Resumo
O trabalho analisou o processo de construção do nome social e aspectos relacionados em pessoas trans de um município de porte médio do Sul do Brasil. Foram utilizados dados qualitativos de um estudo de método misto descritivo e exploratório. Incluíram-se pessoas autodeclaradas trans com 18 anos ou mais. Foram conduzidos três grupos focais com dez participantes. Estes, com idade variando entre 19 e 52 anos, apresentam nome social documentado, porém metade ainda não fez a alteração nos registros civis. A técnica da análise de conteúdo produziu duas categorias: “construção do nome social como instrumento de validação da identidade trans” e “impactos da construção do nome social na autoaceitação e nas relações familiares e sociais”. Os resultados reforçam a importância do respeito ao nome como forma de contribuição para a afirmação de gênero de sujeitos trans. O nome esteve atrelado às suas vivências, individualidades e valores. Seu uso adequado, muito mais do que o cumprimento de uma legislação, significou respeito às possibilidades diversas da existência humana. Espera-se que os resultados apresentados possam ser utilizados como ferramenta de reconhecimento acerca das questões e nuances que permeiam a construção do nome social, bem como contribuam para a validação identitária.
Palavras-chave:
Identidade de gênero; Pessoas transgênero; Nome social; Gênero e saúde
Abstract
This study analyzed the construction process of the chosen name and related aspects among transgender individuals from a medium-sized municipality in southern Brazil. Qualitative data from a descriptive and exploratory mixed-method study was used. Self-declared trans people aged 18 or over were included. Three focus groups were conducted with ten participants. These individuals, aged between 19 and 52 years, have a documented chosen name, but half have not yet changed their civil records. The content analysis technique produced two categories: “construction of the chosen name as an instrument for validating the transgender identity” and “impacts of the construction of the chosen name on self-acceptance and on family and social relationships.” The results reinforce the importance of respecting the name as a way of contributing to the gender affirmation of transgender individuals. The name was linked to the experiences, individuality and values of these individuals. Its proper use, much more than respect for legislation, meant respect for the different possibilities of human existence. It is expected that the results presented can be used as a tool for recognizing the issues and nuances that permeate the construction of the chosen name and contribute to identity validation.
Key words:
Gender identity; Transgender individuals; Chosen name; Gender and health
Introdução
Os sujeitos definem sua identidade de gênero e a expressam de maneiras variadas11 Reisner SL, Conron KJ, Tardiff LA, Jarvi S, Gordon AR, Austin SB. Monitoring the health of transgender and other gender minority populations: validity of natal sex and gender identity survey items in a US national cohort of young adults. BMC Public Health 2014; 14:1224. conforme seu contexto racial e étnico, condição socioeconômica e lugar de moradia22 Valentine D. Imagining transgender: an ethnography of a category. Durham: Duke University Press 2007.. Nesse sentido, o termo transgênero se refere às pessoas que, em sua identidade ou funcionalidade, não se identificam (em diferentes graus e de diferentes formas) com os papéis do gênero que estão em concordância com a designação da comunidade a partir do seu nascimento33 Jesus JG. Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e termos [Internet]. 2012. [acessado 2023 fev 14]. Disponível em: https://www.scribd.com/document/87846526/Orientacoes-sobre-Identidade-de-Genero-Conceitos-e-Termos
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No processo de reconhecimento da identidade trans, o nome pode ser um fator desencadeador de sofrimento44 Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário (MDSA). Garantia da utilização do nome social para pessoas travestis e transexuais [Internet]. 2016. [acessado 2023 fev 14]. Disponível em: https://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/Folders/cartilha_nome_social.pdf
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. Dessa forma, o nome social e a possibilidade de retificação se configuram como ferramentas auxiliares para esse enfrentamento. Assim, é importante destacar a diferenciação entre o nome social e o nome retificado. Ambos apresentam significativo impacto para o bem-estar da comunidade trans, no entanto, existem procedimentos legais diferentes.
