Acessibilidade / Reportar erro

Relações familiares nos transtornos alimentares: o Genograma como instrumento de investigação

Resumos

O presente estudo teve por objetivo avaliar os padrões transacionais em famílias de mulheres com transtornos alimentares (TA), por meio da utilização do Genograma. Participaram do estudo 12 mulheres jovens e adultas vinculadas a um serviço multidisciplinar. Para a elaboração dos Genogramas foi construído um roteiro de entrevista semiestruturada que incluía temas específicos a respeito das relações familiares. A análise dos Genogramas seguiu as recomendações preconizadas pela literatura especializada. Evidenciou-se que as famílias apresentavam poucas habilidades no manejo de eventos estressantes e na resolução de conflitos, resultando em distanciamento emocional entre os membros e vulnerabilidade dos vínculos. O Genograma se mostrou útil como recurso de pesquisa e avaliação na área dos TA, e os dados gerados foram convergentes com a literatura da área. Os resultados fornecem subsídios importantes para a assistência à saúde, pois indicam a necessidade de acolhimento e formação de aliança terapêutica com a família no tratamento dos TA.

Transtornos alimentares; Genograma; Família; Assistência à saúde


The present study aimed to evaluate the transactional patterns in families of women with EDs, through the use of the Genogram. The study included 12 girls and women linked to a multidisciplinary service. For the preparation of Genograms, a semistructured interview script was built that included specific topics regarding family relationships. Genograms´ analysis followed the recommendations professed by the specialized literature. It was evident that families presented few skills in managing stressful events and resolving conflicts, resulting in emotional distance between members and vulnerability of bonds. The Genogram was proved useful as a resource for research and evaluation in the area of EDs, and the generated data was convergent with the literature. Results provide important subsidies for health professionals, since they indicate the need for care and development of therapeutic alliance with the family in the treatment for EDs.

Eating disorders; Genogram; Family; Health assistance


Introdução

A ocorrência de transtorno mental em um membro da família faz com que os demais familiares vivenciem mudanças na vida e no ambiente doméstico, que incluem a experiência de novas emoções e responsabilidades1Galera SAF, Zanetti ACG, Ferreira GCS, Giacon BCC, Cardoso L. Pesquisas com famílias de portadores de transtorno mental. Rev Bras Enferm 2011; 64(4):774-778.. A forma como a família reage a essas novas vivências e responsabilidades exerce influência direta sobre a evolução do transtorno e o bem-estar do indivíduo acometido2Silva I, Pais-Ribeiro J, Cardoso H, Ramos H, Carvalhosa SF, Dias S, Gonçalves A. Efeitos do apoio social na qualidade de vida, controle metabólico e desenvolvimento de complicações crônicas em indivíduos com diabetes. Psicol Saúde Doenças 2003; 4(1):21-32., o que justifica a realização de estudos que abordem a experiência da família com o adoecimento mental.

Atualmente, pesquisas que abordam as redes familiares têm documentado a função crucial que o apoio social, principalmente proveniente da família, exerce sobre a prevenção e o tratamento de doenças3Bullock K. Family social support. In: Bomar PJ, editor. Promoting health in families: Applying research and theory to nursing practice. Philadelphia: Saunders; 2004. p. 141-161.. Nessa interface das redes familiares de apoio com a promoção de saúde, Bullock menciona a redução das taxas de mortalidade, a melhora do manejo de sintomas de doenças graves e o incremento da utilização de práticas preventivas de cuidado à saúde3Bullock K. Family social support. In: Bomar PJ, editor. Promoting health in families: Applying research and theory to nursing practice. Philadelphia: Saunders; 2004. p. 141-161..

Um dos agravos à saúde que mais tem adquirido visibilidade nos últimos anos são os transtornos alimentares (TA). Os TA são quadros psiquiátricos que apresentam etiologia multifatorial4Morgan CM, Vecchiatti IR, Negrão AB. Etiologia dos transtornos alimentares: aspectos biológicos, psicológicos e socioculturais. Rev Bras Psiquiatr 2002; 24(3):18-23., que afetam prioritariamente mulheres entre 12 e 28 anos5Vale AMO, Kerr LRS, Bosi MLM. Comportamentos de risco para transtornos de comportamento alimentar entre adolescentes do sexo feminino de diferentes estratos sociais do Nordeste do Brasil. Cien Saude Colet 2011; 16(1):121-132.. Ou seja, vários fatores etiopatogênicos interagem entre si de forma complexa, precipitando e perpetuando o quadro psicopatológico. Dentre os principais fatores envolvidos na gênese dos sintomas encontra-se a dinâmica familiar. Morgan et al.4Morgan CM, Vecchiatti IR, Negrão AB. Etiologia dos transtornos alimentares: aspectos biológicos, psicológicos e socioculturais. Rev Bras Psiquiatr 2002; 24(3):18-23. afirmam que as famílias que possuem um membro com TA apresentam padrões de interação bastante peculiares. No caso de famílias com um indivíduo com diagnóstico de anorexia nervosa (AN), os padrões englobam características como rigidez, intrusividade e evitação de conflitos. Já no caso da bulimia nervosa (BN), a organização familiar tende a ser perturbada e desorganizada, e as mulheres acometidas costumam queixar-se de falta de afeto e cuidados4Morgan CM, Vecchiatti IR, Negrão AB. Etiologia dos transtornos alimentares: aspectos biológicos, psicológicos e socioculturais. Rev Bras Psiquiatr 2002; 24(3):18-23.. Além disso, relações emocionalmente distantes e destituídas de afeto com o pai também fazem parte da dinâmica familiar nos TA6Dallos R, Denford S. A qualitative exploration of relationship and attachment themes in families with an eating disorder. Clinl Child Psychol Psychiatry 2008; 13(2):305-322..

No entanto, vale ressaltar que a consideração da dinâmica das relações familiares como parte dos fatores que predispõem à ocorrência dos TA não tem como objetivo a culpabilização dos familiares pela ocorrência do transtorno7Scorsolini-Comin F, Souza LV, Santos MA. A construção de si em um grupo de apoio para pessoas com transtornos alimentares. Estud Psicol 2010; 27(4):467-478.. Pelo contrário, as pesquisas envolvendo familiares buscam investigar como as interações dos membros podem contribuir para a manutenção do TA, para que a equipe de saúde possa planejar intervenções que posicionem os familiares como aliados no tratamento. Dessa forma, torna-se exequível propor mudanças na dinâmica familiar, especialmente no modo como os pais lidam com as dificuldades do (a) filho (a) acometido (a), tornando a família recurso de ajuda na assistência8Souza LV, Santos MA. Familiares de pessoas diagnosticadas com transtornos alimentares: Participação em atendimento grupal. Psicol Teor Pesqui 2012; 28(3):325-334..

