Resumo
O objetivo do artigo é analisar os fatores associados à piora da autoavaliação da saúde (AAS) de brasileiras que residiam com idosos com dependência funcional (IDF) durante a primeira onda da pandemia de COVID-19. Utilizou-se a ConVid - Pesquisa de Comportamentos como fonte de dados. Para a análise comparou-se o grupo de mulheres que moravam com IDF com aquelas que moravam com idosos sem dependência. Estimou-se modelos hierárquicos de razão de prevalência (RP) para testar as associações entre as características sociodemográficas, mudanças na renda, atividades de rotina e saúde na pandemia, tendo como desfecho a piora da AAS. A piora da AAS foi mais frequente no grupo de mulheres que moravam com IDF. Após o ajuste dos fatores hierárquicos, ser negra (RP=0,76; IC95% 0,60-0,96) e ter renda per capita menor que um salário-mínimo (RP=0,78; IC95% 0,64-0,96) foram fatores inversamente associados à piora da AAS entre corresidentes de IDF. O estado de ânimo ruim, o surgimento/piora de problema de coluna, o sono afetado, a AAS ruim, o sentimento de solidão e a dificuldade na realização de atividades rotineiras durante a pandemia foram fatores positivamente associados. O estudo demonstra que morar com IDF esteve associado à piora da saúde das brasileiras na pandemia, especialmente entre aquelas em posição de maior status social.
Palavras-chave:
Cuidadores; Idoso Fragilizado; COVID-19
Abstract
The objective is to analyze the factors associated with the worsening of the self-rated health (SRH) of Brazilian women who live with elderly people with functional dependence (EFD) during the first wave of COVID-19. ConVid - Behavior Research was used as a data source. For the analysis, the group of women who lived with EFD was compared with those who lived with the elderly without any dependence. Hierarchical prevalence ratio (PR) models were estimated to test the associations between sociodemographic characteristics, changes in income, routine activities and health in the pandemic, with the outcome of worsening SRH. This worsening was more frequent in the group of women living with EFD. After adjusting for hierarchical factors, being black (PR=0.76; 95%CI 0.60-0.96) and having a per capita income lower than minimum wage (PR=0.78; 95%CI 0.64- 0.96) were shown to be protective factors for SRH worsening among EFD co-residents. Indisposition, emergence/worsening of back problems, affected sleep, poor SRH, feeling loneliness and difficulty in carrying out routine activities during the pandemic were positively associated factors. The study demonstrates that living with EFD was associated with a worsening in the health status of Brazilian women during the pandemic, especially among those of higher social status.
Key words:
Caregivers; Frail Elderly; COVID-19
Introdução
A pandemia de COVID-19 representa para as pessoas idosas uma ameaça à sobrevivência11 Barbosa IR, Galvão MHR, Souza TA, Gomes SM, Medeiros AA, Lima KC. Incidência e mortalidade por COVID-19 na população idosa brasileira e sua relação com indicadores contextuais: um estudo ecológico. Rev Bras Geriatr Gerontol 2020; 23(1):e200171. e à qualidade de vida22 Romero DE, Muzy J, Damacena GN, Souza NA, Almeida WS, Szwarcwald CL, Malta DC, Barros MBA, Souza Júnior PRB, Azevedo LO, Gracie R, Pina MF, Lima MG, Machado ÍE, Gomes CS, Werneck AO, Silva DRP. Idosos no contexto da pandemia da COVID-19 no Brasil: efeitos nas condições de saúde, renda e trabalho. Cad Saude Publica 2021; 37(3):e00216620.. Aqueles que por múltiplas causas vivem com a força, resistência e função fisiológica reduzidas, em situação de fragilidade, estão expostos a um risco ainda maior de desenvolver formas graves da doença33 Hewitt J, Carter B, Vilches-Moraga A, Quinn TJ, Braude P, Verduri A, Pearce L, Stechman M, Short R, Price A, Collins JT, Bruce E, Einarsson A, Rickard F, Mitchell E, Holloway M, Hesford J, Barlow-Pay F, Clini E, Myint PK, Moug SJ, McCarthy K; COPE Study Collaborators. The effect of frailty on survival in patients with COVID-19 (COPE): a multicentre, European, observational cohort study. Lancet Public Health 2020; 5(8):e444-e451.. A proximidade física como fator de contágio44 Aquino EML, Silveira IH, Pescarini JM, Aquino R, Souza-Filho JA, Rocha AS, Ferreira A, Victor A, Teixeira C, Machado DB, Paixão E, Alves FJO, Pilecco F, Menezes G, Gabrielli L, Leite L, Almeida MCC, Ortelan N, Fernandes QHRF, Ortiz RJF, Palmeira RN, Junior EPP, Aragão E, Souza LEPF, Netto MB, Teixeira MG, Barreto ML, Ichihara MY, Lima RTRS. Medidas de distanciamento social no controle da pandemia de COVID-19: potenciais impactos e desafios no Brasil. Cien Saude Colet 2020; 25(Supl. 1):2423-2446. e a rápida disseminação do vírus exigiram que os cuidados prestados à população de idosos fragilizados fossem intensificados55 Lightfoot E, Moone RP. Caregiving in Times of Uncertainty: Helping Adult Children of Aging Parents Find Support during the COVID-19 Outbreak. J Gerontol Soc Work 2020; 63(6-7):542-552., especialmente na primeira onda da pandemia, quando o conhecimento limitado da doença requeria maior cautela66 World Health Organization (WHO). WHO Director-General's opening remarks at the media briefing on COVID-19-11 March 2020 [Internet]. 2020 [cited 12 jan 2021]. Available from: https://www.who.int/director-general/speeches/detail/who-director-general-s-opening-remarks-at-the-media-briefing-on-covid-19---11-march-2020.
https://www.who.int/director-general/spe...