Acerca do nome social, o Decreto nº 8.727/2016 expressa que o nome social é a forma na qual a pessoa trans se identifica e é socialmente reconhecida55 Brasil. Presidência da República. Decreto nº 8.727, de 28 de abril de 2016. Dispõe sobre o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional. Diário Oficial da União 2016; 29 abr.. No âmbito da saúde, a Portaria nº 1.820/2009 dispõe sobre direitos e deveres dos usuários da saúde e já incluía em seu texto o direito ao uso do nome social66 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 1.820, de 13 de agosto de 2009. Dispõe sobre os direitos e deveres dos usuários da saúde. Diário Oficial da União 2016; 14 ago.. Em fevereiro de 2022 foi publicado o Decreto nº 10.977, que estabeleceu normas a respeito da expedição das carteiras de identidade com a possibilidade de inclusão do nome social, sem exigência de documentação comprobatória, podendo ser solicitado a partir dos 16 anos77 Brasil. Presidência da República. Decreto nº 10.977, de 23 de fevereiro de 2022. Regulamenta a Lei nº 7.116, de 29 de agosto de 1983, para estabelecer os procedimentos e os requisitos para a expedição da Carteira de Identidade por órgãos de identificação dos Estados e do Distrito Federal, e a Lei nº 9.454, de 7 de abril de 1997, para estabelecer o Serviço de Identificação do Cidadão como o Sistema Nacional de Registro de Identificação Civil. Diário Oficial da União 2022; 15 fev.. No entanto, nesse tipo de documentação permanece o nome de registro, popularmente conhecido como “nome morto”.
Por sua vez, a Comissão Nacional de Justiça, por meio do Provimento nº 73, de 28 de junho de 2018, dispõe sobre a averbação da retificação do prenome e do gênero de nascimento das pessoas trans88 Brasil. Provimento nº 73, de 28 de junho de 2018. Dispõe sobre a averbação da alteração do prenome e do gênero nos assentos de nascimento e casamento de pessoa transgênero no Registro Civil das Pessoas Naturais (RCPN). Comissão Nacional de Justiça. Corregedoria Nacional de Justiça [Internet]. 2018. [acessado 2023 fev 14]. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/2623
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. Esse aspecto permite que o documento possa ter a inclusão ou exclusão de nomes indicativos de gênero, podendo ser requerido apenas a partir da maioridade.
O reconhecimento do nome legítimo, além de contribuir para a autoestima do sujeito autodeclarado transgênero, colabora para o empoderamento na busca e ocupação de espaços sociais nos quais antes sofriam algum tipo de represálias e não se sentiam bem-vindos99 Hatje LF, Ribeiro PRC, Magalhães JC. Trans (formar) o nome: alguns efeitos do nome social e da alteração do nome civil na vida de sujeitos trans. Rev Contexto Educ 2019; 34(108):122-143.. A possibilidade de ruptura dos padrões de preconceitos e discriminações que vigoram em torno do nome escolhido, apesar de frequentemente não ser aceito pela sociedade, viabiliza o autocuidado e bem-estar do indivíduo pelo respeito e reconhecimento do novo nome.
Assim, o presente estudo teve como objetivo analisar o processo de construção do nome social e os aspectos relacionados de pessoas trans de um município de porte médio da região Sul do Brasil.
Método
Este estudo faz parte de um projeto maior de cunho transversal, descritivo e exploratório construído em torno da abordagem mista que foi discutido junto a pessoas trans do município e teve aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CAAE 55339221.3.0000.5356). A coleta das informações ocorreu entre os meses de março e julho de 2022. Para o presente artigo, utilizaram-se dados qualitativos referentes à construção do nome e os aspectos relacionados.
