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“Sexo, gênero e sexualidades”, de Elsa Dorlin: uma genealogia das práticas teóricas feministas

DORLIN, Elsa. Sexe, genre et sexualités. : introduction à la théorie féminist. 2008. Puf, Paris

Sexo, gênero e sexualidades: introdução à teoria feminista (2008), de Elsa Dorlin, não é, à primeira vista, um livro militante, nem uma introdução: a linguagem é técnica e a filósofa francesa passa ao largo da repartição consagrada do feminismo em três ondas. Trata-se de uma genealogia dos saberes feministas, de uma história das elaborações teóricas próprias às práticas militantes da Revolução Francesa ao século XXI.

O gesto de Elsa Dorlin é potente ética e filosoficamente. Cruzando as fronteiras político-epistemológicas que separavam o feminismo francês do black feminism estadunidense, ela retoma os seguintes problemas: o surgimento do “lugar de fala”, o uso do gênero como categoria de análise, as capturas, os dispositivos e as performances do patriarcado branco capitalista e as estratégias de lutas dos feminismos negros, marginalizados e queer. A autora não só contribui para a memória dessas práticas teóricas, como as interpreta a partir de um projeto ético-filosófico que é o seu: descolonizar o feminismo hegemônico, respondendo à questão: “como resistir às múltiplas formas de dominação que perpassam a história dos feminismos?”.

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“Podemos definir o saber feminista como uma genealogia, no sentido atribuído por Michel Foucault”. Com essa frase, Dorlin encerra o capítulo de abertura de Sexo, gênero, sexualidades . Após comentar as inovações epistemológicas realizadas pelo feminismo no espaço da universidade nos anos 60/70 — fruto da circulação dos saberes feministas entre esse ambiente normativo e os militantes —, ela as aproxima das contribuições filosóficas do autor. As críticas feministas ao processo de desqualificação de certos saberes e práticas sociais inerentes à constituição da Ciência oficial fazem eco ao gesto genealógico foucaultiano.

Ao empregar a genealogia como método de investigação, Elsa Dorlin encontra uma saída para a crítica ao uso do conceito de gênero nas ciências humanas feita pela socióloga Colette Guillaumin, qual seja: seu efeito paradoxal. Ao afirmarmos o caráter cultural, artificial e simbólico do gênero, deixamos intacta a ideia de que haveria uma diferença sexual anatômica binária sobre a qual o gênero se constrói. Não bastaria denunciar a ideologia subjacente à “naturalização” (biologização) das diferenças entre os sexos, mas seria preciso fazer uma arqueologia do próprio conceito de gênero — e são essas as ferramentas fornecidas por Foucault.

Em Sexo, gênero e sexualidades , Elsa Dorlin retoma dois momentos da fabricação do gênero: a patologização de formas não heteronormativas de sexualidade pelo psiquiatra alemão Krafft-Ebbing; e os tratamentos cirúrgicos e hormonais prescritos aos pacientes intersexos por médicos como Robert Stoller e John Money — visando “adequar” a genitália a uma organização cromossômica ou morfológica, supostamente masculina ou feminina. Há, portanto, um pressuposto por detrás de tais protocolos médicos: o de que a natureza se organiza de forma binária, respondendo ao imperativo biológico de reprodução da espécie. Nos momentos históricos em que o patriarcado esteve em risco, a "complementaridade natural” entre os sexos foi reafirmada, como mostra Elsa Dorlin ao recorrer à tese de Paul Preciado (2000)PRECIADO, Beatriz. Manifeste contra-sexuel. Paris, Balland, 2000. . Considerando o papel da tecnologia das próteses em “reintegrar” os indivíduos mutilados no circuito de produção após a Primeira Guerra Mundial, o autor espanhol atentou ao desinteresse técnico-industrial na fabricação de próteses penianas. A invenção e comercialização desses objetos tardou, apesar da disponibilidade tecnológica e da necessidade humana. Essa negligência tão intrigante para com os consumidores impotentes ou cujas genitálias haviam sido mutiladas teria uma razão: o terror provocado pela emancipação feminina e pela substitutibilidade dos seres humanos. Esses dois fantasmas do pós-guerra, a descartabilidade masculina (substituíveis por lésbicas com dildos purpurinados) e o caráter in-humano ou “cyborg” da humanidade (conceito emprestado de Donna Haraway [1991HARAWAY, Donna. A Cyborg Manifesto: Science, Technology, and Socialist-Feminism in the Late Twentieth Century. In: Simians, Cyborgs and Women: The Reinvention of Nature. New York, Routledge, 1991, pp.149-181. ]) explicariam a torpe tentativa patriarcal de se preservar uma imagem interiça da masculinidade — ameaçada pelas próteses penianas.

