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Teleassistência no Sistema Único de Saúde brasileiro: onde estamos e para onde vamos?

Resumo

O artigo explora a teleassistência a partir dos desenvolvimentos da telessaúde e da aceleração da transformação digital na saúde provocada pela pandemia de COVID-19, com foco no Sistema Único de Saúde (SUS). Aborda questões terminológicas, escopo de ações, potencialidades do uso para atenção à saúde e condicionantes e contingências para a utilização da teleassistência no Brasil, concentrando-se nas teleconsultas e nas interações entre profissionais de saúde e pacientes. Por fim, apresenta um conjunto de proposições para o desenvolvimento das políticas e práticas de teleassistência no Brasil, tendo em vista os princípios do SUS, organizados em dois eixos estratégicos centrais: diretrizes político organizacionais e proposições operacionais e de organização dos serviços e do cuidado. Destaca-se a importância de ponderar e elucidar os alcances e os limites das novas tecnologias para evitar idealizações e deslumbramentos com suas propostas de solução para os complexos problemas de saúde. As soluções de teleassistência devem ser compatíveis com princípios e diretrizes do SUS e com o modelo de atenção preconizado, que prevê a organização da rede a partir da atenção primária, para garantir acesso, integralidade e qualidade da atenção à saúde para a sociedade brasileira.

Palavras-chave:
Consulta remota; Telessaúde; Saúde digital; Assistência ao paciente; Sistema Único de Saúde

Abstract

This article explores telecare from telehealth developments and the recent acceleration of the digital health transformation caused by the COVID-19 pandemic, focusing on the Brazilian Unified Health System (SUS). It addresses terminological issues, the scope of actions, the potential use for healthcare, and constraints and contingencies for telecare in Brazil, focusing on teleconsultations and interactions between health professionals and patients. Finally, it presents a set of propositions for the development of telecare policies and practices in Brazil, considering SUS principles, in two central themes: organizational political guidelines and operational propositions to organise services and healthcare delivery. The importance of clarifying the scope and limits of new technologies is highlighted in the attempt to avoid idealizations with proposed solutions to complex health problems. Telecare solutions should be compatible with SUS principles and with the recommended model of care, with the healthcare network coordinated and organised by primary care, ensuring access to health services and integrated and quality healthcare for the Brazilian society.

Key words:
Remote consultation; Telehealth; Digital health; Patient care; Unified Health System

Introdução: da telessaúde à teleassistência

Até meados do século XX, a comunicação não presencial entre profissionais de saúde e pacientes era mediada por cartas ou telefone. O avanço das tecnologias de informação e comunicação trouxe sua incorporação progressiva na atenção à saúde, incluindo mensagens e chamadas de vídeo11 World Health Organization (WHO). Telemedicine: opportunities and developments in Member States [Internet]. 2010. [cited 2023 mar 13]. Available from: https://www.afro.who.int/publications/telemedicine-opportunities-and-developments-member-state
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A saúde digital, como prevista pela Organização Mundial de Saúde (OMS)22 World Health Organization (WHO). WHO guideline: recommendations on digital interventions for health system strengthening [Internet]. 2019. [cited 2023 mar 1]. Available from: https://www.who.int/publications/i/item/9789241550505
https://www.who.int/publications/i/item/...
, reúne funcionalidades e aplicações como análise de grande quantidade de dados, inteligência artificial, prontuários eletrônicos e sistema de suporte à decisão clínica33 Horgan D, Romao M, Morré SA, Kalra D. Artificial intelligence: power for civilisation - and for better healthcare. Public Health Genomics 2020. 22(5-6):145-161.. Saúde móvel ou mSaúde diz respeito à utilização de dispositivos sem fio para o provimento de cuidados em saúde, como celulares, tablets e dispositivos de monitoramento44 World Health Organization (WHO). From innovation to implementation - eHealth in the WHO European Region [Internet]. 2016. [cited 2023 mar 13]. Available from: https://iris.who.int/handle/10665/326317
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A telessaúde, um dos componentes da saúde digital, é o cuidado a distância envolvendo profissionais de saúde. Vem se estabelecendo internacionalmente há pelo menos um século55 Schmitz CAA, Gonçalves MR, Umpierre RN, Siqueira ACS, D'Ávila OP, Bastos CGM, Dal Moro RG, Katz N, Harzheim E. Teleconsulta: nova fronteira da interação entre médicos e pacientes. Rev Bras Med Fam Comunidade 2017; 12(39):1-7., mas seu desenvolvimento como política e estratégia de cuidado no Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro destacou-se a partir dos anos 2000, com finalidades educacionais, formativas, diagnósticas e de monitoramento66 Nilson LG, Maeyama MA, Dolny LL, Boing AF, Calvo MCM. Telessaúde: da implantação ao entendimento como tecnologia social. Rev Bras Tecnol Soc 2018; 5(1):33.. Exemplos de ações de apoio à assistência que compõem a telessaúde são o telediagnóstico, a teleconsultoria e a tele-educação. A teleassistência, foco desse artigo, reúne ações de telessaúde voltadas ao cuidado direto do paciente a distância mediadas por tecnologias (Figura 1).

