Open-access Particularidades relevantes da interação humano-animal para o bem-estar e produtividade de vacas leiteiras

Particularities of the human-animal interactions relevant to the welfare and productivity of dairy cows

Resumos

Mudanças na qualidade da relação entre os animais e as pessoas podem influenciar substancialmente na produtividade e no bem-estar dos animais e, potencialmente, dos humanos envolvidos na atividade leiteira. Importantes alterações no sentido da melhoria dessas relações podem ser obtidas através de programas de treinamento, ou outras formas de extensão. Para que isso tenha efetividade, é necessário conhecer como interagem os aspectos dessa relação, que incluem além dos animais e os homens, o ambiente em que eles se inserem. A maioria dos estudos publicados confirma o modelo de retroalimentação positiva de atitudes e comportamentos humanos e comportamento dos animais. Porém, esses estudos têm sido desenvolvidos em países da Europa ou na Austrália, na maioria das vezes, sob condições de criação intensiva confinada e, geralmente, com o intuito de indicar um perfil ideal de empregado para trabalhar com os animais. Nesta revisão, mostra-se que o sistema de criação pode exercer uma forte interferência nesse processo e conclui-se sugerindo o desenvolvimento de estudos voltados a compreender as relações entre humanos e animais em diferentes sistemas de criação, enfocando as diversas realidades do nosso país. Esses estudos devem procurar entender de que modo características como o manejo alimentar e sanitário empregado, a qualidade das instalações, a genética, o tamanho e a composição dos rebanhos, e as peculiaridades culturais regionais influenciam na qualidade dessas relações.

interação humano-animal; comportamento; bem-estar animal


Changes in the quality of interactions between animals and humans have a profound influence on the productivity and welfare of animals and, potentially, of humans involved in the dairy activity. Important alterations in these interactions can be obtained through training programs, or other forms of extension. To do so effectively, it is necessary to understand how interact the several aspects of this relationship, which includes besides the animals humans, and the environment where they are inserted. Most of published studies confirm the model of positive feedback human behavior and attitudes, and animal behavior. However, these studies have been carried out mostly in European countries or Australia, mostly under intensive, confined systems, and usually with the aiming of indicating an ideal worker profile. In this review we show that the rearing system may exert a strong influence in this process and conclude suggesting the development of studies with the objective of understanding the relationships between humans and animals in different farming systems, focusing on the diverse realities of Brazil. These studies should search understanding how characteristics such as feeding and health management, quality of facilities, genetics, size and composition of herds, and cultural regional peculiarities, influence the quality of these relationships.

human-animal interactions; behavior; animal welfare


REVISÃO BIBLIOGRÁFICA

PRODUÇÃO ANIMAL

Particularidades relevantes da interação humano-animal para o bem-estar e produtividade de vacas leiteiras

Particularities of the human-animal interactions relevant to the welfare and productivity of dairy cows

Luciana Aparecida HonoratoI,II,1; Maria José HötzelII; Carla Christina de Miranda GomesII; Isabella Dias Barbosa SilveiraI; Luiz Carlos Pinheiro Machado FilhoI

IGrupo de Estudos Comportamentais de Animais de Produção, Programa de Pós-graduação em Zootecnia, Faculdade de Agronomia Eliseu Maciel (FAEM), Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Pelotas, RS, Brasil

IILaboratório de Etologia Aplicada, Departamento de Zootecnia e Desenvolvimento Rural, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Rodovia Admar Gonzaga, 1346, Itacorubi, 88034-001, Florianópolis, SC, Brasil. E-mail: luchonorato@gmail.com

RESUMO

Mudanças na qualidade da relação entre os animais e as pessoas podem influenciar substancialmente na produtividade e no bem-estar dos animais e, potencialmente, dos humanos envolvidos na atividade leiteira. Importantes alterações no sentido da melhoria dessas relações podem ser obtidas através de programas de treinamento, ou outras formas de extensão. Para que isso tenha efetividade, é necessário conhecer como interagem os aspectos dessa relação, que incluem além dos animais e os homens, o ambiente em que eles se inserem. A maioria dos estudos publicados confirma o modelo de retroalimentação positiva de atitudes e comportamentos humanos e comportamento dos animais. Porém, esses estudos têm sido desenvolvidos em países da Europa ou na Austrália, na maioria das vezes, sob condições de criação intensiva confinada e, geralmente, com o intuito de indicar um perfil ideal de empregado para trabalhar com os animais. Nesta revisão, mostra-se que o sistema de criação pode exercer uma forte interferência nesse processo e conclui-se sugerindo o desenvolvimento de estudos voltados a compreender as relações entre humanos e animais em diferentes sistemas de criação, enfocando as diversas realidades do nosso país. Esses estudos devem procurar entender de que modo características como o manejo alimentar e sanitário empregado, a qualidade das instalações, a genética, o tamanho e a composição dos rebanhos, e as peculiaridades culturais regionais influenciam na qualidade dessas relações.

