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Articular saúde mental e relações de gênero: dar voz aos sujeitos silenciados

Articulate mental health and social gender relations: giving voice to silenced subjects

Resumos

Analisa-se a experiência do sofrimento psíquico a partir de relatos de homens e mulheres usuários de serviço público de saúde do município de Araraquara (SP). Considera-se a construção social do sofrimento psíquico e, portanto, a conformação dos valores e normas de determinada sociedade e época histórica. Utilizaram-se entrevistas semi-estruturadas com usuários do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), homens e mulheres, analisadas sob a ótica das relações sociais de gênero e do contexto das mudanças no sistema psiquiátrico brasileiro a partir da luta antimanicomial. Conclui-se que o desafio a ser enfrentado pela sociedade brasileira contemporânea na construção de políticas públicas para saúde mental deve levar em conta questões postas pela perspectiva das relações sociais de gênero. Portanto, significa, ao incorporar o tema gênero no âmbito da saúde mental, questionar uma concepção reducionista e biologizante da saúde mental das mulheres. Verificou-se que o adoecimento psíquico feminino mantém estreita correlação com a violência contra as mulheres e a repressão sexual ainda vigente na sociedade. No que tange à vivência do adoecimento psíquico masculino, requer enfrentar a questão do estigma. Estes, ao adoecerem, são excluídos do espaço público e enfrentam maiores dificuldades de reinserção social e de reconstrução da identidade anterior.

Sofrimento psíquico; Relações sociais de gênero; Sociedade brasileira contemporânea; Saúde mental; Luta antimanicomial


The experience of the psychological suffering based on testimonies of male and female users of a public health service in the municipality of Araraquara (SP). It is considered the social construction of the psychological suffering and, therefore, the arrangement of values and norms of a certain society and historical period. Semi-structured interviews were applied in male and female users of the Center of Psychosocial Attention (CAPS). These interviews were analyzed through the perspective of social gender relations and under the context of changes at the Brazilian psychiatric system started with the Anti Asylum Fight. In conclusion, the challenge to be of the contemporary Brazilian society in the construction of public policies in the field of mental health must take into account questions raised by the perspective of social gender relations. Therefore, it means that by incorporating the gender theme in mental health issues, we must question the biological and reductionist conception of women’s mental health. The violence against women and the sexual repression in our society have contributed a lot to the female psychiatric debility. Regarding men, it is necessary to face the question of their stigma. By falling sick, they are excluded from public spaces and confront great difficulties to reintroduce themselves into society and to rebuild their previous identity.

Psychological suffering; Social gender relations; Contemporary Brazilian society; Mental health; Anti asylum fight


OPINIÃO OPINION

Articular saúde mental e relações de gênero: dar voz aos sujeitos silenciados

Articulate mental health and social gender relations: giving voice to silenced subjects

Anna Maria Corbi Caldas dos Santos

Núcleo de Estudos da Mulher e Relações Sociais de Gênero (NEMGE). Av. Prof. Luciano Gualberto travessa “J”/310 (Prédio da Antiga Reitoria), Cidade Universitária. 05508-090 São Paulo SP. E-mail: annamariacorbi@hotmail.com

RESUMO

Analisa-se a experiência do sofrimento psíquico a partir de relatos de homens e mulheres usuários de serviço público de saúde do município de Araraquara (SP). Considera-se a construção social do sofrimento psíquico e, portanto, a conformação dos valores e normas de determinada sociedade e época histórica. Utilizaram-se entrevistas semi-estruturadas com usuários do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), homens e mulheres, analisadas sob a ótica das relações sociais de gênero e do contexto das mudanças no sistema psiquiátrico brasileiro a partir da luta antimanicomial. Conclui-se que o desafio a ser enfrentado pela sociedade brasileira contemporânea na construção de políticas públicas para saúde mental deve levar em conta questões postas pela perspectiva das relações sociais de gênero. Portanto, significa, ao incorporar o tema gênero no âmbito da saúde mental, questionar uma concepção reducionista e biologizante da saúde mental das mulheres. Verificou-se que o adoecimento psíquico feminino mantém estreita correlação com a violência contra as mulheres e a repressão sexual ainda vigente na sociedade. No que tange à vivência do adoecimento psíquico masculino, requer enfrentar a questão do estigma. Estes, ao adoecerem, são excluídos do espaço público e enfrentam maiores dificuldades de reinserção social e de reconstrução da identidade anterior.