Figura 1
Representação gráfica do escopo das ações de saúde digital, telessaúde, teleassistência e saúde móvel ou m-Saúde.

A implantação de núcleos de telessaúde no Brasil teve início em 2007, com importante protagonismo das universidades e experiências bem-sucedidas. Sua baixa utilização por parte dos profissionais de saúde, especialmente médicos, e incipiente articulação entre telessaúde, redes de atenção e regulação do acesso, constituíram desafios importantes até meados da década de 201088 Maeyama M, Calvo M. A integração do telessaúde nas centrais de regulação: a teleconsultoria como mediadora entre a atenção básica e a atenção especializada. Rev Bras Educ Med 2018; 42(2):63-72.. Até 2020, a telessaúde se caracterizou predominantemente pela interação entre profissionais de saúde, apesar de existirem experiências informais e no âmbito das urgências móveis envolvendo a interação entre profissionais e pacientes.

A pandemia de COVID-19 provocou forte inflexão mundial das interações não presenciais entre profissionais de saúde e pacientes, aqui denominadas teleassistência, por vezes sustentada por recomendações formais99 Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS). Teleconsulta durante uma pandemia [Internet]. 2020. [acessado 2023 Mar 1]. Disponível em: https://www.paho.org/ish/images/docs/covid-19-teleconsultas-pt.pdf?ua=1
https://www.paho.org/ish/images/docs/cov...
. No Brasil, o cenário pandêmico derrubou normas que restringiam a teleassistência1010 Catapan S, Calvo M. Contexto macro-institucional brasileiro para implantação da teleconsulta médica. Braz J Health Rev 2022; 5(1):27-46.,1111 Caetano R, Silva AB, Guedes ACCM, Paiva CCN, Ribeiro GR, Santos DL, Silva RMD. Desafios e oportunidades para telessaúde em tempos da pandemia pela COVID-19: uma reflexão sobre os espaços e iniciativas no contexto brasileiro. Cad Saude Publica 2020; 36(5):e00088920.. As teleconsultas são um exemplo da teleassistência com foco nos processos clínico-assistenciais, desenvolvidas em tempo recorde para dar continuidade ao cuidado da população, utilizando telefones, aplicativos de mensagens instantâneas e chamadas de vídeo1212 Catapan S, Taylor A, Calvo M. Health professionals' views of medical teleconsultation uptake in the Brazilian Unified Health System: a description using the NASSS framework. Int J Med Inform 2022; 168:104867.. Essas iniciativas descentralizadas e desarticuladas, muitas vezes realizadas em plataformas que não atendiam requisitos de segurança, buscaram garantir o acesso remoto ao cuidado1111 Caetano R, Silva AB, Guedes ACCM, Paiva CCN, Ribeiro GR, Santos DL, Silva RMD. Desafios e oportunidades para telessaúde em tempos da pandemia pela COVID-19: uma reflexão sobre os espaços e iniciativas no contexto brasileiro. Cad Saude Publica 2020; 36(5):e00088920..