Seguindo a via aberta por Colette Guillaumin, Dorlin estuda os conceitos modernos de gênero e de raça. Seu primeiro livro, La matrice de la race: Généalogie sexuelle et coloniale de la nation française (2006), é apresentado como uma "epistemologia da dominação”, termo forjado pela socióloga francesa (1984).

Vinculando a história da sexualidade à história política, Elsa Dorlin retorna ao momento de fabricação da imagem da nação francesa como uma reunião de irmãos, filhos de uma mesma mãe — a pátria — no século XVIII. A filósofa retoma uma transformação radical ocorrida no saber médico da época. O corpo feminino, antes interpretado como doente (devido à gravidez, ao parto e à menstruação), passou a ser tido como potencialmente saudável. Num contexto histórico em que prosperidade da nação francesa, aumento populacional e expansão colonial apareciam vinculados, a figura da mulher saudável foi inventada: aquela que obedecia aos imperativos "naturais" da maternidade e do casamento (Dorlin, 2006:cap 3 e 6). Tal norma de feminilidade supôs a criação de feminilidades monstruosas: a das mulheres das colônias, prostitutas, lésbicas e ninfomaníacas — todas essas cuja “constituição” físico-moral ou “temperamento” era tido como masculino, correlativo a uma sexualidade desviante. Masculinidades monstruosas também eram produzidas em sociedades marcadas pela colonialidade. Retomando os trabalhos do psiquiatra franco-argelino Franz Fanon (1952) e do pensador pós-colonial indiano Homi Bhabha (1994) em Sexo, gênero e sexualidades, Dorlin discute o processo de racialização dos homens árabes, negros e indígenas. Estes são representados a partir de dois polos: de um lado, a virilidade excessiva ou agressividade bestial; e, de outro, a feminilidade, a passividade, o “temperamento frouxo” e a ausência de razão (castrados simbolicamente, e, também, no real da carne pela extirpação genital e pelo estupro). Quanto à norma de masculinidade hegemônica, ela se apresenta como a justa medida, colada aos privilégios daquele que enuncia “o outro”: os colonos brancos, que teriam performado tal normatividade, sem serem, supostamente, nem ultra-viris, nem castrados1 1 O conceito de performatividade de Judith Butler é caro à Elsa Dorlin. Sua grande contribuição teria sido a de problematizar o processo pelo qual o binarismo de gênero (vinculado à heterossexualidade) é assimilado pelos indivíduos, forjando justamente tal conceito. Contrariamente às críticas dirigidas à filósofa estado-unidense, segundo as quais ela teria reduzido o gênero à esfera discursiva e a algo de voluntário (como se o indivíduo escolhesse “parodiar” o gênero e a sexualidade com que se identifica), Dorlin insiste que esse conceito elucida o caráter disciplinar e violento da imposição do gênero na constituição das subjetividades, isto é, as relações de poder que fazem com que certas performances de gêneros sejam lidas socialmente como “normais”, enquanto outras como “paródicas e inautênticas" (Dorlin, 2008:125). . Em A matriz da raça (2005), Dorlin nos mostra como os estupros nas colônias eram feitos sob a retórica de que as mulheres ali residentes, insaciáveis, não seriam satisfeitas por seus homens — impotentes (Dorlin, 2006:cap.10). Investigando tais processos prático-discursivos de racialização inerentes à fabricação do patriarcado francês, Elsa Dorlin não se limita a considerar o racismo nos processos de proletarização na metrópole, como havia feito Foucault.2 2 Elsa Dorlin, em “La matrice de la race”, analisa a matriz de pensamento médico subjacente aos conceitos modernos de gênero e raça (a teoria hipocrática dos humores), partindo de alguns pontos abordados por Foucault em A vontade de saber. O filósofo apontava a existência de uma transformação na noção de raça no racismo científico moderno e havia mostrado o papel do eugenismo e das teorias raciais na fabricação da família moderna do século XVII ao XIX. Designando durante o Antigo regime as linhagens dos nobres, a “raça” passa a ser pensada biologicamente a partir do evolucionismo, das teorias da hereditariedade e da degeneração. Essas teorias que permitiam explicar as desigualdades políticas a partir de diferenças naturais/biológicas foram mobilizadas na elaboração de um conjunto de técnicas de governo das populações, elaboradas, fundamentalmente, pelo saber-poder médico. A burguesia internalizou normas de comportamento, higiene e sexualidade em nome de sua “segurança”, de sua saúde física e sexual, assim como a de seus descendentes. De modo a defender suas famílias das enfermidades “trazidas pelas classes populares”, “degenerada” e “promíscua”, a burguesia solicitava ao Estado a implementação de mecanismos de controle social, que converteriam corpos pobres e racializados em força de trabalho e mercado consumidor — o que era essencial à reprodução de sua classe ( Foucault, 1997) . Desvelando seu funcionamento nas epistemologias modernas, a filósofa analisa os efeitos da colonialidade fora da França metropolitana.

