Open-access Feminismos brasileiros nas relações com o Estado. Contextos e incertezas

Resumo

Este texto busca repensar as relações entre os feminismos brasileiros e o Estado. O diálogo e a tensão contínuos estão fundados na pauta feminista que não só supõe uma revolução cultural das subjetividades, como exige uma notável reforma/revolução política. Se, de um lado, o enfrentamento da violência contra as mulheres ganha fôlego, a pauta da educação pela igualdade de gênero e pela legalização do aborto sofre o que já se chamou de “backlash”. Trava-se um embate entre movimentos neoconservadores que buscam a imposição moral a toda sociedade e os movimentos feministas que buscam a ética da autonomia individual, da pluralidade e dos direitos sociais.

Estado e Feminismo Brasileiro; Fundamentalismo; Ética da autonomia individual; Legalização do aborto; Violência contra mulheres; Educação sexista

Abtract

This text aims to rethink the relationship between Brazilian feminisms and the state. Dialogue and continuous tensions are grounded in the feminist agenda that not only presupposes a cultural revolution regarding subjectivities, but that also exacts a notable reform or political revolution. On the one hand, while addressing violence against women is gaining ground, on the other, education for gender equality and the legalization of abortion suffers what has been called “backlash”. There is a clash between neoconservatives movements that seek to imposed their moral viewpoint on the whole society and feminist movements that defend the ethics of individual autonomy, plurality and social rights.

State and Brazilian Feminism; Fundamentalism; Ethics of individual autonomy; Abortion legalization; Violence against women; Sexist education

As lutas feministas irromperam no Brasil, em grande parte, dependentes de sua participação na luta geral pela democracia, contra a ditadura e contra as desigualdades sociais, fortemente assentadas na organização de mulheres de esquerda e estreitamente articuladas com a defesa dos direitos à cidadania e à democracia. Como já afirmei:

No Brasil, a movimentação feminista nos anos setenta tem nos seus primórdios a presença do intercâmbio internacional de ideias e proposições pela presença de mulheres exiladas em Paris, Berkeley e Santiago do Chile. Formam-se grupos de reflexão em torno de mulheres exiladas, escritoras, jovens universitárias, mulheres de origem partidária de esquerda, assim como logo se articulam com mulheres como Romi Medeiros, da elite brasileira, advogada que havia conseguido a aprovação do Estatuto da Mulher casada em 1962, responsável por retirar da mulher a condição de “relativamente incapaz” em relação ao marido face ao direito de trabalhar e escolher o local de moradia. (...) Estes grupos de reflexões introduzem proposições semelhantes aos dos movimentos francês e americano, mas se caracterizam, no Brasil por buscar ser “bom para o Brasil”, na expressão de Goldberg (1991) (Machado, 2011:194).

A irrupção do movimento se dava em momento em que ganhava espaço a possibilidade de segmentos de uma “sociedade civil” se articularem contra o “Estado”, então percebido e atuante como ditadura militar, desde 1964. À época, as noções se contrapunham dicotomicamente como resposta ao Estado militar ditatorial. O governo Geisel (1974-1979) iniciava o processo de distensão política, embora sempre alertando sobre o uso dos recursos ditatoriais para a repressão.

Anos 70 e 80: o entrelaçado das questões privadas e públicas e a articulação dos direitos das mulheres à luta pela democracia

Grupos de reflexão despontavam, desde 1973, no Rio de Janeiro, em São Paulo e, ao final dos anos setenta, em cidades do Nordeste ao Sul do Brasil, passando pelo Centro-Oeste. Juntando minha memória pessoal a esses dados, o grupo/coletivo Brasília Mulher1, do qual participei, se organizou a partir de 1980 e dele participaram professoras universitárias, advogadas, economistas, psicólogas, assistentes sociais, sindicalistas e estudantes. Nesse grupo, assim como em outros, participavam mulheres com relativa diversidade racial e de classe. Em formatos múltiplos, por meio dos grupos de reflexão, se articulavam às mulheres de movimentos populares, de movimentos sindicais, e de origem partidária de esquerda, e/ou constituíam grupos de SOS para mulheres sofrendo violência.2 Embora a questão da diversidade entre mulheres não estivesse em pauta naquela época, como hoje está, era como se o chamado à sociedade civil e o chamado às mulheres convocassem uma diversidade de mulheres.3

Em 1975, com a celebração do Ano Internacional da Mulher, houve a possibilidade de se enfrentar as dificuldades políticas para organizar um evento formal e, assim, teve lugar o primeiro ato público, o Seminário sobre o Papel e o Comportamento da Mulher na Sociedade Brasileira, realizado no Rio de Janeiro, no qual as questões principais foram a condição da mulher brasileira, as questões relativas ao trabalho, à saúde, física e mental, à discriminação racial e à homossexualidade feminina.

No mesmo ano de 1975, houve a suspensão da censura direta à imprensa, ainda que não a revistas, rádio e TV. Tornou-se possível a edição de jornais alternativos, entre eles, dois jornais feitos por mulheres feministas. No período pós-1975, o primeiro jornal dirigido às mulheres foi o Brasil Mulher, publicado pela Sociedade Brasil Mulher e feito por mulheres originárias de partidos de esquerda marxista, de 1975 a 1980. Se Leite (2003) aponta que as editoras do Brasil Mulher estavam já em articulação com o Círculo de Mulheres de Paris, o segundo jornal, Nós Mulheres, foi publicado pela Associação de Mulheres, de 1976 a 1980, iniciado com a volta ao Brasil de feministas que participavam do Círculo de Paris junto a feministas que aqui atuavam.4

Se lidos os editoriais dos dois jornais, para além de suas diferenças, um e outro estabeleciam as relações entre a luta feminista pela liberação das mulheres, pela politização do privado e pelo enfrentamento das desigualdades na vida pública, mas sempre articuladas com a luta pela democracia e buscando a articulação com os movimentos populares ou comunitários de mulheres.

Nas palavras de Brasil Mulher (editorial zero, 1975):

Queremos falar dos problemas que são comuns a todas as mulheres do mundo. Queremos falar também das soluções encontradas aqui e em lugares distantes; no entanto, queremos discuti-las em função de nossa realidade brasileira e latino-americana (...). Finalmente, Brasil Mulher deseja incorporar-se à imprensa democrática que, em meio a batalhas, o Brasil vê surgir.

Nas palavras de Nós mulheres (editorial nº 1, 1976):

Desde que nascemos, nós mulheres, ouvimos em casa, na escola, no trabalho, na rua, em todos os lugares que nossa função na vida é casar e ter filhos. (...) Quando vamos procurar um emprego, (...) sempre encontramos mais dificuldades que o homem, porque somos mulheres. (...) Nós mulheres queremos, junto com os homens lutar por uma sociedade mais justa (...).

A inserção das feministas brasileiras na luta pela democracia e pela anistia (especialmente o jornal Brasil Mulher) marca a diferença do contexto com o momento da eclosão do movimento na França e a anterior eclosão nos Estados Unidos. Os termos, no entanto , em muito se articulam com as propostas lá presentes em nome da revolução necessária do cotidiano das mulheres, politizando o privado e se inserindo como voz política no espaço público, em nome do que houvesse de comum entre todas as mulheres.

A movimentação feminista de libertação das mulheres nos Estados Unidos (anos sessenta) e na França (anos setenta), denominada “segunda onda do feminismo”, enfatizava a liberdade sexual, denunciava que o corpo e o sexo feminino eram controlados pelos homens. Assim, a luta pela liberdade sexual foi consentânea à denúncia da violação sexual e da relação sexual obtida à força pelo companheiro. Tratava-se de politizar o privado. Mas não somente. Tudo se articulava entre a vida privada e a vida pública como opressão das mulheres e busca de libertação pelas mulheres.

Em Paris, o Jornal Le Torchon Brûle, coletivamente elaborado, de 1970 a 1972, apresenta artigos sobre as mais diferentes facetas da vida, como trabalho doméstico, família, desemprego, trabalho fabril, sempre articulando os problemas cotidianos como problemas da opressão sobre as mulheres e que devem ser pensados para a sua emancipação.

