Resumo
Nas intersecções de gênero, raça e classe, Nossa Senhora Aparecida emerge como uma figura assombrosa – ou aparição –, dando acesso a elementos marginalizados, reprimidos, trivializados e negados. O processo ritual do catolicismo popular produz um efeito de montagem: Aparecida e a mulher-loba. As semelhanças entre essas duas figuras surpreendem. Seguindo a sequência de performances de Aparecida na basílica; da mulher-loba no parque de diversões; e das senhoras do Buraco dos Capetas em seus dramas cotidianos; descobre-se como o corpo abjeto em performance, mesmo sendo reprimido, lampeja de modo significativo para devotas e devotos em situações críticas e de risco.
Aparecida; Loba; Performance; Gênero; Raça
Abstract
At the intersections of gender, race, and class, Aparecida emerges as a haunting figure, giving access to that which is marginalized, repressed, trivialized, and denied. The ritual process of popular Catholicism produces a montage effect: Aparecida and the she-wolf. Uncanny similarities between these ghost figures are explored. Following a sequence of performances involving Aparecida in the basilica; the she-wolf in the amusement park; and ladies of Devils’Hole, in their daily dramas; one sees how, as a flashing image, the abject body in performance, even if repressed, becomes meaningful for devotees of Our Lady in critical life-threatening situations.
Aparecida; She-wolf; Performance; Gender; Race
1. O que está acontecendo?
No dia 12 de outubro de 2022, durante sua fracassada campanha à reeleição, o ex-presidente Jair Messias Bolsonaro foi à cidade de Aparecida do Norte, casa de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil. A presença do ex-presidente e de sua comitiva na basílica gerou um clima de tensão. Em 2016, como um congressista relativamente desconhecido, Bolsonaro ganhou notoriedade na televisão nacional durante o processo de impeachment de Dilma Rousseff, a primeira presidenta do Brasil. Antes de declarar seu voto, Bolsonaro exaltou os feitos do coronel Carlos Alberto Ustra, a quem chamou de “herói nacional”. Ustra foi chefe do DOI-Codi, o aparelho repressivo de inteligência da ditadura militar, durante a década de 1970, quando Dilma e outros opositores do regime foram torturados. Conhecido por uma série de ataques e comentários depreciativos contra mulheres e descendentes de povos africanos e ameríndios, o candidato à reeleição foi a Aparecida para homenagear e demonstrar devoção a uma imagem idealizada de mulher, considerada por muitos como a santa mãe preta do Brasil.
O que está acontecendo? Estaremos no reino dos ghostly matters (“assuntos assombrosos”) discutidos por Avery Gordon (2008)GORDON, Avery F. Ghostly matters: haunting and the sociological imagination. Minneapolis/London, University of Minnesota Press, 2008.? Seria Bolsonaro assombrado pela figura de uma mulher preta? Em outro plano, talvez mais significativo, seríamos, no Brasil, assombrados coletivamente pela imagem de Aparecida?
Quando visitei Aparecida, em 1984, com um grupo de devotos de um lugar chamado Buraco dos Capetas, conheci não só Nossa Senhora Aparecida, mas, também, a mulher-loba. Depois de visitar as basílicas, deparamo-nos com um parque de diversões. As suas principais atrações: mulher-gorila, mulher-cobra e mulher-loba, ou mulher-lobisomem. Vimos o espetáculo da mulher-loba. Depois de retornar ao Buraco dos Capetas, o interesse e a alegria demonstrados por devotas e devotos da santa, ao relatarem o nosso encontro com a mulher-loba, despertaram a minha atenção. A viagem produziu em mim uma experiência de montagem. Quando vi Nossa Senhora, vi uma mulher-loba. Essas imagens me assombram.
Como sugere Gordon (2008GORDON, Avery F. Ghostly matters: haunting and the sociological imagination. Minneapolis/London, University of Minnesota Press, 2008.:xvi), uma assombração pode dar acesso a elementos marginalizados, suprimidos, trivializados e negados. Uma imagem assombrosa, ou fantasmagórica, que se manifesta como uma ausência, ou presença de uma ausência, esquecida e, no entanto, vital, pode interromper o curso das coisas. Produz um desvio, possivelmente iluminando a nossa condição atual e fazendo com que possamos ver coisas que antes não conseguíamos ver. Em Aparecida do Norte, tal imagem brilhou na forma de uma loba.
Depois do meu contato com a mulher-loba, passei a ver a imagem de Nossa Senhora de outra forma, com estranhamento. Cada vez mais, as semelhanças entre Nossa Senhora e a mulher-loba me intrigam. Acima de tudo, passei a ver Aparecida – como uma aparição. Também tomei consciência dos aspectos assustadores de termos como gênero, classe e raça – “palavras fantasmas”, como diz Patricia Williams (1991WILLIAMS, Patricia J. The alcheny of race and rights. Cambridge, Massachussets; London, England, Harvard University Press, 1991.:49). Nossa Senhora Aparecida me assombra.
Em 2019, visitei novamente Aparecida do Norte em busca da mulher-loba. Dessa vez, não a encontrei. Mas, num pequeno parque de diversões perto da Basílica Velha, vi o espetáculo da Monga – A Mulher Gorila. Uma questão me intriga: o que essas aparições têm a ver com Aparecida? E o que elas têm a ver com os devotos e as devotas de Aparecida no Buraco dos Capetas?
Como será visto, o incidente de Bolsonaro despertou meu interesse pela discussão de Judith Butler (1993)BUTLER, Judith. Bodies that matter: on the discursive limits of "sex". New York and London, Routledge, 1993. sobre corpos que importam – um domínio de fabricação dos corpos assombrado pelo espectro de outro, dos corpos abjetos, abomináveis ou insignificantes. Também me levou a repensar algumas anotações de campo feitas durante as viagens a Aparecida, em 1984 e 2019. A primeira visita ocorreu num período em que eu fazia etnografia com boias frias cortadores de cana em um local que os moradores, com uma ponta de humor, chamavam de Buraco dos Capetas, situado no antigo Risca-Faca de Piracicaba, São Paulo. Durante o ano de 1983, morei com a família de Mister Zé e Anaoj (nomes fictícios). Anaoj e as suas filhas eram figuras centrais de uma rede matrifocal mais ampla de parentesco e relações de vizinhança. Em 1984, acompanhei Anaoj em uma excursão de ônibus a Aparecida, organizada por seu sobrinho. Em 2019, aproveitando uma licença de minhas atividades docentes em São Paulo, fui sozinho.
Corpos que importam: performando gênero, raça e classe.
“Gênero é um verbo disfarçado de substantivo”, diz Marilyn Strathern (2016STRATHERN, Marilyn. Before and after gender: sexual mythologies of everyday life. Chicago, Hau Books, 2016.:xvi). Enquanto identidade instituída por meio de “uma repetição estilizada de atos” – “uma identidade tenuemente constituída no tempo” –, segundo Judith Butler (1990BUTLER, Judith. Gender trouble: feminism and the subversion of identity. New York and London, Routledge, 1990.:179), gênero é um ato performativo. Aqui, tomo-o como um exemplo daquilo a que Richard Schechner (1985b:36) se refere como “comportamento restaurado” ou “comportamento duplamente comportado”.
Gênero também é discurso performativo. O discurso sobre gênero é performativo. No próprio ato do discurso, gênero é encenado e produzido. As identidades de gênero não são apenas sujeitos do discurso, mas são criadas por meios discursivos.
Partindo da ideia de Michel Foucault de que o discurso produz efeitos de verdade, Edward Said (1990)SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo, Companhia das Letras, 1990. mostra como o Oriente é produzido no Ocidente por meio de um discurso denominado “orientalismo”, envolvendo instituições literárias, artísticas, religiosas, políticas, econômicas e militares. O Oriente torna-se real no discurso. O discurso é produtivo. No espelho de um Oriente projetado como Outro, o Ocidente se produz como um reflexo simetricamente inverso. O Oriente é produzido como o Outro do Ocidente.