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O polêmico conceito de patriarcado é utilizado por Elsa Dorlin em seus principais livros.3 3 Esteve ausente de seu primeiro livro, La matrice de la race (2005). Não foi todavia objeto de definição.

Em “Sexo, gênero, sexualidades” — apresentado como uma introdução às teorias feministas de diversas matrizes epistemológicas —, o termo é utilizado nos comentários a esses trabalhos e em suas derivas arqueológicas. Dorlin atribui a originalidade da redefinição desse “conceito crucial” do feminismo à socióloga materialista Christine Delphy: o patriarcado apenas designaria a centralidade da autoridade paterna na reprodução do poder pelos homens, se considerarmos que seu fundamento seria a família como um “modo de produção”, isto é, de organização do trabalho (Dorlin, 2008: 15). Em outro momento do texto, Dorlin, ao fazer suas derivas, refere-se à presença desse termo na literatura colonial francesa. Os viajantes, naturalistas e cientistas qualificaram de patriarcais a organização social das populações colonizadas. Buscando delas se distinguir, afirmavam que a família nuclear “moderna” e metropolitana corresponderia a uma forma de organização social superior — esta sim adequada aos ideais republicanos (Dorlin, 2008:90-91). Ora, o mesmo discurso é empregado pelos movimentos feministas dos países de industrialização tardia, quando estes se apresentam como porta-vozes das mulheres “do Sul”. Fazendo eco à crítica desenvolvida pela pensadora indiana Gayatri Chakravorty Spivak (1988), relativa à “violência epistêmica” própria aos feminismos ocidentais, Dorlin acusa a permanência dessa representação sobre o “patriarcado” das sociedades “subdesenvolvidas” em tais movimentos. Sexo, gênero e sexualidades , apresenta, ainda, outras duas menções ao termo patriarcado, referidas às sociedades contemporâneas. Nelas, o “poder” e “violência” “patriarcais” seriam efeito de dispositivos, dentre os quais, o psicanalítico — Dorlin se apoia no livro o “La fin du dogme paternel” de Michel Tort (2007). Contra o patriarcado, adjetivado, ainda, de “heterossexual”, os feminismos queer articulariam as diversas estratégias analisadas pela filósofa ( Dorlin, 2008DORLIN, Elsa. Sexe, genre et sexualités: introduction à la théorie féministe. Paris, Puf, 2008. ).