Para compor a população do estudo misto, foram buscadas pessoas autodeclaradas transgêneras, incluindo travestis e não-binários, que fossem maiores de 18 anos e residentes do município de Santa Maria. O referencial teórico para coleta do autorrelato de gênero foi o preconizado pelas diretrizes acerca de como coletar a identificação de gênero em pessoas transgêneras e outras minorias de gênero produzidas pelo Instituto Williams, que é vinculado à Universidade da Califórnia e muito atuante em pesquisas sobre legislação e políticas públicas relacionadas à orientação sexual e à identidade de gênero1010 The GenIUSS Group. Best practices for asking questions to identify transgender and other gender minority respondents on population-based surveys [Internet]. 2014. [cited 2023 fev 14]. Available from: https://williamsinstitute.law.ucla.edu/publications/geniuss-trans-pop-based-survey/
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Para a captação dos participantes, optou-se pela técnica da amostragem em bola-de-neve. Nela, os chamados informantes-chave, ou sementes, são participantes iniciais responsáveis pela indicação de indivíduos de suas redes sociais que apresentam características procuradas pela pesquisa. O objetivo é que, sucessivamente, dentro das relações pessoais de cada um dos elementos-semente, novos participantes sejam captados, fazendo com que o quadro amostral seja expandido até se saturar (dentro das limitações e critérios estabelecidos). A captação dos informantes-chave foi realizada por meio do mapeamento das pessoas trans que têm algum tipo de vínculo com serviços ambulatoriais, unidades de saúde e coletivos sociais do município. Por fim, o estudo foi divulgado em instituições e em mídias sociais, de modo a suplementar a estratégia estabelecida.
Foram organizados grupos focais, por meio da plataforma Google Meet, tanto em razão da pandemia quanto pela incompatibilidade de horários entre os participantes. A transcrição das entrevistas ocorreu utilizando-se o aplicativo oTranscribe (https://otranscribe.com) e a análise dos dados seguiu a técnica da análise de conteúdo1111 Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2011..
Resultados
No decorrer do projeto/estudo maior, foram realizados três grupos focais. Cada encontro teve duração média de uma hora e trinta minutos, e ao final o total de dez pessoas trans compuseram a amostra, participando de pelo menos um dos encontros.
No decorrer das reuniões, em um dos grupos a construção do nome emergiu como um importante tema a ser analisado, devido ao seu impacto na vida das pessoas trans. Este grupo contou com oito participantes, sendo: três homens trans, duas mulheres trans, uma mulher trans não binária e duas pessoas não binárias. Todos os participantes apresentam nome social documentado, documentos já retificados ou em processo de retificação, sendo que apenas quatro destes ainda não tinham, até aquele momento, alteração do nome nos registros civis.
A idade dos participantes variou entre 19 e 52 anos, sendo que a maior parte deles estava na faixa dos 26 aos 34 anos. Em termos de raça, três (37,5%) participantes se autodeclararam como pretos, dois (25%) como pardos e cinco (62,5%) como brancos. Em relação ao exercício de atividade laboral, quatro exercem atividade formal, dois são trabalhadores informais, um (1) é aluno de pós-graduação e, até aquele momento, apenas um se encontrava desempregado e sem estudar. No que diz respeito à escolaridade, todos os participantes têm ensino médio ou superior completos. Por fim, em termos de renda, tomando-se como base o salário-mínimo do Brasil em 2022 (R$ 1.212,00), metade (50%) dos participantes declarou ter renda inferior a um salário-mínimo, enquanto o restante afirmou apresentar renda igual ou maior a um salário-mínimo.
Para a identificação dos participantes, foram utilizadas codificações de acordo com a identidade de gênero (Quadro 1).
Percebeu-se que o nome social se relaciona com a transexualidade no campo do reconhecimento do sujeito enquanto humano incongruente à cisgeneridade e os impactos que esta incongruência produz na relação entre esse mesmo sujeito e a sociedade cisgênera. Assim, a análise das manifestações dos participantes permitiu a organização em dois temas principais: “construção do nome social como instrumento de validação da identidade trans” e “impactos da construção do nome social na autoaceitação e nas relações familiares e sociais”.