Palavras-chave: interação humano-animal, comportamento, bem-estar animal.

ABSTRACT

Changes in the quality of interactions between animals and humans have a profound influence on the productivity and welfare of animals and, potentially, of humans involved in the dairy activity. Important alterations in these interactions can be obtained through training programs, or other forms of extension. To do so effectively, it is necessary to understand how interact the several aspects of this relationship, which includes besides the animals humans, and the environment where they are inserted. Most of published studies confirm the model of positive feedback human behavior and attitudes, and animal behavior. However, these studies have been carried out mostly in European countries or Australia, mostly under intensive, confined systems, and usually with the aiming of indicating an ideal worker profile. In this review we show that the rearing system may exert a strong influence in this process and conclude suggesting the development of studies with the objective of understanding the relationships between humans and animals in different farming systems, focusing on the diverse realities of Brazil. These studies should search understanding how characteristics such as feeding and health management, quality of facilities, genetics, size and composition of herds, and cultural regional peculiarities, influence the quality of these relationships.

Key words: human-animal interactions, behavior, animal welfare.

INTRODUÇÃO

A intensificação nos sistemas de criação de animais mudou a relação dos animais com o ambiente que existia na criação tradicional. Entre essas mudanças, a diminuição do número de trabalhadores em relação ao número de animais envolvidos nos processos produtivos modificou profundamente a relação entre seres humanos e animais (ROLLIN, 1995; ANTHONY, 2003). Como colocado por BOIVIN et al. (2003), o "contrato social" entre humanos e animais domésticos, em que o bem-estar de um seria requisito para o bem-estar do outro, foi rompido no processo de industrialização da agricultura. Por outro lado, o desenvolvimento das sociedades industrializadas vem acompanhado da evolução do pensamento ético sobre a questão do bem-estar dos animais no seu contexto de criação (para uma revisão, ver HÖTZEL & MACHADO F°, 2004; MACHADO F° et al., 2007; ROLLIN, 2007). Para que a discussão a respeito seja conduzida com profundidade, uma definição de bem-estar animal é imprescindível.

As diferentes concepções de bem-estar convergem em três elementos principais: em primeiro lugar, as experiências subjetivas dos animais. Sabe-se que sentimentos como fome, dor e medo podem ser identificados nos animais. Estudos para avaliar a emocionalidade geralmente envolvem indicadores comportamentais, como fuga, evitação e defecação, e fisiológicos, como batimentos cardíacos, concentração de hormônios relacionados ao estresse e metabolismo. Em relação ao funcionamento biológico dos animais, medidas de desempenho, como, por exemplo, crescimento e reprodução, são bastante utilizadas por serem práticas e objetivas. Porém, o perfeito funcionamento biológico não supre necessariamente os interesses dos animais, portanto isso não pode ser usado como indicador único de bem-estar animal; outro importante elemento da definição do bem-estar animal envolve a natureza da vida animal, ou seja, a adaptação fisiológica e comportamental do animal ao ambiente que o rodeia. Em relação à adaptação comportamental, é essencial considerar aqueles comportamentos associados com alta motivação e que são geralmente os comportamentos mais intimamente relacionados com a sobrevivência dos animais, como a alimentação, defesa de predadores e outros perigos, a reprodução e os cuidados da prole; encerrando esses três elementos, BROOM (1991) definiu bem-estar como o estado de um animal em relação às suas tentativas de adaptação ao seu ambiente, em que, para que ele possa enfrentar com sucesso o ambiente, há necessidade de controle da estabilidade mental e corporal. A dificuldade prolongada em obter sucesso ao enfrentar uma dada situação envolve sofrimento e resulta em falência no crescimento, na reprodução e até em morte do indivíduo.