Sem referenciá-lo a uma tradição feminista específica, esse termo reaparecerá em “Se défendre: une philosophie de la violence (2017)” — uma genealogia das práticas de auto-defesa. A filósofa designa de patriarcado: (1) “burguês”: as relações de dominação presentes na França colonial, expressas na retórica sobre o “patriarcado primitivo” dos povos da África Ocidental, utilizada para legitimar a incorporação dos homens colonizados ao exército francês (pelas supostas qualidades psíquicas e físicas decorrentes dessa organização social específica) ( Dorlin, 2017DORLIN, Elsa. Se défendre: une philosophie de la violence. Paris, Zones, 2017.: 39); (2) “branco” e “imperial”: uma forma de “produção imperialista da subjetividade” que se exprimiria na frase descrita por Spivak “os homens brancos salvam as mulheres de cor dos homens de cor” — fruto, segundo Dorlin, de um dispositivo racista (Dorlin, 2017:115-6)4 4 Os exemplos mobilizados por Dorlin referem-se ao caráter patriarcal: (1) do supremacismo branco dos Estados Unidos (pais de família brancos torturam e assassinam homens negros, tidos como “violadores potenciais” de suas filhas e mulheres [Dorlin, 2017:113-4]) e (2) da circulação discursiva no Egito, comentada por Leila Ahmed, relativa à necessidade de defender as mulheres indígenas dos avanços dos homens nativos e de que só mereciam ser defendidas as mulheres respeitáveis — isso legitimou as agressões racistas e “civilizadoras” contra os homens indígenas e bloqueou a luta por direitos civis das mulheres brancas metropolitanas ( Dorlin, 2017: 116). ; (3) “branco”: novamente, as relações de dominação de gênero internas aos movimentos anti-racistas nos Estados-Unidos, como o Black Panthers, que se tornaram objeto de debates coletivos sobre a forma como o capitalismo e o imperialismo beneficiam primordialmente os indivíduos brancos ( Dorlin, 2017DORLIN, Elsa. Se défendre: une philosophie de la violence. Paris, Zones, 2017. ). Considerando o gênero e a raça como categorias historicamente inscritas em relações de opressão vinculadas à esfera produtiva5 5 Viril, virilista, homofóbica, essa retórica acusa a posição ocupada pelo outro como "antinatural" — “você não está no seu lugar”. (isto é, que a legitimação das diversas formas de expropriação do trabalho se apoiou na genrificação e racialização dos corpos), a filósofa refere-se ao surgimento de um pensamento interseccional sobre a dominação no interior das próprias lutas políticas — o único que evitaria a perenização de dinâmicas próprias ao “patriarcado branco” pelas populações subalternizadas. Para tanto, ela nos fornece um exemplo histórico: o coletivo estado-unidense de mulheres negras The Combahee River Collective. Ao formularem uma estratégia para combater a violência de gênero sofrida por mulheres negras (1979), consideraram o caráter estrutural da violência policial contra os homens negros. Descartaram, então a possibilidade de demandar o aumento do policiamento ao Estado e apostaram na auto-defesa.

São dois, portanto, os níveis de análise nos quais o termo patriarcado é mobilizado nos trabalhos de Elsa Dorlin. Ao defini-lo como “branco” e “imperial”, esse conceito permite à filósofa analisar as relações de poder racistas e coloniais próprias ao desenvolvimento do capitalismo, a partir de problemáticas caras ao feminismo interseccional, abordadas a partir de uma perspectiva foucaultiana. Além disso, ela realiza uma aproximação genealógica de tal conceito, mostrando os usos coloniais atuais e em sua história, ao ser aplicado às populações subalternizadas “primitivas” ou “subdesenvolvidas”.

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Fazer uma genealogia da fabricação do patriarcado francês requer que questionemos qual foi o lugar ocupado pelos feminismos ao longo da história. Nas entrelinhas de Sexo, gênero e sexualidades Elsa Dorlin inicia tal projeto. Após retornar à crítica de Angela Davis ao racismo inerente ao feminismo branco, saudando a “grande contribuição do black feminism” — a perspectiva interseccional —, Elsa Dorlin mostra como as feministas brancas pactuaram com as políticas racistas e nacionalistas da França (Dorlin, 2008:85).