Construção do nome social como instrumento de validação da identidade trans
A dinâmica de entender a própria identidade constitui um elemento que atua no processo da construção do nome. Conforme relato de HT1, aparenta ser um momento de afirmação, em que o sujeito decide de forma autônoma o nome que deseja para essa identidade.
Eu sempre gostei desse nome… eu sempre quis, achava bonito e pensava: “Seria muito legal se fosse meu nome”, e hoje é o meu nome. Eu sou a pessoa que eu achava legal (HT1).
HT1 também narra os sentimentos que permeiam o reconhecimento da transexualidade e destaca a dificuldade do processo de averbação do nome. Em contraste, reforça o quanto a consolidação deste processo influenciou positivamente sua autoestima:
É muito complicado, tem muita burocracia (a averbação), muita coisa que complica. Antes a minha autoestima era um lixo. Mas eu tô muito mais feliz agora do que eu já fui a minha vida toda. Agora eu sei que minha autoestima tá lá em cima. É tão bom sair na rua e pensar que agora eu sei quem eu sou (HT1).
O relato de NB1 aponta esse processo como algo dinâmico, gradativo e, muitas vezes, causador de uma sensação de não pertencimento. Esse processo, no entanto, repercutiu por fim na produção de empoderamento, pois não se tratou apenas de uma escolha, mas de uma construção de si mesmo e do existir em meio a diversos sentimentos. O nome escolhido representou um marco para a consolidação desse processo:
Eu sempre gostei muito de escrever e assinava dessa forma, porque o meu nome de batismo ao contrário começava com NB1. Significava o contrário de tudo aquilo que esperavam de mim quando eu nasci. Eu descobri que não era um alter ego, e sim meu verdadeiro eu... porque naqueles textos que eu escrevia meus sentimentos mais sinceros. Não fui eu que adotei esse nome, ele que me adotou! (NB1)
A descrição de NB2 sobre seu entendimento enquanto pessoa trans e o processo do nome social reflete um enfrentamento produzido pelo seu existir e as normas de gênero. Enquanto pessoa não-binária, a utilização do apelido, considerado um nome neutro, pactua com sua forma de ser e a negação de uma binaridade outrora imposta socialmente:
Vem de um apelido que me deram na minha adolescência. Eu gosto porque eu acho ele mais neutro. E eu não gosto dessa identificação de gênero em si só por conta da forma como se expressa ou se porta. Eu não me identifico como homem e nem como mulher. Eu não preciso performar esse papel (NB2).
O nome social também representa um movimento produtor de empoderamento, contribuindo para o autocuidado. O nome congruente ao gênero percebido gera segurança para a pessoa experienciar diferentes situações em razão da diminuição de risco de frustrações. Além disso, significa a validação e o respeito à identidade trans:
O nome social contribuiu bastante para se ter outros cuidados. [Trouxe] aquela vontade de se cuidar, de ir ao médico, porque tu sabe que tu não vai passar por frustração alguma (MT1).
Dá um empoderamento muito maior porque tu entende que não é só tu que tá se entendendo agora. As pessoas também te entendem e te respeitam (HT1).
Impactos da construção do nome social na autoaceitação e nas relações familiares e sociais
Acerca das relações familiares, HT1 demonstra que a reação positiva frente à sua identidade exerce papel de extrema importância. Nesse sentido, o forte vínculo familiar faz com que busque uma boa convivência, de modo que “releve muito” a utilização de seu nome morto. Ele percebe o acolhimento e o esforço para a tentativa de mudança por parte dos familiares, observando sua evolução:
Eu nunca esperei que a minha família teria uma reação tão boa. Por isso que eu relevo muito eles falarem o meu nome errado, meu nome morto. Minha família ainda me chama pelo meu nome antigo, mas eles tão mudando. Eu sei que eles estão evoluindo. Eles me cuidam desde o dia que eu nasci. Então eu sei que é difícil entender e mudar (HT1).