A inclusão da família no tratamento dos TA foi oficialmente legitimada nos Estados Unidos no ano de 2006, com o lançamento do Practice Guideline for the Treatment of Patients with Eating Disorders 9American Psychiatric Association. Practice guideline for the treatment of patients with eating disorders. Washington: American Psychiatric Association; 2006.. Trata-se de um manual contendo diretrizes a serem seguidas no tratamento de pacientes com TA, no qual os autores apontam para a relevância do trabalho com as famílias, uma vez que as evidências acumuladas sugerem consistentemente que intervenções baseadas em atendimentos familiares estão associadas à melhora dos pacientes8Souza LV, Santos MA. Familiares de pessoas diagnosticadas com transtornos alimentares: Participação em atendimento grupal. Psicol Teor Pesqui 2012; 28(3):325-334.. Na Inglaterra, o National Institute of Clinical Excellence (NICE) também desenvolveu um manual a respeito do tratamento dos TA, no qual também foi enfatizada a necessidade da inclusão da família como estratégia assistencial1010 National Institute of Clinical Excellence. National clinical practice guideline: core interventions in the treatment and management of anorexia nervosa, bulimia nervosa, and related eating disorders. London: National Institute for Clinical Excellence; 2004.. A abordagem sistêmica preconiza que a família pode ser definida como um sistema, que caracteriza uma teia complexa de elementos que se encontram dinamicamente relacionados em mútua interação1111 Wright L, Leahy M. Enfermeiras e família: um guia para avaliação e intervenção na família. 3ª ed São Paulo: Roca; 2002..

Nesse sentido, cada família configura uma unidade interacional e cada um de seus membros constitui um subsistema dessa unidade. Porém, esses membros também podem ser caracterizados como sistemas constituídos de vários subsistemas, uma vez que apresentam aspectos físicos, biológicos e psicológicos inerentes à vida humana. Assim, cada indivíduo, com seus subsistemas particulares, ajuda a compor a totalidade familiar, que é muito mais do que a simples soma da contribuição de cada membro. É a interação estabelecida entre os indivíduos que, em geral, explica o funcionamento individual de cada um dos membros, de modo que qualquer modificação que afete significativamente algum deles, afeta a todos em graus variados1111 Wright L, Leahy M. Enfermeiras e família: um guia para avaliação e intervenção na família. 3ª ed São Paulo: Roca; 2002.. Situações de adoecimento grave e persistente, como os TA, são potencialmente disruptivas e repercutem na família como um todo, podendo abalar e alterar sua dinâmica de funcionamento1212 McGoldrick M, Gerson R, Petry S. Genograms: assessment and intervention. 3ª ed Nova York: W. W. Norton Co Inc; 2008. . Por outro lado, o aparecimento dos sintomas em um dos membros da família também pode contribuir para a estruturação e cristalização da dinâmica que rege as relações entre os membros da família. Por essa razão, a assistência deve incluir avaliação das forças e fragilidades das famílias, de modo a identificar seus recursos de enfrentamento.

Nesse cenário, o Genograma constitui um dos instrumentos mais úteis de que o profissional de saúde dispõe para delinear a estrutura interna das famílias e mapear suas fortalezas e vulnerabilidades. Vale ressaltar que o apoio social não se restringe apenas à rede social familiar, mas também pode ser proveniente de outras redes, tais como amigos, colegas de trabalho, vizinhos, entre outros3Bullock K. Family social support. In: Bomar PJ, editor. Promoting health in families: Applying research and theory to nursing practice. Philadelphia: Saunders; 2004. p. 141-161.. Portanto, o Genograma, enquanto instrumento de pesquisa, oferece um recorte focado na família, que configura apenas uma dentre tantas outras possibilidades de apoio social que um indivíduo pode receber.

O Genograma pode ser definido como uma estrutura de gráficos padronizada, utilizada universalmente pela genética, para representar a estrutura interna de uma família. Foi desenvolvido como dispositivo de avaliação, planejamento e intervenção familiares, de modo a facilitar as interpretações da experiência familiar1111 Wright L, Leahy M. Enfermeiras e família: um guia para avaliação e intervenção na família. 3ª ed São Paulo: Roca; 2002.. Tem por objetivo levantar informações sobre os membros e as relações familiares através das gerações e se configura em uma ferramenta de avaliação utilizada também pela terapia sistêmica de família1313 Krüger LL, Werlang BSG. O genograma como recurso no espaço conversacional terapêutico. Rev Aval Psicol 2008; 7(3):414-426..

Atualmente, o Genograma tem sido amplamente empregado como instrumento de coleta de dados, especialmente para pesquisas científicas de natureza qualitativa sobre as relações familiares1414 Gerson R, McGoldrick M. Genogramas en la evolución familiar. Barcelona: Gedisa; 1993. , 1515 Wendt NC, Crepaldi MA. A utilização do genograma como instrumento de coleta de dados na pesquisa qualitativa. Psicol Reflex Crit2008; 21(2):302-310.. Como instrumento de investigação, o Genograma permite a detecção dos relacionamentos existentes na família e, a partir da caracterização da estrutura familiar e de sua posição no ciclo de vida, também permite que o pesquisador desenvolva hipóteses a respeito dos padrões de vínculos e tipos de fronteiras estabelecidas naquele contexto1212 McGoldrick M, Gerson R, Petry S. Genograms: assessment and intervention. 3ª ed Nova York: W. W. Norton Co Inc; 2008.. Além disso, o instrumento também permite a identificação de possíveis triangulações dentro da família, entendendo por triangulação as relações entre três pessoas, nas quais o funcionamento de uma depende e influencia o comportamento das outras duas. A configuração das triangulações nas famílias envolve duas pessoas unidas em relação a uma terceira, e tem o objetivo de diminuir a tensão existente entre a dupla1212 McGoldrick M, Gerson R, Petry S. Genograms: assessment and intervention. 3ª ed Nova York: W. W. Norton Co Inc; 2008..

O esquema gráfico do Genograma se assemelha aos esquemas genealógicos: trata-se de uma árvore familiar representando a estrutura familiar. Os membros da família são colocados em série horizontais que indicam as gerações, os casamentos são indicados por linhas horizontais e os filhos por linhas verticais1111 Wright L, Leahy M. Enfermeiras e família: um guia para avaliação e intervenção na família. 3ª ed São Paulo: Roca; 2002..

Considerando esses pressupostos, o presente estudo teve por objetivo avaliar os padrões transacionais em famílias de mulheres com TA, por meio da utilização do Genograma.

Método

Trata-se de um estudo descritivo e exploratório, com enfoque qualitativo de pesquisa.