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As orientações de organizações internacionais de saúde para reduzir o contato físico entre as pessoas implicou desafios para os familiares que residem com pessoas idosas que dependem de cuidados, como: i) o receio de contagiar o ente familiar de maior vulnerabilidade77 Schimmenti A, Billieux J, Starcevic V. The four horsemen of fear: An integrated model of understanding fear experiences during the COVID-19 pandemic. Clinical Neuropsychiatry 2020; 17(2):41.; ii) a perda de apoio de ajudantes externos ao lar88 Archer J, Reiboldt W, Claver M, Fay J. Caregiving in Quarantine: Evaluating the Impact of the Covid-19 Pandemic on Adult Child Informal Caregivers of a Parent. Gerontol Geriatr Med 2021; 7:2333721421990150.,99 Romero DE, Maia LR, Muzy J, Andrade N, Szwarcwald CL, Groisman D, Souza Júnior PRB. O cuidado domiciliar de idosos com dependência funcional no Brasil: desigualdades e desafios no contexto da primeira onda da pandemia de COVID-19. Cad Saude Publica 2022; 38:e00216821.; iii) a dificuldade de acesso à bens essenciais, derivada da adoção do isolamento no domicílio1010 Ribeiro AP, Moraes CL, Sousa ER, Giacomin K. O que fazer para cuidar das pessoas idosas e evitar as violências em época de pandemia? Abrasco GT Violencia Saude 2020; (n. esp.):1-5. e da falta de recursos materiais em um cenário de crise econômica1111 Bennet MR, Zhang Y, Yeandle S. Caring and COVID-19: hunger and mental wellbeing. Sheffield: CIRCLE, University of Sheffield; 2020.; iv) o aumento dos conflitos familiares1212 Larson ME, Chavez JV, Behar-Zusman V. Family functioning in an international sample of households reporting adult caregiving during the COVID-19 pandemic. Families Systems Health 2021; 39(4):609-617.; v) o declínio cognitivo1313 Noguchi T, Kubo Y, Hayashi T, Tomiyama N, Ochi A, Hayashi H. Social Isolation and Self-Reported Cognitive Decline Among Older Adults in Japan: A Longitudinal Study in the COVID-19 Pandemic. J Am Med Dir Assoc 2021; 22(7):1352-1356.e2. e a piora da funcionalidade1414 Machado CLF, Pinto RS, Brusco CM, Cadore EL, Radaelli R. COVID-19 pandemic is an urgent time for older people to practice resistance exercise at home. Exp Gerontol 2020; 141:111101. da pessoa idosa, devido ao isolamento social e aos demais estressores supracitados.
Desde antes da pandemia, o cuidado de pessoas idosas que requerem ajuda para a realização de atividades da vida cotidiana (dependentes funcionais1515 Organização Mundial da Saúde (OMS). CIF: classificação internacional de funcionalidade, incapacidade e saúde. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; 2003.) constituía preocupação no campo da saúde pública1616 Giacomin KC, Duarte YAO, Camarano AA, Nunes DP, Fernandes D. Cuidado e limitações funcionais em atividades cotidianas - ELSI-Brasil. Rev Saude Publica 2019; 52(Supl. 2):9s.,1717 Lima-Costa MF, Peixoto SV, Malta DC, Szwarcwald CL, Mambrini JVM. Cuidado informal e remunerado aos idosos no Brasil (Pesquisa Nacional de Saúde, 2013). Rev Saude Publica 2017; 51(Supl. 1):6s.. Isso ocorre porque, no geral, o cuidar demanda quantidade significativa de tempo, dedicação e recursos dos prestadores de cuidados1818 Pereira MG, Carvalho H. Qualidade de vida, sobrecarga, suporte social, ajustamento conjugal e morbilidade psicológica em cuidadores de idosos com dependência funcional. Temas Psicol 2012; 20(2):369-384.. No âmbito familiar, aqueles que residem com um parente ou amigo dependente, com frequência se preocupam com a possibilidade de emergências médicas, realizam demasiado esforço físico com atividades relacionadas ao cuidado, têm o sono e as finanças afetadas e estão expostos a diversos outros fatores que afetam a qualidade de vida1919 Hearson B, McClement S, McMillan DE, Harlos M. Sleeping with One Eye Open: The Sleep experience of Family Members Providing Palliative Care at Home. J Palliat Care 2011; 27(2):69-78.,2020 Washington KT, Oliver DP, Smith JB, McCrae CS, Balchandani SM, Demiris G. Sleep Problems, Anxiety, and Global Self-Rated Health Among Hospice Family Caregivers. Am J Hosp Palliat Care 2018; 35(2):244-249..
Tem-se evidências da pior Autoavaliação da Saúde (AAS) de cuidadores familiares de idosos com dependência funcional (IDF)2121 von Känel R, Mausbach BT, Dimsdale JE, Ziegler MG, Mills PJ, Allison MA, Patterson TL, Ancoli-Israel S, Grant I. Refining caregiver vulnerability for clinical practice: determinants of self-rated health in spousal dementia caregivers. BMC Geriatr 2019; 19(1):18.,2222 Xian M, Xu L. Social support and self-rated health among caregivers of people with dementia: The mediating role of caregiving burden. Dementia 2020; 19(8):2621-2636. e também, com menor frequência, do efeito na saúde de familiares que residem com IDF, independentemente de ser o cuidador principal2323 Abdollahpour I, Nedjat S, Noroozian M, Salimi Y, Majdzadeh R. Caregiver Burden: The Strongest Predictor of Self-Rated Health in Caregivers of Patients with Dementia. J Geriatr Psychiatry Neurol 2014; 27(3):172-180.. A AAS, embora não possa ser utilizada para avaliações de saúde à nível clínico, possui a capacidade de medir simultaneamente aspectos físicos, sociais e mentais da saúde2424 Burström B, Fredlund P. Self rated health: Is it as good a predictor of subsequent mortality among adults in lower as well as in higher social classes? J Epidemiol Community Health 2001; 55(11):836-840.. Em decorrência disso, tem sido reconhecida como preditora da mortalidade2525 McGee DL, Liao Y, Cao G, Cooper RS. Self-reported health status and mortality in a multiethnic US cohort. Am J Epidemiol 1999; 149(1):41-46., morbidade2626 Vyas S, Kumaranayake L. Constructing socio-economic status indices: how to use principal components analysis. Health Policy Plan 2006; 21(6):459-468., problemas futuros de saúde2525 McGee DL, Liao Y, Cao G, Cooper RS. Self-reported health status and mortality in a multiethnic US cohort. Am J Epidemiol 1999; 149(1):41-46. e da qualidade de vida2727 Fayers PM, Sprangers MA. Understanding self-rated health. Lancet 2002; 359(9302):187-188..
A exposição aos efeitos negativos relacionados ao cuidado de familiares de IDF se dá de forma desigual entre grupos econômicos e sociais1616 Giacomin KC, Duarte YAO, Camarano AA, Nunes DP, Fernandes D. Cuidado e limitações funcionais em atividades cotidianas - ELSI-Brasil. Rev Saude Publica 2019; 52(Supl. 2):9s.,2828 José JS. A divisão dos cuidados sociais prestados a pessoas idosas: complexidades, desigualdades e preferências. Sociol Problemas Praticas 2012; 69:63-85.