HT2 demonstra complacência diante da dificuldade da família em se habituar ao nome com o qual se identifica, justificando que ele mesmo levou muitos anos para aceitar e compreender sua identidade. Mais uma vez, observa-se o caráter gradativo do processo de reconhecimento da transexualidade. Neste caso, a tentativa de reconhecer e validar a identidade já foi o suficiente para que HT2 se sentisse minimamente respeitado e acolhido no ambiente familiar:
Eu sempre fui assim, só não me entendia, tentava me encaixar. Eu fui me entender como homem trans com 20 anos de idade. [Família] às vezes eles não me chamam pelo nome que eu me identifico, mas eles tão tentando (HT2).
No caso de HT1, a relação familiar se mistura com a religiosidade. Essa configuração influenciou a escolha do nome e repercutiu de forma positiva na aceitação da transexualidade, bem como serviu de instrumento para aproximação com a mãe.
Eu escolhi HT1, porque é um nome bíblico e minha mãe também é evangélica (HT2).
A importância das relações de amizade entre pessoas trans é demonstrada pela vivência de MT1, que assim como ela, independentemente de serem acolhidas pela família ou pela sociedade, tinham umas às outras. Percebe-se neste fragmento a importância de outras pessoas trans na construção do nome e na autoaceitação da participante.
[Nome] foi escolhido pelas minhas amigas, outras pessoas trans. Eu não tinha ideia de que poderia ter um nome feminino. Elas disseram “nós vamos te dar esse nome!”. Foi uma lista enorme, vários nomes. Quando chegou em MT1, eu me identifiquei. É um nome simples, fácil de pronunciar. E eu me considero uma pessoa simples (MT1).
NB1 traz um aspecto interessante sobre como o reconhecimento de sua identidade ajudou a se sentir mais livre e a aceitar-se. Ao mesmo tempo, relata o quanto o respeito ao nome é importante e influencia seus sentimentos e a forma de se relacionar.
No momento que eu descobri que me identifico como uma pessoa não-binária eu descobri um mundo novo. Em todos os aspectos possíveis não existiam mais barreiras para ficar dentro de uma caixinha que não me pertencia. Só que às vezes acordo e dá vontade de ficar dentro de casa, principalmente quando me chamam no masculino (NB1).
No depoimento a seguir, MT1 reflete sobre a o papel da averbação do nome no que respeita às relações sociais e de sua importância como ferramenta de estímulo e validação da identidade trans.
Vai fazer dois [anos] que eu averbei o nome e hoje me sinto feliz e orgulhosa de estar com ele retificado e de eu frequentar lugares e locais onde perguntam o nome e pedem o documento e eu tranquilamente posso dar meu RG e ser chamada por aquele nome pelo qual me identifico. Então eu quero que isso sirva de estímulo para todas as pessoas trans que têm vontade ou que têm essa frustração, esse medo de ir a uma consulta médica e ser chamada pelo nome de nascimento (MT1).
O nome social interfere também na relação dos sujeitos trans com os serviços de saúde. O uso do nome morto no ambiente das salas de espera produz constrangimento, conforme relato:
Quando eu comecei o tratamento odontológico na [prestadora conveniada], o tratamento pelo nome de batismo estava me incomodando muito. Porque eu ia muito feminina no dentista. Quando ele abriu a porta e me chamou com muito carinho, mas pelo nome de batismo, eu o questionei: “Tu me chamou por aquele nome horroroso”, e ele logo perguntou meu nome social e riscou aquele nome e já botou MT1 bem grande. A partir daquele momento, cada vez que ele ia me chamar, ele já chamava pelo nome e eu levantava bem orgulhosa (MT1).
Conforme explica HT1, não há necessidade de um tratamento diferente. O importante, para ele, é o respeito ao nome e à identidade:
[Nos serviços de saúde] respeitar o nome social. Não tem por que ter um tratamento especial (HT1).