Da mesma forma, segundo Judith Butler, que também se inspira em Foucault, a categoria mulher torna-se real no discurso como produto de palavras e ações. De acordo com Butler (1990)BUTLER, Judith. Gender trouble: feminism and the subversion of identity. New York and London, Routledge, 1990., o termo mulher estabiliza e consolida uma relação binária e de oposição com um homem. Sendo uma categoria que funciona como sinal diacrítico em relação ao homem, a mulher estabiliza normas de heterossexualidade compulsória. Partindo de uma matriz de discurso masculino hegemônico, os termos binários masculino e feminino são produzidos de modo que a mulher se torna quase uma invenção masculina para refletir o poder masculino (Butler, 1990BUTLER, Judith. Gender trouble: feminism and the subversion of identity. New York and London, Routledge, 1990.). No espelho da mulher, vendo-se sendo visto por outra – uma imagem de sua própria projeção –, o homem produz um reflexo de si mesmo como a sua própria invenção.
Segundo Judith Butler (1993)BUTLER, Judith. Bodies that matter: on the discursive limits of "sex". New York and London, Routledge, 1993., as normas compulsórias heterossexuais e binárias, como vistas em atos performativos repetitivos, resultam em corpos que importam. Alguns corpos importam mais do que outros. Corpos que significam e criam sentido também são efeitos de significação. O ato significante delimita e molda o corpo que se imagina como sendo anterior à significação. Os corpos aparecem e se materializam a partir de constrangimentos produtivos de esquemas regulatórios altamente marcados por gênero (Butler, 1993BUTLER, Judith. Bodies that matter: on the discursive limits of "sex". New York and London, Routledge, 1993.).
Judith Butler vai um passo além, levantando a questão de como os constrangimentos normativos, criados e estabelecidos por meio de conjuntos de ações performativas e repetitivas, “não apenas produzem o domínio de corpos inteligíveis, mas também produzem um domínio de corpos impensáveis, abjetos e invisibilizados”. Através de tais corpos, constrangidos a desaparecer, ou a serem mantidos fora de vista, o domínio excluído “assombra o primeiro domínio como o espectro da sua própria impossibilidade” (1993:xi).
A experiência da abjeção, porém, não se restringe à categoria de gênero. Analisando o estado da arte dos estudos feministas, Adriana Piscitelli (2008)PISCITELLI, Adriana. Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de migrantes brasileiras. Sociedade e Cultura: Revista de Ciências Sociais (11, 2), jul./dez. 2008, pp.263-274. chama a atenção para o surgimento da interseccionalidade, uma ferramenta analítica feita para mostrar como categorias de gênero, raça e classe, entre outras, se inter-relacionam. O termo foi cunhado por Kimberlé Crenshaw (1989CRENSHAW, Kimberlé. Demarginalizing the intersection of race and sex: a black feminist critique of antidiscrimination doctrine, feminist theory and antiracist politics. University of Chicago Legal Forum (1), Chicago, 1989, pp.139-167.; 1991). De acordo com Crenshaw, a interseccionalidade possibilita a análise da interação entre diferentes formas de subordinação, como sexismo, racismo e patriarcado. Outras autoras, como Anne McKlintock e Avtar Brah, desenvolveram a ideia de que raça, gênero e classe constituem categorias relacionais. Essa abordagem possibilita a análise da experiência em contextos específicos – como demonstra Piscitelli (2008)PISCITELLI, Adriana. Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de migrantes brasileiras. Sociedade e Cultura: Revista de Ciências Sociais (11, 2), jul./dez. 2008, pp.263-274. em seus estudos sobre mulheres migrantes brasileiras.
Também assumindo a interseccionalidade como uma ferramenta analítica, Patricia Collins e Sirma Bilge (2021) fornecem vários exemplos de análise contextual que mostram como as categorias de raça, classe e gênero, entre outras, se inter-relacionam. Sobrepondo-se umas às outras, essas categorias atuam de forma unificada. Seguindo o exemplo de Patricia Collins, Carla Akotirene (2019AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. Feminismos Plurais. São Paulo, Sueli Carneiro/Pólen, 2019.:21) vê a interseccionalidade como “um sistema interligado de opressão”.
Desde o lançamento, ao menos, do Manifesto das Mulheres Negras no Brasil, em 1975 – antes, portanto, das primeiras formulações, nos anos 1990, de teorias da interseccionalidade –, importantes pensadoras e protagonistas do movimento negro, como Lélia Gonzalez e Sueli Carneiro, evidenciaram o modo como as questões de gênero interagem com as de raça e classe social na opressão das mulheres negras. Numa sociedade patriarcal em que as mães pretas são idealizadas como mães de filhos e filhas de todas as raças – no âmbito das ideologias do branqueamento e da democracia racial –, elas tornam-se corpos que importam principalmente como mães dos filhos de homens brancos. O casamento inter-racial no Brasil colonial, diz Gonzalez (2020), foi produzido pela violência dos homens brancos contra mulheres negras e ameríndias. Carla Akotirene (2019AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. Feminismos Plurais. São Paulo, Sueli Carneiro/Pólen, 2019.:102) fala do “estupro colonial da mulher negra”. Nos seus ataques à ideologia do branqueamento, feministas como Gonzalez (2020)GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções, diálogos. Rio de Janeiro, Zahar, 2020. mostram como as mulheres pretas têm sido protagonistas na luta contra o genocídio dos povos negros.
Discutindo intersecções de gênero, raça e classe, as feministas negras brasileiras assombram tanto o movimento feminista, em grande parte de classes médias e elites brancas, como o movimento negro, em grande parte masculino. Ocupando as margens interiores desses movimentos, as pensadoras revelam como a experiência de abjeção entre as mulheres pretas em situação de pobreza cala fundo no cotidiano da vida no Brasil.
Em Aparecida do Norte, acompanhando devotas e devotos do Buraco dos Capetas, em sua visita à santa, me deparei com um local em que imagens de corpos abjetos ganham realce: o parque de diversões onde mulheres se transformam em bichos. Neste ensaio, seguindo o fluxo do processo ritual do catolicismo popular em que as fronteiras entre o sagrado e o profano são altamente instáveis ou impossíveis de serem estabelecidas (Montes, 1998MONTES, Maria Lúcia. As figuras do sagrado: entre o público e o privado. In: NOVAES, Fernando A. (coord.); SCHWARCZ, Lilia Moritz (editor of volume 4). História da vida privada no Brasil: contrastes de intimidades contemporâneas. São Paulo, Companhia das Letras, 1998, pp.63-172.), visitarei três locais: as basílicas de Aparecida, o parque de diversões e o Buraco dos Capetas. Em relação às questões de método, esse percurso pode evocar a noção da “sequência total da performance”, de Richard Schechner (1985a:16). Melhor, eu diria, o percurso sugere uma “sequência total das performances” (com um “s” no final): Nossa Senhora nas basílicas; a mulher-loba e a Monga nos parques de diversões; e as senhoras devotas em seus dramas cotidianos no Buraco dos Capetas.
Pretendo discutir semelhanças estranhas entre Nossa Senhora e a mulher-loba ao mesmo tempo em que procuro entender melhor o significado, para as pessoas do Buraco dos Capetas, do domínio dos corpos abjetos no parque de diversões de Aparecida do Norte. Observa-se o modo como os atos performativos exibidos em espetáculos desse domínio abjeto interagem com processos de materialização das mulheres no Buraco dos Capetas. Aqui, vemos como imagens de corpos abjetos em performance lampejam nos corpos de mulheres devotas em situações críticas e de risco na vida cotidiana.