A relação com os humanos com quem interagem é um dos aspectos dos sistemas de criação que afeta a saúde e bem-estar dos animais. Para os animais zootécnicos, a qualidade das interações com o ser humano é um fator determinante para o desenvolvimento de medo de seres humanos e, consequentemente, para o seu bem-estar e produtividade (HEMSWORTH & COLEMAN, 1998). A atenção ao bem-estar dos animais criados em sistemas produtivos atende a uma demanda da sociedade, e tende a ser incorporada em relações internacionais. A melhoria da qualidade das relações humano-animais pode ser atingida através da educação dos envolvidos diretamente com os animais no abate, transporte e criação. Especificamente na produção de leite, em que os contatos são rotineiros, a educação dos manejadores através de programas de extensão pode ter retornos perceptíveis na melhoria do manejo. Além dos benefícios imediatos, essa aprendizagem pode ser utilizada para chamar a atenção para a importância de outros problemas de bem-estar animal, como ausência ou insuficiência de sombreamento, água, mastite, doenças parasitárias e a criação inadequada de bezerras, entre outros. Para subsidiar tais programas, é necessário conhecer como os vários aspectos relacionados aos humanos, aos animais e ao ambiente de criação de bovinos leiteiros na nossa realidade podem influenciar na qualidade da relação entre humanos e animais (HEMSWORTH & COLEMAN, 1998).

A seguir, discutiremos alguns aspectos importantes dessa relação, que envolvem as atitudes e comportamentos dos humanos que manejam esses animais; a resposta dos animais, que reflete e reforça essas atitudes e comportamentos dos humanos; e, finalmente, fatores do sistema de criação que podem modificar essa relação. Nesse sentido, pode haver importantes efeitos na produtividade e bem-estar dos animais e, assim, é necessário dispor de métodos para avaliar a campo a qualidade dessa relação, outro aspecto que discutiremos brevemente.

Comportamento humano e comportamento animal

O comportamento do tratador parece estar intimamente relacionado com a sua atitude em relação aos animais (BREUER et al., 2000; HEMSWORTH et al., 2000). Atitude e personalidade são os principais conceitos usados em psicologia para explicar comportamentos em humanos (AJZEN, 2005). Segundo definição de EAGLY & CHAIKEN (1993), atitude é uma tendência psicológica que se evidencia através da avaliação, favorável ou desfavorável, de um objeto particular. As atitudes são geralmente dirigidas para algum objeto, pessoa ou grupo, e são formadas por três componentes: o afeto, que é a avaliação de uma resposta emocional ao objeto, a cognição, que diz respeito às crenças e conhecimento de fatos referentes a ele, e a conação, que é a intenção comportamental e as ações manifestas em relação ao objeto (ZIMBARDO et al., 1973).

De um modo geral, as atitudes das pessoas supõem o controle do comportamento manifesto. Além disso, segundo ZIMBARDO et al. (1973), as atitudes são vistas como predisposições duradouras, as quais são aprendidas, e não inatas. Por isso, embora as atitudes não sejam momentâneas, ou passageiras, são suscetíveis a mudanças. Essa informação é importante quando se busca melhorar a qualidade das interações entre humanos e animais, já que o foco principal deverá ser a mudança de atitude para com os animais.

Segundo a "teoria da ação racional" de AZJEN & FISHBEIN (1980), a intenção de uma pessoa por realizar um comportamento resulta de sua atitude em relação àquele comportamento, combinada a normas subjetivas. Dessa forma, as atitudes estão ligadas a crenças de que o comportamento leva a determinado resultado, e à avaliação desse resultado. Portanto, como regra geral, uma pessoa tende a se comportar de forma favorável com respeito a coisas e pessoas de que gosta, mostrando comportamentos desfavoráveis em relação a coisas e pessoas de que não gosta - exceto em eventos imprevistos, já que ela traduz seus planos dentro de suas ações. Um exemplo disso na relação humano-animal é a relação positiva entre acreditar que ter contatos positivos, como acariciar, é importante para os bezerros, e a frequência desse comportamento (LENSINK et al., 2000). Pessoas que têm atitudes positivas em relação aos animais tendem a ter também atitudes positivas em relação ao manejo dos animais (BOIVIN et al., 2007). O grau de esforço físico e verbal, expresso pelos manejadores para movimentar bovinos e suínos, é positivamente correlacionado com interações táteis negativas, como tapas, empurrões e batidas (HEMSWORTH & COLEMAN, 1998). Alguns estudos sugerem que existem diferenças entre homens e mulheres na qualidade da interação com animais, com mulheres promovendo uma melhor relação (LENSINK et al., 2000), o que pode ser explicado por diferenças nas atitudes em relação a eles (KNIGHT et al., 2004).