As evidências científicas sobre eficácia clínica, segurança, aceitação e benefícios da teleassistência são positivas, desde que atendidas algumas condições técnicas, clínicas e de literacia digital, sem ignorar as limitações que essa modalidade de cuidado oferece1313 Catapan S, Calvo M. Teleconsulta: uma revisão integrativa da interação médico-paciente mediada pela tecnologia. Rev Bras Educ Med 2020; 44(1):e003.,1414 Snoswell CL, Chelberg G, De Guzman KR, Haydon HH, Thomas EE, Caffery LJ, Smith AC. The clinical effectiveness of telehealth: a systematic review of meta-analyses from 2010 to 2019. J Telemed Telecare 2023; 29(9):669-684.. É difícil afirmar o exato alcance mundial da teleassistência, tanto por sua expansão exponencial recente quanto pela falta de consenso sobre sua nomenclatura e suas modalidades. Entretanto, as diferenças entre os países que já a utilizavam e os que tentaram adotar de maneira emergencial foram marcantes, dadas as distinções estruturais e de integração de sistemas1515 Webster P. Virtual health care in the era of COVID-19. Lancet 2020; 395(10231):1180-1181..

Realidade da teleassistência no Brasil

O Quadro 1 apresenta o escopo e o formato de ações que o Brasil adota na teleassistência. Destacamos que não há consenso nacional e internacional sobre as terminologias.

Quadro 1
Ações de teleassistência, seus agentes em interação, meios adotados, sincronicidade e exemplos.

Um dos objetivos da telessaúde no Brasil é qualificar a atenção primária à saúde (APS) no SUS, sendo os profissionais da APS seus principais usuários. Um condicionante para práticas de telessaúde é a existência de infraestrutura adequada, com equipamentos e conexão lógica em rede de qualidade. Os avanços proporcionados por iniciativas como o Requalifica UBS, o Programa Telessaúde Brasil Redes e o E-SUS Atenção Básica não foram suficientes para corrigir as disparidades regionais. Até o início dos anos 2020, menos de 10% das Unidades Básicas de Saúde (UBS) brasileiras tinham estrutura suficiente para efetuar uma chamada de vídeo1818 Catapan S, Willemann M, Calvo M. Estrutura e processo de trabalho para implantação da teleconsulta médica no Sistema Único de Saúde do Brasil: um estudo transversal com dados de 2017-2018. Epidemiol Serv Saude 2021; 30(1):e2020305. e menos de 30% contavam com um telefone celular institucional1919 Giovanella L, Bousquat A, Medina MG, Mendonça MHM de, Facchini LA, Tasca R, Nedel FB, Lima JG, Mota PHS, Aquino R. Desafios da atenção básica no enfrentamento da pandemia de covid-19 no SUS. In: Portela M, Reis L, Lima S, organizadores. Covid-19: desafios para a organização e repercussões nos sistemas e serviços de saúde. Rio de Janeiro: Observatório Covid-19 Fiocruz; 2022. p. 201-216..

Múltiplas iniciativas desenvolvidas nos setores público e privado no cenário pandêmico, especialmente de teletriagem, teleconsulta e televigilância epidemiológica, viabilizaram o acesso aos serviços de saúde de pessoas com suspeita de COVID-19 e a continuidade ao cuidado daquelas com condições crônicas1111 Caetano R, Silva AB, Guedes ACCM, Paiva CCN, Ribeiro GR, Santos DL, Silva RMD. Desafios e oportunidades para telessaúde em tempos da pandemia pela COVID-19: uma reflexão sobre os espaços e iniciativas no contexto brasileiro. Cad Saude Publica 2020; 36(5):e00088920.,1212 Catapan S, Taylor A, Calvo M. Health professionals' views of medical teleconsultation uptake in the Brazilian Unified Health System: a description using the NASSS framework. Int J Med Inform 2022; 168:104867.. Das iniciativas desenvolvidas no SUS, muitas se deram a partir da boa vontade e preocupação dos próprios profissionais de saúde, com criatividade e reinvenção das práticas de cuidado e dos processos de trabalho1212 Catapan S, Taylor A, Calvo M. Health professionals' views of medical teleconsultation uptake in the Brazilian Unified Health System: a description using the NASSS framework. Int J Med Inform 2022; 168:104867..