2. Nossa Senhora em performance
Nova Basílica
Viajando durante a noite, chegamos a Aparecida às 5h do dia 14 de outubro de 1984. Ao descer do ônibus, soltam-se rojões. No estacionamento, onde em breve haveria centenas de ônibus, nos vemos diante de uma igreja imensa. Majestosa e gigantesca, a Basílica Nova domina a paisagem da cidade. Consagrada durante a visita do Papa João Paulo II ao Brasil em 1980, essa é a maior basílica dedicada a uma Virgem Mãe no mundo. Em 1982, a imagem da padroeira do Brasil foi transferida da Basílica Velha do Morro dos Coqueiros para a Basílica Nova. De joelhos, um homem sobe os degraus da escadaria. Em seus braços, uma criança.
Em 2019, após o projeto de modernização realizado pelo arquiteto Cláudio Pastro, sob a direção dos padres redentoristas, a Basílica Nova ficou ainda mais impressionante, com capacidade para acomodar 30 mil pessoas para a celebração da Eucaristia em torno do altar central; e 300 mil ao ar livre. O estacionamento tem capacidade para 4 mil ônibus e 6 mil carros.
Hauntologia
Tal como Cities of the dead, título de um dos livros de Joseph Roach (1996)ROACH, Joseph. Cities of the dead: circum-Atlantic performance. New York, Columbia University Press, 1996., Aparecida do Norte evoca uma genealogia de assombrações, ou espíritos inquietantes do passado, reencenados e restaurados. “O que seria uma assombração se não uma re-aparição, a ação restaurada que Schechner define como performance?” (Taylor, 1997TAYLOR, Diana. Disappearing acts: spectacles of gender and nationalism in Argentina's "dirty war". Duke University Press, 1997.:30). A visita a Aparecida, em 12 de outubro de 2022, de Jair Bolsonaro, aquele que elogiou como “herói nacional” o chefe do aparato repressivo do regime militar, durante a década de 1970, não foi única. A moderna basílica foi construída em grande parte durante os anos do regime militar (1964-1985). Os padres redentoristas alemães, que administravam a diocese da padroeira do Brasil, saudaram o golpe militar de 1964 como um “milagre de Nossa Senhora”. Em 1967, após acompanhar o líder do golpe, General Castello Branco, em uma excursão pelas capitais brasileiras, Aparecida recebeu o título de “Generalíssima do Exército Brasileiro”.
Desde o seu aparecimento, em 1717, Nossa Senhora tem sido cortejada por homens de alta distinção: imperadores, papas, presidentes, ditadores e generais do exército. Na sua análise do amor cortês da Idade Média – em que se destaca a imagem idealizada e etérea da Virgem Maria –, Marilyn Strathern (2016STRATHERN, Marilyn. Before and after gender: sexual mythologies of everyday life. Chicago, Hau Books, 2016.:246) sugere que “o principal foco das atenções não eram as relações entre homens e mulheres, mas as relações entre homens”. Essa análise é sugestiva para interpretar o amor cortês demonstrado a Nossa Senhora Aparecida, envolvendo um processo ritualizado e repetitivo ao qual Diana Taylor (1997)TAYLOR, Diana. Disappearing acts: spectacles of gender and nationalism in Argentina's "dirty war". Duke University Press, 1997. se refere como “fazendo gênero” (gendering) de uma nação. Aparecida do Norte, talvez se possa dizer, é um lugar onde pessoas de gênero masculino – geralmente brancas e, às vezes, violentas – se digladiam para se tornarem os pais da nação, ou Pátria – um termo que significa “pertencente ao pai”.
Desconfiada do amor cortês de homens brancos, Sojourner Truth – que tinha sido estuprada pelo seu dono, acasalada à força com um homem escravizado e roubada dos seus filhos – veementemente questionou o argumento dos homens que, negando direitos às mulheres, diziam que “Cristo não era uma mulher”. Ain’t I a woman? (cf. hooks, 1981HOOKS, bell. ain't I a woman: black women and feminism. Cambridge, Massachusetts, South End Press, 1981.; Haraway, 2004b; Akotirene, 2019AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. Feminismos Plurais. São Paulo, Sueli Carneiro/Pólen, 2019.). “De onde veio o seu Cristo? De Deus e de uma mulher! O homem não teve nada a ver com Ele!”. Como feminista negra evangélica, talvez Sojourner Truth tenha se inspirado em fontes bíblicas, de acordo com as quais o Espírito Santo, ou Espírito – do substantivo hebraico ruah ou ruach –, é feminino.
Corpo fendido
Após a missa, em 2019, fui ao corredor nos recessos da igreja, onde os visitantes vislumbram a imagem de Nossa Senhora de trinta e seis centímetros. No mural de pedras coloridas que conduz à imagem da santa, se encontra uma representação do seu aparecimento, em 1717. Segundo os relatos, pescadores retiraram das águas do Rio Paraíba os fragmentos da imagem de Aparecida. Primeiro, retiraram um corpo sem cabeça, depois uma cabeça. Os fragmentos foram colados. Trata-se da imagem de um corpo fendido.
Em 1978, durante uma tentativa frustrada de roubo ou sequestro da imagem de Aparecida por um jovem que, segundo rumores, ouvia vozes do diabo, ou de pastores evangélicos, ela se despedaçou. Quase duzentos fragmentos foram recolhidos e levados secretamente ao Museu de Arte de São Paulo, onde a imagem foi cuidadosamente restaurada (Alvarez, 2017ALVAREZ, Rodrigo. Aparecida: a biografia da santa que perdeu a cabeça, ficou negra, foi roubada, cobiçada pelos políticos e conquistou o Brasil. Rio de Janeiro, Editora Casa da Palavra Ltda., 2017.).
Em 1995, ocorreu um assalto à imagem, que ficou conhecido como o “chute na santa”. Um ex-bispo evangélico, em uma cruzada contra a idolatria católica, chutou uma réplica da santa num programa matinal de televisão, provocando uma comoção generalizada. Segundo historiadores da igreja, esse acontecimento daria início à modernização da Basílica na virada do século XXI. Em reação à iconoclastia neopentecostal, a Igreja Católica desenvolveu a sua própria forma neobizantina de iconoclastia (Godoy, 2022 GODOY, Adriano. A modernização neobizantina da imagem de Aparecida. GIS - Gesto, Imagem e Som - Revista de Antropologia (7), São Paulo, Universidade de São Paulo, 2022 [ https://www.revistas.usp.br/gis/article/view/185690/182878. - acesso em: 20 abr. 2024].
https://www.revistas.usp.br/gis/article/...
).
Em 2012, uma réplica da imagem foi violentamente atacada, causando alvoroço e uma tentativa de linchamento público. Há uma história trágica da figura de barro, vista como a imagem de uma mãe sofredora. Na sua análise da construção da Índia como nação, Veena Das (2007DAS, Veena. Life and words: violence and the descent into the ordinary. Berkeley, Los Angeles; London, University of California Press, 2007.:19) fala da “mulher violada” como uma figura mobilizadora para reinstaurar a nação como um espaço “puro” e masculino. Talvez Aparecida seja uma figura dessa espécie no Brasil.
Segundo Lourival dos Santos (2007)SANTOS, Lourival dos. A cor da santa: Nossa Senhora Aparecida e a construção do imaginário sobre a padroeira do Brasil. In: SILVA, Vagner Gonçalves da (org.). Memória afro-brasileira: imaginário, cotidiano e poder. São Paulo, Selo Negro Edições, 2007, pp.87-108., o despedaçamento e a remontagem da estátua de Aparecida serviram de metáforas para a construção e reconstrução da nação brasileira. Como um símbolo com diferentes faces – como afirmou Rubem Cesar Fernandes (1985FERNANDES, Rubem César. Aparecida: our queen, lady and mother, Saravá!. Social Science Information, (24, 4), 1985, pp.799-819.; 1988) em seu artigo “Aparecida: nossa rainha, senhora e mãe, saravá!” –, a imagem de Aparecida articula as diferentes faces do Brasil. Após o episódio de 1995, porém, os estudiosos da religião (Pierucci, 1996PIERUCCI, Antônio. Liberdade de culto na sociedade de serviços. In: PIERUCCI, Antônio; PRANDI, Reginaldo (ed.). A realidade social das religiões no Brasil. São Paulo, Hucitec, 1996, pp.275-293.; Montes, 1998MONTES, Maria Lúcia. As figuras do sagrado: entre o público e o privado. In: NOVAES, Fernando A. (coord.); SCHWARCZ, Lilia Moritz (editor of volume 4). História da vida privada no Brasil: contrastes de intimidades contemporâneas. São Paulo, Companhia das Letras, 1998, pp.63-172.; Giumbelli, 2003GIUMBELLI, Emerson. O "chute na santa": blasfêmia e pluralismo religioso no Brasil. In: BIRMAN, Patrícia (ed.). Religião e espaço público. São Paulo, Attar Editorial, 2003 [ https://pt.scribd.com/document/92083293/Chute-Na-Santa-Giumbelli. - acesso em: 20 abr. 2024].
https://pt.scribd.com/document/92083293/...