A invenção do sujeito político do feminismo e de uma norma de feminilidade hegemônica são efeitos dos mesmos processos históricos. A luta pela igualdade entre os “sexos” conduzida por Olympe de Gouges em sua Declaração dos direitos da mulher e da cidadã (1789) comportava um paradoxo, como notou a historiadora Joan Scott (1998)SCOTT, Joan. La citoyenne paradoxale: les féministes françaises et les droits de l'homme. Paris, Albin Michel, 1998 [1996]. . Afirmando o caráter irrelevante, à esfera política, da diferença entre os sexos, de Gouges enalteceu os atributos “femininos naturais” ligados à maternidade, até então utilizados para a exclusão das mulheres. Ora, as cidadãs libertas por essa retórica diferencialista não eram todas as mulheres. Eram as francesas burguesas e brancas, filhas ou irmãs dos cidadãos — isto é, daqueles cuja cidadania fora instituída pelo Código Civil de 1804, representando não apenas a garantia de seus direitos cívicos, mas da autoridade paterna e conjugal( Dorlin, 2008DORLIN, Elsa. Sexe, genre et sexualités: introduction à la théorie féministe. Paris, Puf, 2008.: 91). Ademais, a “maternidade” e o “feminino” só se tornaram atributos positivos da cidadã vindoura, em função das políticas demográficas natalistas e coloniais da nação francesa, forjadas com forte participação do saber-poder médico. Ficavam de fora do feminismo da sagrada família: as prostitutas, as escravizadas, as indígenas, as mulheres das colônias, as trabalhadoras.

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Retornando ao passado com um olhar forjado pelo nosso presente, em Sexo, gênero e sexualidade , Elsa Dorlin mira nas tecnologias inerentes aos dispositivos de poder — e de sexualidade — que nos constituem hoje: a pornografia de massa, a psicanálise e o próprio feminismo branco e liberal.

Ao apresentar-se como mera “reprodução do real” pela adoção de procedimentos formais realistas ( zoom , cor), a pornografia produz um modo de viver a sexualidade centrado no prazer masculino, contribuindo para a produção de estereótipos de genitálias racializados ( Dorlin, 2008DORLIN, Elsa. Sexe, genre et sexualités: introduction à la théorie féministe. Paris, Puf, 2008.: 146). Quanto à psicanálise, ao insistir no papel estruturante da triangulação edipiana na subjetividade, esse dispositivo reduz as narrativas desejantes a um modelo heterossexual, reiterando uma ordem social específica: aquela em que os pais de família dispõem do monopólio da violência, como sugeriu o psicanalista contemporâneo Michel Tort (2005)TORT, Michel. Fin du dogme paternel. Paris, Flammarion, 2005. . E que não escapa da colonialidade, como havia mostrado, trinta anos antes, Frantz Fanon. Quanto à crítica do feminismo branco esboçada nas entrelinhas deste livro, Elsa Dorlin a aprofunda em seu trabalho mais recente. Até Sexo, gênero e sexualidades , a autora descrevia os dispositivos de poder recorrendo à medicina e as estratégias de resistência feminista: às “monstruosidades teóricas” próprias às pesquisas nas quais sujeito e objeto coincidem, às militâncias dos anos 1970 e ao paradigma da subversão próprio às teorias queer. Já em Autodefesa , a urgência em pensar a violência do Estado a leva a abordar o problema a partir de outra perspectiva.