Participantes

Participaram da pesquisa 12 mulheres com diagnóstico de TA, vinculadas a um serviço especializado no tratamento de TA de um hospital-escola localizado no interior do estado de São Paulo. A idade média das participantes foi 27,7 anos (DP = 5,18 anos). Oito delas tinham recebido diagnóstico de AN do tipo purgativo e quatro de BN. Foram estabelecidos os seguintes critérios de inclusão: pacientes do sexo feminino, diagnosticadas com TA (AN ou BN), cadastradas no serviço de tratamento multidisciplinar, independentemente de faixa etária, grau de escolaridade, estado civil, tempo de acometimento e comorbidade psiquiá trica. Também foram aplicados os seguintes critérios de exclusão: evidência de prejuízo grave na linguagem ou comunicação, déficit sensorial (audição) ou cognitivo que prejudicasse a comunicação e compreensão da tarefa, paciente em regime de alta do serviço.

Trata-se de uma amostra não probabilística, na qual o número de participantes foi definido de acordo com o critério de saturação dos dados para pesquisas qualitativas1616 Carter B, McGoldrick M. As mudanças no ciclo de vida familiar: uma estrutura para a terapia familiar. 2ª ed Porto Alegre: Artmed; 2011., segundo a qual o encerramento da coleta deve se dar no momento em que os dados obtidos não mais acrescentam informações novas acerca do objeto de estudo.

Para impedir a identificação das participantes (Tabela 1), os nomes próprios foram substituídos por nomes fictícios.

Tabela 1.
Caracterização das participantes segundo idade, diagnóstico, dados antropométricos (peso, altura, IMC na admissão e no momento da avaliação) e tempo de tratamento no serviço.

Instrumentos

Os instrumentos utilizados foram: Genograma e formulário de consulta aos prontuários hospitalares, que possibilitaram a coleta de dados sociodemográficos e antropométricos das participantes. Para a elaboração dos Genogramas foi construído um roteiro de questões específicas, que incluíam os seguintes temas: com quem a participante morava; como ela descreve as relações que mantém com essas pessoas; como são as relações com membros da família de origem (pais, irmãos, tios, avós, entre outros); como são as relações com os filhos e com o marido (se for o caso); como eram essas relações antes do TA; se gostaria que esses relacionamentos fossem diferentes; se houve afastamento de algum membro da família após a instalação do TA; se a participante sente que recebe apoio da família para lidar com o transtorno, e se gostaria que os familiares lidassem de forma diferente com o problema.

A literatura especializada sobre famílias sugere a existência de "padrões de relacionamento cristalizados dentro do sistema familiar"1515 Wendt NC, Crepaldi MA. A utilização do genograma como instrumento de coleta de dados na pesquisa qualitativa. Psicol Reflex Crit2008; 21(2):302-310., ou seja, cada família apresenta formas particulares e recorrentes de relacionamento entre os seus membros, que dão origem ao que Wendt e Crepaldi1515 Wendt NC, Crepaldi MA. A utilização do genograma como instrumento de coleta de dados na pesquisa qualitativa. Psicol Reflex Crit2008; 21(2):302-310.nomearam de padrões transacionais. Tais padrões podem ser identificados por meio do Genograma e foram definidos como: relacionamento harmônico, relacionamento muito estreito ou superenvolvimento, relacionamento fundido e conflitual, aliança, relacionamento conflituoso, relacionamento vulnerável, relacionamento distante, rompimento, triangulação e coalizão. A definição dos padrões transacionais será exposta a seguir, de acordo com a classificação proposta pela literatura especializada1515 Wendt NC, Crepaldi MA. A utilização do genograma como instrumento de coleta de dados na pesquisa qualitativa. Psicol Reflex Crit2008; 21(2):302-310..

  • - Relacionamento harmônico: pode ser definido como a experiência emocional de união entre os membros da família, que alimentam sentimentos positivos entre si. Nesse padrão transacional há reciprocidade de interesses, atitudes e valores, bem como diferenciação dos membros entre si, e destes com suas respectivas famílias de origem.

  • - Relacionamento muito estreito ou superenvolvimento: trata-se dos relacionamentos nos quais predominam a fusão e dependência emocional entre os familiares, caracterizando a indiferenciação psicológica dos membros.

  • - Relacionamento fundido e conflitual: marcado por estreita dependência emocional e existência de conflitos frequentes entre os membros da família. Há indiferenciação entre eles e, por conseguinte, os contornos individuais ficam borrados.

  • - Aliança: caracteriza-se por ligações baseadas em lealdades invisíveis que, apesar de suscitarem interações positivas, podem interferir no processo de diferenciação dos membros, embora em menor grau do que ocorre na presença de superenvolvimento.

  • - Relacionamento conflituoso: remete a relações que envolvem atritos e desavenças constantes no meio familiar, caracterizados por dificuldades de comunicação, que envolvem desqualificações e desconfirmações do outro. Esses padrões disfuncionais de comunicação podem evoluir para padrões simétricos, capazes de gerar violência física.

  • - Relacionamento vulnerável: não há conflito explícito, mas existe a possibilidade da ocorrência de conflitos abertos em condições adversas ou fases de transição.

  • - Relacionamento distante: forma de relacionamento geralmente encontrada nas famílias desconectadas do ponto de vista afetivo, com predomínio de fronteiras rígidas. Há pouco contato entre os membros, principalmente de ordem emocional.

  • - Rompimento: nesse padrão transacional não há contato entre os membros da família, apesar de ainda manterem ligação emocional entre si.

  • - Triangulação: trata-se da configuração emocional que envolve três membros da família, na qual o indivíduo "triangulado" tem a função de regular a tensão existente entre os outros dois membros. Quando não há conflito explícito, esse indivíduo vivencia sentimentos de insegurança ou sofrimento emocional. Na presença de conflito, o embaraço ou sofrimento passa a ser transferido para os membros da díade, despertando sentimento de alívio no terceiro.

  • - Coalizão: propriedade característica das tríades, é definida pela união de dois membros da família contra um terceiro.

Vale ressaltar que os padrões transacionais, apesar de serem recorrentes, podem ser modificados ao longo do tempo, principalmente durante as fases de transição e crises normativas que a família vivencia ao longo do ciclo de vida familiar. Tais mudanças configuram importantes meios pelos quais os membros da família podem se diferenciar e, dessa forma, dar continuidade à família1515 Wendt NC, Crepaldi MA. A utilização do genograma como instrumento de coleta de dados na pesquisa qualitativa. Psicol Reflex Crit2008; 21(2):302-310.. Nessa direção, as transições deflagradas pela situação de doença podem potencializar mudanças tanto negativas como positivas na rede familiar, dependendo de como os membros da família enfrentam as tensões e remanejamentos desencadeados nesse processo, e dos padrões transacionais predominantes. Os transtornos mentais, caracterizados por sintomas graves e persistentes, podem perturbar os padrões de relacionamento familiar ou acentuar relações disfuncionais preexistentes1717 Guest G, Bunce A, Johnson L. How many interviews are enough?: An experiment with data saturation and variability. Field Methods 2006; 18(1):59-82..