A qualquer lugar que te encontres, acabarás por reencontrar irmãs parecidas contigo, oprimidas e doentes dessa opressão, que colocarão um dia seu problema em termos que lhe serão próprios, numa linguagem que passará pelo corpo e pela vida, lá onde se encontra a verdadeira expressão (Le Torchon Brüle, nº 0. “Pourquoi je suis dans la lutte des femmes” [Porque estou na luta das mulheres], tradução minha).

No caso do feminismo francês, a questão das reivindicações para mudanças no espaço público ficam claras diante dos avanços dos direitos sexuais e contraceptivos e da legalização do aborto em 1973. No Brasil, a presença da mulher nos espaços públicos é mais premente ainda, porque estávamos em plena ditadura militar.

A especificidade do movimento brasileiro que ganha maior visibilidade política no país são os assassinatos de mulheres e não a crítica à violência cotidiana e crônica contra as mulheres, tema candente com os grupos SOS. Retomo aqui considerações que fiz (Machado, 2010). As palavras de ordem referentes à violência que repercutiram na mídia em 1979 em torno da denúncia dos homicídios cometidos por maridos contra suas esposas e o fato de os homens serem absolvidos ou terem sua prisão suspendida.5 Foi, assim, a denúncia de assassinatos a tônica capaz de repercutir nas elites políticas da época.6 Lutava-se pelo direito à sobrevivência... Essa foi à escuta da opinião pública expressa na grande repercussão na imprensa dos casos de homicídios contra mulheres de classes média e alta. Menos que a reivindicação pela liberdade sexual, a fala possível de ser escutada era a necessidade da defesa da vida das mulheres. Começava a trajetória feminista da denúncia e da crítica à impregnação dos valores culturais misóginos e discriminatórios nas leis dos códigos penal e civil e nas interpretações da jurisprudência.

Em 1979, se sanciona a Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher. Em 1981, foi realizado o Primer Encuentro Feminista Latinoamericano y del Caribe, em Bogotá, Colômbia. Lembrada a morte das irmãs Mirabal, pela ditadura de Trujillo, na República Dominicana, o Encontro declarou o dia 25 de novembro como o Dia Internacional pela Não Violência contra as Mulheres.

Logo o feminismo brasileiro busca uma fala mais próxima ao Estado, dada a relativa abertura com eleições diretas para governadores estaduais e para parlamentares. Em São Paulo e Minas Gerais, as feministas propõem a criação e a participação em colegiados legitimados pelos poderes públicos. Criam-se os Conselhos da Condição Feminina ou dos Direitos das Mulheres, órgãos de consulta e proposição, mas não de execução. Foi o Conselho da Condição Feminina de São Paulo o primeiro a ser criado, em 1983, e o primeiro a propor a criação da primeira delegacia especializada de atendimento às mulheres, em 1985. Conselhos e delegacias especializadas foram sendo criados ao longo dos anos oitenta em vários estados.

Em 1983, no Rio de Janeiro, diversos grupos feministas7 organizaram o Encontro sobre saúde, sexualidade, contracepção e aborto. Segundo, Barsted (2007:13), esse encontro

constituiu-se num marco do debate público sobre o aborto face a seu caráter de reunião nacional que, durante 3 dias, reuniu cerca de trezentas representantes de 57 grupos de mulheres de todo o País além de parlamentares (senadores, deputados federais e estaduais e vereadores).8 Nesse Encontro foi definido o dia 28 de setembro como o Dia Nacional de Luta pelo Direito ao Aborto e que foi mantido como marco de mobilização nas décadas seguintes.

No âmbito latino-americano, em 1984, é criada na região a Red de Salud de las Mujeres Latinoamericanas y Del Caribe (RSMLAC) durante o Primeiro Encontro Regional de Saúde das Mulheres, realizado em Tenza, Colômbia. Em 1985, é criado o Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres (CNDM) em resposta ao “Movimento de Mulheres pelas diretas-já”.

Em 1988, o Conselho Nacional de Direitos das Mulheres liderou a formação do “lobby do batom”, que apresentou aos constituintes a “Carta das Mulheres”, elaborada por um grande número de feministas (Pinto, 2003). Aqui se reitera a singularidade do movimento brasileiro ao apresentar sua primeira pauta em nome da democracia e das questões sociais: justiça social, criação do Sistema Único de Saúde, ensino público e gratuito em todos os níveis, autonomia sindical, reforma agrária, reforma tributária e negociação da dívida externa. A segunda parte da carta se referia aos direitos das mulheres: trabalho, saúde, direitos de propriedade, chefia compartilhada na sociedade conjugal, defesa da integridade física e psíquica da mulher como argumentação para o combate à violência, redefinição da classificação penal do estupro, criação de delegacias especializadas de atenção à mulher em todos os municípios. A Carta é mais tímida em relação à proposta de legalização do aborto. Propõe um princípio constitucional nestes termos: “Será garantido à mulher o direito de conhecer e decidir sobre o próprio corpo”. Princípio que não é aprovado.

À época da Constituinte, a movimentação feminista faz efeito. O direito à “igualdade de gênero” passa a constar no texto da Constituição de 1988. Àquele momento, a pressão e o contexto político eram favoráveis aos avanços dos direitos das mulheres, como se incluídos estivessem na conquista da democracia e do “progresso social”, muito embora resistências fizessem lugar.

No âmbito universitário, intelectuais feministas criam núcleos de pesquisa sobre as mulheres e sobre as relações de gênero. Criam-se as primeiras organizações não governamentais (ongs) especialmente para acompanhamento das políticas públicas dos direitos das mulheres, capacitação, advocacy, e para o atendimento dos direitos de mulheres populares.

Em âmbito internacional, entre 1975 e 1985, são realizadas três Conferências Mundiais sobre a Mulher (México, 1975; Copenhague, 1980; e Nairobi, 1985).

Se as Nações Unidas instam os Estados a eliminar as discriminações legislativas contra as mulheres, a eliminar maus tratos e violências contra as mulheres nas famílias e na sociedade, as respostas nacionais brasileiras e de demais países latino-americanos dependerão fundamentalmente das mobilizações feministas nacionais e das condições políticas do fim dos regimes políticos ditatoriais.

Anos noventa e início do novo milênio: a formação das redes. Articulação e pluralidade

Nos anos noventa, a tendência dos movimentos feministas brasileiros foi a de se organizar em organizações não governamentais (incipientes ao final dos anos oitenta) e buscar recursos para objetivar projetos referidos à elaboração, ao acompanhamento e ao “controle social” das políticas públicas. Financiamentos passam a ser solicitados ao Estado e a organizações não governamentais e governamentais internacionais, grande parte dependente de editais e concursos. A década se caracteriza pela produção de formatos organizacionais não governamentais capazes de dar respostas positivas no diálogo com o Estado

Face ao objetivo de maior efetividade de ações das organizações não governamentais e de sua capacidade de pressão diante do Estado brasileiro e das Conferências Internacionais que se avizinhavam, formaram-se grandes redes de articulação nacional como é o caso da Rede Nacional Feminista de Saúde e Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos, criada em 1991, e a Articulação das Mulheres Brasileiras nos anos anteriores à preparação da IV Conferência Mundial sobre a Mulher (Beijin, 1995). No início dos anos 2000, foram criadas a Articulação de ONGs das Mulheres Negras, o Fórum Nacional de Mulheres Negras e a Liga Brasileira de Lésbicas. Nos anos 2000, a Marcha Mundial das Mulheres consolida seu espaço no Brasil, enquanto se organizam algumas novas articulações regionais e continuam as atividades de redes em defesa das mulheres em campos políticos mais partidarizados, como a Confederação de Mulheres do Brasil e a União Brasileira de Mulheres.

A congregação das organizações não governamentais em redes se fazia segundo sua percepção da compatibilidade de temáticas e objetivos, mas as ações de cada organização não governamental eram realizadas autonomamente face às redes.

Por sua vez, as redes ganharam protagonismo para articular ações diante do Estado brasileiro e dos debates e desafios das conferências mundiais e regionais, que revertiam para decisões de ações em prol de políticas públicas nacionais.9

A movimentação feminista brasileira se articulou com a latino-americana e internacional e se organizou para a preparação da II Conferência Mundial sobre Direitos Humanos (Viena, junho de 1993). A Declaração de Viena explicitou que os direitos à diversidade cultural não podem prevalecer se contrários aos direitos humanos das mulheres à não violência.