29 Villalobos Dintrans P. Informal caregivers in Chile: the equity dimension of an invisible burden. Health Policy Planning 2019; 34(10):792-799.
30 Ceccon RF, Vieira LJES, Brasil CCP, Soares KG, Portes VM, Garcia Júnior CAS, Schneider IJC, Carioca AAF. Envelhecimento e dependência no Brasil: características sociodemográficas e assistenciais de idosos e cuidadores. Cien Saude Colet 2021; 26(1):17-26.-3131 Campos PFS. Cuidadoras negras do Brasil. actacientifica 2014; 21(3):11-20.. Há evidências de que pessoas de menores estratos de renda2828 José JS. A divisão dos cuidados sociais prestados a pessoas idosas: complexidades, desigualdades e preferências. Sociol Problemas Praticas 2012; 69:63-85. e pessoas negras3131 Campos PFS. Cuidadoras negras do Brasil. actacientifica 2014; 21(3):11-20. estejam mais suscetíveis à tais efeitos. No entanto, a desigualdade mais referenciada no cuidado familiar diz respeito ao gênero, uma vez que as responsabilidades do cuidar recaem com maior peso sobre as mulheres1616 Giacomin KC, Duarte YAO, Camarano AA, Nunes DP, Fernandes D. Cuidado e limitações funcionais em atividades cotidianas - ELSI-Brasil. Rev Saude Publica 2019; 52(Supl. 2):9s.,2828 José JS. A divisão dos cuidados sociais prestados a pessoas idosas: complexidades, desigualdades e preferências. Sociol Problemas Praticas 2012; 69:63-85.
29 Villalobos Dintrans P. Informal caregivers in Chile: the equity dimension of an invisible burden. Health Policy Planning 2019; 34(10):792-799.-3030 Ceccon RF, Vieira LJES, Brasil CCP, Soares KG, Portes VM, Garcia Júnior CAS, Schneider IJC, Carioca AAF. Envelhecimento e dependência no Brasil: características sociodemográficas e assistenciais de idosos e cuidadores. Cien Saude Colet 2021; 26(1):17-26.. No Brasil, cerca de 72,1% dos IDF tem como principal cuidadora uma familiar mulher, segundo pesquisa baseada no Estudo Longitudinal de Saúde do Idoso (ELSI-Brasil), realizado entre 2015 e 20161616 Giacomin KC, Duarte YAO, Camarano AA, Nunes DP, Fernandes D. Cuidado e limitações funcionais em atividades cotidianas - ELSI-Brasil. Rev Saude Publica 2019; 52(Supl. 2):9s.. Tais desigualdades se devem à conformação histórica da cultura do cuidado que, permeada de relações fortemente hierárquicas, tornou-se invisibilizada e subvalorizada3131 Campos PFS. Cuidadoras negras do Brasil. actacientifica 2014; 21(3):11-20.,3232 Okin SM. Gênero, o público e o privado. Rev Estud Fem 2008; 16:305-332..
A presença de um suporte social adequado é capaz de mitigar a carga e os efeitos negativos do cuidar em familiares que convivem com IDF3333 del-Pino-Casado R, Frías-Osuna A, Palomino-Moral PA, Ruzafa-Martínez M, Ramos-Morcillo AJ. Social support and subjective burden in caregivers of adults and older adults: A meta-analysis. PLoS One 2018; 13(1):e0189874., especialmente em situações de emergências humanitárias, como numa pandemia88 Archer J, Reiboldt W, Claver M, Fay J. Caregiving in Quarantine: Evaluating the Impact of the Covid-19 Pandemic on Adult Child Informal Caregivers of a Parent. Gerontol Geriatr Med 2021; 7:2333721421990150.. No entanto, a carência de redes de suporte social para o cuidado é uma característica marcante do Brasil3434 Camarano AA. Cuidados para a população idosa e seus cuidadores: demandas e alternativas. Nota Tecnica Ipea 2020; 64:20., ainda que a Constituição Federal disponha que o cuidado da pessoa idosa é responsabilidade compartilhada entre a família, a sociedade e o Estado (Artigo 230). Giacomin et al.1616 Giacomin KC, Duarte YAO, Camarano AA, Nunes DP, Fernandes D. Cuidado e limitações funcionais em atividades cotidianas - ELSI-Brasil. Rev Saude Publica 2019; 52(Supl. 2):9s. demonstram, por meio dos resultados da ELSI-Brasil (2015-2016), que 94% dos IDF no país são cuidados por um familiar.
Evidências da intensificação da carga do cuidado entre familiares que residem com IDF durante a pandemia no Brasil foram mostradas por estudo de Romero et al.99 Romero DE, Maia LR, Muzy J, Andrade N, Szwarcwald CL, Groisman D, Souza Júnior PRB. O cuidado domiciliar de idosos com dependência funcional no Brasil: desigualdades e desafios no contexto da primeira onda da pandemia de COVID-19. Cad Saude Publica 2022; 38:e00216821.. Entretanto, ainda são escassas pesquisas que analisem a qualidade de vida e saúde das mulheres familiares de IDF no contexto da pandemia, tendo em vista que elas ainda são as principais responsáveis pelo cuidado no âmbito domiciliar1616 Giacomin KC, Duarte YAO, Camarano AA, Nunes DP, Fernandes D. Cuidado e limitações funcionais em atividades cotidianas - ELSI-Brasil. Rev Saude Publica 2019; 52(Supl. 2):9s..
Diante do exposto, este artigo tem como objetivo analisar a piora na autoavaliação da saúde de mulheres que residem com IDF durante a primeira onda da pandemia de COVID-19, considerando as características sociodemográficas e as mudanças contextuais associadas.