As legendas do Genograma, desenvolvidas de acordo com as normas propostas pela literatura especializada1515 Wendt NC, Crepaldi MA. A utilização do genograma como instrumento de coleta de dados na pesquisa qualitativa. Psicol Reflex Crit2008; 21(2):302-310. , 1818 McGoldrick M, Gerson R. Genetogramas e o ciclo de vida familiar . In: Carter B, McGoldrick M, organizadoras. As mudanças no ciclo de vida familiar uma estrutura para a terapia familiar. 2ª ed. Porto Alegre: Artes Médicas; 1995., encontram-se na Figura 1.

Figura 1.
Legendas dos Genogramas, de acordo com a literatura especializada14,15.

Considerações éticas

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição hospitalar onde a pesquisa foi realizada.

Coleta de dados

A aplicação do Genograma foi realizada individualmente, durante um encontro único em local reservado da instituição hospitalar. Foi proposto o trabalho conjunto entre participante e pesquisadora na construção do instrumento, incluindo até três gerações da família. O enfoque da coleta de dados partiu da constituição gráfica das famílias para a exploração mais aprofundada dos significados atribuídos aos relacionamentos, extraídos das histórias familiares1313 Krüger LL, Werlang BSG. O genograma como recurso no espaço conversacional terapêutico. Rev Aval Psicol 2008; 7(3):414-426..

Inicialmente, solicitou-se que as participantes discorressem sobre a configuração familiar atual. A partir desse relato inicial, a pesquisadora formulava questões a respeito das relações familiares, convidando as participantes a compartilharem histórias e acontecimentos da vida familiar1313 Krüger LL, Werlang BSG. O genograma como recurso no espaço conversacional terapêutico. Rev Aval Psicol 2008; 7(3):414-426., buscando investigar possíveis influências dos sintomas de TA na dinâmica da família. Os nomes mencionados pelas participantes foram anotados e foi identificado o tipo de relação existente entre as participantes e os membros da família1515 Wendt NC, Crepaldi MA. A utilização do genograma como instrumento de coleta de dados na pesquisa qualitativa. Psicol Reflex Crit2008; 21(2):302-310., o que possibilitou examinar detalhadamente a proximidade e o padrão de vínculo estabelecido com cada membro.

Análise de dados

Os Genogramas foram elaborados manualmente pela pesquisadora durante a coleta de dados. Posteriormente, foram diagramados com o uso de programa específico para criação de elementos gráficos (Corel DRAW Graphics Suite). A interpretação dos resultados obtidos com a aplicação do instrumento baseou-se nas pautas de análise preconizadas pela literatura fundamentada na abordagem sistêmica1212 McGoldrick M, Gerson R, Petry S. Genograms: assessment and intervention. 3ª ed Nova York: W. W. Norton Co Inc; 2008. , 1515 Wendt NC, Crepaldi MA. A utilização do genograma como instrumento de coleta de dados na pesquisa qualitativa. Psicol Reflex Crit2008; 21(2):302-310. , 1919 Moré CLOO. As redes pessoais significativas como instrumento de intervenção psicológica no contexto comunitário. Paidéia 2005; 15(31):287-297.. Os dados extraídos da análise dos Genogramas foram organizados em categorias temáticas, levando-se em consideração os núcleos de sentido que emergiam - ou seja, a regularidade das respostas e os padrões convergentes de conteúdo2020 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo, Rio de Janeiro: Hucitec, Abrasco; 1994., obtidos tanto nos relatos, quanto nas ilustrações gráficas dos Genogramas.

Resultados e Discussão

Na sequência, serão apresentadas e discutidas as cinco categorias temáticas desenvolvidas a partir da análise dos Genogramas e dos relatos das participantes, suscitados durante a aplicação do instrumento.

Categoria 1. Relação funsionada e conflituosa com a mãe

Tipo de relacionamento entre mãe e filha que remete à dependência emocional mútua, com base na qual os membros da dupla vivenciam dificuldades de se diferenciar e de se relacionar de forma individualizada1212 McGoldrick M, Gerson R, Petry S. Genograms: assessment and intervention. 3ª ed Nova York: W. W. Norton Co Inc; 2008.. Nesse padrão de codependência, as fronteiras individuais são porosas. Esse tipo de relacionamento favorece uma gama de conflitos, uma vez que o padrão de relacionamento fusional entre indivíduos é inevitavelmente ambivalente e marcado por tensões.

Sete participantes deste estudo descreveram os relacionamentos com suas mães como fusionais e conflituosos, caracterizados pela necessidade persistente da presença e companhia frequente da mãe. Alternam-se a necessidade premente de proximidade versus de distanciamento, ou seja, há ambivalência entre vivências fusionais e necessidade de separação, que denota temor de indiferenciação e consequente perda dos limites identitários. Por esse motivo as relações humanas tornam-se ameaçadoras, levando ao afastamento que, por vezes, é confundido com desprezo pelo outro. Em contrapartida, essas participantes sentiam-se excessivamente cobradas pelas mães, o que despertava intensos sentimentos de desamparo e incompreensão. Cinco participantes relataram relacionamento de aliança com a mãe, sem expressão de conflitos manifestos.

Quando questionadas a respeito do relacionamento com a mãe, as participantes que descreveram tais relacionamentos como fundidos e conflituosos puderam explicá-los apenas por meio da relação com a alimentação, como pode ser percebido no relato a seguir:

[...] A minha mãe até fala, quando... 'Nossa, você tá comendo demais. Para um pouco de comer'. Hoje eu já... não me importo muito, entendeu?, com o que ela fala. Eu olho pra ela e começo a rir. Agora, se fosse algum tempo atrás, eu ia falar: 'Nossa, minha mãe tá falando que eu tô comendo demais. Nossa, né', sabe? Enquanto que, na verdade, não...(Ana)

Nota-se que Ana apresenta um discurso bastante reticente, indicando dificuldade para expressar os sentimentos despertados pelos comentários da mãe. Entretanto, é possível inferir a angústia decorrente do modo como a mãe se dirigia a ela ao expressar seu desconforto com a forma como a filha se alimentava. A paciente relata que, no passado, ao ser exposta aos comentários e atitudes de censura por parte de sua mãe em relação ao seu comportamento alimentar, tinha sua autoimagem atacada e, por conseguinte, sua autoestima depreciada. O Genograma de Ana (Figura 2) ilustra, de certo modo, o relato elaborado pela participante durante a entrevista. Evidencia-se relacionamento fusional e conflituoso com a mãe, relação vulnerável com o pai e percepção de distanciamento afetivo entre o casal parental. Também é possível notar a existência de aliança com os irmãos. A relação das participantes com o pai e irmãos será melhor abordada nas categorias seguintes, assim como a relação entre o casal parental.