; Almeida, 2007ALMEIDA, Ronaldo. Dez anos do "Chute na Santa": a intolerância com a diferença. In: SILVA, Vagner Gonçalves da (ed.). Intolerância religiosa: impactos do neopentecostalismo no campo religioso afro-brasileiro. São Paulo, EDUSP, 2007, pp.171-190.; Menezes, 2012MENEZES, Renata de Castro. Aquela que nos junta, aquela que nos separa: reflexões sobre o campo religioso brasileiro atual a partir de Aparecida. Comunicações do ISER (66), Rio de Janeiro, 2012 [ https://www.academia.edu/45519945/Aquela_que_nos_junta_aquela_que_nos_separa_reflex%C3%B5es_sobre_o_campo_religioso_brasileiro_atual_a_partir_de_Aparecida. - a cesso em: 20 abr. 2024].
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) tinham dúvidas de que as faces pudessem novamente ser reunidas.
As fraturas da imagem de Aparecida são profundas – possivelmente até mais do que o episódio de 1995 possa revelar. Talvez não sejam fáceis de curar ou ocultar, mesmo quando coroadas e cobertas por um rosário e um manto dourado. A história que remonta à primeira aparição da imagem produz um assombro. Em 1717, a imagem do corpo sem cabeça apareceu aos pescadores que estavam no ato de prover peixes para um banquete a ser oferecido pelas autoridades locais em homenagem ao novo governador da capitania de São Paulo e das Minas de Ouro, Pedro de Almeida Portugal. Mais tarde nomeado Conde de Assumar, ficou também conhecido como aquele que “cortava as cabeças e pernas” de negros fugidos (Alvarez, 2017ALVAREZ, Rodrigo. Aparecida: a biografia da santa que perdeu a cabeça, ficou negra, foi roubada, cobiçada pelos políticos e conquistou o Brasil. Rio de Janeiro, Editora Casa da Palavra Ltda., 2017.). Para muitas pessoas devotas, Aparecida, que foi encontrada sem cabeça, é a mãe preta do Brasil.
Talvez seja interessante pensar a imagem fendida de Aparecida como uma metáfora da fratura do corpo imaginário coletivo do Brasil – o rosário cobrindo seu pescoço, uma lembrança de Nossa Senhora do Rosário, realçando a fratura e, possivelmente, o escândalo da imagem do corpo fraturado da santa.
O estudo de Denise Pimenta (2013)PIMENTA, Denise. Esboço de uma antropologia dos corpos que creem: a experiência de uma romaria. In: DAWSEY, John C.; MÜLLER, Regina P.; HIKIJI, Rose S. G.; MONTEIRO, Marianna F. M. (ed.). Antropologia e performance: ensaios Napedra. São Paulo, Terceiro Nome, 2013, pp.117-128. sobre os peregrinos da santa examina a experiência de um corpo machucado, em transformação, como parte de um ato performativo coletivo de sacrifício – etimologicamente sacra facere, “tornar o sagrado” –, neste caso, talvez se possa sugerir, refazendo ou restaurando o corpo quebrado de Aparecida.
Mãe Preta
Nossa Senhora é preta, Anaoj me disse. Ela me chamava de João Branco, então talvez eu precisasse ser avisado. Em 2019, porém, acompanhando a multidão no corredor da Basílica, não consegui distinguir a cor ou outras feições de Aparecida. Eu via apenas o brilho da luz refletida da caixa de ouro, prata e ferro. Ao longo do tempo, ocorreram transformações na percepção da cor da imagem de argila. Rodrigo Alvarez (2017)ALVAREZ, Rodrigo. Aparecida: a biografia da santa que perdeu a cabeça, ficou negra, foi roubada, cobiçada pelos políticos e conquistou o Brasil. Rio de Janeiro, Editora Casa da Palavra Ltda., 2017. e Lourival dos Santos (2007)SANTOS, Lourival dos. A cor da santa: Nossa Senhora Aparecida e a construção do imaginário sobre a padroeira do Brasil. In: SILVA, Vagner Gonçalves da (org.). Memória afro-brasileira: imaginário, cotidiano e poder. São Paulo, Selo Negro Edições, 2007, pp.87-108. sugerem que, no período anterior à modernização neobizantina do início do século XXI, ocorreu um processo de “escurecimento” da imagem. Alvarez (2017)ALVAREZ, Rodrigo. Aparecida: a biografia da santa que perdeu a cabeça, ficou negra, foi roubada, cobiçada pelos políticos e conquistou o Brasil. Rio de Janeiro, Editora Casa da Palavra Ltda., 2017. ressalta a recusa de Maria Helena Chartuni, diante das pressões do Reitor de Aparecida, de “branquear” a imagem de Aparecida, após o ataque de 1978, quando a imagem foi despedaçada. Chartuni foi a restauradora do Museu de Arte de São Paulo, responsável por juntar novamente as peças quebradas.
Segundo Alvarez (2017)ALVAREZ, Rodrigo. Aparecida: a biografia da santa que perdeu a cabeça, ficou negra, foi roubada, cobiçada pelos políticos e conquistou o Brasil. Rio de Janeiro, Editora Casa da Palavra Ltda., 2017., a efígie de Aparecida, de trinta e seis centímetros, foi originalmente esculpida como uma imagem de Nossa Senhora Conceição, padroeira de Portugal, com traços de uma mulher branca europeia. Na verdade, o nome oficial de Aparecida é Nossa Senhora Aparecida Conceição. Supostamente, a imagem escureceu devido à ação das águas barrentas do rio Paraíba e da fumaça produzida pelas velas em atos de devoção.
Lourival dos Santos (2007)SANTOS, Lourival dos. A cor da santa: Nossa Senhora Aparecida e a construção do imaginário sobre a padroeira do Brasil. In: SILVA, Vagner Gonçalves da (org.). Memória afro-brasileira: imaginário, cotidiano e poder. São Paulo, Selo Negro Edições, 2007, pp.87-108. ressalta que, durante o século XIX, a imagem era vestida de rosário e identificada com Nossa Senhora do Rosário, a santa mais popular entre pessoas de cor preta. Nossa Senhora Aparecida surgiu como a fusão entre Nossa Senhora Conceição e Nossa Senhora do Rosário. Entre os devotos de cultos afro-brasileiros, como a umbanda e o candomblé, ela também se tornou um avatar de Oxum e Iemanjá, orixás de rios e oceanos.
Se ela fosse uma atriz no palco, talvez alguém da plateia perguntasse: “Nossa Senhora usa black face? Seria ela uma mulher portuguesa branca usando black face? Ou seria ela uma mulher preta usando white face, como Frantz Fanon (2008)FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador, EDUFBA, 2008. descreve em Pele negra, máscaras brancas?” A ideia de que se possa pensar em Aparecida como uma atriz pode parecer estranha. Para que ela subisse ao palco, sem dissipar a sua aura de Nossa Senhora, talvez o teatro tivesse que se transformar em algo muito mais parecido com um ritual, como queriam Antonin Artaud, Jerzy Grotowski e Edward Gordon Craig – um teatro ritual no qual uma estatueta, como afirma Craig (1996), seja capaz de evocar os mortos.