Modelo de relação recíproca entre interação humano-animal, produtividade e bem-estar dos animais

HEMSWORTH & COLEMAN (1998) propuseram um modelo de retroalimentação para explicar a influência da interação humano-animal na produtividade e no bem-estar dos animais. Conforme esse modelo (Figura 1), as atitudes determinam os comportamentos que estão sob o controle volitivo (dependentes da vontade) da pessoa. Então, se o manejador tiver atitudes negativas em relação aos animais, ele irá demonstrar isso através de comportamentos negativos; isso, por sua vez, tornará mais difícil o manejo, pois os animais tentarão escapar e evitar esse manejador, o que reforçará a sua atitude original, fechando-se um circuito de retroalimentação. Ao contrário, um sistema de retroalimentação positiva ocorrerá se as atitudes e comportamentos forem positivos, levando a uma diminuição da reatividade dos animais.


A satisfação com o trabalho e as opiniões sobre as condições de trabalho também estão relacionados com a formação de atitudes dos manejadores (HEMSWORTH, 2003). Uma pessoa satisfeita com seu emprego é estimulada a fazer bem o seu trabalho, a aprender e melhorar suas habilidades. Já condições ruins de trabalho diminuem o nível de satisfação e, consequentemente, o tratamento dado aos animais poderá ser mais rude. Em um estudo desenvolvido em 198 propriedades, MALLER et al. (2005) encontraram uma correlação positiva entre crenças positivas dos manejadores sobre o comportamento das vacas e aspectos relacionados à sua própria qualidade de vida.

HEMSWORTH et al. (1994, 2002) e COLEMAN et al. (2000) demonstraram que através de programas de educação das pessoas que trabalham diretamente com os animais, abordando aspectos da biologia animal, da percepção dos animais e dos humanos em relação ao manejo, e outras questões, como formas de melhorar o ambiente social do trabalho, é possível melhorar as atitudes e comportamentos dessas pessoas e alcançar, com isso, melhorias na produtividade e bem-estar dos animais.

Efeitos da qualidade da interação humano-animal no comportamento, fisiologia e produção de bovinos leiteiros

O termo interação indica que os dois indivíduos são afetados um pelo outro (BOKKERS, 2006). As interações entre humanos e animais podem envolver qualquer dos sentidos: tato, visão, olfato, gosto e audição; quanto à sua natureza, podem ser positivas, neutras ou negativas. Boa parte dos contatos entre o tratador e os seus animais está relacionada a estímulos negativos como vacinações, tratamentos veterinários e o manejo para o transporte. Experiências negativas envolvendo tratamentos veterinários podem influenciar na resposta dos animais, aumentando a sua reatividade (LEWIS & HURNIK, 1998; GOMES, 2008). A frequência e qualidade desses tratamentos variam de acordo com a intensidade da produção. São exemplos, a castração de dezenas de animais, um manejo que envolve desde a condução desses animais do campo até o local do manejo, até a contenção e a intervenção propriamente dita (COETZEE et al., 2010), ou tratamentos esporádicos de mastite em vacas leiteiras no local em que são ordenhadas diariamente (HÖTZEL et al., 2009).

Os bovinos discriminam as pessoas que os manejam e podem associá-las com as experiências positivas ou aversivas que ocorreram na presença delas (BOIVIN et al., 1998; RUSHEN et al., 1999; YUNES, 2001; MUNKSGAARD et al., 2001), e mostram essa capacidade mesmo 180 dias após o último contato com essas pessoas (HÖTZEL et al., 2005). Bezerros também aprendem a discriminar pessoas, baseados em suas experiências prévias (DE PASSILLÉ et al., 1996). As vacas, aparentemente, diferenciam as pessoas através das diferentes formas do corpo (RYBARCZYK et al., 2001) e pelas cores da roupa (RYBARCZYK et al., 2003). Por outro lado, bovinos também podem generalizar as experiências vividas com uma pessoa para seres humanos em geral, ou reconhecer os locais em que ocorreram os manejos aversivos, mostrando-se agitadas quando retornam àquele ambiente (RUSHEN et al., 1998). Entretanto, o estresse causado por procedimentos aversivos, como inspeções veterinárias de rotina, palpação retal e inseminação artificial, parecem diminuir quando há, simultaneamente, interações positivas entre seres humanos e vacas (LEWIS & HURNIK, 1998; WAIBLINGER et al., 2004; HÖTZEL et al., 2009).