Figura 2.
Genograma de Ana.

A literatura disponível acerca da relação entre mãe e filha acometida por um TA é convergente ao propor a hipótese de um padrão vincular fusional, que envolveria a vivência de emoções ambivalentes e antagônicas pela dupla. Essas relações são desenvolvidas a partir de um processo de indiferenciação psíquica, caracterizado pelo não reconhecimento da individualidade. A relação de fusão e indiferenciação nos TA é comumente marcada pela ambivalência entre amor e ódio, uma vez que mãe e filha se amam e desejam manter a proximidade uma da outra, mas ao mesmo tempo tentam, sem sucesso, separar-se e individuar-se2121 Bruno CANB. Anorexia: um ponto de vista freudiano. In: Bruno CANB, organizadora. Distúrbios alimentares: uma contribuição da psicanálise. Rio de Janeiro: Imago; 2011. p. 49-60.. Mãe e filha se tornam dependentes uma da outra e, em contrapartida, sentem medo e horror em relação a essa codependência, que implica em uma busca recorrente pela completude e suplementação de um vazio interior que parece nunca ser preenchido2222 Miranda MR. A complexidade da relação mãe-filha nas patologias dos contrários. In: Bruno CANB, organizadora. Distúrbios alimentares: uma contribuição da psicanálise. Rio de Janeiro: Imago; 2011. p. 123-154..

Categoria 2. Relação distante e/ou vulnerável com o pai

Cinco participantes descreveram o relacionamento com o pai como vulnerável, uma vez que já haviam vivenciado tensões e conflitos graves com a figura paterna. No entanto, no momento da realização da entrevista, a relação encontrava-se em situação pacífica. A denominação "relacionamento vulnerável" implica necessariamente na possibilidade de reincidência dos conflitos em situações adversas1515 Wendt NC, Crepaldi MA. A utilização do genograma como instrumento de coleta de dados na pesquisa qualitativa. Psicol Reflex Crit2008; 21(2):302-310.. Nesse sentido, evidenciou-se, entre as participantes deste estudo, uma relação pai-filha marcada por interações superficiais, que não abriam espaço para a expressão de emoções e para o oferecimento de apoio no enfrentamento de experiências angustiantes, uma vez que esse tipo de abertura no relacionamento poderia contribuir para precipitar novas dúvidas, dificuldades e, consequentemente, novos conflitos.

E eu me lembro que, quando eu tava com dez anos mais ou menos, ele[pai] falou que eu tava gordinha... Que aí ele falou assim: 'Você tá gordinha, não sei o quê, não sei o quê, não sei o quê, você quando ficar grande você não vai arrumar namorado, vai fica igual a F.', F. era uma amiga da minha irmã, que era gordinha e não arrumava namorado porque era gordinha. Depois disso eu parei de comer... Entendeu? Eu fui... Aí eu comecei a fazer regime, aí eu fui emagrecendo... Quanto mais eu emagrecia, mais eu queria emagrecer. (Juliana)

O relacionamento com a figura paterna foi descrito como distante por três participantes, e conflituoso por duas. Carolina e Amanda relataram não se importar com o distanciamento do pai, como se esse tipo de relação já houvesse sido naturalizada dentro da dinâmica familiar. Ana, por sua vez, referiu um desejo de que as relações familiares fossem mais próximas e tivessem mais diálogo. Porém, essa participante relatou acreditar que o pouco diálogo faz parte do perfil de sua família, e que esse padrão relacional não é passível de mudança.

Então, com meu pai eu não converso muito, a gente só conversa assim, coisas do outro... Coisas de outras pessoas, às vezes ele conta de alguém que eu conheço, assim... Mas ele não conversa muito, não tem diálogo. (Ana)

Maria caracteriza a relação com o pai como amigável, de respeito, mas não íntima. A participante contou que já vivenciara muitos conflitos com os pais, principalmente na época de maior gravidade dos sintomas de TA, pois os pais tentavam fazê-la enxergar as coisas e ela não aceitava.

Ah, eu acho que eles tiveram que lutar demais comigo. Sabe, pra me fazer... me tratar... Pra me fazer enxergar as coisas... Era uma luta constante, sabe? Era... Era uma luta pra me levar pra psicóloga, era uma luta pra me levar pro psiquiatra, era uma luta pra me fazer comer, era uma luta pra me fazer tomar remédio... Então, pra eles... Era muito complicado. (Maria)

A estrutura familiar e os padrões transacionais de Maria são apresentados naFigura 3.

Figura 3.
Genograma de Maria.

Duas participantes tinham pais já falecidos no momento da coleta de dados. Os dados extraídos dos Genogramas a respeito da relação das participantes com os genitores do sexo masculino foram convergentes com os achados da literatura, que caracterizam essa relação como tipicamente superficial2323 Nodin L, Leal IP. Representações paternas na anorexia nervosa. Anal Psicol 2005; 23(2):201-208.. O pai emerge como figura tênue e apagada, sendo descrito pela literatura como fraco, passivo, com estrutura obsessiva de personalidade. Por outro lado, quando comparado à mãe, o pai é apresentado como sendo caloroso e permissivo, interferindo pouco nas decisões da família2424 Marcelli O, Braconnier A. Manual de psicopatologia do adolescente. Porto Alegre: Artes Médicas; 1989..

Categoria 3. Diversidade nas relações fraternas

Quatro participantes deste estudo relataram manter relacionamentos harmônicos com seus irmãos, e duas caracterizaram essas relações como de aliança. Os relacionamentos harmônicos englobam sentimentos de união e reciprocidade, e incluem clara diferenciação dos membros1515 Wendt NC, Crepaldi MA. A utilização do genograma como instrumento de coleta de dados na pesquisa qualitativa. Psicol Reflex Crit2008; 21(2):302-310.. As alianças também remetem à união, mas nesse caso podem haver dificuldades no processo de diferenciação.

Em contrapartida, cinco participantes descreveram suas relações com os irmãos como distantes, e três as descreveram como conflituosas. Tais distanciamentos e conflitos estavam relacionados à sensação de não serem compreendidas pelos irmãos, de não receberem apoio e de considerarem quetudo era para eles [irmãos] (Grazieli).

É... Eu gostaria que nós fôssemos mais unidos. Você entendeu? Ao mesmo tempo que estão todos unidos, daqui a pouco, assim... estão... brigados, entendeu? Tá todos desunidos. (Fernanda)

Vale ressaltar que três participantes mostraram manter tipos de relacionamentos variados com determinados irmãos, ou seja, mantinham relação de aliança com um irmão e relação conflituosa com outro, evidenciando as múltiplas possibilidades de vínculos dentro da rede familiar.