Palavras-chave: Sofrimento psíquico, Relações sociais de gênero, Sociedade brasileira contemporânea, Saúde mental, Luta antimanicomial

ABSTRACT

The experience of the psychological suffering based on testimonies of male and female users of a public health service in the municipality of Araraquara (SP). It is considered the social construction of the psychological suffering and, therefore, the arrangement of values and norms of a certain society and historical period. Semi-structured interviews were applied in male and female users of the Center of Psychosocial Attention (CAPS). These interviews were analyzed through the perspective of social gender relations and under the context of changes at the Brazilian psychiatric system started with the Anti Asylum Fight. In conclusion, the challenge to be of the contemporary Brazilian society in the construction of public policies in the field of mental health must take into account questions raised by the perspective of social gender relations. Therefore, it means that by incorporating the gender theme in mental health issues, we must question the biological and reductionist conception of women’s mental health. The violence against women and the sexual repression in our society have contributed a lot to the female psychiatric debility. Regarding men, it is necessary to face the question of their stigma. By falling sick, they are excluded from public spaces and confront great difficulties to reintroduce themselves into society and to rebuild their previous identity.

Key words: Psychological suffering, Social gender relations, Contemporary Brazilian society, Mental health, Anti asylum fight

Introdução

A proposta deste texto é explorar, numa perspectiva sociológica, a experiência do adoecer psíquico de mulheres e homens a partir da abordagem de gênero. Está baseado na análise de narrativas de usuários de um Centro de Atenção Psicossocial no município de Araraquara, obtidas no âmbito de investigação específica, visando, por meio da escuta das vivências concretas de vida e do processo de adoecimento, compreender como sujeitos pertencentes às camadas médias e populares identificam, explicam e lidam com o sofrimento psíquico1. Mais especificamente, buscou-se desvelar os modos pelos quais as prescrições de gênero e a transformações nos modos de significar e assistir os portadores de sofrimento mental, advindas da luta antimanicomial2, desempenham um papel crucial nessas vivências.

Entre 2006 e 2008, foram realizadas entrevistas semi-estruturadas com dezesseis informantes, homens e mulheres, usuários do referido serviço público de saúde mental. De acordo com o Ministério da Saúde, o CAPS é um serviço comunitário que tem como papel cuidar de pessoas que sofrem com transtornos mentais, em especial os transtornos severos e persistentes, no seu território de abrangência[...]3.

A experiência do sofrimento psíquico é construída socialmente e traz em si a conformação dos valores e normas de uma determinada sociedade e época histórica. Em outras palavras, aquilo que parece ser algo extremamente individual, ou seja, a vivência de um conjunto de mal-estares no âmbito subjetivo, e também a vivência de cada um como mulher ou como homem, expressa regularidades que são moldadas por uma dada configuração social.

É a partir dessa formulação inicial que proponho uma reflexão sobre a articulação entre os campos da saúde mental e os estudos de gênero na sociedade brasileira contemporânea. Isso requer uma discussão que leve em consideração os fatores sociais que engendram os transtornos mentais e, por sua vez, acarretam de maneira diferenciada sofrimento psíquico em mulheres e homens.

Abordar o tema da construção social e cultural do sofrimento psíquico exige a exploração dos diver­sos significados atribuídos pelos sujeitos a esta expe­riência de vida, situando essa discussão na perspectiva da desigualdade nas relações sociais de gênero.

O uso da categoria gênero4 explicita a assimetria existente nas maneiras de conhecer e aprender o real e na forma como homens e mulheres se constroem, se representam e estabelecem suas relações no inte­rior da sociedade como um vetor que permeia a produção das subjetividades e, consequentemente, as interpretações sobre o adoecimento psíquico.

A fim de aprofundar essa discussão, devem-se pensar masculinidades e feminilidades como metáforas de poder e de capacidade de ação, as quais seriam acessíveis a homens e mulheres. Portanto, haveria várias masculinidades e feminilidades suscetíveis à variabilidade individual das identidades masculinas e femininas e passíveis de alterações num só indivíduo ao longo do ciclo de vida ou conforme situações de interação. Dentre as várias masculinidades existentes, existiriam as masculinidades subordinadas e a masculinidade hegemônica; esta seria um consenso vivido e as outras existiriam como efeitos perversos desta. Assim, conforme Cornwall e Lindisfarne, citados por Almeida, [...]a masculinidade hegemônica é um modelo cultural ideal que, não sendo atingível - na prática e de forma consistente e inalterada - por nenhum homem, exerce sobre todos os homens e sobre todas as mulheres um efeito controlador [...]5.