Metodologia
Fonte de dados e amostra
A ConVid - Pesquisa de Comportamentos é um inquérito de saúde de corte-transversal realizado em âmbito nacional durante a primeira etapa da pandemia, entre 24 de abril e 24 de maio de 2020, sob coordenação da Fundação Oswaldo Cruz. A forma de coleta do inquérito foi através de questionário virtual de autopreenchimento através de celular ou computador com acesso à internet. O projeto foi aprovado pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) em 19 de abril de 2020, parecer nº 3.980.277. Os critérios de inclusão para participação na pesquisa foram ter 18 anos ou mais no momento do preenchimento e residir no território brasileiro. Foram realizados procedimentos de pós-estratificação para obter uma amostra representativa da população. A amostragem foi realizada pelo método “bola de neve virtual” atingindo ao final 45.161 pessoas. Maiores detalhes encontram-se disponíveis na publicação sobre a metodologia3535 Szwarcwald CL, Souza-Júnior PRB, Damacena GN, Malta DC, Barros MBA, Romero DE, Almeida WS, Azevedo LO, Machado ÍE, Lima MG, Werneck AO, Silva DRP, Gomes CS, Ferreira APS, Gracie R, Pina MF. ConVid - Pesquisa de Comportamentos pela Internet durante a pandemia de COVID-19 no Brasil: concepção e metodologia de aplicação. Cad Saude Publica 2021; 37(3):268320..
Para o presente estudo foram utilizados três critérios de inclusão: ser do sexo feminino, residir com pelo menos uma pessoa idosa e morar em domicílios com pelo menos duas pessoas. Com esse último critério pretendeu-se excluir os casos de idosos que moravam sozinhos. Ao final, 7.914 participantes foram selecionadas.
Variáveis
Como estratégia de análise comparou-se o grupo de mulheres que moravam com IDF com o de mulheres que moravam com idosos com independência funcional (IIF). A identificação de residentes com pessoas idosas foi obtida a partir da pergunta: “Quantos moradores são idosos (60 anos ou mais de idade)?”. A identificação de residentes com IDF foi obtida a partir da resposta positiva à pergunta: “Algum dos moradores idosos do domicílio precisa de ajuda para realizar as atividades de vida diária, tais como comer, se vestir, ir ao banheiro, se locomover em casa, tomar banho?” (sim ou não). As demais foram consideradas corresidentes de IIF.
O desfecho do estudo foi a piora da AAS durante a pandemia de COVID-19, obtido a partir da pergunta: “Você acha que a pandemia causou mudanças na sua saúde?” (melhorou; permaneceu o mesmo; piorou um pouco; piorou muito). As opções de resposta “piorou um pouco” e “piorou muito” foram consideradas para o desfecho. A piora da AAS foi utilizada como um indicador proxy das mudanças no estado de saúde e na qualidade de vida das entrevistadas.
As variáveis incluídas para análise dos fatores associados ao desfecho foram divididas em três grupos: (1) sociodemográficas, (2) mudanças socioeconômicas e nas atividades de rotina na pandemia, e (3) efeito da pandemia na saúde.
(1) Variáveis sociodemográficas: A raça/cor foi categorizada em branca ou negra, essa última composta por quem declarou ser preto ou pardo. Pessoas que responderam a opção amarelo ou indígena corresponderam a 1% da amostra e não foram consideradas para a análise dessa variável. A idade foi categorizada em dois grupos, sendo eles os menores de 60 anos e os com 60 anos ou mais. A renda per capita domiciliar em salários mínimos (SM) foi obtida a partir da questão: “Antes do início da pandemia do novo coronavírus, qual era a renda total do domicílio?”. A resposta à essa pergunta foi dividida pelo total de membros do domicílio e classificada nas faixas: “menos de 1 SM” e “1 ou mais SM”. A variável densidade domiciliar foi definida a partir da pergunta: “No seu domicílio, qual é o número de moradores?”, sendo agrupada nas categorias “mora com uma pessoa” ou “mora com duas pessoas ou mais”.
(2) Variáveis de mudanças socioeconômicas e nas atividades de rotina na pandemia: A mudança no grau de dificuldade na realização das atividades de rotina foi obtida através da pergunta: “No período da pandemia, que grau de dificuldade você teve para realizar as atividades de rotina?”, categorizada em “muita dificuldade” (muito) e “não muita” (nenhum, um pouco e moderado). O impacto da pandemia na renda foi obtido a partir da pergunta: “Como a pandemia afetou a renda da família?”, que foi categorizada em “muito afetada” (diminuiu muito) ou “não muito afetada” (não diminuiu ou diminuiu pouco). As mudanças no trabalho doméstico foram obtidas a partir da pergunta: “A pandemia afetou/modificou a quantidade e tipo do seu trabalho doméstico?”, categorizada em “não aumentou muito” (persistiu igual, diminuiu e aumentou) e “aumentou muito” (aumentou).
(3) Variáveis sobre os efeitos da pandemia na saúde: O estado de ânimo ruim foi obtido a partir da combinação de duas perguntas, sendo elas: “No período da pandemia, com que frequência você se sentiu triste ou deprimido(a)?” e “No período da pandemia, com que frequência você se sentiu ansioso(a) ou nervoso(a)?”. Aqueles que responderam “muitas vezes” ou “sempre” a pelo menos uma das perguntas foram categorizados em “muitas vezes/sempre” e aqueles que responderam “nunca” ou “poucas vezes” a ambas foram categorizados em “pouco ou nunca”. O sentimento de solidão foi obtido a partir da pergunta: “No período da pandemia, com que frequência você se sentiu isolado(a) dos seus familiares ou amigos próximos?”, categorizada em “nunca ou poucas vezes” (nunca ou poucas vezes) e “muitas vezes/sempre” (muitas vezes ou sempre). O impacto da pandemia no sono foi obtido a partir da pergunta: “A pandemia afetou a qualidade do seu sono?”, categorizada em “não afetou” (não afetou, continuo dormindo bem ou continuei tendo os mesmos problemas de sono) e em “piorou na pandemia” (comecei a ter problemas de sono ou eu já tinha problemas de sono e eles pioraram bastante). Para avaliar o estado geral de saúde foi utilizada a pergunta: “No geral, como você avalia sua saúde?”, categorizada em “excelente ou boa” (excelente ou boa) e “regular à péssima” (moderada, ruim ou péssima). O surgimento ou piora do problema na coluna foi obtido a partir das questões “Durante a pandemia, com as mudanças nas suas atividades habituais, você passou a ter alguma dor nas costas ou na coluna?”, categorizada em “não” (não) e “sim” (sim, um pouco ou sim, bastante) e “Durante a pandemia, as mudanças nas suas atividades habituais afetaram a dor de coluna?”, categorizada em “piorou” (aumentou um pouco ou aumentou muito) e “não piorou” (permaneceu igual ou diminuiu).