Os movimentos feministas na Conferência de Cairo (1994) sobre População e Desenvolvimento contribuíram para seu resultado: a consolidação dos direitos humanos sexuais e reprodutivos das mulheres nas mais diferentes sociedades e culturas (Alcalá, 1997).

A preparação da Convenção Interamericana para Prevenir, Sancionar e Erradicar a Violência contra a Mulher, acordada pela Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos, e sua realização em junho de 1994, em Belém do Pará, Brasil, estimulou a produção de novas redes feministas latino-americanas e legislações na região.

A IV Conferencia Mundial sobre a Mulher de 1995 (Beijing, China) foi precedida na região latino-americana pela VII Conferência Regional de América Latina e do Caribe, em 1994, em Mar Del Plata, chamada pelos Estados da região como conferência preparatória para Beijin. Dias antes, se reuniu o Fórum das ONG de América Latina e do Caribe, a partir do qual se elaboraram propostas e negociações com os distintos governos.

Os anos noventa representaram, assim, uma forte relação e articulação entre o crescimento e a consolidação dos movimentos feministas brasileiros e regionais latino-americanos e o seu sinergismo com as instituições intergovernamentais mundiais no objetivo da incorporação pelos Estados Nacionais da construção, reconhecimento e consolidação dos direitos das mulheres. Contudo, o Governo Collor produziu uma forte crise nas relações com a movimentação feminista e com o CNDM, superada, apenas parcialmente, a partir de 1995, no governo de Fernando Henrique Cardoso, quando o CNDM passou a ser vinculado ao Ministério da Justiça, evidenciando a incipiente institucionalidade das relações entre as organizações feministas e o Estado brasileiro.

Anos 2000. Entre a coalizão exitosa e o backlash

Em 2002, final do segundo governo Cardoso, foi criada a Secretaria de Estado dos Direitos da Mulher, vinculada ao Ministério da Justiça. As prioridades estabelecidas pela secretaria foram o combate à violência contra a mulher, a participação da mulher no cenário político do país e sua inserção no mercado de trabalho (Bandeira, 2005). No mesmo momento, o Ministério da Saúde chamou feministas para a continuidade da Coordenação da Saúde da Mulher, com o novo desenho de uma política dos serviços do aborto legal que visasse o atendimento na rede pública dos abortos realizados nas condições previstas e despenalizadas pelo Código penal (quando a gravidez é decorrente de estupro e quando a gestante sofre risco iminente de morte) e que formalizasse o atendimento pela rede do Sistema Único de Saúde das mulheres após terem realizado abortos inseguros.

Em 2003, o Governo Lula introduziu estratégias políticas de concertação com a movimentação feminista como nenhum outro governo brasileiro se propusera. Foi constituída a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM) vinculada diretamente ao Gabinete Civil, chefiada por secretária com status de ministra. Status que implicava autonomia orçamentária e reconhecia a necessidade de produção de políticas públicas específicas, e de coordenação e incentivo de ações nos demais órgãos governamentais, com vistas à transversalidade das questões sociais de gênero. O status de ministra e o vínculo direto da SPM com o Gabinete Civil se manteve até outubro de 2015 no segundo governo Dilma. A mudança respondeu à atual crise política e econômica, aumentando a incerteza e a possibilidade de intensificação das condições do backlash, face à pouca autonomia de se antepor às forças neoconservadoras.10

No mesmo ano de 2003, rumo ao que chamo de coalizão exitosa, buscando o governo a concertação com os movimentos feministas, foi alterada a composição do Conselho Nacional de Direitos das Mulheres, de tal forma que as representantes feministas fossem diretamente indicadas pelas redes às quais pertenciam e não mais indicações, em última instância, políticas, ainda que sempre supusessem reconhecimento pelo movimento. A composição foi acrescida da indicação de sindicalistas e profissionais pelas respectivas organizações11 e pela indicação de representantes do Governo Federal pelos ministérios parceiros, e presidida pela Ministra (depois de 2015, Secretária) da Secretaria de Políticas para as Mulheres. Foi criado um espaço público para o diálogo com as movimentações feministas e com os movimentos de mulheres: a propositura de conferências nacionais para as políticas para as mulheres (a primeira em julho de 2004, a segunda em agosto de 2007, a terceira em dezembro de 2011, no primeiro Governo Dilma, e a quarta programada para 10 a 13 de maio de 2016). Tais decisões produziram uma visível aproximação do governo com as posições dos movimentos feministas, e vice-versa, assim como contribuíram para a aproximação entre movimentos feministas, sindicais e de organizações de mulheres profissionais liberais e de classe, e para a introdução de mecanismos governamentais de introdução de direitos das mulheres nas esferas estadual e municipal.

Os ganhos com esse diálogo e essa coalizão entre os objetivos da movimentação feminista e o Estado, por meio desse novo formato do CNDM e das conferências nacionais antecedidas por conferências estaduais e municipais, fizeram efeitos no envolvimento de governantes e dos movimentos, nacionais e locais. Foram também eficazes no envolvimento e na articulação das organizações feministas com as sindicais e associativas. Foi possível inserir políticas públicas transversais para mulheres nas diretrizes e ações dos diversos ministérios federais por incentivo e monitoramento da SPM e do CNDM. As decisões das conferências deveriam se tornar diretrizes dos Planos de Políticas Para as Mulheres. Para isso, foi criado o Comitê de Articulação e Monitoramento dos Planos de Políticas para as Mulheres com participantes dos ministérios parceiros. Pela primeira vez, foi delineada uma estrutura dessa envergadura no governo brasileiro.

É evidente, contudo, a participação diferenciada na adesão às propostas das conferências por cada um dos ministérios. Depende em grande parte da inserção mais ou menos profunda e tradicional com as temáticas dos direitos das mulheres, como é o caso do Ministério de Saúde e do Ministério do Desenvolvimento Agrário. Da mesma forma, a muitas das propostas não corresponde uma atividade orçamentada, mas uma forma qualitativa de atuar, nem sempre passível de avaliação.

Como resultado das conferências e da atuação da SPM foram também viabilizadas e incentivadas as adesões estaduais e municipais aos Pactos Nacionais relativos a cada programa, como o Pacto do enfrentamento à violência e o Pacto da Redução da Mortalidade Materna, assim como a feitura de Planos Estaduais e Municipais.

A SPM e o CNDM levaram a frente o projeto de lei de enfrentamento à violência doméstica contra as mulheres, aprovado pelo Legislativo, em 2006, como Lei nº 11340/2006, Lei Maria da Penha, que respondia positivamente à pressão anterior de organizações feministas não governamentais. Questões e dúvidas sobre o formato da lei e do juizado especializado que a acolhesse foram objeto de pressões no CNDM por organizações feministas participantes que criticaram uma primeira proposta produzida e apresentada pela SPM por manter algumas das características presentes na Lei nº 9099/95. A crítica foi aceita e o diálogo ampliado ao ser levado à Câmara dos Deputados, dando lugar a um novo périplo junto a organizações de mulheres em diversos estados. SPM e CNDM puderam levar adiante a criação de ampla rede de encaminhamento das mulheres vítimas de violência doméstica, incluindo a criação mais recente da Casa da Mulher Brasileira. Legislação recente inova sobre o entendimento de feminicídio. Texto base elaborado para a futura Quarta Conferência das Políticas para as Mulheres expressa o escopo dos objetivos alcançados inscritos na Primeira, Segunda e Terceira Conferências (SPM e CNDM, junho de 2015).

Embora a relação numérica entre sociedade civil e representação governamental seja favorável à sociedade civil, tanto no CNDM, quanto nas conferências, o peso político da decisão tende a favor do governo federal, pois as decisões das conferências têm por objetivo constituírem diretrizes dos Planos Nacionais de Políticas para as Mulheres; e sobre os Planos, a decisão é do Governo Federal, sequer da SPM. Assim, essa coalizão, que é eficaz para que o feminismo alcance seus objetivos, não deixa de ser assimétrica e não está imune a uma certa dose de cooptação, já que, por ser eficaz em diversas temáticas, induz a críticas menos contundentes às temáticas que, requeridas pela movimentação feminista, os governos não realizam.