Entretanto, a ausência de diretrizes nacionais e regulamentações ministeriais voltadas para as peculiaridades do sistema público brasileiro faz parecer que os desenvolvimentos empreendidos pela iniciativa privada possam ser transpostos para o SUS. Outra ausência do poder público é a regulamentação do teletrabalho, uma dificuldade mundial2020 Castro J, Falcao M, Costa T, Bodra M, Oliveira N, Freitas Neto N, Aith F. Teletrabalho em saúde: regulação de profissões e proteção de dados pessoais. In: Aith F, Dallari AB, organizadores. LGPD na saúde digital. São Paulo: Thomson Reuters; 2022. p. 291-307..

A teleassistência envolve compartilhamento e armazenamento de dados sensíveis relativos à saúde ou à vida sexual, a questões genéticas e biométricas e dados demográficos, sociais e clínicos. O compartilhamento desses dados por meios virtuais não seguros envolve risco de segurança, portanto são considerados impróprios de acordo com a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD)2121 Brasil. Presidência da República. Lei nº 13.709/2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Diário Oficial da União 2018; 15 ago.. Muitas plataformas de teleaconsulta disponíveis no mercado apresentam falhas de segurança, assim como aplicativos não específicos utilizados para a teleassistência em dispositivos privados, que são de fácil interceptação.

A teleconsulta pode ser empregada de maneira aditiva, alternativa ou parcialmente substitutiva2222 Flodgren G, Rachas A, Farmer AJ, Inzitari M, Shepperd S. Interactive telemedicine: effects on professional practice and health care outcomes. Cochrane Database Syst Rev 2015; 2015(9):CD002098.. Sua utilização, e meio de comunicação adotado, devem considerar, além da funcionalidade do equipamento e da conectividade, os níveis de literacia digital do profissional de saúde e do paciente, a urgência do caso (síncrona ou assíncrona), o motivo e a complexidade da consulta, as limitações impostas pelo meio de comunicação adotado e uma alternativa viável caso a tecnologia falhe. A decisão por sua utilização deve ser conjunta entre paciente e profissional. Não parece ter havido preparo suficiente dos gestores ou profissionais de saúde para a realização das teleconsultas, nem disponibilidade de suporte administrativo para a organização dos processos de trabalho1212 Catapan S, Taylor A, Calvo M. Health professionals' views of medical teleconsultation uptake in the Brazilian Unified Health System: a description using the NASSS framework. Int J Med Inform 2022; 168:104867..

O vasto território nacional apresenta múltiplas desigualdades e realidades diversas do SUS, bem como grande força do setor privado e inúmeros desafios para a efetivação das redes de atenção à saúde2323 Albuquerque MV, Viana AL d'Ávila, Lima LD, Ferreira MP, Fusaro ER, Iozzi FL. Desigualdades regionais na saúde: mudanças observadas no Brasil de 2000 a 2016. Cien Saude Colet 2017; 22(4):1055-1064.. As implicações dessas características em termos de inclusão digital, se ignoradas, podem reforçar desigualdades - risco presente em qualquer implementação de projetos de saúde digital. O abismo digital é um problema em países onde as ações de teleatendimento estão amplamente disponíveis, pois sua utilização majoritária é por pessoas de alto poder socioeconômico e grau de escolaridade ou residentes dos grandes centros2424 Gallegos-Rejas VM, Thomas EE, Kelly JT, Smith AC. A multi-stakeholder approach is needed to reduce the digital divide and encourage equitable access to telehealth. J Telemed Telecare 2022; 29(1):73-78.. Tal situação configura o paradoxo das ações de teleassistência, que têm como principal objetivo ampliar o acesso aos serviços de saúde, mas acabam restringindo o acesso daqueles que mais precisam2525 Yee V, Bajaj SS, Stanford FC. Paradox of telemedicine: building or neglecting trust and equity. Lancet Digital Health 2022; 4(7):e480-e481..