A qualidade das interações entre humanos e animais de produção na rotina diária de manejo também pode ter implicações sobre a produtividade e fisiologia dos animais. Alterações nas concentrações periféricas de cortisol (WAIBLINGER et al., 2004) e nos batimentos cardíacos (SCHMIED et al., 2010) de vacas leiteiras são descritas em resposta a diferentes tratamentos recebidos. Em relação à produção, por exemplo, estima-se que ao redor de 20% da variação do rendimento de leite em vacas seja explicada pelo medo dessas em relação a pessoas que as manejam (BREUER et al., 2000). A mera presença, durante a ordenha, de uma pessoa reconhecida como aversiva pelos mesmos animais pode aumentar o leite residual (RUSHEN et al., 1999), o que indica a ocorrência de uma resposta fisiológica desencadeada pelo estresse nesses animais. Esse resultado é importante porque a retenção de leite no úbere entre ordenhas predispõe ao aparecimento de mastite e diminui a produção leiteira. WAIBLINGER et al. (2002) encontraram uma correlação negativa entre o medo de humanos e a produção leiteira das mesmas vacas, em um estudo envolvendo 30 pequenas propriedades familiares na Europa. Em um trabalho desenvolvido no Brasil, estimou-se uma perda de produção de leite em até 1kg por ordenha em vacas tratadas aversivamente pelo ordenhador (ROSA, 2002). Entretanto, outros pesquisadores não encontraram os mesmos resultados em experimentos com delineamentos semelhantes (YUNES, 2001; MUNKSGAARD et al., 2001; HÖTZEL et al., 2005), sugerindo que essa interação pode ser bastante complexa e precisa ser mais estudada.

Influência do manejo e do sistema de criação nas interações humano-animais

O contato com seres humanos difere de acordo com o sistema de criação e está relacionado a uma série de fatores, como a frequência de interações com humanos, o número de animais criados em uma propriedade, a intensidade da produção e o seu grau de mecanização (RAUSSI, 2003).

A reatividade dos animais é menor quando são manejados de forma gentil (WAIBLINGER et al., 2004; WINDSCHNURER et al., 2009), principalmente, quando isso é feito com certa regularidade (BOISSY & BOUISSOU, 1988; BOIVIN et al., 1992) e desde cedo (BECKER & LOBATO, 1997; BREUER et al., 2003). Em contraste, em sistemas de criação extensivos de bovinos, em que a frequência de contatos dos animais com humanos é baixa, os animais se mostram muito reativos ao tratamento durante o manejo, seja para tratamentos veterinários, para seleção ou para proceder ao embarque e transporte (PETHERICK, 2005).

Existem vários exemplos de como o grau de intensificação da propriedade pode influenciar na qualidade das relações entre humanos e animais. WAIBLINGER & MENKE (1999) encontraram uma correlação negativa entre o tamanho do rebanho e a intensidade e a qualidade dos contatos dos manejadores com as vacas. Em fazendas leiteiras com sistema totalmente confinado, em que as vacas eram isoladas em cubículos, os tratadores usaram menos contatos positivos e mais comportamentos negativos severos, do que em fazendas com sistema de estabulação livre (RENNIE et al., 2003). Em vacas estabuladas, o comportamento de evitação dos animais foi altamente correlacionado com a intensidade, qualidade e continuidade de contatos, assim como com a frequência de interações positivas com os ordenhadores (WAIBLINGER et al., 2003).

COLEMAN et al. (1998) encontraram uma relação positiva entre atitudes e comportamentos dos manejadores na suinocultura, na qual os contatos são geralmente mais intensos. BREUER et al. (2000), por outro lado, não encontraram correlação entre as atitudes gerais do tratador em relação a características de vacas leiteiras e o comportamento dele. Porém, note-se que o contato entre os animais e o tratador era pouco intenso nesse estudo. Esses resultados indicam que importantes diferenças podem ocorrer entre níveis de produção e intensificação dos sistemas de criação.