Os participantes relataram ainda que o respeito ao nome social é uma conduta indispensável para que haja boa relação entre usuário e serviços de saúde. Essa atitude pode estimular a procura e permanência das pessoas trans nos serviços de saúde ou até mesmo distanciá-las destes. Além disso, percebe-se que o nome social, quando respeitado pelo profissional da saúde, tem potencial de aproximar o profissional do paciente, além de servir como instrumento de encorajamento e empoderamento.
Quando eu comecei a me entender como homem trans e tudo mais, o meu nome antigo começou a me incomodar. O primeiro ponto num atendimento é respeitar o nome social (HT1).
A questão do nome social, ele nos empodera bastante (MT1).
Discussão
Uma barreira importante enfrentada pelas pessoas trans diz respeito a lidar com um nome que faz menção a uma identidade não congruente com a sua própria existência. Nesse sentido, o nome social e a possibilidade de retificação são ferramentas essenciais para a afirmação de gênero. Os relatos dos participantes deste estudo mostram como o nome social ou retificado impacta no processo de entendimento de si mesmo e nas relações que os cercam.
Nesse sentido, o processo de reconhecimento da transexualidade, seja quanto à autoaceitação ou à aceitação social, pode provocar no indivíduo sofrimento psíquico44 Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário (MDSA). Garantia da utilização do nome social para pessoas travestis e transexuais [Internet]. 2016. [acessado 2023 fev 14]. Disponível em: https://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/Folders/cartilha_nome_social.pdf
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. Em contraponto, a autoaceitação e a formação de identidade parecem ter forte impacto na saúde mental, estando associadas à percepção de melhores níveis de qualidade de vida1212 Lima GVA. O reflexo da vitimização no processo de construção de identidade na população LGBT e sua relação com a saúde mental [monografia]. Passo Fundo: Universidade Federal da Fronteira Sul; 2019.. No que diz respeito às pessoas trans, no presente estudo, o nome social emergiu como forte elemento modulador da autoaceitação. Dessa forma, o uso do nome social ou retificado não pode ser entendido apenas como uma garantia de direitos, e sim como forma de validar e consolidar o que a pessoa trans traz sobre si, e de como se apresenta ao mundo1313 Cerqueira TD, Denega AM, Padovani AS. A importância do nome social para autoaceitação e respeito das pessoas "trans". Rev Feminismos 2020; 8(2):26-39..
Em consonância com estudos que sugerem a aceitação familiar como elemento crítico para o sentimento de aceitação1414 Shilo G, Savaya R. Effects of family and friend support on LGB youths' mental health and sexual orientation milestones. Family Relations 2011; 60(3):318-330., os participantes desta pesquisa parecem ter seu processo de autoaceitação bastante atrelado ao apoio e à validação familiar, ainda que muitas vezes este processo seja gradativo e bastante demorado. Foi possível perceber que, mesmo nos casos em que a família apresentou dificuldade de acatar o nome social, eles se sentiram acolhidos por observar o esforço e as tentativas de respeitar a identidade trans.
O contexto familiar também pode ser atravessado por vivências religiosas. Essa relação entre religião, família e laços foi similarmente observada nas pessoas que integraram este estudo. Mesmo havendo participantes vinculados a religiões de matriz africana, que mais frequentemente recebem, aceitam e respeitam a diversidade sexual e de gênero1515 Souza MHT, Pereira PPG. Cuidado com saúde: as travestis de Santa Maria, Rio Grande do Sul. Texto Contexto Enferm 2015; 24(1):146-153., um integrante trouxe em suas vivências a religião evangélica como influenciadora na escolha do nome, pois representava um elemento importante para sua mãe. Nesse sentido, ressalta-se a importância da religião na dinâmica de autoaceitação da identidade de gênero e bem-estar. Contudo, nem todas as instituições assentem em seus espaços a diversidade de gênero existente1616 Nascimento TF, Costa BP. As vivências travestis e transexuais no espaço dos terreiros de cultos afro-brasileiros e de matriz africana. Espaço Cultura 2015; 38:181-204..