Uma efígie, diz Joseph Roach (1996)ROACH, Joseph. Cities of the dead: circum-Atlantic performance. New York, Columbia University Press, 1996. em Cities of the dead, evoca uma ausência. Aparecida (“a que apareceu”) evocaria pessoas que desapareceram? Evocaria os mortos ou, como diria Abdias do Nascimento (1989)NASCIMENTO, Abdias. Brazil: mixture or massacre? Essays in the genocide of a black people. Fitchburg, Massachussetts, The Majority Press, 1989., aqueles que inspiram a luta contínua contra o genocídio dos povos pretos no Brasil? Lélia Gonzalez (2020)GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções, diálogos. Rio de Janeiro, Zahar, 2020. sugere que, apesar dos estereótipos, as mães pretas brasileiras possuem formas próprias de resistência. Talvez a capacidade de invocar os mortos seja uma delas.
Espelhos
De acordo com Victor Turner (1977)TURNER, Victor. Liminality and communitas. In: TURNER, Victor. The ritual process: structure and anti-structure. Ithaca, New York, Cornell University Press, 1977 (1969), pp.94-130., momentos e lugares liminares podem provocar um deslocamento do olhar, ajudando a ver as coisas de novas maneiras. As experiências liminares produzem efeitos de estranhamento em relação à vida cotidiana. Enquanto experiências desse tipo, as performances rituais e estéticas provocam mais do que o mero espelhamento do real. Instaura-se nesses momentos um modo subjuntivo (“como se”) de situar-se em relação ao mundo, criando fissuras e fricções, e iluminando dimensões de ficção do real – com efeitos f(r)iccionais, colocando o R entre parênteses, gostaria de sugerir – revelando a sua inacababilidade e subvertendo os efeitos de realidade de um mundo visto no modo indicativo, não como um palco vivo e mutante, carregado de possibilidades, mas simplesmente como é. A performance não produz um mero espelhamento. A subjuntividade que caracteriza um estado performático surge como o efeito de um “espelho mágico” (Turner, 1987TURNER, Victor. Images and reflections: ritual, drama, carnival, film, and spectacle in cultural performance. In: TURNER, Victor. The anthropology of performance. New York, PAJ Publications, 1987, pp.21-32.:22).
Para muitos devotos, a imagem de Nossa Senhora se apresenta como um “espelho mágico”. Comentando o instante em que passou pela imagem da santa nos fundos da basílica, em 1984, uma mulher disse: “Parece que nem sou eu nesse momento”. Em sua análise de instantes como esse na performance, Richard Schechner (1985b; 1985a) evoca a experiência de se ver como “não eu” e “não não eu” ao mesmo tempo. Talvez vários devotos do Buraco dos Capetas, como participantes da performance ritual, se percebam num processo de transformação, tornando-se filhas e filhos de Aparecida. Ao mesmo tempo, não deixam de se ver como pessoas de carne e osso, moradores do Buraco dos Capetas. Ao passarem pela imagem da santa, talvez se percebam em uma espécie de tempo liminar, entre a persona ou aura de Nossa Senhora (“não eu”) e a inervação dos seus corpos (“não não eu”). Talvez até percebam, sob um efeito semelhante ao de uma luz negra, a transformação da santa em uma espécie de Nossa Senhora do Buraco dos Capetas. Em performance, uma imagem de barro também se transforma em algo liminar, “não barro” e “não não barro”.
Em 2019, ao passarmos pela imagem de Aparecida, achei difícil visualizar a estatueta de trinta e seis centímetros, no nicho dourado e metálico localizado acima de nossas cabeças. Adriano Godoy (2022) GODOY, Adriano. A modernização neobizantina da imagem de Aparecida. GIS - Gesto, Imagem e Som - Revista de Antropologia (7), São Paulo, Universidade de São Paulo, 2022 [ https://www.revistas.usp.br/gis/article/view/185690/182878. - acesso em: 20 abr. 2024].
https://www.revistas.usp.br/gis/article/...
também comentou sua dificuldade em captar a imagem no celular, como outras pessoas também tentavam fazer. Como resultado da modernização do Santuário de Aparecida iniciada na virada do século XXI, sob orientação do arquiteto Claudio Pastro, a imagem adquiriu características de um ícone bizantino, brilhando como o reflexo num espelho. O significado do eikon emerge em performance, à medida que as pessoas, em atos de devoção, interagem com o objeto. Evandro Bonfim (2021)BONFIM, Evandro. Arte pop e bizantina na iconografia carismática. Debates do NER (19), Porto Alegre, jan./jul. 2021, pp.263-292. afirma que, de acordo com os princípios bizantinos de perspectiva invertida, as próprias figuras sagradas tornam-se fontes de luz, irradiando-se na direção dos espectadores. A imagem se dissolve em luz. Nesses momentos, ela se torna especialmente fantasmagórica. Mal parece estar lá.
Num registro neobizantino, talvez a imagem provoque, como se poderia esperar de uma senhora sob os efeitos de uma matriz patriarcal de discurso, uma espécie de disappearing act, ou “ato de fazer desaparecer”, ao qual Diana Taylor (1997)TAYLOR, Diana. Disappearing acts: spectacles of gender and nationalism in Argentina's "dirty war". Duke University Press, 1997. se refere. Ou seria mais parecido com o active vanishing (“desaparecimento ativo”) que Peggy Phelan (1993a), inspirada por performances feministas, tem em mente? Atrás do brilho – com efeitos de branqueamento? – da máscara neobizantina, encontraríamos, nas palavras de Phelan (1993b:66), uma “identidade feminina”, ou, neste caso, uma identidade feminina preta, que se “expressa pelo seu disfarce, pelo seu afastamento do olhar do outro”?
Milagres e promessas
Em 1984, no final do corredor havia uma pilha de muletas, uma primeira demonstração dos poderes de cura de Nossa Senhora. Dali descemos para a sala dos milagres, uma extraordinária e transbordante exposição barroca das façanhas da santa.
Em 2019, não vi mais as muletas, e a sala dos milagres não existia mais. Em seu lugar, a sala das promessas. Em um dos seus corredores principais havia uma exposição de pinturas e representações iconográficas dos milagres de Nossa Senhora, com descrições sumárias: a aparição de Nossa Senhora e a pesca milagrosa; a libertação e quebra das correntes de um homem preto escravizado; o apagão das velas que, repentinamente, reacendem sozinhas; a derrubada do arrogante e incrédulo cavaleiro do seu cavalo na escadaria da basílica; o resgate do menino de um afogamento nas águas turbulentas do rio; a cura da menina cega; o salvamento do caçador devoto prestes a ser devorado por uma onça. Nesse corredor também se encontra uma réplica da canoa de pescadores do Rio Paraíba, evocando a história do aparecimento da santa.
Basílica Velha
Depois de sair da sala dos milagres, em 1984, e da sala das promessas, em 2019, acompanhei o movimento da multidão subindo a Passarela da Fé até o topo do morro. Várias pessoas subiam e desciam de joelhos os 392 metros da passarela. No alto do Morro dos Coqueiros, encontra-se a Basílica Velha, bem menor que a nova. Inaugurada em 1888, ela foi construída para receber as romarias que afluíam ao morro. Em 1908 foi consagrada como basílica menor. Em 1982, tornou-se monumento nacional.
Ao entrar no antigo santuário, em 2019, vi várias famílias sentadas ou deitadas no chão, evidentemente exaustas da peregrinação. Um padre negro estava fazendo a homilia. No alto do teto vi a imagem do milagre de Nossa Senhora libertando um homem preto da escravidão, quebrando e desfazendo as correntes que o aprisionavam.