Mesmo considerando essas diferenças, o bem-estar de animais criados em pequenas propriedades familiares, ou em sistemas orgânicos ou agroecológicos, tem sido pouco estudado (LUND & ALGERS, 2003). LENSINK (2002) propôs que, pela natureza das interações entre os animais e humanos, bovinos leiteiros tratados em sistemas orgânicos poderiam ter menos medo dos seres humanos do que em sistemas convencionais.

HONORATO et al. (2007) testaram essa hipótese, comparando o comportamento de vacas em rebanhos em processo de transição para o sistema orgânico e de rebanhos convencionais, tratados com medicamentos alopáticos. Avaliaram 20 rebanhos, com total de 204 vacas em lactação criadas no sistema de produção característico dos estabelecimentos de agricultores familiares da região sul do Brasil. Os animais dos rebanhos em transição para o sistema orgânico apresentaram distância de fuga significativamente menor do que os dos rebanhos tratados convencionalmente. Nesse estudo, concluiu-se que o fato de os medicamentos homeopáticos serem fornecidos através da ração, evitando assim interações aversivas durante procedimentos veterinários, pode ter influenciado no comportamento dos animais em resposta às interações com humanos. Além disso, o comportamento menos reativo dos animais pode ter interagido positivamente na conduta dos humanos durante o manejo, conforme o modelo sugerido por HEMSWORTH & COLEMAN (1998).

A influência de peculiaridades do manejo e composição do rebanho e do sistema de criação também pode explicar os resultados de dois experimentos desenvolvidos com rebanhos diferentes, que chegaram a resultados opostos aos esperados (GOMES, 2008; HÖTZEL et al., 2009). A realização de uma inspeção veterinária e aplicação de injeções na sala de ordenha não influenciaram no comportamento posterior de vacas leiteiras ou na sua produção leiteira, apesar do comportamento das vacas durante o tratamento indicar forte aversão. Uma explicação para isso, apoiada por resultados de WAIBLINGER et al. (2004), pode ser o fato de o tratamento ter sido realizado na presença, durante os procedimentos aversivos, do ordenhador que acompanhava o rebanho diariamente. Entretanto, o fato de os rebanhos serem estáveis, e submetidos a manejos predominantemente gentis ou neutros, pode ter levado a uma generalização positiva em relação a humanos, De qualquer forma, o próprio fato de existirem várias explicações para resultados diferentes do esperado, em relação à resposta dos animais, salienta a relevância das peculiaridades relacionadas aos rebanhos e o seu contexto para o resultado das interações entre humanos e animais.

A avaliação da qualidade da relação humano-animal a campo

Seguindo uma tendência mundial, cresce em nosso meio a demanda por produtos certificados, que assegurem ao consumidor que os produtos que estão consumindo atendem a sua demanda ética de qualidade (HÖTZEL, 2005). Em relação aos produtos de origem animal, isso inclui a criação de animais em sistemas que respeitem padrões de bem-estar, como os sistemas agroecológicos e orgânicos, entre outros. Algumas certificadoras já estão se preparando para atender à demanda por certificação de produtos de origem animal no Brasil. Em relação ao bem-estar animal, isso cria a necessidade de realização de auditorias, a fim de verificar a adequação a padrões mínimos de bem-estar na criação. A necessidade da avaliação da qualidade da relação humano-animal gera uma demanda pelo desenvolvimento e validação de técnicas para aplicação a campo (DE PASSILLÉ & RUSHEN, 2005; FORKMAN et al., 2007). Especificamente na realidade do sul do Brasil, onde a maior parte do leite é produzido a pasto em pequenas propriedades familiares (IBGE, 2006), é imprescindível que tais metodologias sejam adequadas a essa realidade. Isso significa validar ou modificar os testes existentes para verificar o bem-estar animal em relação à qualidade dos tratos recebidos, que foram originalmente desenvolvidos para fins experimentais, e voltados à criação de animais em sistemas confinados.

