/ou subalterno?

BB: Quando você tem uma luta política, como a luta antirracista, tem um momento que não é apenas a entrada no mercado de trabalho, não são apenas os direitos trabalhistas, porque há uma condição existencial que te nega, inclusive, a entrada nesse mercado de trabalho, porque o teu corpo é construído sob o signo da abjeção. Então, quando você olha o corpo de uma pessoa negra, ela é lida, imediatamente, como perigosa, menos inteligente; o mesmo acontece com as pessoas trans e indígenas. A vida no Brasil foi e continua sendo uma guerra racial. A guerra racial é articulada com a guerra de classes. Eu acho que, quando você tem essas corporalidades, que foram reiteradamente desumanizadas, é preciso construir agendas políticas que, por exemplo, digam “black is beautiful”, “ser negra é ser bonita”, e habilitar outras estéticas que neguem o império da branquitude. Então, pode-se argumentar: “Bom, a defesa da negritude pode levar para uma essencialização”. Esse risco existe, mas não temos como não politizar o abjeto. Quando eu falo da beleza do cabelo, do turbante, das roupas, o que está acontecendo é uma luta tremenda contra um processo em que essa corporalidade e estética não foi “apenas” lida como feia, mas como abjeta, o que significa dizer que não há categorias representacionais para ela. Feiura e beleza é um par de oposição que está em linha de continuidade. Entre os/as brancos (e eu incluiria as pessoas pardas), pode-se construir uma hierarquia de níveis de beleza-feiura, conforme se discute no artigo O Belo, o feio e o abjeto nos corpos femininos (Bento, 2021a). Há hierarquias, mas as posições diferenciadas acontecem no mesmo marco antológico: são corpos inteligíveis. Você pode ter uma mulher branca feia (dentro de um determinado padrão estético) ou uma mulher parda bonita, mas as corporalidades e as existências negras estão fora dessa linha de continuidade, são abjetas. Não há dúvidas de que se observa uma mudança social nesses padrões. O que os movimentos sociais nos dizem, e que muitas vezes a teoria não dá conta de acompanhar, é que essas agendas e lutas políticas – em um país que viveu quase 400 anos de escravidão – necessariamente têm que fazer seus acertos de contas com esse passado em todas as suas dimensões. Para sair da categoria do abjeto e entrar na categoria de humanidade, é necessário politizar o abjeto, e é isso que eu acho que o movimento e intelectuais negros/as têm feito. Isso é política; isso não é perfumaria; isso é uma disputa interna às concepções de corpos que têm inteligibilidade, no coração da ontologia.

Referências bibliográficas

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  • 1
    Karla Costa aparece como representante da SaMaNe, mas a entrevista contou com o apoio de mais dois membros da associação, Laura Brito e Carolina Coimbra. ola.samane@gmail.com
  • 2
    Com o título Gênero, uma categoria útil de análise? A Lei do Ventre Livre no Brasil e em Portugal.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    14 Set 2023
  • Aceito
    07 Mar 2024
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