3. A mulher-loba em performance
Parque de diversões
Ao sair da Basílica Velha, em 1984, segui o percurso realizado por multidões de pessoas descendo o Morro dos Coqueiros num movimento volumoso e fluido por ruas e lojas onde réplicas da imagem de Aparecida, à venda, se encontram em meio a inúmeros itens de consumo popular. A própria santa parece acompanhar o movimento, misturando-se à profusão de bens e objetos. Em Aparecida do Norte, seguindo o curso do catolicismo popular, os limites entre o sagrado e o profano são instáveis, ou impossíveis de serem estabelecidos (Montes, 1998MONTES, Maria Lúcia. As figuras do sagrado: entre o público e o privado. In: NOVAES, Fernando A. (coord.); SCHWARCZ, Lilia Moritz (editor of volume 4). História da vida privada no Brasil: contrastes de intimidades contemporâneas. São Paulo, Companhia das Letras, 1998, pp.63-172.). O profano invade esferas do sagrado, ao passo que o sagrado, trapaceando a si mesmo, transborda e se converte em iluminação profana.
Em 1984, no final do percurso, às margens da Basílica Nova, fui surpreendido por um parque de diversões. Em meio às diversas atrações, incluindo carrossel, roda gigante, galerias de tiro ao alvo e carrinhos elétricos de bate-bate, encontram-se os espetáculos de mulheres animalescas e ferais: mulher-gorila, mulher-cobra e mulher-loba. Não vi mais as imagens da santa. Aonde teriam ido? Nossa Senhora desapareceu? Ou, como às vezes acontece em espaços do límen, tornou-se outra? Aparecida virou aparição?
Assistimos ao espetáculo da mulher-loba. Formando um semicírculo, espectadores de pé numa pequena sala observam uma jaula sobre um palco, de onde emerge uma jovem de pele clara, pálida, de cabelos tingidos de loiro, de biquíni, o estereótipo de uma fantasia masculina e imagem do desejo: o brilho do fetichismo da mercadoria, talvez, na imagem de uma mulher numa jaula. Dois rapazes a seguram pelos braços. Ao estilo circense, um apresentador com alto-falante e voz retumbante anuncia o fato espantoso que estamos prestes a testemunhar. Após supostamente receber uma injeção, durante a encenação de uma luta em que homens inserem à força uma agulha gigantesca no corpo da vítima, a mulher é reconduzida à jaula. Apagam-se as luzes. Ouvem-se estrondos. Entre lampejos, a figura na jaula avulta: braços e pernas se avolumam, o rosto se expande, as narinas se dilatam, e os pelos brotam por todo o corpo. A criatura agarra as barras de ferro. Num estouro de luz, irrompe a imagem da loba: peluda, escura e horripilante. Repentinamente, rompe-se a jaula. Com espanto, o espectro salta em meio aos espectadores. O semicírculo se desfaz. O filho de dez anos de Anaoj sai correndo. Um grupo de rapazes tenta conter a fera. Em meio ao alvoroço, as pessoas saem em dabandada, e a mulher-loba é levada de volta para a jaula.
Em 2019, a poucas quadras da Basílica Velha, encontrei um parque de diversões, menor que aquele que visitei em 1984. Sua principal atração, Monga – A Mulher Gorila. Ao entrar em uma área escura coberta por uma lona, a imagem de uma jovem de biquíni numa jaula. De repente, um apagão seguido por um estrondo e uma explosão de luz. Em lugar da garota, num lampejo, a Monga – A Mulher Gorila. Arrebentando a jaula, ela salta em minha direção. Fecham-se as cortinas.
Como foi visto no início deste ensaio, Judith Butler (1993)BUTLER, Judith. Bodies that matter: on the discursive limits of "sex". New York and London, Routledge, 1993. discute o modo como constrangimentos normativos, mantidos e recriados por meio de conjuntos de ações performativas e repetitivas, não apenas produzem um domínio de corpos que importam, mas, também, um domínio subterrâneo, ou submerso de corpos abjetos (Butler, 1993BUTLER, Judith. Bodies that matter: on the discursive limits of "sex". New York and London, Routledge, 1993.). Como um fantasma, essa região inferior, infernal, assombra o domínio dos corpos normativos e respeitáveis. Às margens das basílicas de Aparecida (“a que apareceu”), parques de diversões apresentam espetáculos de corpos abjetos, constrangidos a desaparecer, a serem silenciados ou mantidos fora de vista.
Poder-se-ia ver nessas atrações a manifestação carnavalizante do caos em meio ao qual emerge uma ordem serena de proporções cósmicas. A selvageria dessas mulheres mutantes e grotescas dramatiza, por efeitos de comparação, a beleza e a brandura do rosto de Nossa Senhora Aparecida. O verdadeiro terror que se instaura nesses espetáculos, cujos artistas se especializam na produção do medo, magnifica os anseios de ver-se no regaço da santa. Ao passo que, no santuário, uns contemplam o rosto e os olhos da santa envoltos num manto bordado com renda de ouro, outros visitantes, no parque de diversões, testemunham com uma mistura de riso e espanto a erupção de um ‘baixo-corporal’ medonho nos corpos de mulheres-monstros despidas, peludas, escamosas. Como uma serpente que tenta engolir a sua própria cauda, a basílica, com suas torres luminosas dirigidas ao sol, coloca em polvorosa, senão em debandada, as forças ctônicas que irrompem no final de um trajeto descendente que serpenteia pelas ruas morro abaixo de Aparecida do Norte.
Por outro lado, considerando-se a possibilidade de que a cultura popular lúdica da classe trabalhadora tenha algo a dizer sobre o processo ritual, reformulando, a seu modo, os caminhos da devoção, haveria, nesses parques de diversões, a manifestação de uma estética de montagem capaz de produzir um choque de reconhecimento, ou algo parecido com os efeitos de estranhamento que Bertholt Brecht buscava no teatro? Haveria, nos espetáculos da mulher-loba e de outras mulheres mutantes, a irrupção de holy terror (“terror sagrado”)?1 1 Termo usado por Diana Taylor e Roselyn Costantino (2003) para descrever diversas performances subversivas produzidas por mulheres latino-americanas. O comentário de Donna Haraway (1989HARAWAY, Donna. Women's place is in the jungle. In: HARAWAY, Donna. Primate visions: gender, race, and nature in the world of modern science. New York and London, Routledge, 1989, pp.279-303.:280), em Woman’s place is in the jungle (“O lugar da mulher é na selva”), é sugestivo: “O riso é uma ferramenta indispensável nas desconstruções da biopolítica de ser mulher”. Em comum, ambas as imagens de Nossa Senhora e da mulher-loba são produzidas por espelhos. No caso de Nossa Senhora, seguindo princípios da estética neobizantina; no caso da mulher-loba, da estética circense e dos parques de diversões.
De acordo com Barbara Creed (2015)CREED, Barbara. Ginger snaps: the monstrous feminine as femme animale. In: PRIEST, Hannah (ed.). She-wolf: a cultural history of female werewolves. Manchester, Manchester University Press, 2015, pp.180-195., a representação animalesca e selvagem da sexualidade e corporeidade feminina encontra o seu locus classicus, em inícios da modernidade, nos manuais da Inquisição das caças às bruxas, particularmente no Malleus Maleficarum. Apesar do estigma, as imagens de lobas são por vezes vistas como formas de empoderamento. Em seus estudos sobre o imaginário da loba, Hannah Priest (2015PRIEST, Hannah. Introduction: a history of female werewolves. In: PRIEST, Hannah (ed.). She-wolf: a cultural history of female werewolves. Manchester, Manchester University Press, 2015, pp.1-23.:11) descobriu que, “enquanto os lobisomens machos (como os lobos) são frequentemente considerados como uma ameaça externa à propriedade masculina, as fêmeas (como as mulheres) tendem a ser imaginadas como criaturas cativas no interior de estruturas econômicas e sociais”. Em ambos os casos, lobisomens atacam “o coração da sociedade masculina e patriarcal”. Mas, “enquanto o lobisomem de gênero masculino tenta produzir uma ruptura por fora, o de gênero feminino produz o rompimento por dentro, como quem tenta se libertar”.