A literatura traz poucos dados a respeito das relações fraternas de indivíduos acometidos por TA. Irmãos podem exercer tanto influência positiva quanto negativa sobre o quadro psicopatológico da irmã acometida2525 Honey A, Clarke S, Halse C, Kohn M, Madden S. The influence of siblings on the experience of anorexia nervosa for adolescent girls. Eur Eat Disord Rev 2006; 14(5):315-322.. Essa influência pode se dar por meio da presença ativa dos irmãos na família, das diversas formas de reagir ao transtorno e do grau de influência que eles exercem também sobre os pais. Uma série de fatores pode afetar a influência dos irmãos, incluindo: a compreensão que eles têm sobre o TA; o tipo de relacionamento que prevalecia antes da ocorrência do transtorno; se os pais e a filha acometida estimularam ou não o envolvimento do irmão com o quadro; características de personalidade do irmão e da dinâmica familiar; bem como intervenções profissionais que incluem os irmãos na assistência.

A qualidade de vida de irmãos de mulheres com TA é, geralmente, afetada de forma bastante negativa pelo transtorno2626 Areemit RS, Katzman DK, Pinhas L, Kaufman ME. The experience of siblings of adolescents with eating disorders. J Adolesc Health 2010; 46(6):569-576.. Os autores apontam para os seguintes efeitos do TA sobre os irmãos: desejo de compreender o TA; consciência dos comportamentos e pensamentos típicos do quadro; dificuldade na compreensão dos comportamentos obsessivos não relacionados ao quadro; aumento dos conflitos familiares; manifestação de compaixão e preocupação pela irmã acometida; sentimento de perda e sacrifício pessoal; senso opressivo de responsabilidade pela irmã; e uma sensação de onipresença do TA em todos os aspectos de suas vidas.

Categoria 4. O casal parental: empobrecimento do vínculo e triangulação

A análise dos Genogramas evidenciou a existência de conflitos entre os pais de oito participantes, que parecem ter culminado em um distanciamento emocional do casal e, no caso de duas participantes, em separação. Esses dados corroboram a literatura especializada, que sugere que os relacionamentos dentro das famílias com um membro acometido por um TA são bastante fragilizados, com predomínio de vínculos problemáticos, discussões frequentes, triangulação, desconforto e relação negativa com a alimentação4Morgan CM, Vecchiatti IR, Negrão AB. Etiologia dos transtornos alimentares: aspectos biológicos, psicológicos e socioculturais. Rev Bras Psiquiatr 2002; 24(3):18-23..

A triangulação, fenômeno fortemente presente nas relações familiares de indivíduos com TA4Morgan CM, Vecchiatti IR, Negrão AB. Etiologia dos transtornos alimentares: aspectos biológicos, psicológicos e socioculturais. Rev Bras Psiquiatr 2002; 24(3):18-23., foi identificada na análise das famílias de oito participantes deste estudo. Corresponde a conjuntos de relações entre três pessoas, nas quais o funcionamento de uma depende e influencia o comportamento das outras duas. A configuração das triangulações nas famílias envolve duas pessoas unidas em relação a uma terceira, e tem o objetivo de reduzir a tensão existente entre a dupla. Considera-se que, para que um indivíduo tenha um desenvolvimento saudável, é necessário que haja diferenciação entre os membros da família, no que diz respeito à capacidade de agir e tomar decisões por conta própria, independentemente das relações estabelecidas com outras pessoas1212 McGoldrick M, Gerson R, Petry S. Genograms: assessment and intervention. 3ª ed Nova York: W. W. Norton Co Inc; 2008.. Um exemplo de triangulação pode ser visualizado no Genograma de Verônica (Figura 4). Nota-se, nesse caso, que a paciente mantém uma relação de aliança com a mãe, e essa dupla atua em relação a um terceiro, o pai, com quem a participante tem um relacionamento vulnerável. A existência de conflitos entre o casal parental também pode ser observada.

Figura 4.
Genograma de Verônica.

Na presença dos TA, as relações familiares apresentam padrões típicos de ansiedade, ambivalência e preocupação excessiva, principalmente na relação entre mãe e filha, que costumam implicar na exclusão de um terceiro - o pai, caracterizando a triangulação. Mulheres acometidas por esses quadros vivenciam sensações frequentes de conflitos reais ou iminentes entre os pais, além de se sentirem aprisionadas no centro desses conflitos e coagidas a tomar partido de um dos genitores4Morgan CM, Vecchiatti IR, Negrão AB. Etiologia dos transtornos alimentares: aspectos biológicos, psicológicos e socioculturais. Rev Bras Psiquiatr 2002; 24(3):18-23..

Nesse sentido, hipotetiza-se que a relação de superenvolvimento entre mãe e filha seja reflexo de tensões implícitas ou ostensivas na relação do casal parental, que se encontram encobertas pelo TA da filha. Dessa forma, pode-se considerar que o quadro psicopatológico funcionaria como uma "distração", para os pais, de seus próprios conflitos encobertos1212 McGoldrick M, Gerson R, Petry S. Genograms: assessment and intervention. 3ª ed Nova York: W. W. Norton Co Inc; 2008..

Categoria 5. Família constituída: conflitos e vulnerabilidade

Apenas três participantes foram casadas, sendo que uma (Maria) não teve filhos. Essa participante caracterizou o relacionamento que mantinha com seu ex-marido como bastante conflituoso, uma vez que ele não aceitava seu jeito, sua personalidade. O relacionamento durou três anos. Carolina, por sua vez, relatou que teve dois relacionamentos conjugais, sendo que o primeiro durou dois anos e o segundo, 13 anos. Ambos foram caracterizados pela participante como bastante conturbados, ou seja, ocorriam muitas brigas entre o casal, decorrentes principalmente dos episódios de adultério por parte do ex-marido. Marina também definiu o casamento com o ex-marido como conturbado, principalmente devido aos relacionamentos extraconjugais que o marido mantinha com várias mulheres, dentre elas uma prima da participante. Notou-se convergência dos relatos no que concerne à existência de conflitos e marcada desconfiança nos relacionamentos conjugais, que culminaram em ruptura do vínculo.

Carolina tinha dois filhos, um de cada casamento. Relatou que tinha o hábito de ser fisicamente violenta com o filho mais velho, pelo fato de "descontar nele" sua raiva e sentimentos agressivos. Quando teve o segundo filho, a participante contou que conseguia lidar melhor com sua agressividade, de modo que cessaram os atos de violência física contra o filho. No momento da coleta de dados, o relacionamento de Carolina com o filho mais velho parecia ser menos conflituoso, caracterizado como vulnerável.