Neste momento, é importante ressaltar que os transtornos mentais e o consequente sofrimento psíquico - traduzido na dificuldade em operar planos, em definir o sentido da vida e no sentimento de impotência e vazio - prejudicam o gozo das capacidades mentais plenas, incapacitando homens e mulheres a interagir na sociedade e, em casos extremos, levam esses indivíduos à perda de sua condição de cidadãos; dessa forma [...] ser doente é ser privado não só da responsabilidade, mas também é ter a sua volição limitada ao grau extremo, perdendo quase totalmente o poder de fruição: tudo nele e o que é dele é vigiado[...]6.

Conforme o Relatório Sobre a Saúde Mental no Mundo, 2001 - Organização Pan-Americana da Saúde/Organização Mundial de Saúde/ONU -, as mulheres se encontram numa condição de maior risco de desenvolver transtornos mentais, manifestando sofrimento psíquico7.

O relatório aponta que os múltiplos papéis desempenhados pela mulher na sociedade contribuem para um aumento significativo da incidência de transtornos mentais e comportamentais, pois as mulheres continuam com o fardo da responsabilidade que vem associado com os papéis de esposas, mães, educadoras e cuidadoras, tornando-se ao mesmo tempo uma parte cada vez mais essencial da mão-de-obra e, frequentemente, constituindo-se na principal fonte de renda familiar. Além das pressões impostas às mulheres devido à expansão de seus papéis, muitas vezes em conflito, elas são vítimas de discriminação sexual, concomitante à pobreza, à fome, à desnutrição, ao excesso de trabalho e à violência doméstica e sexual.

Ainda de acordo com este documento, não surpreende o fato de que as mulheres tenham acusado maior probabilidade do que os homens de receber prescrição de psicotrópicos. A violência contra a mulher8 torna-se, portanto, um significativo problema social e de saúde pública, que atinge mulheres de todas as idades, de todos os ambientes culturais e de todas as classes sociais.

Com relação à depressão, nos levantamentos epidemiológicos psiquiátricos, uma maior taxa deste transtorno é encontrada em mulheres, oscilando entre 1,6 e 3,1 mulheres para cada homem, de acordo com o país9.

A discussão sobre gênero e saúde mental no Brasil, durante a década de oitenta, recebeu grande interesse por parte das teóricas feministas, mas perdeu visibilidade na década seguinte. Talvez pelo fato de que o uso da categoria gênero na abordagem dos fenômenos psíquicos implicasse o desafio de romper com a hegemonia do discurso biomédico sobre a doença mental, que no mesmo período estava sendo objeto de discussão no âmbito da reforma psiquiátrica.

Um mapeamento realizado sobre o campo estudos de gênero e saúde na produção científica nacional aponta para pesquisas nos seguintes temas: reprodução e contracepção; violência de gênero e suas variações, como violência doméstica, familiar, conjugal e sexual; sexualidade e saúde, com ênfase nas DST/AIDS; trabalho e saúde. Nota-se que estudos de gênero voltados para a saúde mental têm sido até hoje muito pouco explorados10.

O panorama global da saúde mental aponta diferenças significativas com base nas relações sociais de gênero. As mulheres acusam uma maior incidência nos casos de depressão nas estatísticas mundiais, porém os homens lideram os casos de suicídios. No contexto brasileiro, há uma maior prevalência de internações psiquiátricas entre homens do que entre as mulheres. Esse fenômeno foi explicado por Berquó e Cunha através da hipótese segundo a qual [...] o homem é mais vulnerável a doenças mentais dado o contexto socioeconômico e das relações de gênero existentes. Sua frustração pela baixa qualidade de vida leva-o à bebida, como forma de fuga, o que potencializa os transtornos mentais, ao passo que a mulher se apega às relações afetivas, o que lhe traz efeito protetor[...]11.