Donna Haraway (2004a), cujos escritos demonstram uma atração especial por histórias de mulheres e primatas, apreciaria a ideia de romper completamente as fronteiras entre o ser humano e o animal. Talvez o mesmo impulso de se libertar do cativeiro detectado por Priest em relação às lobas tenha a ver, também, com a popularidade da Monga – A Mulher Gorila, principal atração do Play Center de São Paulo, nos anos 1970. O seu criador, Romeu Del Duque, sonha em transformar Monga numa heroína de histórias de quadrinhos (Roque, 2019 ROQUE, Daniel Salomão . Monga: o passado excêntrico e o futuro incerto das mulheres-gorila. BBC News Brasil, 19 jul. 2019 [ https://www.bbc.com/portuguese/brasil-49026834 - acesso em: 20 mar. 2023].
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-49...
).
Afinidades entre Nossa Senhora e a mulher-loba
Ao relembrar o momento em que vi a mulher-loba, em 1984, e a mulher-gorila, em 2019, vem à mente a historiografia materialista de Walter Benjamin:
Pensar não inclui apenas o movimento das ideias, mas também sua imobilização. Quando o pensamento para, bruscamente, numa configuração saturada de tensões, ele lhes comunica um choque, através do qual essa configuração se cristaliza enquanto mônada. O materialista histórico só se aproxima de um objeto histórico quando o confronta enquanto mônada. Nessa estrutura, ele reconhece... uma oportunidade revolucionária de lutar por um passado oprimido (Benjamin, 1985BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas I: magia e técnica, arte e política. São Paulo, Brasiliense, 1985, pp.222-232.:231).
A mônada benjaminiana é o que Avery Gordon (2008)GORDON, Avery F. Ghostly matters: haunting and the sociological imagination. Minneapolis/London, University of Minnesota Press, 2008. chama de assombração. A mulher-loba e a Monga eram mônadas dessa espécie. No parque de diversões de Aparecida, numa montagem capaz de suscitar um choque (mulher-loba/Aparecida), produzida por um processo ritual concebido pelo catolicismo popular, em que sagrado e profano se friccionam e se misturam, transformando-se um em outro, talvez se reconheça “uma oportunidade revolucionária de lutar por um passado oprimido” (Benjamin, 1985BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas I: magia e técnica, arte e política. São Paulo, Brasiliense, 1985, pp.222-232.:231). Em Aparecida, um passado oprimido que se condensa em imagens de Nossa Senhora e mulher-loba (ou Monga), aparentemente ausente, torna-se uma presença efervescente.
As histórias contadas sobre Nossa Senhora falam de uma santa poderosa – a mais poderosa, segundo Anaoj – capaz de realizar milagres e feitos extraordinários. “Ave Maria cheia de graça” é uma ave poderosa.
É interessante observa as afinidades entre Aparecida e a mulher-loba – ambas aparições. Ambas produzem efeitos de choque. Em um dos seus milagres, o susto provocado por Nossa Senhora derruba o cavaleiro arrogante do cavalo na escadaria da basílica. Em outro, no momento em que a santa é invocada por um caçador devoto prestes a ser devorado por uma onça, a sua aparição provoca um efeito de pasmo: a onça, atordoada, abandona o local. Os próprios termos “Nossa Senhora”, ou, simplesmente, “nossa”, são expressões de choque.
Em outra história, lanternas e velas de devotas da santa se apagam, e, depois, milagrosamente, acendem sozinhas. Os parques de diversões produzem efeitos semelhantes não com velas e lanternas, mas, na era da reprodutibilidade técnica, com choques elétricos e estouros de luz.
Walter Benjamin viu nos parques de diversões os locais de educação das massas:
As massas obtêm conhecimento apenas através de pequenos choques que martelam a experiência seguramente às entranhas. Sua educação constitui-se de uma série de catástrofes que sobre elas se arrojam sob as lonas escuras de feiras e parques de diversões, onde as lições de anatomia penetram até a medula óssea, ou no circo, onde a imagem do primeiro leão que viram na vida se associa inextricavelmente à do treinador que enfia seu punho na boca do leão. É preciso genialidade para extrair energia traumática, um pequeno e específico terror das coisas (Benjamin, 1999BENJAMIN, Walter. Food fair. In: BENJAMIN, Walter. Selected writings 2, 1927-1934. Cambridge, Massachusetts; London, England, The Belknap Press of Harvard University Press, 1999, pp.135-140.:136 apudJennings, 1987JENNINGS, Michael W. Dialectical images: Walter Benjamin's theory of literary criticism. Ithaca and London, Cornell University Press, 1987.:82-83, tradução minha).
No parque de diversões de Aparecida aprende-se a dizer “Nossa!” – com ponto de exclamação.
Seguindo os apontamentos de Judith Butler sobre corpos que importam e corpos abjetos (1993), supõe-se que o parque de diversões, onde se encontra a mulher-loba, constitui um domínio de corpos abjetos. Apesar de que Nossa Senhora se encontre em outro domínio, dos corpos que importam, a experiência da abjeção não lhe é estranha. Aparecendo inicialmente como um corpo sem cabeça; sofrendo ataques; sendo violada e despedaçada em quase duzentos fragmentos, o seu nariz e olho direito destruídos; remontada; e com uma cabeça que não para no lugar – trata-se de uma imagem inquietante. Um dos seus biógrafos disse que ela é “muito feia” (Alvarez, 2017ALVAREZ, Rodrigo. Aparecida: a biografia da santa que perdeu a cabeça, ficou negra, foi roubada, cobiçada pelos políticos e conquistou o Brasil. Rio de Janeiro, Editora Casa da Palavra Ltda., 2017.). Caso não se cobrisse com um rosário, uma coroa e um manto dourado, escondendo o seu corpo quebrado, talvez Aparecida também pudesse ser colocada, junto à mulher-loba e à Monga, num domínio de corpos abjetos.
Um dos primeiros milagres de Aparecida, retratado no teto da Basílica Velha, apresenta a imagem de um homem acorrentado, escravizado. Na aparição da santa, as correntes se quebram, se desfazem. O gesto de libertação, na cidade de Aparecida, ganha vida e torna-se explosivo não tanto, talvez, nas basílicas quanto no parque de diversões onde a mulher-loba e a Monga arrebentam as grades das jaulas. Para multidões de pessoas devotas, a santa Aparecida, vestida de rosário, tal como a Nossa Senhora do Rosário, é uma mãe preta.
4. Senhoras do Buraco dos Capetas em performance
Na saída de Aparecida do Norte, em 1984, voltando de ônibus para Piracicaba, perguntei a Anaoj sobre a mulher-loba. Ela disse: “sabe, ela também é filha de Deus”. Anaoj nada disse sobre o contraste entre Nossa Senhora e a mulher-loba. Ela viu uma semelhança, como quem estivesse observando mãe e filha, ou duas irmãs. Numa linguagem cortês, que não é alheia ao cenário de Aparecida, Walter Benjamin (2003BENJAMIN, Walter. On the concept of history. In: BENJAMIN, Walter. Selected writings 4, 1938-1940. Cambridge, Massachussetts; London, England, The Belknap Press of Harvard University Press, 2003, pp.389-400.:390) escreve:
Pois não somos tocados por um sopro do ar que foi respirado antes? Não existem nas vozes que escutamos ecos de vozes que emudeceram? Não têm as mulheres que cortejamos irmãs que elas não chegaram a conhecer?
De volta ao Buraco dos Capetas, folheando anotações de campo, um novo choque de reconhecimento. Há algo estranhamente familiar nos espetáculos de parques de diversões. Eram surpreendentes as semelhanças entre os espetáculos da mulher-loba e da Monga e entre as descrições que senhoras devotas de Aparecida faziam de suas próprias mutações repentinas em dramas cotidianos.