Marina também teve dois filhos no casamento: uma filha de 11 anos de idade e um filho de três. A participante mencionou o filho poucas vezes, mas no relato a respeito da filha ficou evidente uma relação bastante disfuncional, caracterizada no Genograma como fundida e conflituosa: Marina expressou claramente a aspiração de ter um corpo igual ao da filha, desejo que era acompanhado de ódio de seu próprio corpo e, consequentemente, da filha.

A personalidade de mulheres com AN é geralmente marcada por traços de inferioridade, inadequação e insegurança, acompanhadas de perfeccionismo, obsessividade, compulsividade, emoções negativas, retraimento e condutas de evitação2727 Cassin SE, Von Ranson KM. Personality and eating disorders: a decade in review. Clin Psychol Rev 2005; 25(7):895-916.

28 Nilsson K, Sundbom E, Häglöf B. A longitudinal study of perfectionism in adolescent onset anorexia nervosa, restricting type. Eur Eat Disord Rev 2008; 16(5):386-394.
- 2929 Peres RS, Santos MA. Contribuições do Desenho da Figura Humana para a avaliação da imagem corporal na anorexia nervosa. Medicina (Ribeirão Preto) 2006; 39(3):361-370.. Já as mulheres com BN costumam apresentar comportamentos impulsivos, traços histriônicos e transtorno de personalidade do tipo borderline, como comorbidade3030 Kaye W. Neurobiology of anorexia and bulimia nervosa. Physiol Behav 2008; 94(1):121-135. , 3131 Vindreau C. A bulimia na clínica psiquiátrica . In: Brusset B, Couvreur C, Fine A, organizadores, A bulimia. São Paulo: Escuta; 2003. p. 81-102., além de pensamentos e emoções desadaptativas, que comumente resultam em atitudes caóticas que comprometem inúmeros aspectos da vida, tais como os estudos, a vida profissional e as relações amorosas3232 Limbert C. Perceptions of social support and eating disorder characteristics. Health Care Women Int 2010; 31(2):170-187. , 3333 Oliveira EA, Santos MA. Perfil psicológico de pacientes com anorexia e bulimia nervosas: a ótica do psicodiagnóstico. Medicina (Ribeirão Preto) 2006; 39(3):353-360..

Considerando esses pressupostos, infere-se que os aspectos da personalidade exercem influência crucial na dificuldade que as participantes apresentam no estabelecimento e na perenização de vínculos saudáveis com as pessoas de seu meio, principalmente aquelas com quem mantêm contato diário, tais como marido e filhos. O retraimento e a introversão, assim como os comportamentos impulsivos e as atitudes caóticas, parecem culminar em dificuldades de interação, o que resulta na escassez de membros das redes sociais3232 Limbert C. Perceptions of social support and eating disorder characteristics. Health Care Women Int 2010; 31(2):170-187. , 3434 Leonidas C, Crepaldi MA, Santos MA. Bulimia nervosa: uma articulação entre aspectos 34. emocionais e rede de apoio social. Psicol teorprat 2013; 15(2):62-75., na realização de poucas atividades de lazer e na vivência de conflitos nas relações conjugais, maternas, paternas e fraternas. Considerando-se a relação existente entre as interações sociais e a qualidade de vida dos indivíduos3535 Sluzki CE. A rede social na prática sistêmica: Alternativas terapêuticas. São Paulo: Casa do Psicólogo; 1997., pode-se pensar que o empobrecimento das redes social e familiar e a ausência de atividades de lazer mantêm estreita relação com a cronicidade do quadro de TA.

Considerações finais

O presente estudo teve como objetivo avaliar os padrões transacionais e relacionais em famílias de mulheres com TA, por meio da utilização do Genograma. Os dados coligidos a partir da aplicação do instrumento foram convergentes com a literatura especializada no que concerne à dinâmica das relações familiares de pessoas acometidas por TA. A utilização do Genograma possibilitou a ilustração gráfica dos tipos de relacionamentos existentes dentro dessas famílias, facilitando a visualização de padrões vinculares. Os resultados se aproximam dos estudos disponíveis na literatura.

De forma geral, evidenciou-se que o relacionamento das participantes com suas mães baseava-se em uma relação de aliança tão estreita que, na maioria dos casos, configurava relação fusional e implicava indiferenciação na relação mãe-filha, ocasionando inúmeros conflitos entre a dupla. Já o relacionamento com a figura paterna emergiu nos relatos das participantes como vulnerável e/ou emocionalmente distante, prevalecendo um contato superficial e enfraquecimento do vínculo.

Este estudo permite avançar o conhecimento acumulado ao proporcionar evidências de que as relações familiares nos TA são marcadas por empobrecimento e vulnerabilidade dos vínculos. Por conseguinte, as famílias, na percepção das participantes, apresentavam poucos recursos emocionais para lidar com os conflitos e com as dificuldades decorrentes do TA. A incapacidade de redefinir as relações após a ocorrência de eventos estressantes parece ter resultado no comprometimento da dinâmica familiar, que em alguns membros é configurada por relacionamentos fundidos e conflituais, e em outros é marcada por distanciamento, vulnerabilidade e/ou conflituosidade.

O estudo permitiu examinar a potencialidade do Genograma para investigar a rede familiar de pacientes com TA. O uso do Genograma como instrumento de pesquisa na área da saúde mostrou-se valioso na identificação dos recursos e restrições da rede familiar de pacientes que se encontram em situação de adoecimento crônico, possibilitando o planejamento de intervenções que incluam a família como aliada do tratamento. No entanto, vale ressaltar que o uso do instrumento apresenta limitações, na medida em que fornece um retrato pontual, ao passo que as relações humanas - não apenas as familiares - são dinâmicas e encontram-se em constante movimento e modificação. Nesse sentido, os resultados obtidos neste estudo não devem ser considerados estáticos, e sim concernentes a um momento específico da trajetória de vida das participantes. Além disso, tais resultados dizem respeito à percepção que as participantes elaboram acerca dos padrões relacionais prevalentes em suas famílias. A análise empreendida neste estudo restringe-se à linguagem verbal e à forma como apenas um dos membros da família compreende a dinâmica existente naquele contexto. Nesse sentido, recomendam-se estudos futuros que incluam a família como um todo na construção do Genograma.

Agradecimentos

Ao apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado de São Paulo - FAPESP, por meio da concessão de bolsa de Mestrado à primeira autora sob orientação do segundo autor. Também ao apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq, por meio de Bolsa de Produtividade em Pesquisa concedida ao segundo autor.