Diversos testes de avaliação de medo em vacas leiteiras têm sido aplicados para analisar a qualidade do manejo e da relação humano-animal como um todo. Esses testes podem ser classificados em três categorias principais: humano estacionário, humano em movimento e manuseio/contenção (WAIBLINGER et al., 2006). Os testes mais empregados em trabalhos relatados na literatura são testes de docilidade, de aproximação e de fuga (MUNKSGAARD et al., 1999; DAS & DAS, 2004; DE PASSILLÉ & RUSHEN, 2005; FORKMAN et al., 2007; WINDSCHNURER et al., 2008). Uma limitação para a aplicação desses testes a campo é que eles foram desenvolvidos especificamente com objetivos experimentais, para testar hipóteses sobre o medo no bem-estar de animais zootécnicos. Nessa realidade, geralmente os animais são mantidos em regime de estabulação livre - em que há alta densidade animal - ou em confinamento em cubículos - em que os animais são mantidos isoladamente (MUNKSGAARD et al., 1999; ROUSING & WAIBLINGER, 2004). Os resultados desses testes podem ser influenciados por diferentes variáveis relacionadas ao ambiente, aos experimentadores e ao próprio animal, e não podem, portanto, ser adotados para estudos a campo sem prévia validação.

Ainda, durante a aplicação de testes de avaliação do medo, outros estados motivacionais, como a fome, a sede, a curiosidade, ou o interesse em interagir com o tratador, podem estar atuando ao mesmo tempo. Esses estados motivacionais podem incentivar ou inibir a aproximação dos animais às pessoas, interferindo nos resultados. Outro fator importante na avaliação do medo, relacionado a características inerentes ao animal, pode ser a hierarquia social e a relação de dominância deles dentro do grupo, pois vacas dominantes do rebanho mantêm maior distância dos homens do que vacas subordinadas (YUNES, 2001). Deve-se, portanto, identificar esses estados ou características individuais dos animais e considerar o seu potencial de interferência nas aferições de medo em um rebanho (DE PASSILLÉ & RUSHEN, 2005).

DE PASSILLÉ & RUSHEN (2005) propõem que é necessário verificar a viabilidade e confiabilidade desses testes para que possam ser recomendados como ferramenta para aferir a qualidade da relação humano-animal em auditorias em propriedades. ROUSING & WAIBLINGER (2004) adicionam uma terceira condição, que é a praticidade desses testes. Alguns desses testes são razoavelmente repetíveis a campo em situações de confinamento (DE ROSA et al., 2003; WAIBLINGER et al., 2007; WINCKLER et al., 2007). GOMES et al. (2007) mostraram que o teste de distância de fuga tem bom potencial para ser utilizado a campo. Em um estudo envolvendo bovinos leiteiros criados a pasto, encontraram respostas similares quando os mesmos animais foram testados por três pessoas diferentes, em dois locais diferentes pela mesma pessoa, e em três dias diferentes. Além disso, encontraram consistência entre a resposta ao tratador e um observador desconhecido e nos resultados obtidos em dois testes realizados com quatro dias de intervalo.

CONCLUSÃO

As interações entre humanos e animais são dinâmicas e por isso complexas e difíceis de avaliar, a não ser de forma contextualizada. A maioria dos estudos descrevendo os fatores envolvidos na relação entre os animais e seus tratadores e a sua influência na produtividade e no bem-estar dos animais tem sido feita em países da Europa ou na Austrália, na maioria das vezes, sob condições de criação intensiva confinada e, geralmente, com o intuito de indicar um perfil ideal de empregado para trabalhar com os animais. Contrastando com essa realidade, o Brasil tem uma grande diversidade de características produtivas. Em especial, em 84% dos estabelecimentos rurais do país, que se caracterizam como agricultura familiar (IBGE, 2006), a composição dos rebanhos é geralmente heterogênea quanto ao estado fisiológico e genética dos animais e a mão-de-obra é familiar. Considerando que inúmeros fatores interagem na qualidade final da relação entre humanos e animais, faz-se necessário desenvolver estudos que levem em consideração as diversas realidades existentes no Brasil. Em específico, sugerimos que se incentivem estudos voltados a compreender as relações entre humanos e animais em diferentes sistemas de criação, entender como características como a genética e composição dos rebanhos, a qualidade das instalações e as peculiaridades culturais regionais influenciam na qualidade dessas interações.

REFERÊNCIAS

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Recebido para publicação 13.05.10

Aprovado em 21.11.11

Devolvido pelo autor 26.12.11

CR-3565

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  • 1
    Autor para correspondência.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Mar 2012
    • Data do Fascículo
      Fev 2012

    Histórico

    • Recebido
      13 Maio 2010
    • Aceito
      21 Nov 2011
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