Conforme o mesmo estudo de Berquó e Cunha, a relação social de gênero confere também sua especificidade no “adoecer masculino”, pois esse recebe o “cuidado feminino”, “[...]...O homem é levado ao hospital pela mulher que cuida dele – mãe, irmã ou filha [...]”, sendo que as mulheres são abandonadas por seus parentes masculinos e chegam ao hospital psiquiátrico menos frequentemente.

Cabe ressaltar que as reflexões trazidas neste texto estão situadas tanto na discussão sobre gênero e saúde mental quanto no contexto de transformações pelo qual vem passando o campo de saúde mental desde a década de oitenta. Decorrentes da reforma psiquiátrica, que defende práticas inovadoras de assistência extra-hospitalar visando à inclusão do sujeito doente mental no cenário da sociedade, o cenário de oferta de serviços a estes sujeitos tem passado por grandes modificações que, de modo reflexivo, têm contribuído para a construção de um novo olhar sobre o sofrimento mental e sobre seus portadores.

A criação dos CAPS em todo país reflete essa preocupação com a substituição do modelo de atendimento psiquiátrico centrado no hospício, propondo-se a produzir discursos e práticas inseridos num outro modo de fazer psiquiatria. Enquanto prática inovadora, os CAPS são marcados pela sua singularidade com relação a outras práticas institucionais12.

Um conjunto de iniciativas políticas, científicas, sociais, administrativas e jurídicas tem lutado por uma transformação da compreensão cultural e da relação da sociedade com as pessoas que apresentam transtornos mentais severos, prezando pela manutenção de seus laços com seu meio familiar e comunitário13. O indivíduo acometido pelo sofrimento psíquico, outrora excluído do mundo dos direitos e da cidadania, deve tornar-se um sujeito do saber psiquiátrico, e reconhece-se a importância de garantir um tratamento efetivo e um cuidado verdadeiro.

No campo técnico-assistencial, este movimento significa o deslocamento do conceito de doença para a noção de “existência-sofrimento do sujeito” em sua relação com o corpo social14.A criação de espaços de sociabilidade, de trocas e produção de subjetividades, na medida em que se deixa de se ocupar com a doença, mas sim com os sujeitos, recoloca a contingência da identidade sexuada do sujeito, o gênero, na mediação das suas relações com o mundo.

O desafio de articular os campos da saúde mental e os estudos de gênero pode ser iluminado através das reflexões desses próprios sujeitos que apontam e descrevem o hospital psiquiátrico como um espaço em que se encerra a loucura, lugar de tratamento, mas também de exclusão. Dessa forma, lugar a ser evitado.

Por outro lado, o CAPS é descrito como espaço de tratamento e de sociabilidade, lugar em que se estabelecem relações sociais novas e alternativas de reinserção social. Sobretudo, para estes sujeitos, o CAPS se configura como a primeira alternativa de participação na esfera pública.

É possível perceber nas falas dos usuários entrevistados as transformações do sistema psiquiátrico brasileiro que decorreram da luta antimanicomial. Assim, os que pertencem ao grupo etário mais jovem consideram a internação psiquiátrica não como uma medida natural do tratamento, mas como algo a ser utilizado em última hipótese, em casos em que a loucura não tem controle.

Como demonstraram os resultados da pesquisa empírica, as subjetividades aqui tratadas estão sob o efeito de sucessivas clivagens: de gênero, de geração e de escolaridade. Dessa forma, as feminilidades e as masculinidades estabelecem diferentes formas de vivenciar o sofrimento psíquico. Essas diferenças podem ser observadas desde o surgimento da primeira crise psicótica até a relação que esses usuários estabelecem com o CAPS.

O adoecimento psíquico feminino assumiu certas regularidades. As mulheres adentraram com maior facilidade no campo da afetividade; assim, se dispuseram a falar mais de sua vida afetiva, de envolvimentos amorosos e sexuais.

Mas, sobretudo na geração mais nova de mulheres pertencentes às camadas médias intelectualizadas, em suas narrativas, verifica-se a importância atribuída à carreira profissional. O surgimento do adoecimento psíquico não inviabiliza que essas mulheres persigam seus objetivos nesse campo da vida. Também, observou-se que estas mulheres desempenham dentro da esfera privada tarefas domésticas.