References

  • 1
    Galera SAF, Zanetti ACG, Ferreira GCS, Giacon BCC, Cardoso L. Pesquisas com famílias de portadores de transtorno mental. Rev Bras Enferm 2011; 64(4):774-778.
  • 2
    Silva I, Pais-Ribeiro J, Cardoso H, Ramos H, Carvalhosa SF, Dias S, Gonçalves A. Efeitos do apoio social na qualidade de vida, controle metabólico e desenvolvimento de complicações crônicas em indivíduos com diabetes. Psicol Saúde Doenças 2003; 4(1):21-32.
  • 3
    Bullock K. Family social support. In: Bomar PJ, editor. Promoting health in families: Applying research and theory to nursing practice. Philadelphia: Saunders; 2004. p. 141-161.
  • 4
    Morgan CM, Vecchiatti IR, Negrão AB. Etiologia dos transtornos alimentares: aspectos biológicos, psicológicos e socioculturais. Rev Bras Psiquiatr 2002; 24(3):18-23.
  • 5
    Vale AMO, Kerr LRS, Bosi MLM. Comportamentos de risco para transtornos de comportamento alimentar entre adolescentes do sexo feminino de diferentes estratos sociais do Nordeste do Brasil. Cien Saude Colet 2011; 16(1):121-132.
  • 6
    Dallos R, Denford S. A qualitative exploration of relationship and attachment themes in families with an eating disorder. Clinl Child Psychol Psychiatry 2008; 13(2):305-322.
  • 7
    Scorsolini-Comin F, Souza LV, Santos MA. A construção de si em um grupo de apoio para pessoas com transtornos alimentares. Estud Psicol 2010; 27(4):467-478.
  • 8
    Souza LV, Santos MA. Familiares de pessoas diagnosticadas com transtornos alimentares: Participação em atendimento grupal. Psicol Teor Pesqui 2012; 28(3):325-334.
  • 9
    American Psychiatric Association. Practice guideline for the treatment of patients with eating disorders. Washington: American Psychiatric Association; 2006.
  • 10
    National Institute of Clinical Excellence. National clinical practice guideline: core interventions in the treatment and management of anorexia nervosa, bulimia nervosa, and related eating disorders. London: National Institute for Clinical Excellence; 2004.
  • 11
    Wright L, Leahy M. Enfermeiras e família: um guia para avaliação e intervenção na família. 3ª ed São Paulo: Roca; 2002.
  • 12
    McGoldrick M, Gerson R, Petry S. Genograms: assessment and intervention. 3ª ed Nova York: W. W. Norton Co Inc; 2008.
  • 13
    Krüger LL, Werlang BSG. O genograma como recurso no espaço conversacional terapêutico. Rev Aval Psicol 2008; 7(3):414-426.
  • 14
    Gerson R, McGoldrick M. Genogramas en la evolución familiar. Barcelona: Gedisa; 1993.
  • 15
    Wendt NC, Crepaldi MA. A utilização do genograma como instrumento de coleta de dados na pesquisa qualitativa. Psicol Reflex Crit2008; 21(2):302-310.
  • 16
    Carter B, McGoldrick M. As mudanças no ciclo de vida familiar: uma estrutura para a terapia familiar. 2ª ed Porto Alegre: Artmed; 2011.
  • 17
    Guest G, Bunce A, Johnson L. How many interviews are enough?: An experiment with data saturation and variability. Field Methods 2006; 18(1):59-82.
  • 18
    McGoldrick M, Gerson R. Genetogramas e o ciclo de vida familiar . In: Carter B, McGoldrick M, organizadoras. As mudanças no ciclo de vida familiar uma estrutura para a terapia familiar. 2ª ed. Porto Alegre: Artes Médicas; 1995.
  • 19
    Moré CLOO. As redes pessoais significativas como instrumento de intervenção psicológica no contexto comunitário. Paidéia 2005; 15(31):287-297.
  • 20
    Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo, Rio de Janeiro: Hucitec, Abrasco; 1994.
  • 21
    Bruno CANB. Anorexia: um ponto de vista freudiano. In: Bruno CANB, organizadora. Distúrbios alimentares: uma contribuição da psicanálise. Rio de Janeiro: Imago; 2011. p. 49-60.
  • 22
    Miranda MR. A complexidade da relação mãe-filha nas patologias dos contrários. In: Bruno CANB, organizadora. Distúrbios alimentares: uma contribuição da psicanálise. Rio de Janeiro: Imago; 2011. p. 123-154.
  • 23
    Nodin L, Leal IP. Representações paternas na anorexia nervosa. Anal Psicol 2005; 23(2):201-208.
  • 24
    Marcelli O, Braconnier A. Manual de psicopatologia do adolescente. Porto Alegre: Artes Médicas; 1989.
  • 25
    Honey A, Clarke S, Halse C, Kohn M, Madden S. The influence of siblings on the experience of anorexia nervosa for adolescent girls. Eur Eat Disord Rev 2006; 14(5):315-322.
  • 26
    Areemit RS, Katzman DK, Pinhas L, Kaufman ME. The experience of siblings of adolescents with eating disorders. J Adolesc Health 2010; 46(6):569-576.
  • 27
    Cassin SE, Von Ranson KM. Personality and eating disorders: a decade in review. Clin Psychol Rev 2005; 25(7):895-916.
  • 28
    Nilsson K, Sundbom E, Häglöf B. A longitudinal study of perfectionism in adolescent onset anorexia nervosa, restricting type. Eur Eat Disord Rev 2008; 16(5):386-394.
  • 29
    Peres RS, Santos MA. Contribuições do Desenho da Figura Humana para a avaliação da imagem corporal na anorexia nervosa. Medicina (Ribeirão Preto) 2006; 39(3):361-370.
  • 30
    Kaye W. Neurobiology of anorexia and bulimia nervosa. Physiol Behav 2008; 94(1):121-135.
  • 31
    Vindreau C. A bulimia na clínica psiquiátrica . In: Brusset B, Couvreur C, Fine A, organizadores, A bulimia. São Paulo: Escuta; 2003. p. 81-102.
  • 32
    Limbert C. Perceptions of social support and eating disorder characteristics. Health Care Women Int 2010; 31(2):170-187.
  • 33
    Oliveira EA, Santos MA. Perfil psicológico de pacientes com anorexia e bulimia nervosas: a ótica do psicodiagnóstico. Medicina (Ribeirão Preto) 2006; 39(3):353-360.
  • 34
    Leonidas C, Crepaldi MA, Santos MA. Bulimia nervosa: uma articulação entre aspectos 34. emocionais e rede de apoio social. Psicol teorprat 2013; 15(2):62-75.
  • 35
    Sluzki CE. A rede social na prática sistêmica: Alternativas terapêuticas. São Paulo: Casa do Psicólogo; 1997.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Maio 2015

Histórico

  • Recebido
    16 Jun 2014
  • Revisado
    08 Out 2014
  • Aceito
    10 Out 2014
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Av. Brasil, 4036 - sala 700 Manguinhos, 21040-361 Rio de Janeiro RJ - Brazil, Tel.: +55 21 3882-9153 / 3882-9151 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cienciasaudecoletiva@fiocruz.br