Em 2004, início do governo Lula, a SPM e o CNDM apresentaram como diretrizes bases para serem debatidas na primeira Conferência de Políticas Públicas para as Mulheres, as seguintes temáticas: autonomia das mulheres e igualdade no mundo do trabalho; educação inclusiva não racista, não homofóbica e não lesbofóbica; saúde das mulheres, direitos sexuais e direitos reprodutivos; enfrentamento de todas as formas de violência contra as mulheres; gestão e monitoramento do plano. Independente da posição da SPM, no interior da temática dos direitos reprodutivos, o direito à interrupção da gravidez é proposto pelas Jornadas pelo Aborto Legal e Seguro que congregava várias organizações e redes feministas12, demandando ao Governo Federal a propositura de um projeto de lei. A proposta das Jornadas é aprovada por praticamente todas as conferências estaduais, com exceção de uma, e é aprovada por 90% das 2000 delegadas presentes na Conferência Nacional. No seu conjunto, a I Conferência mobilizou mais de 120.000 mulheres.

Em 2007, na II Conferência, os temas propostos pelas participantes, além da continuidade das temáticas da I Conferência, foram: desenvolvimento sustentável; direito a moradia digna nos meios rural e urbano; comunidades tradicionais, cultura e comunicação; enfrentamento ao racismo; enfrentamento ao sexismo, à homofobia e à lesbofobia (agora em separado, não como parte dos temas da Educação). Nesse momento, fica clara a diversidade interna do movimento feminista e na sua relação com o Estado. As demandas e as disputas agora se fazem em pautas específicas em nome da diversidade das mulheres negras, das mulheres lésbicas, das mulheres jovens, das mulheres das florestas. Ainda que a II Conferência de Políticas para as Mulheres (agosto de 2007) tenha aprovado o reencaminhamento do projeto de interrupção da gravidez pelo Executivo ao Legislativo, essa proposta aprovada não consta do II Plano Nacional de Políticas paras Mulheres de 2008.

As tensões sobre direitos à interrupção da gravidez

A grande tensão que mudou os termos da negociação entre feminismo e Estado não se iniciou, como muitos dizem, em 2010 – na campanha da candidata Dilma Roussef, mas, antes, em 2005/2006. A Ministra Nilcéia Freire, em nome da SPM, e em resposta à demanda da I Conferência, instaurara a Comissão Tripartite13 para a elaboração de minuta de projeto de lei para legalizar a interrupção da gravidez e se encaminhava para apresentá-la à Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados. Nesse exato momento, ocorria a denúncia do Mensalão.14 A partir desse fato, as condições se tornaram propícias à troca de moedas políticas: apoio da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) ao governo desde que se retirasse o projeto do aborto ou que pelo menos não o levasse adiante. A ministra entregou a minuta à relatora da Comissão da Câmara em 27 de setembro de 2005, mas a partir daí, as feministas foram informadas que a ministra ou o Governo Federal não mais negociariam favoravelmente à implementação da minuta do projeto, dado o contexto político.

Segundo coluna de Xico Vargas, em 17/09/2014:

O trabalho de Nilcéia havia sido abatido por dois importantes textos saídos da reunião da CNBB, em Itaici, dias antes. Ambos produzidos sob o eco da explosão do mensalão, com toda a sujeira que daí respingava no governo. O estudo do ministério de Nilcéia, o primeiro nascido no Executivo, era o preço que o Planalto aceitara pagar pelos 19 brandos parágrafos da análise da Igreja sobre a necessidade de “Resgatar a Dignidade Política”. Não se leu ali a menor censura ao governo, então acossado por um mar de denúncias.

As negociações entre a CNBB e o Governo Lula ocorridas em 2005 e 2006 se fizeram no entrecruzamento da efervescência política do debate sobre o Mensalão, da apresentação do projeto de lei de legalização do aborto e da proposta do acordo entre a República Federativa do Brasil e a Santa Sé relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil. Com a vulnerabilização do governo federal, se fortaleceram os setores conservadores da Igreja Católica, foi assinado o novo estatuto da Igreja Católica no Brasil, assim como ganharam espaços de reconhecimento, por analogia, outras religiões e seitas cristãs.

Assim, quando são ou foram fortes as pressões a partir dos movimentos neoconservadores contra algumas propostas caras ao movimento feminista, as resistências e as contradições se apresentaram fortemente também no interior do governo, distanciando as posições políticas entre governo (Lula e Dilma) e as propostas feministas pelos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e pela legalização do aborto.

Em outubro de 2005, em resposta imediata à proposição da minuta de legalização da interrupção da gravidez foi registrada a primeira “Frente Parlamentar em defesa da vida contra o aborto”. A partir da nova legislatura, as posições contrárias no Congresso cresceram reativamente ao projeto apresentado, com a formação de mais uma frente: a Frente Parlamentar a favor da Família. Nos anos seguintes frentes foram sucessivamente recriadas. Em 2015 estão registradas a “Frente Parlamentar Mista da Família e Apoio à Vida” e a “Frente Parlamentar em Defesa da Vida e da Família”. A Comissão de Seguridade Social e Família passa, desde então, a ser a comissão cobiçada pela bancada evangélica, multipartidária, criada em setembro de 2003, que reúne os deputados por convicção religiosa em torno dos valores da família tradicional, contra o aborto e contra a extensão de direitos aos grupos homossexuais. A bancada evangélica multipartidária tem entre seus participantes os principais proponentes e membros das Frentes. A iniciativa e o protagonismo nas Frentes são de políticos que identificam sua atuação como pautada por suas religiosidades, quer evangélica, católica ou espírita.

As frentes parlamentares pelo Brasil sem aborto e a bancada evangélica passam a constituir espaços nos quais a política se realiza nos púlpitos e nos programas televisivos. No ano de 2001, antes do crescimento do número de evangélicos na política brasileira, a revista Veja assinalava que o número de horas de programas evangélicos na TV passara de um em 1975 a 15 em 1983, 45 em 1992 e 290 em 2001; e as gravadoras totalizavam 96, com 1000 artistas e bandas. O cerne do debate que congrega grande parte dessas elites religiosas se concentra na defesa da moralidade, no lugar da família de modelo tradicional como seu suporte, na obrigatoriedade da maternidade diante de uma relação sexual cujo resultado foi a fecundação, e na não extensão de direitos civis aos homossexuais e lésbicas.

Menos que a defesa da liberdade religiosa, trata-se de um confronto com a noção de Estado Laico em nome de um Estado Moral, inscrito em moralidades religiosas sectárias que pretendem possuir ou representar verdades morais universais, e uma forma de “salvar” a política e a sociedade, o que se torna mais claro na disputa eleitoral que se segue.

O momento da Campanha de 2010 entre Dilma e Serra vem consolidar a vulnerabilidade dos candidatos e dos governos face ao crescimento de uma aliança entre políticos que, em nome de suas convicções religiosas, especialmente evangélica e católica, se posicionam contra a legalização do aborto e a favor de uma constituição familiar tradicional a partir, exclusivamente, de um homem e uma mulher.

Diante da discussão no interior de paróquias, cujos participantes eram contrários a candidatos que apoiam a legalização do aborto, a Comissão Brasileira de Justiça e Paz, organismo da CNBB, em 06 de outubro de 2010, torna pública uma nota oficial em que parece prevalecer a longa duração da instituição católica da separação entre poderes laicos/seculares frente aos religiosos. Sem que o presidente da CNBB tivesse se pronunciado, a nota afirma que os fiéis devem escolher o candidato não apenas em consonância com a doutrina da Igreja, mas também por seu comprometimento com assuntos sociais. Entende que “grupos, em nome da fé cristã, têm criado dificuldades para o voto livre e consciente”. Parece, assim, se contrapor à imiscuidade entre religião e secularidade, seguindo as fronteiras construídas ao longo dos séculos entre o poder do Vaticano em nome de Deus e o poder dos Estados, então Monarquias. Mas logo a seguir, o presidente da CNBB, Dom Geraldo Lyrio Rocha, afirma que impedir que a Igreja discuta um tema de relevância como o aborto durante as eleições majoritárias é “estabelecer uma ‘ditadura laica’”, já que na democracia há liberdade de expressão e liberdade religiosa (Duarte, 2011).