As mudanças nos papéis de gênero são sempre acompanhadas por suas permanências. Neste processo ambivalente de mudanças e permanências, os papéis tradicionais de gênero tiveram um “efeito protetor”, uma vez que a condição de “filha” dentro do espaço doméstico é tolerada pelos pais e pelo entorno social. Ser filha e estar doente dentro da esfera privada não resulta numa condição de total incapacidade. Dentro do convívio familiar, estas mulheres no papel social de filhas se encarregam da consecução de algumas tarefas domésticas, sendo “tolerada” a incapacidade momentânea para os estudos ou atividade profissional.

O casamento e a maternidade antecedem o adoecimento psíquico entre as mulheres que pertencem à geração mais velha e às camadas populares com baixa escolaridade. A violência de gênero esteve presente nessas narrativas e ocupa um lugar central. Entre essas mulheres, a vivência do adoecimento psíquico não as impede de desempenhar as prescrições tradicionais de gênero; desta forma, desempenham os papéis de mãe e de esposa e se encarregam das tarefas domésticas. A tarefa do cuidado socialmente atribuído às mulheres faz com que estas, mesmo enfermas, sigam cuidando de seus familiares.

O que significaria, portanto, uma abordagem de gênero em saúde mental? Os resultados demonstram que o adoecimento psíquico feminino mantém uma estreita correlação com o problema da violência contra as mulheres. As entrevistas com as pacientes que foram casadas mostraram que todas sofreram agressões físicas e psicológicas de seus ex-cônjuges. Cabe indagar, se estas mulheres não tivessem se submetido a tais agressões, elas teriam desenvolvido estes transtornos mentais severos?

Ou então, indaga-se se a inexistência de serviços públicos dirigidos às mulheres vítimas de violência contribuiu significativamente para que estas não tivessem acesso ao devido tratamento e suporte emocional e material e, portanto, se responsabilizaria o Estado pelo adoecimento psíquico destas?

Ainda, outra questão é posta: as atuais políticas públicas de saúde que lidam com a violência contra as mulheres estariam, realmente, articuladas com a política brasileira de saúde mental? Assim, de que maneira os CAPS enfrentam a questão da violência contra as mulheres?

Vale lembrar que o adoecimento psíquico feminino aponta também para a questão da repressão sexual, ou seja, da vigência de normas sociais que estabelecem uma dupla moral sexual, a qual “freia” as sexualidades femininas. As entrevistas com as mulheres solteiras demonstraram que o exercício das sexualidades femininas parece não encontrar em nossa sociedade contemporânea brasileira um espaço democrático.

Já o adoecimento psíquico masculino, de acordo com os sujeitos entrevistados, resultou numa brusca ruptura em suas trajetórias de vida. Significa, portanto, a exclusão destes do espaço público. Dentro da esfera privada, se confinam e se estabelece uma rotina marcada pela ociosidade. Assim, o CAPS desempenha para esses pacientes a única ligação destes com a sociedade em geral e, portanto, se estabelece uma maior dependência com essa instituição. Estar doente para os homens resulta em fracasso social; assim, torna-se uma condição não tolerada pela família e sociedade. Uma vez perdida a identidade de trabalhador ou de estudante devido ao adoecimento psíquico, os homens enfrentam maiores dificuldades de reinserção social e reconstrução da identidade anterior. Dessa forma, os relatos masculinos abordaram a questão do estigma que acompanha o adoecimento psíquico. Outro problema verificado nas entrevistas com homens é a privação do exercício de suas sexualidades e a incapacidade de cumprir com o papel social de gênero tradicional de provedor e chefe de família.

As mudanças no sistema psiquiátrico brasileiro, a partir do paradigma da desinstitucionalização, e a implantação do CAPS em todo o país propõem uma reflexão acerca do cuidado aos pacientes com transtornos mentais severos. A família neste contexto assume um papel de fundamental relevância, uma vez que neste novo modelo de atendimento psiquiátrico procura-se manter os vínculos do paciente com a sociedade em geral.

Desta forma, cabe indagar a respeito de quais são as pessoas que se encarregam da questão do cuidado no âmbito extra-hospitalar. Através de dados obtidos dos prontuários dos entrevistados e também a partir de suas entrevistas, foi possível verificar, de um modo geral, que as pessoas responsáveis por estes pacientes são mulheres.