Reabilitar uma filosofia da violência para o feminismo: é esse o projeto de Autodefesa para o qual ela forja um novo conceito — dispositivo defensivo. A partir de alguns casos históricos, Dorlin faz uma genealogia das práticas de autodefesa e das técnicas marciais utilizadas por setores da população racializados, generificados e desprovidos do estatuto real de cidadãos, atendo-se sobretudo ao século XX. Contrariando as teses fundantes da filosofia política clássica, a autora nos mostra que o Estado não monopoliza o direito de punir e violentar, mas que ele o delega a certos cidadãos: estes lincham, estupram e matam determinados corpos. As fantasias dos “cidadãos” de bem, os pais de família patriotas, dão corpo à violência colonial fundadora do próprio Estado — racista, sexista e nacionalista. A impunidade e a individualização de tais fenômenos (tidos como “excessos”) compõem estratégias de governo. Os setores subalternizados da população sabem não poder contar com as leis para defendê-los. Tal impotência, ligada ao fato de se apreender como um corpo violável e à captura dos movimentos sociais, é descrita por Dorlin como um produto daquilo que ela nomeia de dispositivo defensivo.

Fazendo eco à posição de Frantz Fanon durante as lutas de independência na Argélia (1961), segundo a qual a única saída aos corpos violentados e despossuídos é romper com a ética da “não violência”, ela atenta para a complexidade de tal tarefa. Por um lado, conclama os feminismos subalternos a partirem “do músculo, e não da lei”, isto é, a politizar a raiva, como fizeram os movimentos por ela analisados (nos Estados Unidos, dos anos 1960/1970, o movimento negro, o feminismo das mulheres negras, a militância LGBT). Por outro, menciona a possibilidade de captura da própria resistência pelos dispositivos de poder securitários e racistas, pela adoção de estratégias protecionistas e identitárias: operando a partir da criação de inimigos, se perde muitas vezes o alvo. Este não são “todos os homens”, mas é a “norma da masculinidade dominante, segundo a qual ser homem é ser: branco, bem como heterossexual e pequeno burguês” ( Dorlin, 2017DORLIN, Elsa. Se défendre: une philosophie de la violence. Paris, Zones, 2017.: 145).

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A contribuição de Sexo, gênero e sexualidades ao feminismo universitário francês em 2007 é inegável, por todos os aspectos já citados. Além disso, trouxe a esse espaço, até então refratário à produção estado-unidense, autoras do black feminism como Angela Davis (1983) e bell hooks (1986). Outras importantes teóricas que pensaram as marcas da colonialidade na constituição da sexualidade e do gênero permaneceram, todavia, às sombras desta introdução e de seu livro mais recente: a pensadora feminista Anne McClintock (1954-), a antropóloga Ann Laura Stoler (1949) e, dentre as autoras do “Sul global”, a intelectual negra Lélia Gonzales (1935-1994), a antropóloga palestina-estado-unidense Lila Abu-Lughod (1952-) e a pensadora feminista transnacional Chandra Mohanty (1955-). O silêncio sobre os feminismos africanos, latino-americanos e os movimentos ligados à terra é um limite do texto. Indica-nos o hermetismo do feminismo francês acadêmico à época e a geopolítica que opera na produção do conhecimento universitário — mesmo quando feminista e antirracista.

Aproximando-se da aposta ético-política dos feminismos subversivos de se infiltrar nas instituições e corroê-las, Elsa Dorlin disputa, nos centros de excelência e prestígio (Université de la Sorbonne, Centre National de la Recherche Scientifique), a disciplina da filosofia (institucionalmente organizada em departamentos masculinos refratários aos debates sobre raça, gênero e colonialidade), denunciando incansavelmente a violência do Estado6 6 Seus artigos mais recentes se chamam: “Vies à défendre” (2019), “Démocratie suicidaire” (2018), “Manifeste d’auto-défense féministe” (2018). . Na França, como no Brasil, a universidade pública é alvo do sucateamento econômico, da precarização de seus trabalhadores e de controle ideológico. Os estudos de gênero, feministas e descoloniais — tradicionais inimigos da República das bananas — agora são combatidos pelos porta-vozes da liberté, égalité et fraternité. O mito nacional ecoa em terra brasilis e ailleurs , a família tradicional em seu centro. Ao analisar a matriz colonial de tais produções discursivas e os pactos do feminismo branco liberal com lógicas de governo de populações subalternizadas, Elsa Dorlin inscreve seu próprio nome dentre as feministas que mais do que nunca merecem ser conhecidas.