A movimentação política evangélica instalada multipartidariamente se distribui entre o apoio a Serra e a Dilma, garantindo que os dois se declarem contra a legalização do aborto ou se comprometam a não implementá-la. Enquanto Walter Pinheiro (PT/BA), Marcelo Crivella (PRB/RJ) e o Bispo da Convenção Nacional das Assembleias de Deus de Madureira, Manoel Ferreira (ex-deputado), apoiam Dilma e garantem esse compromisso, o Pastor Wellington Bezerra da Costa, Coordenador Geral das Assembleias de Deus no Brasil, apoia Serra (Duarte, 2011). José Serra inicia uma campanha “a favor da vida” desde o “ventre materno”. Dilma Rousseff lança a “Carta ao Povo de Deus”, garantindo que cabe ao Congresso Nacional a função de legislar.

A legalização do aborto passou a ser temática proibida na Presidência de Dilma Roussef. Romperam-se assim a aliança e a coalizão entre os feminismos e o segundo governo Lula e os governos Dilma, no que se refere à proposição de um projeto de lei que, tal como estava na minuta apresentada à Comissão de Seguridade Social e Família, legalizaria o aborto nas 12 primeiras semanas da gestação sem obrigar mulheres a declarar suas razões, e legalizaria o aborto diante de graves malformações fetais ou risco à saúde das mulheres.

As tensões sobre direitos à diversidade sexual e o conceito de gênero

Uma nova temática vai se colocar no confronto entre as movimentações neoconservadoras e as feministas diante do Estado no período dos dois governos Dilma. É a temática que os feminismos vêm sustentando desde os seus primórdios, mas expressas nestes termos desde a I Conferência Nacional de Políticas Públicas: a educação pela igualdade de gênero, a educação não sexista, não homofóbica e não lesbofóbica. A SPM manteve de 2005 a 2013 uma política de apoio ao Programa de Educação de Gênero e Diversidade Sexual.

Um primeiro incidente foi referente a vídeos educativos produzidos por organizações não governamentais, por demanda do Ministério da Educação, para promover a educação não sexista não homofóbica. As lideranças político-religiosas pressionaram a Presidência da República para que o material fosse recolhido e, de fato, o foram em 25 de maio de 2011. Um segundo incidente, em 2015, com grande repercussão, foi a retirada pelo Congresso Nacional dos objetivos de enfrentamento à desigualdade de gênero no Plano Nacional de Educação. O Legislativo passou a promover forte pressão sobre o governo contra o uso do conceito de gênero, retirando do PNE o objetivo de enfrentar a discriminação de gênero nas escolas. O Legislativo marca distância e faz o Executivo se distanciar novamente da pauta feminista e da pauta dos movimentos pela diversidade sexual.

O teor do Requerimento 083/2015 de audiência pública (realizada em 10 de novembro de 2015), feito pela Comissão de Educação da Câmara de Deputados, resume o confronto entre Congresso e Executivo. O requerimento argumenta que constitui desrespeito às Deliberações do Congresso Nacional que o Fórum Nacional de Educação publique o Documento Final da Conferência Nacional de Educação (CONAE) de 2014, reintroduzindo a ideologia de gênero como diretriz, pois essa terminologia não tem presença no PNE 2014-2024 modificado e aprovado pelo Congresso Nacional. E acusa o Estado de cometer um crime ao induzir a elaboração de planos estaduais e municipais em consonância com o Documento Final da CONAE e em dissonância ao que foi deliberado no Congresso.

O requerimento apresenta rejeição a uma “ideologia de gênero” a partir de um conhecimento enviesado, mas não inocente, do que são as teorias de gênero. Falar em “ideologia” de gênero é desconhecer ou distorcer propositadamente o conceito e as teorias de gênero. O propósito, no entanto, é o de obrigar as pessoas que nascem com o sexo masculino a serem homens heterossexuais e as pessoas que nascem com o sexo feminino a serem mulheres heterossexuais. Como derivado explicitado claramente, os casamentos somente deveriam ser entre sexos diferentes. Como derivado indiretamente, homens e mulheres deveriam constituir famílias tradicionais, como se isso fosse da natureza do sexo de cada um: as pessoas do sexo masculino deveriam se constituir como chefes de famílias e as pessoas do sexo feminino como suas esposas na modalidade tradicional, com o dever da obediência aos esposos.

O requerimento entende que a terminologia de gênero é danosa ao processo educacional. Argumentos que estiveram presentes no decorrer da audiência pública, entre os que entendem que a questão é danosa, baseiam-se na defesa da tradição brasileira de valores da família e de entendimento da “virtuosa” divisão naturalizada dos papéis sociais para os que nasceram do sexo masculino e do sexo feminino, e da “virtuosa” educação voltada para a normatização exclusiva dos homens e mulheres como heterossexuais.

Examinemos a nossa “tradição brasileira” hegemônica relativa a família, sexo/gênero e sexualidade/gênero. Primeiramente trataremos da “tradição” de severas desigualdades e discriminações sociais em relação aos sujeitos que apresentam sexo masculino e os que apresentam sexo feminino. As desigualdades estão formalmente explícitas e expressas nas legislações estatais. Homens e mulheres são cidadãos desiguais nos códigos penais e civis da colônia, à independência, do Império à República. As reformas legislativas, algumas anteriores e a maioria posterior à Constituição de 1988, instituem, ao menos legalmente, a igualdade de gênero em vários contextos. Houve poder reconhecido e legal de castigar fisicamente as mulheres desde as ordenações afonsinas (1446), manuelinas (1512) e filipinas (1603). O poder de matar as mulheres se fossem denunciadas pelos maridos como adúlteras, e até mesmo seus amantes, se de status inferior ao marido, perdurou em todo o tempo da colônia. Não cabia às mulheres nem corrigir os homens na vida familiar, nem assassiná-los se adúlteros fossem..., nem concorrer na vida política e profissional. Essa foi a memória de longa duração que faz efeitos ainda hoje nas relações de gênero e em interpretações jurídicas.

Os efeitos dos entendimentos religiosos e jurídicos coloniais da sodomia como pecado e crime, e dos entendimentos jurídicos e médicos do final do século XIX e século XX do homossexualismo como doença/desvio/loucura e crime perduraram na memória social de longa duração e ainda hoje. Daí, pode-se entender a alta carga negativa e discriminatória contra a homossexualidade como identidade e contra as relações entre parceiros do mesmo sexo.

Em 22 de fevereiro de 2016, o CNDM lança nota pública relativa ao desdobramento da crítica à suposta ideologia de gênero:

Foi com perplexidade que recebemos a notícia da aprovação, pelo Plenário da Câmara Federal, no dia 18 de fevereiro de 2016, de dois destaques ao texto-base da Medida Provisória 696/15. O primeiro retira a expressão “perspectiva de gênero” como uma das atribuições do recém-criado Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, e o segundo propõe que a política nacional de direitos humanos seja feita em conformidade com o Pacto de São José da Costa Rica, numa contundente afronta às mulheres brasileiras e na contramão de todos os compromissos internacionais como, por exemplo, os Objetivos de Desenvolvimento do Sustentável (ODS) estabelecidos recentemente pela Organização das Nações Unidas (ONU), com o apoio do governo do Brasil (CNDM, 2016).

Ou seja, o backlash se prenuncia e se anuncia nas lideranças políticas que têm duplo assento no Congresso e nos movimentos neoconservadores fundamentalistas e religiosos e que controlam formas de divulgação televisivas, que são, ironicamente, concessões governamentais. Também, ironicamente, estes segmentos religiosos são beneficiados por formas não tributárias de poderem estabelecer construções de templos e igrejas. Isso passa a dar alento, em direção contrária ao que, nos anos oitenta e noventa, era considerado o rumo da democracia e dos direitos de cidadãos e cidadãs. Até agora, a pressão dessas lideranças frente ao governo não é pequena.