Análise
Estimou-se a proporção de mulheres que moravam com IDF e com IIF e a distribuição percentual desses grupos, segundo as variáveis sociodemográficas, de mudanças socioeconômicas, mudanças nas atividades de rotina na pandemia e de efeitos da pandemia na saúde (Tabela 1). A Tabela 2 apresenta a prevalência da piora da AAS entre mulheres que moravam com IDF e com IIF, segundo as mesmas variáveis da Tabela 1. Para todas as estimativas foram calculados os intervalos de confiança de 95% e o teste de independência entre linhas e colunas (qui-quadrado de Pearson).
Para analisar os fatores associados à piora na AAS na pandemia, estimou-se a razão da prevalência (RP) bivariada bruta do relato de piora na AAS, segundo mulheres que moravam com IDF ou não (IFF), controladas por idade (Tabela 3).
Em seguida, calculou-se modelos hierárquicos de RP em três estágios para mulheres que moravam com IDF (Tabela 4) e com IIF (Tabela 5). No primeiro estágio foram contempladas variáveis sociodemográficas, no segundo estágio, variáveis de mudanças socioeconômicas e das atividades de rotina na pandemia e, no terceiro estágio, variáveis de efeito da pandemia na saúde.
Os modelos foram realizados a partir da regressão de Poisson com variância robusta, utilizando o intervalo de confiança a 95% e nível de significância de 5% (ou 0,05). A utilização de variáveis no modelo de três estágios que não foram significativas no modelo bivariado foi feita para identificar a variação da relação dessas variáveis com o desfecho e com os fatores intrínsecos à pandemia.
As análises foram realizadas no pacote estatístico SPSS 21, considerando o peso amostral obtido para calibração da amostra.
Resultados
Entre o total de mulheres adultas que moravam com idosos, 9,3% (IC95% 8,7-9,9) moravam com IDF. A maioria das que moravam com IDF tinham menos de 60 anos (66,2%; IC95% 62,8-69,6) e recebiam menos de um SM (59,2%; IC95% 55,4-63,0). Mais de 80% delas viviam com duas ou mais pessoas no domicílio (81,4%; IC95% 78,6-84,2) (Tabela 1).
Com a chegada da pandemia, aproximadamente 22% das mulheres que moravam com IDF sentiram muita dificuldade para realizar atividades de rotina (21,9%; IC95% 18,9-24,9). Entre quem morava com idosos independentes a proporção foi ligeiramente inferior (18,3%; IC95% 17,4-19,2). Um terço das mulheres que moravam com IDF teve a renda muito afetada na pandemia (34,0%; IC95% 30,6-37,4), valor superior ao das mulheres que moravam com IIF (27,0%; IC95% 26,0-28,0).
O estado de ânimo constantemente ruim teve maior proporção entre mulheres que viviam com IDF (67,8%; IC95% 64,4-71,2) em relação às que viviam com IIF (59,1%; IC95% 58,0-60,2). O sentimento de solidão foi semelhante entre os grupos de mulheres analisados. A piora no sono atingiu mais as mulheres que moravam com IDF (58,7%; IC95% 55,1-62,3) do que as que residiam com IIF (46,2%; IC95% 45,0-47,4).
O aumento acentuado do trabalho doméstico (79,0%; IC95% 76,0-82,0) também foi mais frequente entre mulheres que moravam com IDF, em relação às que não moravam (65,8%; IC95% 64,7-66,9). Da mesma forma, a proporção de mulheres com AAS regular à péssima foi superior entre quem morava com IDF (45,9%; IC95% 42,3-49,5), em relação a quem não morava (IIF) (29,7%; IC95% 28,6-30,8). O problema de coluna passou piorou ou passou a afetar 67,1% das mulheres que moravam com IDF (IC95% 63,7-70,5) e 49,7% das que moravam com IIF (IC95% 48,5-50,9) (Tabela 1).
A prevalência da piora na AAS entre mulheres que moravam IDF ou IIF, segundo características sociodemográficas e de mudanças contextuais devido à pandemia, foi apresentada na Tabela 2. Entre as que moravam com IDF, 40,3% (IC95% 36,7-43,9) tiveram piora da percepção de sua saúde com a pandemia, já entre as que moravam com IIF, esse percentual foi de 29,6% (IC95% 28,5-30,7).
Em geral, encontrou-se prevalências de piora da AAS mais altas no grupo de pessoas que moravam com IDF. A prevalência de piora na AAS entre mulheres que moravam com IDF foi mais alta entre quem teve muita dificuldade para realizar as atividades de rotina (69,7%; IC95% 52,3-82,8), renda muito afetada na pandemia (65,2%; IC95% 59,3-71,2), aumento do trabalho doméstico (44,4%; IC95% 40,4-48,5), estado de ânimo frequentemente ruim (48,3%; IC95% 43,9-52,8), piora no sono (57,9%; IC95% 53,2-62,6), AAS regular à péssima (60,4%; IC95% 55,1-65,7) e quem passou a ter ou agravou problema de coluna preexistente (54,0%; IC95% 49,5-58,4) (Tabela 2).
Entre as que moravam apenas com IIF, todas as variáveis apresentadas foram significativamente associadas à prevalência do relato de piora da AAS (Tabela 2).
Nota-se, a partir dos resultados apresentados no modelo de razão de prevalência bivariada (Tabela 3), que as características sociodemográficas foram associadas à piora da AAS na população de mulheres que residiam com idosos independentes (IIF), mas não se mostraram associadas entre mulheres que moravam com IDF. Entre aquelas que residiam com um IIF, ter menos de 60 anos (RP=1,67; IC95% 1,06-1,40), ser negra (RP=1,31; IC95% 1,21-1,41) e ter menos de um SM de renda per capita familiar (RP=1,20; IC95% 1,10-1,30) foram características associadas ao desfecho. Aquelas que residiam em domicílios com maior densidade tiveram sua saúde menos impactada (RP=0,82; IC95% 0,76-0,89).
O aumento da dificuldade para a realização de atividades cotidianas e prejuízos à renda e às condições de saúde na pandemia, estiveram fortemente associados à piora da AAS em ambos os grupos analisados, com exceção do sentimento de solidão, que não mostrou associação entre as mulheres corresidentes de IDF.