Referências bibliográficas

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  • Resenha do livro: DORLIN, Elsa. Sexe, genre et sexualités: introduction à la théorie féministe. Paris, Puf, 2008. A edição utilizada para o comentário foi a francesa, mas a tradução recente está disponível: DORLIN, Elsa. Sexo, gênero e sexualidades . São Paulo, Crocodilo, 2021.
  • 1
    O conceito de performatividade de Judith Butler é caro à Elsa Dorlin. Sua grande contribuição teria sido a de problematizar o processo pelo qual o binarismo de gênero (vinculado à heterossexualidade) é assimilado pelos indivíduos, forjando justamente tal conceito. Contrariamente às críticas dirigidas à filósofa estado-unidense, segundo as quais ela teria reduzido o gênero à esfera discursiva e a algo de voluntário (como se o indivíduo escolhesse “parodiar” o gênero e a sexualidade com que se identifica), Dorlin insiste que esse conceito elucida o caráter disciplinar e violento da imposição do gênero na constituição das subjetividades, isto é, as relações de poder que fazem com que certas performances de gêneros sejam lidas socialmente como “normais”, enquanto outras como “paródicas e inautênticas" (Dorlin, 2008:125).
  • 2
    Elsa Dorlin, em “La matrice de la race”, analisa a matriz de pensamento médico subjacente aos conceitos modernos de gênero e raça (a teoria hipocrática dos humores), partindo de alguns pontos abordados por Foucault em A vontade de saber. O filósofo apontava a existência de uma transformação na noção de raça no racismo científico moderno e havia mostrado o papel do eugenismo e das teorias raciais na fabricação da família moderna do século XVII ao XIX. Designando durante o Antigo regime as linhagens dos nobres, a “raça” passa a ser pensada biologicamente a partir do evolucionismo, das teorias da hereditariedade e da degeneração. Essas teorias que permitiam explicar as desigualdades políticas a partir de diferenças naturais/biológicas foram mobilizadas na elaboração de um conjunto de técnicas de governo das populações, elaboradas, fundamentalmente, pelo saber-poder médico. A burguesia internalizou normas de comportamento, higiene e sexualidade em nome de sua “segurança”, de sua saúde física e sexual, assim como a de seus descendentes. De modo a defender suas famílias das enfermidades “trazidas pelas classes populares”, “degenerada” e “promíscua”, a burguesia solicitava ao Estado a implementação de mecanismos de controle social, que converteriam corpos pobres e racializados em força de trabalho e mercado consumidor — o que era essencial à reprodução de sua classe ( Foucault, 1997)FOUCAULT, Michel. Il faut défendre la société. Paris, Gallimard / Seuil, 1997. .
  • 3
    Esteve ausente de seu primeiro livro, La matrice de la race (2005).
  • 4
    Os exemplos mobilizados por Dorlin referem-se ao caráter patriarcal: (1) do supremacismo branco dos Estados Unidos (pais de família brancos torturam e assassinam homens negros, tidos como “violadores potenciais” de suas filhas e mulheres [Dorlin, 2017:113-4]) e (2) da circulação discursiva no Egito, comentada por Leila Ahmed, relativa à necessidade de defender as mulheres indígenas dos avanços dos homens nativos e de que só mereciam ser defendidas as mulheres respeitáveis — isso legitimou as agressões racistas e “civilizadoras” contra os homens indígenas e bloqueou a luta por direitos civis das mulheres brancas metropolitanas ( Dorlin, 2017DORLIN, Elsa. Se défendre: une philosophie de la violence. Paris, Zones, 2017.: 116).
  • 5
    Viril, virilista, homofóbica, essa retórica acusa a posição ocupada pelo outro como "antinatural" — “você não está no seu lugar”.
  • 6
    Seus artigos mais recentes se chamam: “Vies à défendre” (2019), “Démocratie suicidaire” (2018), “Manifeste d’auto-défense féministe” (2018).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    31 Mar 2021
  • Aceito
    01 Set 2021
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