Na contramão do backlash

Na contramão do backlash, novos grupos de feministas despontam nas redes sociais presenciais, nas manifestações públicas e nas redes da internet. Distintos e inovadores coletivos como blogueiras feministas, cyberfeministas, marcha das vadias, organização das mulheres indígenas, mulheres da floresta, mulheres amazônicas, mulheres ribeirinhas vão dando lugar à manutenção e à consolidação de lutas feministas diversas. Alcançar a legalização do aborto, a sexualidade livre e responsável, a autonomia para construir diversos arranjos familiares e estilos de vida, a igualdade no trabalho e o acesso a diferentes profissões, a direitos sociais, à vida livre de violência, à saúde, aos direitos reprodutivos, ao erotismo, ao “poliamor”, às relações livres (sexuais), à diversidade de gênero, ao direito de se vestir de forma “não comportada”, são grupos, coletivos e temas que tanto inovam quanto se repetem e se apoiam.

Grupos de blogueiras feministas que acompanham os eventos que incidem contra os direitos das mulheres, que denunciam estupros, em parte, me fazem lembrar, dos grupos de reflexão, nos anos setenta e início dos oitenta, que propiciaram tantas decisões e manifestações. Ciclos se alternam.

Estarão as novas feministas tão distantes do rumo forte que as feministas vieram a incidir buscando não só a revolução das subjetividades, mas a reforma/revolução política de legitimar os direitos e as oportunidades iguais a partir das políticas públicas? Distantes ou próximas, mas sabedoras dos caminhos construídos e dos caminhos a construir?

Por parte do Executivo, o convite para participar em Conferências de Políticas Públicas para as Mulheres incentiva o processo incessante de busca de novas políticas públicas de Estado, dando espaço claro à diversidade e à pluralidade de sujeitos políticos mulheres.

De outro lado, as organizações não governamentais e redes feministas, constituídas na década de noventa e nos anos dois mil, ainda que muitas estejam fragilizadas pelo menor apoio financeiro, governamental e intergovernamental, buscam articular os diversos feminismos emergentes. É o caso especialmente da ong Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFemea) por meio de seu espaço virtual Universidade Livre Feminista, cuja parceria com o MAMU (mapa de coletivos de mulheres) os nomeia e visibiliza, e acompanha as aparições dos coletivos em redes virtuais, e em movimentos de rua e demais espaços (http://feminismo.org.br/movimentos/).

As funções de pesquisa e formação dos núcleos de estudos e pesquisas em gênero em diferentes universidades e regiões, por sua vez, mantêm pesquisas, contato e relações com antigos e novos movimentos. Esse é, especialmente, o caso do Núcleo de Estudos de Gênero – Pagu, institucionalizado em 1993, na Unicamp e com seus 20 anos comemorados em 2014. Entre outros, não posso deixar de citar o Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher (NEPeM) na UnB, do qual participo e que completa 30 anos em 2016.

Desafios: demandas éticas por pluralidade face a demandas neoconservadoras por moralidade impositiva

As relações entre movimentos feministas e Estado passam pela mediação da ponderação que governos realizam diante do embate das forças conservadoras e das forças emancipadoras.

Diferentemente dos anos 1970 ao ano 2000, os movimentos feministas e depois os movimentos da diversidade sexual Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transgêneros e Transexuais, LGBTT, ao meio da primeira década do novo milênio, passaram a ser demonizados, não pelos evangélicos e católicos porque religiosos, pois a liberdade religiosa e a adesão religiosa são preciosas, mas sim pelos líderes políticos que levam adiante a Bancada Evangélica no Congresso e por políticos que atuam como católicos conservadores, para quem parece não ser prioritário o reconhecimento da diversidade e da alteridade. O objetivo é a pretensa defesa em prol da família tradicional, imprescindível para a salvação nacional. Ouvi na internet uma pastora que assim falava: “oro para que a igreja saia daqui para fora, que brilhe e que ilumine a escuridão da política”.

Foi pela força atual das lideranças políticas dessa posição neoconservadora15 que o governo Lula a partir de 2005/2006 e os dois governos Dilma (2011/2014 e o iniciado em 2015) ficaram bloqueados no tocante a manter determinadas políticas propostas e concertadas no início da década com as movimentações feministas. As políticas, total ou parcialmente bloqueadas, se constituíram como pontos nevrálgicos de discordância por parte das forças neoconservadoras (fundamentalistas): legalização do aborto, atenção e cuidado com o abortamento inseguro, legitimidade de diversos arranjos familiares e de uniões, sejam ou não do mesmo sexo, proposição de uma educação não sexista, não homofóbica e não lesbofóbica e o uso das teorias e conceito de gênero.

Os movimentos neoconservadores contrários aos direitos das mulheres e dos homossexuais alegam a necessidade da ordem social e dos “bons costumes” para que a sociedade trilhe o caminho da salvação (Duarte, 2011). As movimentações feministas não impõem regras de condutas, mas buscam a regulamentação de direitos de autonomia e de liberdade que não prejudiquem terceiros. Legalizar o aborto é permitir às mulheres que não sofram e morram16porque se entendem sem condições de levar adiante uma determinada gravidez. Não é obrigar nenhuma mulher a fazê-lo.

Nino (1989) entendia que a defesa dos direitos básicos – liberdade que não prejudique a terceiros, liberdade de desenvolvimento da vida privada, integridade corporal e psíquica e direito ao trabalho – estava baseada no princípio ético da “autonomia individual”. Em oposição a esse princípio está o princípio do “perfeccionismo”, quando o Estado prefere um ordenamento jurídico que impõe modelos de virtude pessoal e padrões de comportamento contrários ao princípio da autonomia individual. Sempre que o Estado propõe um modelo de perfeccionismo para definir formas de delito, o faz de igual maneira como nas esferas religiosa e moral se dão as definições das formas de pecado.

Toda a defesa pelo movimento feminista e/ou pelo movimento de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transgêneros e transexuais (LGBTT) de direitos sexuais e reprodutivos pela despenalização se fez e se faz para desmontar a penalização conservadora de longa duração que considerava o estupro, o incesto, a sodomia, o atentado violento ao pudor, o aborto, o adultério, a prostituição como “crimes contra os costumes”. Essa forma de entender esses atos como “contra os costumes” é similar ao modo de se definir o pecado. A definição de crimes contra os costumes se sustentava na crítica ao formato do ato, por se tratar de ato de moralidade interdita e ilegal e não a um ato que impedisse a liberdade ou a dignidade de outra pessoa. Daí a despenalização demandada e/ou conseguida pelos movimentos feministas e/ou pelos de direitos à diversidade sexual em relação à sodomia, ao adultério, ao aborto e à prostituição.

A sodomia em particular por ser crime (contra os costumes), em analogia e genealogia com o “pecado” da sodomia, fazia dos homossexuais pessoas sem cidadania e sem direitos. A despenalização demandada pelos movimentos homossexuais era fundamental para lhes devolver cidadania. Correa e Parker (2004) e Corrêa (2006) apontam o lugar marginal e excluído dos sujeitos homossexuais do Contrato Civil.

Na concepção conservadora, o aborto derivado do estupro era forma despenalizada, porque se considerava que era ato restaurador da “honra”. A despenalização do aborto pelos movimentos feministas se faz em nome da autonomia, da liberdade e da responsabilidade da mulher que aborta baseada em razões de ordem íntima ou privada, as quais a mulher não precisa declarar, dentro do limite de tempo de 12 semanas de gestação quando o embrião/feto ainda pouco se desenvolveu. Quanto ao estupro e ao atentado violento ao pudor, as feministas propõem que sejam crimes contra a dignidade e a liberdade das pessoas.

Os movimentos por direitos humanos, direitos sexuais e reprodutivos pautados na despenalização, em nome da não interferência do Estado “na vida privada” ou na intimidade, se fizeram assim apenas em contextos dirigidos a desmontar a regulação baseada em nome da moralidade conservadora que patologiza atos pela sua forma e não porque se faz contra as pessoas, contra a integridade psicológica ou física de outrem. A moralidade de longa duração distinguia, no campo sexual, os “bons costumes”, expressão da moralidade legitimada e legal, e os “maus costumes”, expressão da moralidade interdita e ilegal. Do lado legal, estavam as relações heterossexuais, as relações sexuais voltadas para a reprodução e os atos sexuais legítimos. As mulheres estavam irremediavelmente em duas categorias: de um lado, as mulheres honestas de família, de outro, as adúlteras, as prostitutas, as que abortavam. Essa classificação, presente na maioria dos códigos penais e civis, derivava da criminalização de atos considerado contra os “bons costumes”, em estreita analogia e genealogia com os atos considerados pecados.