As variáveis mais associadas entre mulheres que residiam com IDF, em relação às que residiam com IIF, foram: o agravamento ou surgimento de problema de coluna (RP=4,92; IC95% 3,32-7,29 e RP=2,01; IC95% 1,85-2,19, respectivamente), a renda muito afetada (RP=2,43; IC95% 2,02-2,92 e RP=1,28; IC95% 1,18-1,38, respectivamente), a dificuldade na realização das atividades de rotina (RP=2,12; IC95% 1,80-2,51 e RP=1,78; IC95% 1,65-1,92, respectivamente) e o aumento do trabalho doméstico (RP=1,65; IC95% 1,22-2,22 e RP=1,50; IC95% 1,37-1,64, respectivamente).
Estiveram mais fortemente associadas entre aquelas que residiam com IIF, em relação às que residiam com IDF, as variáveis de estado de ânimo ruim, sono afetado e a AAS.
Na Tabela 4 são apresentados os resultados do modelo hierárquico para o grupo de mulheres que residiam com IDF. Duas variáveis sociodemográficas que não apresentavam associação no primeiro estágio do modelo, passaram a apresentar associação quando consideradas as mudanças trazidas pela pandemia, sendo elas a raça/cor (a partir do segundo estágio) e a renda per capita domiciliar em SM (no último estágio). Ser negra (RP=0,76; IC95% 0,60-0,96) e ter menos de 1 SM de renda per capita (RP=0,78; IC95% 0,64-0,96) mostraram-se fatores inversamente associados à piora da AAS.
O aumento do trabalho doméstico na pandemia, que não havia demonstrado associação no estágio dois do modelo, apresentou associação no sentido inverso (RP=0,77; IC95% 0,60-0,98) quando controlado pelos efeitos da pandemia na saúde. Os fatores mais associados ao desfecho foram o estado de ânimo ruim (RP=2,91; IC95% 1,64-5,14), a piora ou surgimento de problema de coluna (RP=1,95; IC95% 1,24-3,06), o sono afetado (RP=1,73; IC95% 1,32-2,27) e a AAS (RP=1,71; IC95% 1,39-2,11). Sentir-se isolado, ter grande dificuldade de realização das atividades diárias e a renda muito afetada na pandemia apresentaram associações, embora sejam mais fracas (menor que 1,5). A idade e a densidade domiciliar não foram associadas ao desfecho.
Na Tabela 5 são apresentados os resultados do modelo hierárquico para a população de mulheres que residiam com IIF. No primeiro e no segundo estágio do modelo, todas as variáveis mostraram-se associadas. Quando considerado os efeitos da pandemia na saúde (estágio três), a associação com a renda domiciliar per capita e com a dificuldade de realização de atividades de rotina perderam significância. Além disso, a renda muito afetada na pandemia inverteu o sentido da associação. Os fatores mais associados ao desfecho no último estágio do modelo foram a AAS (RP=2,42; IC95% 2,22-2,63), o estado de ânimo ruim (RP=1,98; IC95% 1,73-2,27) e o sono afetado (RP=1,67; IC95% 1,51-1,85). As demais variáveis apresentaram associações mais fracas (RP<1,5).
Discussão
Analisar a qualidade de vida e saúde não apenas das cuidadoras principais, mas de todas as mulheres que residiam com IDF, é uma das contribuições deste artigo. No entanto, deve-se considerar que a seleção exclusiva de respondentes do sexo feminino torna central o papel do cuidado na análise dos achados, haja vista que elas são as que majoritariamente assumem tais funções no espaço doméstico3636 Hirata H. O trabalho de cuidado. SUR 2016; 13(24):53-64.. Os poucos estudos que analisaram os efeitos de residir com IDF evidenciaram uma alta prevalência de sintomas depressivos ou de ansiedade entre os corresidentes3737 Malik MK, Jacob K. Psychological morbidity among co-residents of older people in rural South India: Prevalence and risk factors. Int J Soc Psychiatry 2015; 61(2):183-187.,3838 Honyashiki M, Ferri CP, Acosta D, Guerra M, Huang Y, Jacob KS, Llibre-Rodrigues JJ, Salas A, Sosa AL, Williams J, Prince MJ. Chronic diseases among older people and co-resident psychological morbidity: a 10/66 Dementia Research Group population-based survey. Int Psychogeriatr 2011; 23(9):1489-1501.. A desigualdade dessa associação foi demonstrada em estudo realizado na Índia, o qual relatou que mulheres, pobres, analfabetos, com emprego remunerado e cônjuges do IDF, estavam ainda mais suscetíveis a manifestar tais sintomas3737 Malik MK, Jacob K. Psychological morbidity among co-residents of older people in rural South India: Prevalence and risk factors. Int J Soc Psychiatry 2015; 61(2):183-187..
Este estudo demonstrou que mulheres que viviam com IDF possuíam pior condição socioeconômica e que, com maior frequência, tiveram desdobramentos negativos no dia a dia, nas condições de saúde e na renda durante a pandemia, se comparadas àquelas que viviam com IIF. No que diz respeito aos resultados dos modelos hierárquicos, foi possível observar que as variáveis relacionadas aos efeitos da pandemia na saúde, à exceção do sentimento frequente de solidão, apresentaram as associações mais fortes com a piora da AAS entre os dois grupos.
Os fatores socioeconômicos associados à piora da AAS seguiram os padrões de desigualdade mais comumente relatados na literatura3939 Romero D, Maia L, Castanheira D. Desigualdade em saúde no século XXI: Conceitos, Evidências e políticas públicas. In: Mattos FAM, Hallak Neto J, Silveira FG, organizadores. Desigualdades: visões do Brasil e do mundo. São Paulo: Hucitec; 2022. entre aquelas que residiam com IIF. Mulheres negras e mais pobres mostraram-se mais vulneráveis ao deterioramento de sua saúde e qualidade de vida na pandemia, embora a associação com a renda tenha perdido significância quando considerados os efeitos da pandemia na saúde. Tais achados corroboram o estudo de Szwarcwald et al.4040 Szwarcwald CL, Damacena GN, Barros MBA, Malta DC, Souza Júnior PRB, Azevedo LO, Machado ÍE, Lima MG, Romero D, Gomes CS, Werneck AO, Silva DRPD, Gracie R, Pina MF. Factors affecting Brazilians' self-rated health during the COVID-19 pandemic. Cad Saude Publica 2021; 37(3):e00182720., realizado para a população brasileira adulta em geral.