No cenário atual, a teleassistência tem sido reforçada como estratégica para o SUS, seja pelo problema crônico dos tempos de espera para a atenção especializada, pelos cuidados adiados durante a pandemia e as complicações ou agravamentos daí advindas, ou por eventuais ganhos de escala em conjuntura financeira desfavorável. Seria uma perda não utilizar a teleassistência e a saúde digital para enfrentar velhos e novos problemas. A saúde digital é um mercado em ascensão, altamente lucrativo e estratégico do ponto de vista informacional e geopolítico2626 Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz. Healthtechs: o SUS deve protagonizar a inovação [Internet]. 2023. [acessado 2023 fev 22]. Disponível em: https://outraspalavras.net/outrasmidias/healthtechs-o-sus-deve-protagonizar-a-inovacao/
https://outraspalavras.net/outrasmidias/...
. Cabe aos agentes públicos garantir que a saúde digital não seja capturada por interesses divergentes da universalidade, da equidade e da integralidade previstos na legislação brasileira.

Necessidades e proposições

A pandemia de COVID-19, a regulamentação da teleconsulta e as inúmeras experiências desenvolvidas em tempo recorde transformaram as discussões sobre a teleassistência no Brasil. O debate, antes centrado na eficácia clínica, na segurança do paciente e no risco de desumanização do atendimento, passou a focar a segurança dos dados em saúde, a adoção e sustentabilidade de modelos inovativos de cuidado, a equidade, a integralidade e a qualidade do acesso a esses serviços. O Quadro 2 apresenta alguns pontos fundamentais e proposições de relevância para o desenvolvimento e a sustentabilidade das políticas e práticas de teleassistência no Brasil.

Quadro 2
Proposições para o desenvolvimento e sustentabilidade das políticas e práticas da saúde digital e teleassistência no Brasil.

As políticas públicas de saúde digital devem ser definidas por diretrizes precisas de indução, fomento e desenvolvimento, com mapeamento e avaliação das experiências aplicáveis ao SUS. Suas ações devem ser reguladas e fiscalizadas pelo Estado e conselhos, a exemplo de todas as ações de saúde. A regulamentação do teletrabalho e o reconhecimento formal das ações de teleassistência como ações de saúde nas carteiras de serviços do SUS são urgentes para viabilizar sua inclusão na rotina dos sistemas locais, independentemente de projetos ou propostas pontuais periodicamente sujeitas a interrupções.

As ações em saúde digital devem estar fundamentadas em evidências científicas, com garantia de pertinência, qualidade e custo-efetividade. Não devem resultar em maiores riscos aos pacientes ou na indução ao consumo desnecessário de cuidados em saúde. Sua utilização deve ser aditiva ou parcialmente substitutiva nos encontros com as equipes de saúde responsáveis pelo cuidado, e sempre conforme a vontade do paciente.

O cumprimento dos preceitos da LGPD nas ações de teleassistência, com proteção dos dados pessoais sensíveis de profissionais e pacientes, deve ser fiscalizado pelo Estado e garantido por meio de desenvolvimento e utilização de plataformas seguras e específicas para o uso em saúde. A guarda da informação clínica deve respeitar a legislação e a cadeia de custódia dos registros eletrônicos de saúde. A certificação de órgãos regulatórios é essencial para garantir a segurança dos ambientes utilizados para compartilhar e armazenar dados pessoais sensíveis2727 Meirelles RF, Cunha FJAP. Autenticidade e preservação de registros eletrônicos em saúde: proposta de modelagem da cadeia de custódia das informações orgânicas do Sistema Único de Saúde. RECIIS 2020; 14(3):580-596..