A movimentação feminista se faz pela despenalização do aborto e pela penalização das agressões e violências de gênero na vida privada e no espaço público porque são ações contra a pessoa e contra sua integridade. A movimentação LGBTT se faz pela despenalização das práticas homossexuais em nome da intimidade e pela penalização das agressões e violências nas esferas privada e pública, como os crimes de ódio. Tanto uma como outra se fazem pela penalização dos atos de agressão. Diferenciamos aqui “vida privada” e a “vida pública” quanto à forma, mas não quanto à mesma natureza relacional instauradora das desigualdades de gênero e sexualidade.

As demandas para que esses crimes contra os costumes ou análogos à noção de “pecado” fossem despenalizados tiveram como um dos fundamentos a defesa da “intimidade” ou da “vida privada”. Haveria contradição com o percurso de “politização da vida privada” e do mantra do “pessoal é político” da movimentação feminista e LGBTT? A contradição é somente aparente, pois é o mesmo princípio da autonomia individual que norteia tanto a despenalização de práticas sexuais e do aborto quanto a penalização das agressões na vida privada. As práticas sexuais entre parceiros do mesmo sexo em sua plena e recíproca autonomia não agridem direitos ou autonomia de outrem, assim como é em nome da autonomia da mulher sobre sua vida e seu corpo que a interrupção da gravidez até as 12 semanas não agride a autonomia de outrem. São questões privadas, no sentido que são exclusivas à sua órbita de autonomia individual.

Diversamente, as agressões e violências contra membros familiares que participam da “vida privada”, entendida aqui como espaço das relações domésticas e familiares são práticas que agridem aqueles e aquelas com quem se relacionam. Agridem a autonomia de outrem. Este outrem em geral é do gênero feminino, dada a legitimação histórica de longa duração quanto ao exercício masculino do poder e do “castigo físico”. Assim, a penalização das agressões conjugais e familiares está baseada no princípio da autonomia individual, entendendo “vida privada” como relações conjugais, familiares e domésticas.

As argumentações que atribuem contradição ao movimento feminista por despenalizar o aborto e penalizar a violência de gênero17estão presas e emergem de um dos discursos do universo narrativo jurídico, que busca a despenalização em nome de um Estado Mínimo ou mesmo de uma Criminologia abolicionista. Não é esse o repertório narrativo do movimento feminista.18 O repertório feminista se funda sempre no uso do princípio da defesa da “autonomia, integridade e dignidade individual”, não se quer produtor de disciplinamento moral uniformatado e, assim, se contrapõe, coerentemente, ao princípio do “perfeccionismo” presente na atual organização da movimentação neoconservadora fundamentalista.

Buscar o reconhecimento de direitos sexuais é exigir que a violência ou a discriminação não tenham lugar nem na “vida privada”, nem na “vida pública” em nome das identidades de gênero ou de sexualidade de seus portadores. Os atos de violência sexual, definidos como violação sexual ou assédio sexual, sejam contra homens, mulheres, heterossexuais, homossexuais, passaram a ser entendidos como crimes ou violações contra a liberdade e a dignidade de pessoas. A luta pela preservação dos direitos dos sujeitos sexuais contra seus eventuais agressores, exclusivamente em nome dos crimes contra as pessoas, construiu a demanda feminista e LGBTT pelas leis penais.

Na reflexão sobre a politização da “vida privada” foi preciso salientar os dois sentidos opostos do termo: um relativo ao foco às relações entre pessoas no âmbito privado, sejam conflitos, poderes ou solidariedade, e outro relativo ao foco ao formato das práticas sexuais e reprodutivas da privacidade e da intimidade do indivíduo que não prejudique terceiros.

Enquanto nos Estados Unidos a força dos argumentos pela descriminalização do aborto se assentou na liberdade da vida privada e da intimidade, na França e no Brasil os argumentos se sustentaram na defesa da saúde pública e nos direitos sociais à igualdade das mulheres pobres e vulneráveis com menor acesso aos equipamentos médicos e às formas de contracepção. Contudo, a defesa da privacidade também se faz implicitamente presente na cultura brasileira, pois é vigente entre classes populares e classes médias a dupla referência moral na tradição brasileira. Aceita-se a interrupção da gravidez quando, privadamente, se crê na impossibilidade social, econômica ou afetiva de alguém que se conhece levar adiante a gravidez. Mas não se declara publicamente que outros que não se conhece possam fazer decisões embasadas.

Os movimentos conservadores contrários aos direitos das mulheres, dos homossexuais e da diversidade sexual são os que alegam a necessidade da ordem social e dos “bons costumes”, e se pautam pela introdução de uma nova moralidade impositiva. Propõem um Estado de Imposição Moral uniformatada para todos.

As movimentações dos direitos humanos sexuais e contra a violência são contrárias a um Estado de Imposição Moral e, sim, por uma defesa dos direitos das pessoas e de uma pluralidade ética, que permita a vivência da diversidade e o reconhecimento da igualdade de gênero frente a direitos políticos, civis e sociais. Os movimentos por direitos humanos buscam um sentido libertário e uma pluralidade ética.

A crença de que os direitos sexuais e os direitos à não violência propostos pelos feminismos seriam apenas exportações dos valores ocidentais liberais individuais não procede. Direitos sexuais somente vicejam junto a direitos econômicos e sociais e a direitos positivos derivados dos deveres dos Estados.

Finalizo afirmando que as reivindicações feministas e dos novos sujeitos sexuais que demandam direitos sexuais e não violência ultrapassam o sentido liberal de direitos individuais capazes de livre escolha em função exclusiva de seus interesses e incapazes de pensar o bem comum, pois se orientariam apenas pelas regras do mercado. As escolhas individuais são feitas em contextos relacionais e sociais e sempre exigem informações, conhecimentos e acesso a equipamentos públicos. As escolhas individuais são associadas à responsabilidade, aos direitos sociais e à proteção do Estado frente às agressões.

Considerações finais

Os feminismos brasileiros, sempre em diálogo com o Estado em busca dos direitos sociais, civis e políticos e de políticas públicas para as mulheres, passaram da crítica aos governos ditatoriais a aproximações bem e mal sucedidas aos governos democráticos. Coalizões positivas tiveram lugar em diferentes governos, como se pode ver na história da implementação de direitos e políticas aqui resumidamente apontados.

A partir de 2003, os novos formatos institucionais do diálogo entre feministas e governos produziram dimensões fortemente positivas e exitosas para a incorporação social e governamental de muitas das pautas feministas, como legislações, redes de atendimento e juizados de enfrentamento à violência contra as mulheres. Contudo, pautas muito requeridas pela movimentação feminista em relação aos direitos sexuais e reprodutivos, que pareciam emergir como efetiváveis no início do milênio, estão bloqueadas. Para essas pautas delineia-se um backlash de possível forte e mais ampla repercussão, diante de um atual Congresso que parece cada vez mais sensível às pautas neoconservadoras e diante da atual fragilidade política do Executivo.

Na contramão do backlash estão a continuidade das redes e organizações não governamentais feministas e do feminismo acadêmico, a emergência de novos feminismos presenciais e em redes virtuais e as novas parcerias entre feministas, juristas, médicos, cientistas, educadores e o chamamento dos vários segmentos organizados da sociedade civil, sindicais, profissionais e populares.

Os desafios estão à frente.