Apesar de o nome social e o nome retificado desempenharem papéis extremamente importantes na vida e na autoaceitação das pessoas trans, percebeu-se, que o nome averbado assegura de maneira mais efetiva a identidade destas pessoas por evitar possíveis situações de desconforto ou frustrações, apesar de a carteira social também constituir um documento de suma importância. Nesse sentido, Ballen e Bizetti1717 Ballen KCG, Bizetti LF. Nome civil em contraposição com nome social como (des)serviço a efetividade de direitos na sociedade globalizada [Internet]. [acessado 2023 fev 14]. Disponível em: http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=73ed442a8eafbb12
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defendem que a efetivação dos direitos da pessoa trans se dá pela alteração legislativa e a transferência dessa atribuição e adequação ao Cartório do Registro Civil, e não somente pela definição do nome social.
Hill e colaboradores1818 Hill BJ, Crosby R, Bouris A, Brown R, Bak T, Rosentel K, VandeVusse A, Silverman M, Salazar L. Exploring transgender legal name change as a potential structural intervention for mitigating social determinants of health among transgender women of color. Sex Res Soc Policy 2018; 15(1):25-33. apontam em seu trabalho que a mudança do nome legal tem impacto positivo sobre fatores socioeconômicos frequentemente associados à saúde, como emprego, renda e moradia. Observaram, ainda, notável diferença entre pessoas que já finalizaram o processo de retificação do nome e aquelas ainda em transição, como uma tendência a adiar o acesso aos serviços de saúde. Assim, o presente trabalho vai ao encontro do que aponta o estudo citado, reforçando a importância do nome social não apenas para o acesso, mas para a permanência de pessoas trans em serviços de saúde.
O reconhecimento do nome social, além de ser um auxiliar na autoestima do sujeito autodeclarado transgênero, colabora para o empoderamento na busca e ocupação de espaços sociais, onde antes sofriam represálias e não se sentiam bem-vindos99 Hatje LF, Ribeiro PRC, Magalhães JC. Trans (formar) o nome: alguns efeitos do nome social e da alteração do nome civil na vida de sujeitos trans. Rev Contexto Educ 2019; 34(108):122-143.. Essa evidência foi reforçada no grupo estudado, conforme observado por meio das falas dos participantes acerca do empoderamento, do respeito e da satisfação promovidos e validados pela utilização do nome, seja este social ou já averbado.
Além disso, a análise dos resultados reforça que os profissionais de saúde, de modo geral, encontram-se ainda despreparados para o atendimento à população trans e, como consequência, podemos observar tensionamentos nos atendimentos de saúde. Estudo de Downshen1919 Dowshen N, Lee S, Franklin J, Castillo M, Barg F. Access to medical and mental health services across the HIV care continuum among young transgender women: a qualitative study. Transgender Health 2017; 2(1):81-90. apontou que o ambiente de cuidados de saúde pode gerar desconforto em pessoas trans, sendo que o não respeito ao nome e à forma de tratamento foram pontos importantes nos processos de cuidado. Em consonância, Silva e colegas2020 Silva LKM, Silva ALMA, Coelho AA, Martiniano CS. Uso do nome social no Sistema Único de Saúde: elementos para o debate sobre a assistência prestada a travestis e transexuais. Physis 2017; 27(3):835-846. trazem o nome social como a senha de acesso de travestis e transexuais ao Sistema Único de Saúde.
Guimarães2121 Guimarães NP, Sotero RL, Cola JP, Antonio S, Galavote HS. Avaliação da implementação da Política Nacional de Saúde Integral à população LGBT em um município da região Sudeste do Brasil. RECIIS 2020; 14(2):372-385. apontou que a maioria dos profissionais demonstra ser contrária aos preconceitos historicamente disseminados, inclusive estimulando outros funcionários das unidades de saúde a cumprirem as leis que abordam o nome social, contribuindo para a efetivação da relação profissional-usuário. Entretanto, neste estudo, quando questionados acerca do suporte percebido ao receberem atendimento odontológico, foi possível observar certo despreparo quanto ao tratamento e ao uso do nome social, visto que foi necessário à mulher trans participante questionar o profissional sobre o nome utilizado. Mais uma vez, fica evidente que os profissionais de saúde devem ser devidamente treinados para prestar o suporte adequado a essa população1919 Dowshen N, Lee S, Franklin J, Castillo M, Barg F. Access to medical and mental health services across the HIV care continuum among young transgender women: a qualitative study. Transgender Health 2017; 2(1):81-90..