Entre amigas, Maria dos Anjos, uma mãe solteira de cinco filhos, relata um confronto que, naquele mesmo dia, teve com um fiscal da prefeitura: “Não sei o que acontece. Essas horas eu fico doida. Fico doida de raiva. Eu sou sã que nem nós conversando aqui. Mas tem horas que eu fico doida!”. Lacônica, a outra diz: “Eu também sou assim”. Algumas semanas antes, quando um trator da prefeitura chegou para demolir o seu barraco e os barracos dos vizinhos, Maria dos Anjos virou bicho. “Virei cascavel!”, ela disse. Colocando-se à frente do trator, ela desafiou: “Vai ter que passar por cima do meu cadáver!”. Ali ficou até que os vizinhos se juntassem a ela. A vizinhança também virou bicho e o trator foi embora sem que os barracos fossem derrubados.
Quando Anaoj ouviu que Risadinha, o dono de um boteco, havia humilhado o seu marido, cobrando-lhe, na frente dos colegas, no momento em que descia do caminhão de boias frias, uma dívida que já havia sido paga, ela ficou furiosa. Imediatamente, subiu o morro correndo e foi tirar satisfações. No meio da rua, na frente do boteco, ela gritou: “Ei, Risadinha, como você humilha o Mister Zé que trabalha duro para sustentar a sua família?! Meu filho pagou essa dívida na semana passada! Você esqueceu?! Rá! Não é com o suor do Zé e dos meus filhos que você vai enricar!”. Risadinha respondeu: “Mulher doida!”. Então, Anaoj disse: “Sou doida mesmo! Você está pensando que eu sou gente?!”. A mulher-loba poderia ter dito a mesma coisa.
Outra mulher, chamada Aparecida – com o mesmo nome da santa –, enfrentou um grupo de homens que havia rodeado o seu menino. Vizinhos ameaçavam dar uma surra na criança por causa de uma pedra perdida. Segundo um relato, a mãe “saltou no meio da aldeia que nem uma mulher doida”. “Pode vir!”, esbravejou, “que eu mato o primeiro que encostar um dedo no meu filho!”. Os homens recuaram. “Aquilo que era mulher!”, disse Diolíndia, a cunhada de Aparecida, ao relembrar o incidente. “Enfrentava qualquer capeta!”. Diolíndia também se lembrava de sua própria mãe: “Sou filha de uma índia que laçaram no mato. Minha mãe era uma índia brava, não tinha medo de homem nenhum!”. Muitas devotas da santa se viam como filhas ou netas e bisnetas de mulheres ameríndias e africanas. Com efeitos de pasmo, Aparecida do Buraco dos Capetas protegera o seu filho da raiva dos homens. Embora o seu nome fosse Aparecida, o gesto de saltar “no meio da aldeia”, ou de sua audiência, era semelhante ao da mulher-loba.
Certa noite, a filha mais nova de Anaoj, chamada Lúcia (nome fictício), recebeu, por um vizinho, a notícia de que, na entrada da favela, investigadores da polícia assediavam o seu marido para saber o que ele levava na mochila. Algumas semanas antes, a própria Lúcia havia pressionado o seu marido – que, segundo Anaoj, “nasceu com uma sanfona nos braços” – a encontrar um emprego. O jovem casal tinha um bebê e uma criança pequena. Ao receber a notícia, Lúcia imediatamente saiu correndo até o local. Nervosa, fora de si, aos gritos e berros, fazendo estrondo, ela enfrentou a polícia. Um dos policiais, chamado Luisão, reagiu: “Mulher doida!”. Quando uma mulher mais velha, juntando-se a Lúcia, levantou a voz, o policial gritou: “Sai, bruxa!”. Outras mulheres se juntaram a Lúcia. Diante de sua fúria, a polícia foi embora. O causo repercutiu nas conversas dos vizinhos. Orgulhosa de sua filha, Anaoj dizia: “Ela virou uma onça! Avançou no Luisão!”.
Na configuração de um gesto, da mulher “doida de raiva” que “vira bicho” e “avança” sobre os que ameaçam a ela e às suas redes de parentesco e vizinhança, evoca-se um estado de inervação corporal. Embora frequentemente suprimido, dado o estigma associado à imagem de “mulheres nervosas”, tal estado é altamente valorizado pelos moradores do Buraco dos Capetas2 2 Talvez seja interessante comparar essas notas com o material reunido por Camila Fernandes (2017) em suas pesquisas sobre “mulheres nervosas” e outras “figuras de causação” em “performances femininas paradoxais, provocadoras e desviantes” em favelas do Rio de Janeiro. .
Às margens das basílicas, nos parques de diversões, a partir de uma espécie de pedagogia do assombro, aprende-se a “virar bicho”. Talvez, de fato, a mulher-loba esteja estranhamente próxima à Nossa Senhora Aparecida, não, porém, enquanto contraste dramático, mas como uma figura que emerge, conforme a expressão de Carlo Ginzburg (1991)GINZBURG, Carlo. História noturna. São Paulo, Companhia das Letras, 1991., de sua “história noturna”.
Após as minhas visitas a Aparecida, em 1984 e 2019, achei interessante o contraste dramático entre Nossa Senhora e a mulher-loba. Mas, o que mais desperta a minha curiosidade são as semelhanças entre elas. Ao final de um percurso produzido pelo catolicismo popular, me intriga o modo como espetáculos de mulheres mutantes nos parques de diversões, ou, seja, nos domínios de corpos abjetos de Aparecida, interagem com performances de senhoras devotas da santa em dramas cotidianos do Buraco dos Capetas. Em situações críticas, ou de risco de vida, lampejam gestos da mulher-loba e da Monga, friccionando e subvertendo o discurso social, e revelando corpos que importam para mulheres pretas e não-brancas no Brasil. No Buraco dos Capetas, a mulher-loba importa.
Como disse Diana Taylor (1997)TAYLOR, Diana. Disappearing acts: spectacles of gender and nationalism in Argentina's "dirty war". Duke University Press, 1997. em relação às Madres de la Plaza de Mayo, roteiros e papéis de mães aprisionam. Nas sociedades patriarcais, as mulheres só importam como mães. Metaforicamente, estão presas em jaulas. No caso das mulheres pretas, como Lélia Gonzalez leva a sugerir, essas jaulas têm duas ou três fechaduras. No Brasil, me parece, o que se encontra nessas jaulas nos assombra. Ao passo que a mulher-loba está presa numa jaula, Aparecida, a mãe preta do Brasil, se encontra em uma caixa dourada e metálica com vidro à prova de bala. Pelo menos, por um instante, como uma força que irrompe do domínio dos corpos abjetos, a mulher-loba arrebenta a jaula. E Aparecida?
Em Ghostly matters, Avery Gordon fala sobre como foi distraída, ou desviada do seu rumo pré-estabelecido, por uma assombração chamada Sabina Spielrein que, à noite, ao se olhar num espelho, viu uma loba (Gordon, 2008). Eu também me deparei com uma assombração – o nome dela, Aparecida. Imagino que, ao se olhar no espelho, ela também vê uma loba.
Minha gratidão a Richard Schechner e Diana Taylor por suas leituras e comentários de uma das primeiras versões deste ensaio. Também agradeço ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) por auxílios para a realização da pesquisa.
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1
Termo usado por Diana Taylor e Roselyn Costantino (2003) para descrever diversas performances subversivas produzidas por mulheres latino-americanas.
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2
Talvez seja interessante comparar essas notas com o material reunido por Camila Fernandes (2017)FERNANDES, Camila. Figuras de causação: sexualidade feminina, reprodução e acusações no discurso popular e nas políticas de Estado. Tese de doutorado, Antropologia Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2017. em suas pesquisas sobre “mulheres nervosas” e outras “figuras de causação” em “performances femininas paradoxais, provocadoras e desviantes” em favelas do Rio de Janeiro.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
01 Jul 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
01 Abr 2023 -
Aceito
08 Jan 2024