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  • Sorj, Bila; Montero, Paula. SOS-Mulher e a Luta contra a Violência. In: Franchetto, Bruna; Cavalcanti, Maria Laura; Heilborn, Maria Luiza (orgs.). Perspectivas Antropológicas da Mulher. Sobre Mulher e Violência Rio de Janeiro, Zahar Editores,1985, pp.117-124.
  • Vargas, Xico. Jandira é o resultado do que decidimos ignorar. Metro Jornal Rio de Janeiro, 2014. [<http://www.metrojornal.com.br/nacional/xico-vargas/jandira-e-resultado-do-que-decidimos-ignorar-127244 e http://xicovargas.uol.com.br/index.php/2937> – acesso em: 9 fev. 2014]
    » http://www.metrojornal.com.br/nacional/xico-vargas/jandira-e-resultado-do-que-decidimos-ignorar-127244» http://xicovargas.uol.com.br/index.php/2937
  • 1
    Brasília Mulher foi fundado em 1980 pela fusão de dois grupos feministas e pela iniciativa em especial de duas feministas: Mireya Suarez de Soares, antropóloga e professora universitária, vinda do Grupo de Mulheres do Cerrado, que reunia especialmente pesquisadoras universitárias e estudantes da UnB; e Marlene Libardoni, economista, líder do Grupo Feminista de Brasília, que agregava mulheres vinculadas à sociedade civil, aos sindicatos e ao Itamaraty. As reuniões de Brasília Mulher chegaram a agregar de 30 a 40 mulheres (Rodrigues, 2013).
  • 2
    Mariza Corrêa, antropóloga, aponta para a diversidade de classe e a relativa diversidade racial nos grupos feministas paulistas. Aponta ainda a inclusão da questão racial entre as feministas da época, muito embora longe se estivesse da questão de um feminismo negro como ocorreu nos Estados Unidos (Corrêa, 2001:13-30). Acrescento: se havia diversidade, não estavam postas a organização das mulheres negras e a das mulheres lésbicas com suas pautas, tal como se deu a partir do final dos anos noventa.
  • 3
    Minha memória pessoal se inscreve por diferentes ângulos: como feminista integrante do grupo Brasília Mulher, como participante atual e uma das fundadoras do Núcleo de Estudos e Pesquisas da Mulher da UnB (NEPeM) criado em 1986, como integrante da organização não governamental Ações em Gênero, Cidadania e Desenvolvimento (AGENDE), como integrante da Rede Nacional Feminista de Saúde e Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos (Rede Feminista de Saúde) e como representante da Rede Feminista de Saúde no Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres (2003 a 2008). Minha memória/história de feminista está associada à minha atuação de pesquisadora, sem com ela se confundir. Mas, se são as minhas pesquisas e estudos que norteiam a escrita deste texto, com certeza a minha memória aí se entrelaça e marca uma interpretação que se deve à minha experiência.
  • 4
    Conforme relata Leite: “...o Brasil Mulher já era sabidamente, nessa época, constituído por mulheres militantes do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), da Ação Popular Marxista Leninista (APML) e do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR8). Quanto ao Círculo de Mulheres de Paris, cabe dizer que era formado por feministas de esquerda integrantes, em sua maioria, do Debate, dissidência política que surge no exílio, agrupando ex-militantes da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), da Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares) e do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e mulheres autônomas” (Leite, 2003:234-241). Entre as mulheres autônomas feministas estava a então jornalista Mariza Corrêa (Corrêa, 2001:13-30).
  • 5
    Ver Sorj e Montero (1985); Rodrigues, Andréia; Cavalcanti e Heilborn (1985); e Gregori (1993).
  • 6
    Um dos casos notórios foi o do assassinato de Ângela Diniz por seu companheiro, Doca Street, ambos da elite social, e logo depois em 1980 os homicídios das mineiras Maria Regina Rocha e Heloisa Ballesteros. O primeiro julgamento de Doca Street em 1979, seguido por grande audiência, revelou a prática judicial de considerar os réus inocentes em nome da defesa da honra. Stanciolli, assassino de Heloisa, foi condenado em 1982 a dois anos de prisão, tendo a defesa se baseado na acusação de que Heloisa, por ter atividade empresarial, estava mais interessada em suas atividades profissionais que nas de esposa e mãe. Christel Johnston foi ameaçada, perseguida e assassinada pelo marido, que não aceitava a separação e, embora tenha recorrido à delegacia e à Justiça, não foi protegida.
  • 7
    Grupo Ceres, Casa da Mulher do Rio de Janeiro, Coletivo de Mulheres do Rio de Janeiro, Projeto Mulher do IDAC e Grupo Mulherando, apudBarsted, 2007.
  • 8
    Jornal Mulherio, maio/julho de 1983, apudBarsted, 2007.
  • 9
    Retomo inferências sobre a dinâmica da movimentação feminista brasileira diante da forte presença da questão dos direitos das mulheres no âmbito de instituições intergovernamentais nos anos noventa (Machado, 2009).
  • 10
    Em outubro de 2015, foi criado o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos – SEPPIR, ao qual se subordinam a Secretaria de Políticas para as Mulheres e as então Secretaria de Igualdade Racial e Secretaria de Direitos Humanos.
  • 11
    O CNDM, vigente em 2016, conta com 16 representantes do Governo Federal (ministérios e secretarias), 14 representantes de entidades feministas e de defesa dos direitos das mulheres e sete representantes de entidades de caráter sindical, associativa e entidades de classe que atuam na promoção dos direitos das mulheres. Conta com cinco suplentes representantes de entidades da primeira categoria e três suplentes representantes de entidades da segunda categoria.
  • 12
    Integravam as Jornadas Brasileiras pelo Direito ao Aborto Legal e Seguro, entre outras, a Articulação das Mulheres Brasileiras (AMB) e a Rede Nacional Feminista de Saúde e Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos (Rede Feminista de Saúde).
  • 13
    A Comissão Tripartite - integrada por membros do Governo Federal, da Sociedade Civil e do Congresso Nacional e coordenada pela Secretaria Especial de Políticas Públicas para Mulheres da Presidência da República (SPM/PR) - foi instituída com o objetivo de discutir, elaborar e encaminhar proposta de revisão da legislação punitiva que trata da interrupção voluntária da gravidez, conforme a Portaria nº 4, de 06 de abril de 2005. A Comissão Tripartite foi composta por 18 membros igualmente distribuídos entre: Poder Executivo, Poder Legislativo e Sociedade Civil.
  • 14
    Mensalão significa o ato de corrupção em que uma grande soma em dinheiro é transferida periodicamente e de forma ilícita para favorecer determinados interesses. É derivado da palavra "mensalidade", cujo aumentativo sugere uma quantia avultada.
  • 15
    Chamo de movimentos neoconservadores, pois a narrativa sobre a família tradicional advém da nossa história de longa duração, mas já nela não se situa, dada a enorme expansão dos direitos das mulheres e homossexuais. A moralidade que propõem: normatizar as relações heterossexuais e interditar as homossexuais são uma proposta de volta à moralidade conservadora (“perfeccionista” disciplinador a) de longa duração que, em parte, foi “perdida” no avançar da modernidade e da laicidade. Trata-se do desejo da volta aos fundamentos da antiga ordem social tal como vista positivamente por suas convicções religiosas. O caráter “neo” é porque já não se apresenta a moralidade como “natural”, porque se organizam modernamente por meio do uso televisivo, virtual e do acoplamento entre o político e o religioso. Fazem do púlpito palanque político e do espaço político fala religiosa para adesão política.
  • 16
    O momento atual do risco de fetos e bebês com microcefalia agrava a situação das mulheres e as faz também vítimas, por não poderem ter o filho/a esperado sem tal grave situação neurológica e de saúde física.
  • 17
    Ver, entre outros autores, Karam (2006).
  • 18
    Nem por isso a Lei Maria da Penha pode ser a prova de que as feministas são “punitivistas”. A lei é essencialmente voltada para a proteção da mulher agredida, supõe penalização, mas pouco redunda em sentenças penalizadoras. Tem, no entanto, efeitos de romper a situação da agressão pela instauração do processo, pelo encaminhamento a equipes multidisciplinares e pelas medidas protetivas.
  • Jornais e revistas consultados:
  • Brasil Mulher. São Paulo, Sociedade Brasil Mulher, nº 0, 9 out. 1975. Editorial.
  • Nós Mulheres. São Paulo, Associação de Mulheres, nº 1, jun. 1976. Editorial.
  • Nós Mulheres. São Paulo, Associação de Mulheres, nº 6, ago./set. 1977. Editorial
  • Endereços eletrônicos consultados:

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2016

Histórico

  • Recebido
    26 Fev 2016
  • Aceito
    29 Mar 2016
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