A teleassistência deve apoiar e se adequar à organização das redes e serviços loco-regionais, respeitando a coordenação intergovernamental e os usos dos sistemas de informação em saúde em diversas situações geográficas, não o inverso. O planejamento, a gestão e a regulação pública dos serviços da teleassistência e a participação social são essenciais para garantir acesso universal e equitativo, com orientações de agendamento e regulação de fluxos, garantindo a integralidade do cuidado e a coordenação pela APS. A integração e interoperabilidade entre sistemas de informação, registros eletrônicos, ações de teleassistência, encaminhamentos e exames facilitará o processo de trabalho multidisciplinar, evitando a fragmentação do cuidado.

O atendimento remoto sem suporte técnico pode aumentar a iniquidade de acesso se não forem observadas as necessidades de populações e lugares vulnerabilizados, a coordenação das redes, as condições de uso das ferramentas digitais e os e diferentes níveis de literacia digital. Assim, a implementação desses modelos de teleatendimento não deve seguir a lógica do mercado e da monetização do cuidado. Teleassistência desconectada da rede de saúde pode resultar em mais fragmentação do cuidado. A adoção de modelos híbridos, com a teleconsulta empregada de maneira aditiva ou parcialmente substitutiva, e que permitam, por exemplo, a realização de teleconsulta na unidade de saúde, com infraestrutura adequada e apoio profissional no uso da tecnologia e encaminhamentos, torna-se uma medida muito recomendada.

A teleassistência deve ser incorporada às redes, aos fluxos e às ações de saúde loco-regionais existentes, mantendo profissionais com conhecimento da situação de saúde daquela população e promovendo coerência entre suas indicações e a realidade local, salvo em situações excepcionais e áreas remotas. Essa condição promove a sustentabilidade, estabilidade profissional e o aperfeiçoamento contínuo desses profissionais em suas áreas de atuação e favorece a integração do cuidado, com aproximação entre profissionais da APS e da atenção especializada.

A educação permanente dos profissionais de saúde e a formação para o uso de ferramentas da teleassistência deve ser assumida pelos serviços, mas a preocupação em incluir conteúdos de saúde digital nos currículos dos estudantes da saúde deve ser assumida pelo Estado para garantir a qualidade progressivamente maior das ações. Também cabe ao Estado o incentivo à pesquisa sobre o tema. A teleassistência possibilita novos arranjos quando utilizada de maneira razoável, ampliando o acesso aos serviços de saúde e mantendo-se o trabalho humano e intersubjetivo que caracteriza o cuidado em saúde, porém apresenta riscos se substituir completamente o contato humano pela inteligência artificial ou pelas tecnologias leve-duras e duras.

Considerações finais

Buscamos contextualizar a inflexão da teleasistência no Brasil, notadamente a partir da pandemia de COVID-19, observando conexões com a agenda da saúde digital. Apresentamos brevemente seu escopo, problematizamos alguns condicionantes e contingências para a ampla utilização da teleassistêcia no Brasil. Indicamos alguns aspectos-chave para formulação de diretrizes nacionais, ainda que preliminares e considerando especialmente a teleconsulta, organizados em dois eixos: 1) diretrizes político-organizacionais; e 2) proposições operacionais e de organização dos serviços e do cuidado.

Esperamos que esses apontamentos sejam úteis para a tradução - contextualizada e coerente com o SUS e as necessidades em saúde no território brasileiro - do aparente consenso em relação à importância da transformação digital da saúde, que inclui e extrapola a teleassistência. Reafirmamos o potencial da teleassistência para a qualificação, modernização e qualificação do acesso e das formas de cuidado na APS, para melhoria do acesso à atenção especializada e sua (re)organização e na interação entre serviços e profissionais visando a continuidade da atenção. Para que esse potencial seja atingido com sucesso, riscos e cuidados devem ser considerados, tendo em mente as realidades e singularidades do Brasil e a necessária articulação com esforços de investimento e qualificação das redes de atenção do SUS.

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Editores-chefes:

Maria Cecília de Souza Minayo, Romeu Gomes, Antônio Augusto Moura da Silva

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    Jul 2024

Histórico

  • Recebido
    28 Mar 2023
  • Aceito
    01 Fev 2024
  • Publicado
    27 Fev 2024
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