Entre as mulheres que residiam com IDF a desigualdade socioeconômica na piora da AAS só foi identificada quando considerado os efeitos de fatores intrínsecos à pandemia. Controlando tais fatores, observou-se que mulheres brancas e de maior renda tiveram, mais frequentemente, a percepção de piora da sua saúde. Esse resultado, embora esteja fora do padrão esperado, é similar ao encontrado em estudo que avaliou o aumento da carga do cuidado de familiares de IDF residentes no Brasil, o qual demonstrou que os mais afetados na primeira onda da pandemia foram homens, de maior renda e brancos99 Romero DE, Maia LR, Muzy J, Andrade N, Szwarcwald CL, Groisman D, Souza Júnior PRB. O cuidado domiciliar de idosos com dependência funcional no Brasil: desigualdades e desafios no contexto da primeira onda da pandemia de COVID-19. Cad Saude Publica 2022; 38:e00216821..
Algumas hipóteses poderiam explicar o comportamento inusual dos fatores socioeconômicos associados à piora da AAS na população de mulheres que residiam com IDF durante a pandemia. No que diz respeito à raça/cor, deve-se considerar que a formação histórica da cultura do cuidado naturalizou o papel da mulher negra como cuidadora no ambiente doméstico4141 Menezes CR, Sá Neto CE, Ferreira T. Branca cansada, preta morta: Apontamentos sobre o trabalho doméstico e de cuidados e o contexto de pandemia de COVID-19. Rev Feminismos 2020; 8(3):190-207.. A escravidão e o racismo estrutural, condicionaram mulheres negras ao cuidado não apenas de suas próprias famílias, mas também ao de famílias brancas4242 Davis AY. Women, race & class. Repr. London: Women's Press; 1991.. Desse modo, é razoável inferir que para as mulheres negras a “crise dos cuidados” não começou com a pandemia. Por sua vez, mulheres brancas, especialmente de maior renda, passaram a assumir mais responsabilidades do cuidado com a chegada da pandemia4343 Romero DE, Santana D, Borges P, Marques A, Castanheira D, Rodrigues JM, Sabbadini L. Prevalência, fatores associados e limitações relacionados ao problema crônico de coluna entre adultos e idosos no Brasil. Cad Saude Publica 2018; 34(2):e00012817..
A maior cobertura da Estratégia de Saúde da Família (ESF) entre as populações mais pobres4444 Giovanella L, Bousquat A, Schenkman S, Almeida PF, Sardinha LMV, Vieira MLFP. Cobertura da Estratégia Saúde da Família no Brasil: o que nos mostram as Pesquisas Nacionais de Saúde 2013 e 2019. Cien Saude Colet 2021; 26(Supl. 1):2543-2556. também pode ter impactado na manutenção da qualidade de vida em tempos de pandemia. A ESF, além de ser porta de entrada frequente para os casos de COVID-19, realizou, em alguns casos, ações sociais padronizadas no território para apoiar o distanciamento social de seus usuários, estabeleceu rotinas de entregas domiciliares de medicamentos e estratégias de comunicação equipe-território via internet e telefone para o acesso a informações, monitoramento de pessoas adoecidas e continuidade do cuidado. Além disso, manteve, ainda que parcialmente, serviços de rotina, como as visitas domiciliares4545 Frota AC, Barreto ICHC, Carvalho ALB, Ouverney ALM, Andrade LOM, Machado NMS. Vínculo longitudinal da Estratégia Saúde da Família na linha de frente da pandemia da Covid-19. Saude Debate 2022; 46:131-151.. Entretanto, deve-se considerar que a capacidade de atuação da ESF na pandemia foi comprometida pelo deterioramento que o modelo vem sofrendo desde a Política Nacional de Atenção Básica de 20174646 Giovanella L, Franco CM, Almeida PF. Política Nacional de Atenção Básica: para onde vamos? Cien Saude Colet 2020; 25(4):1475-1482. e do novo modelo de financiamento da atenção primária à saúde4747 Mendes Á, Melo MA, Carnut L. Análise crítica sobre a implantação do novo modelo de alocação dos recursos federais para atenção primária à saúde: operacionalismo e improvisos. Cad Saude Publica 2022; 38:e00164621..
Neste estudo, demonstrou-se que menores níveis de renda foram mais frequentes entre adultas que moravam com IDF se comparadas àquelas que residiam com IIF. A alta demanda de tempo, dinheiro e perda de oportunidades no mercado de trabalho2828 José JS. A divisão dos cuidados sociais prestados a pessoas idosas: complexidades, desigualdades e preferências. Sociol Problemas Praticas 2012; 69:63-85. são explicações plausíveis para as desvantagens socioeconômicas da população analisada. Por outra parte, o maior impacto da pandemia na renda daquelas que residiam com IDF exacerbou as desvantagens desse grupo. Ainda que a variável de impacto da pandemia na renda não tenha se mostrado associado ao desfecho, sabe-se que a renda é preditora da qualidade de vida e saúde, seja por facilitar o acesso às necessidades materiais da vida, seja pela possibilidade de obtenção de uma nutrição e habitação adequadas4848 Martikainen P, Adda J, Ferrie JE, Davey Smith G, Marmot M. Effects of income and wealth on GHQ depression and poor self rated health in white collar women and men in the Whitehall II study. J Epidemiol Community Health 2003; 57(9):718-723.. A fragilização econômica de cuidadores familiares na pandemia também foi demonstrada em estudos internacionais1111 Bennet MR, Zhang Y, Yeandle S. Caring and COVID-19: hunger and mental wellbeing. Sheffield: CIRCLE, University of Sheffield; 2020.,4949 Beach SR, Schulz R, Donovan H, Rosland AM. Family Caregiving During the COVID-19 Pandemic. Gerontologist 2021; 61(5):650-660.. Desse modo, mostra-se imprescindível a implementação de políticas que garantam uma segurança de renda para esta população, especialmente em emergências sanitárias4949 Beach SR, Schulz R, Donovan H, Rosland AM. Family Caregiving During the COVID-19 Pandemic. Gerontologist 2021; 61(5):650-660..
Não apenas a piora da AAS (no sentido da mudança), mas também a autopercepção geral da saúde foi pior entre mulheres que residiam com IDF. Este achado está de acordo com a literatura, que atribui ao cansaço, ao estresse e à sobrecarga das pessoas cuidadoras, as causas da pior autopercepção da saúde5050 Pinquart M, Sörensen S. Spouses, Adult Children, and Children-in-Law as Caregivers of Older Adults: A Meta-Analytic Comparison. Psychol Aging 2011; 26(1):1-14.,5151 Brigola AG, Luchesi BM, Rossetti ES, Mioshi E, Inouye K, Pavarini SCI. Perfil de saúde de cuidadores familiares de idosos e sua relação com variáveis do cuidado: um estudo no contexto rural. Rev Bras Geriatr Gerontol 2017; 20(3):409-420..