A pouca diversidade entre os grupos identitários trans que compuseram esse estudo representa uma limitação. No entanto, os achados contribuem para um melhor entendimento de como as particularidades das histórias das pessoas impactam na construção do próprio nome. Esse recurso constitui uma importante ferramenta para a inserção dos sujeitos trans nos diversos espaços sociais e representa um elemento essencial para a afirmação de gênero.
Conclusão
O estudo reforçou a importância do respeito ao nome como forma de contribuição para a afirmação de gênero de sujeitos trans. O nome é atravessado pelas vivências, individualidades e valores das pessoas, relacionando-se com a transexualidade no campo do reconhecimento do sujeito enquanto humano incongruente à cisgeneridade e os impactos que esta incongruência produz na relação entre este sujeito e a sociedade cisgênera. O uso adequado do nome, bem como dos pronomes respectivos, significa muito além do respeito a uma legislação: é considerar e valorizar as possibilidades diversas da existência humana. Ainda assim, é preciso esforço conjunto entre o poder público e a comunidade para que a legislação seja cumprida e as pessoas trans sejam cada vez mais inseridas nos espaços sociais de forma acolhedora. E que o uso adequado de seus nomes sociais contribua para a aceitação e o respeito à pluralidade e para a validação identitária.
Referências
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1Reisner SL, Conron KJ, Tardiff LA, Jarvi S, Gordon AR, Austin SB. Monitoring the health of transgender and other gender minority populations: validity of natal sex and gender identity survey items in a US national cohort of young adults. BMC Public Health 2014; 14:1224.
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2Valentine D. Imagining transgender: an ethnography of a category. Durham: Duke University Press 2007.
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3Jesus JG. Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e termos [Internet]. 2012. [acessado 2023 fev 14]. Disponível em: https://www.scribd.com/document/87846526/Orientacoes-sobre-Identidade-de-Genero-Conceitos-e-Termos
» https://www.scribd.com/document/87846526/Orientacoes-sobre-Identidade-de-Genero-Conceitos-e-Termos -
4Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário (MDSA). Garantia da utilização do nome social para pessoas travestis e transexuais [Internet]. 2016. [acessado 2023 fev 14]. Disponível em: https://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/Folders/cartilha_nome_social.pdf
» https://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/Folders/cartilha_nome_social.pdf -
5Brasil. Presidência da República. Decreto nº 8.727, de 28 de abril de 2016. Dispõe sobre o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional. Diário Oficial da União 2016; 29 abr.
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6Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 1.820, de 13 de agosto de 2009. Dispõe sobre os direitos e deveres dos usuários da saúde. Diário Oficial da União 2016; 14 ago.
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7Brasil. Presidência da República. Decreto nº 10.977, de 23 de fevereiro de 2022. Regulamenta a Lei nº 7.116, de 29 de agosto de 1983, para estabelecer os procedimentos e os requisitos para a expedição da Carteira de Identidade por órgãos de identificação dos Estados e do Distrito Federal, e a Lei nº 9.454, de 7 de abril de 1997, para estabelecer o Serviço de Identificação do Cidadão como o Sistema Nacional de Registro de Identificação Civil. Diário Oficial da União 2022; 15 fev.
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Financiamento
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
Editores-chefes:
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
02 Fev 2024 -
Data do Fascículo
Fev 2024
Histórico
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Recebido
10 Mar 2023 -
Aceito
10 Maio 2023 -
Publicado
12 Maio 2023