Os relatos femininos apontam para mulheres cuidando de mulheres, ou seja, são mães, filhas, irmãs e amigas que assumem a tarefa de cuidar das usuárias do CAPS. Pode-se afirmar que, entre as mulheres solteiras que vivem com suas famílias, estas são cuidadas por suas mães. Em casos de falecimento de suas mães, as pacientes mulheres são acompanhadas por suas irmãs e, em último caso, não existindo familiares do sexo feminino, são cuidadas por amigas. Quando se casam e ficam doentes, estas mulheres passam a ser cuidadas por suas filhas. Já os relatos dos pacientes masculinos demonstram que a tarefa do cuidado é exercida por mulheres. Portanto, os pacientes solteiros são cuidados por suas mães e na ausência destas por irmãs e cunhadas.

Chama atenção que entre as mulheres entrevistadas com filhos, estas também exercem a tarefa do cuidado, mesmo estando doentes. Elas cuidam de seus filhos e netos quando já os têm. Portanto, é possível concluir que a tarefa do cuidado é socialmente atribuída às mulheres que, mesmo estando doentes, não escapam de tal prescrição social.

O desafio a ser enfrentado pela sociedade brasileira contemporânea consiste em incorporar aqueles que, pelo fato de serem apenas diferentes, são destituídos da condição de sujeitos. Incorporar, no entanto, não significa sujeitar, silenciar e pôr ordem na suposta desordem. Significa, sobretudo, que as políticas públicas a serem desenvolvidas na área de saúde mental levem em consideração as questões postas pela perspectiva das relações sociais de gênero e, desta forma, estabeleça-se um exercício de desconstrução das certezas de nossa suposta ordem racional patriarcal.

No entanto, desde o seu surgimento no século XIX, o campo de saúde mental no Brasil foi construído pelo saber psiquiátrico caracterizado, em linhas gerais, por um discurso biológico, a-histórico e por uma visão de ciência pautada na objetividade e neutralidade. Tradicionalmente, as tentativas de incorporar o tema gênero no âmbito da saúde mental, realizadas pelo saber psiquiátrico, associam as mulheres as suas funções reprodutivas (gravidez, parto, puerpério, menopausa). Assim, trata-se de uma concepção reducionista e bio­logizante da saúde mental das mulheres.

Ao situar no corpo da mulher, no seu funcionamento hormonal, a explicação para o desenvolvimento de transtornos mentais psíquicos, retira-se a importância das relações sociais de gênero na vivência destes. A mulher pensada como uma “rede de hormônios” teria em si mesma a culpa e o germe da loucura. Desta forma, a intervenção psiquiátrica viria no sentido de conter os excessos ou falta do bom regulamento psíquico-hormonal.

Se a proposta é avançar na discussão entre os campos da saúde mental e os estudos de gênero, a saída é contestar a formulação “saúde mental da mulher” e no lugar propor “saúde mental e relações sociais de gênero”. Assim, se desarticula mulher enquanto ser biológico, presa a circuitos hormonais, presa a papéis tradicionais e passam a ser considerados os sujeitos marcados por relações sociais de gênero e por experiências de sofrimento psíquico.

Enquanto o campo da saúde mental se voltar apenas para a saúde reprodutiva, ou seja, caso todo o esforço científico se concentre em projetos e pesquisas que abordam transtornos relacionados ao ciclo reprodutivo da mulher, tais como transtornos disfóricos pré-menstruais, transtornos de humor e ansiedade pré-natal e pós-natal e transtornos relacionados à menopausa, persistirão o silêncio e a exclusão dos sujeitos em sofrimento psíquico.

Dentro da perspectiva de análise “saúde mental e relações sociais de gênero”, no que tange ao adoecimento masculino, este também seria contemplado, uma vez que as reflexões advindas desta chave teriam um olhar atento aos efeitos perversos que a desigualdade de gênero desempenha também nessas masculinidades subordinadas. Dessa forma, ser homem e estar doente dentro da assimetria vigente corresponde à total exclusão e ausência de cidadania.

Finalmente, faz-se necessário reforçar a importância e urgência de se estabelecer uma discussão interdisciplinar sobre a doença mental e a sociedade, sendo de suma importância a contribuição sociológica sobre o tema.

Artigo apresentado em 01/12/2008

Aprovado em 26/01/2009

Versão final apresentada em 16/04/2009

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Out 2009
  • Data do Fascículo
    Ago 2009

Histórico

  • Recebido
    01 Dez 2008
  • Revisado
    26 Jan 2009
  • Aceito
    16 Abr 2009
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