A piora na qualidade do sono foi uma característica associada à piora da AAS em ambos os grupos analisados, achados que condizem com estudo focado na população adulta brasileira no geral4040 Szwarcwald CL, Damacena GN, Barros MBA, Malta DC, Souza Júnior PRB, Azevedo LO, Machado ÍE, Lima MG, Romero D, Gomes CS, Werneck AO, Silva DRPD, Gracie R, Pina MF. Factors affecting Brazilians' self-rated health during the COVID-19 pandemic. Cad Saude Publica 2021; 37(3):e00182720.. No entanto, a piora da qualidade do sono se mostrou mais prevalente entre as mulheres corresidentes de IDF, o que pode ser explicado pela sobrecarga no trabalho de cuidar99 Romero DE, Maia LR, Muzy J, Andrade N, Szwarcwald CL, Groisman D, Souza Júnior PRB. O cuidado domiciliar de idosos com dependência funcional no Brasil: desigualdades e desafios no contexto da primeira onda da pandemia de COVID-19. Cad Saude Publica 2022; 38:e00216821. e pelo significativo deterioramento das condições socioeconômicas e de saúde nesse grupo.
O problema de coluna é uma das principais causas de perda de vida com qualidade5252 Hoy D, Brooks P, Blyth F, Buchbinder R. The Epidemiology of low back pain. Best Pract Res Clin Rheumatol 2010; 24(6):769-781. e está fortemente associado à autopercepção da saúde4343 Romero DE, Santana D, Borges P, Marques A, Castanheira D, Rodrigues JM, Sabbadini L. Prevalência, fatores associados e limitações relacionados ao problema crônico de coluna entre adultos e idosos no Brasil. Cad Saude Publica 2018; 34(2):e00012817., o que explica a forte associação com o desfecho, evidenciada em ambos os grupos. Todavia, a prevalência de surgimento/agravamento problema de coluna também foi maior entre mulheres corresidentes de IDF. Isso se deve, possivelmente, ao aumento na carga do trabalho de cuidar99 Romero DE, Maia LR, Muzy J, Andrade N, Szwarcwald CL, Groisman D, Souza Júnior PRB. O cuidado domiciliar de idosos com dependência funcional no Brasil: desigualdades e desafios no contexto da primeira onda da pandemia de COVID-19. Cad Saude Publica 2022; 38:e00216821. e do trabalho doméstico. Estudos demonstraram que ambos os tipos de trabalho (doméstico5353 Dahlberg R, Karlqvist L, Bildt C, Nykvist K. Do work technique and musculoskeletal symptoms differ between men and women performing the same type of work tasks? Appl Ergon 2004; 35(6):521-529. e de cuidado5454 Suzuki K, Tamakoshi K, Sakakibara H. Caregiving activities closely associated with the development of low-back pain among female family caregivers. J Clin Nurs 2016; 25(15-16):2156-2167.) estão associados ao problema de coluna. Isso ocorre porque, no geral, são atividades que demandam longas jornadas de trabalho, sendo, muitas vezes, realizadas em posturas inadequadas e com movimentos repetitivos5555 Habib RR, El Zein K, Hojeij S. Hard work at home: musculoskeletal pain among female homemakers. Ergonomics 2012; 55(2):201-211..
O estado de ânimo ruim na pandemia foi a característica que apresentou maior associação com a piora da AAS entre mulheres corresidentes de IDF, além de ser mais prevalente entre elas. Por ser uma medida subjetiva, a AAS é diretamente influenciada pelas condições emocionais dos indivíduos2020 Washington KT, Oliver DP, Smith JB, McCrae CS, Balchandani SM, Demiris G. Sleep Problems, Anxiety, and Global Self-Rated Health Among Hospice Family Caregivers. Am J Hosp Palliat Care 2018; 35(2):244-249.,2727 Fayers PM, Sprangers MA. Understanding self-rated health. Lancet 2002; 359(9302):187-188.. A sobrecarga do cuidado88 Archer J, Reiboldt W, Claver M, Fay J. Caregiving in Quarantine: Evaluating the Impact of the Covid-19 Pandemic on Adult Child Informal Caregivers of a Parent. Gerontol Geriatr Med 2021; 7:2333721421990150.,99 Romero DE, Maia LR, Muzy J, Andrade N, Szwarcwald CL, Groisman D, Souza Júnior PRB. O cuidado domiciliar de idosos com dependência funcional no Brasil: desigualdades e desafios no contexto da primeira onda da pandemia de COVID-19. Cad Saude Publica 2022; 38:e00216821. e o medo de contagiar um ente familiar de maior vulnerabilidade77 Schimmenti A, Billieux J, Starcevic V. The four horsemen of fear: An integrated model of understanding fear experiences during the COVID-19 pandemic. Clinical Neuropsychiatry 2020; 17(2):41. são possíveis explicações para o pior estado emocional daquelas que residiam com IDF.
Diante da situação observada, evidencia-se a necessidade de aprimoramento das políticas públicas que atuem no suporte aos familiares que residem IDF. Camarano3434 Camarano AA. Cuidados para a população idosa e seus cuidadores: demandas e alternativas. Nota Tecnica Ipea 2020; 64:20. aponta uma série de políticas intersetoriais que poderiam apoiar o cuidado familiar de IDF, como: o apoio financeiro aos cuidadores; a inclusão dos cuidadores no sistema de seguridade social, devido ao impacto da morte do idoso na renda familiar; a qualificação para o cuidado; e o fornecimento de cuidador formal em frequência regular.
Limitações do estudo devem ser consideradas. A utilização de inquérito online pode ter enviesado a amostra, selecionando aqueles com melhores condições socioeconômicas, acesso à meios digitais e maiores níveis de escolaridade. No entanto, o grande número e a ponderação da amostra mitigaram tal limitação. Outra limitação é assumir que só um respondente de cada residência participou do inquérito. Não obstante, os resultados apresentados evidenciam que a análise foi suficientemente sensível para apontar as piores condições na qualidade de vida e saúde das mulheres que residiam com IDF durante a pandemia.
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Editores-chefes:
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
07 Jul 2023 -
Data do Fascículo
Jul 2023
Histórico
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Recebido
31 Ago 2022 -
Aceito
25 Out 2022 -
Publicado
27 Out 2022