No livro “A bailarina da morte”11 Schwarcz LM, Starling HM. A bailarina da morte: a gripe espanhola no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras; 2020., Lilia M. Schwarcz e Heloisa M. Starling realizam um aprofundado estudo histórico da pandemia de gripe espanhola no Brasil. Para tanto, iniciam descrevendo como surgiu e se desenvolveu esta doença, no ano de 1918, já nos estertores da primeira guerra mundial, disseminando-se mais intensamente e causando elevados índices de mortalidade especialmente nos países arrasados pelo já longo e dramático esforço militar, para depois espalhar-se para todos os continentes.
Em seguida, elaboram uma primeira aproximação, ainda em linhas gerais, sobre como a doença chegou no Brasil por meio do navio Demerara que, partindo de Liverpool no dia 15 de agosto de 1918, aportou em Recife, em 09 de setembro de 1918, de onde seguiu levando a doença para outros portos ao longo da costa rumo ao sul do continente, e a partir de cada parada, a epidemia produzia seus fluxos de contaminação em massa. Outros navios contaminados foram chegando do exterior, se sucedendo o alastramento para outras regiões também com embarcações e trens que interiorizaram o problema no país como um todo.
E mais que uma descrição epidemiológica da trajetória de disseminação da doença, as autoras apresentam um rico cenário dos processos sociais desencadeados por este que se tornou um drama coletivo no Brasil, vivenciado de formas singulares e desiguais, em cada localidade. E mais do que uma visão panorâmica, essa análise é minuciosamente apresentada, informando datas, nomes, registros nos jornais, apresentando imagens fotográficas e documentos os mais variados que contam essas diferentes histórias de uma mesma epidemia. Na estruturação do livro, temos um capítulo que aborda a evolução desse processo para cada uma das principais capitais do país naquela época. Assim, vemos como se deu isso, na ordem em que se disseminou a doença, em Recife, Salvador, Rio de Janeiro (capital do país à época, vale lembrar), São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, Belém e Manaus.
Dentre tanta riqueza a ser explorada nessa história magnificamente narrada, dois foram os principais fatores que chamaram a atenção deste leitor, médico sanitarista que, em pleno curso da pandemia de COVID-19, em novembro de 2020, se debruçou sobre este livro. O primeiro deles foi o fato de que, com algumas variações, ficou claro que havia um padrão de resposta nos diversos locais em relação ao problema. Vemos se repetir a maneira como foram construídas as escassas e inadequadas respostas das autoridades políticas e sanitárias, via de regra negando inicialmente o problema e se desresponsabilizando em seguida, para depois tentar amenizar os efeitos danosos da epidemia para seus interesses políticos e econômicos, priorizados em praticamente todos os momentos, em detrimento da defesa da vida das pessoas; acompanhamos também se repetirem as formas de mitigação tentadas por profissionais de saúde nos escassos serviços então existentes; até mesmo a exploração comercial de farmácias em torno de panaceias que eram vendidas mesmo sem real benefício e sem qualquer comprovação científica (muitas das quais à base de quinino, substância que tem relação com a futura produção da cloroquina, conhecida de nossos tempos); ainda, a atuação da imprensa transitando entre informar sobre a evolução da doença e atuar de acordo com as conveniências de suas relações com os grupos políticos em situação de governo, entre outros aspectos. E o segundo fator que se apresenta fartamente evidenciado no livro é o quanto aquela pandemia, ao se instalar no nosso país, se tornou mais um fator não apenas a escancarar a já estarrecedora desigualdade social existente, como poderíamos, a partir disso, ver claramente que os doentes e mortos em maior quantidade tinham raça, cor, classe social muito específicas.
Em meio a isso, porém, vemos não só a evolução de uma tragédia (em que cadáveres ficavam nas ruas esperando serem recolhidos e os cemitérios não davam conta de enterrar a quantidade excessiva de mortos), mas também algumas formas de resistência que se foram desencadeando de maneira singular em alguns lugares. Como, por exemplo, as tentativas autônomas da população se cuidar, baseadas em remédios populares e práticas de cura religiosas, fortalecidas em lugares como Salvador, Belém e Manaus, em virtude da potência das religiões de matrizes africanas, espíritas e das práticas indígenas de cura, as quais manejaram seus próprios remédios e técnicas, a partir dos saberes que dispunham, e que aliviavam o que não conseguiam solucionar. Também destacou-se a maneira como, diferente de outras localidades, a cidade de Belo Horizonte resistiu à reprodução da lógica em que se colocava a preservação da economia como mais relevante e antagônica à defesa da saúde, não apenas por meio da população pressionando seus políticos e empresários, mas com a própria faculdade de medicina transformando seu prédio em um importante hospital de campanha, com estudantes, professores e voluntárias atuando no cuidado dos acometidos pela espanhola.
Falar dos paralelos entre o que ocorreu pouco mais de cem anos atrás e o que vivemos hoje no Brasil é insuficiente para demonstrar o quanto se sai mais enriquecido desta leitura. Ainda assim, vale apontar que são escancarados os ecos do passado na lógica do atual governo federal no Brasil, que se apresenta mais do que negacionista, pois “inova” ao lidar como desimportante a morte de milhares de cidadãs e cidadãos11 Schwarcz LM, Starling HM. A bailarina da morte: a gripe espanhola no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras; 2020.,22 Giovanella L, Medina MG, Aquino R, Bousquat A. Negacionismo, desdém e mortes: notas sobre a atuação criminosa do governo federal brasileiro no enfrentamento da Covid-19. Saude Debate 2020; 44(126): 895-901. que poderia ser evitada, não apenas por um fortalecimento do Sistema Único de Saúde como um todo, mas também por uma aposta intensiva na rede básica33 Medina MG, Giovanella L, Bousquat A, Mendonça MHM, Aquino R. Atenção primária à saúde em tempos de COVID-19: o que fazer? Cad Saude Publica 2020; 36(8): e00149720. e, mesmo, na ampliação da noção de cuidados de proximidade nas redes de atenção44 Seixas CT, Merhy EE, Feuerwerker LCM, Santo TBE, Slomp Junior H, Cruz KT. A crise como potência: os cuidados de proximidade e a epidemia pela Covid-19. Interface 2021; 25(Supl. 1):e200379., além de diversas medidas econômicas e políticas essenciais55 Carvalho L. Curto-circuito: o vírus e a volta do Estado. São Paulo: Todavia; 2020. que nem cabem aqui detalhar. Também, era evidente naquela época, assim como hoje, a maneira como a falta de uma articulação política nacional levou a que as ações de controle da epidemia, em nível locorregional, fossem desencadeadas de modos muito distintos e com efeitos heterogêneos66 Kerr L, Kendall C, Silva AAM, Aquino EML, Pescarini JM, Almeida RLF, Ichihara MY, Oliveira JF, Araújo TVB, Jorge DCP, Miranda Filho DB, Santana G, Gabrielli L, Albuquerque MFPM, Almeida-Filho N, Silva NJ, Souza R, Ximenes RAA, Martelli CMT, Brandão Filho SP, Souza WV, Barreto ML. COVID-19 no Nordeste brasileiro: sucessos e limitações nas respostas dos governos dos estados. Cien Saude Colet 2020; 25(Supl. 2):4099-4120..
O que mais essa importante contribuição de Lilia Schwarcz e Heloisa Starling para o debate nacional nos traz, até pela área de atuação dessas relevantes historiadoras e cientistas sociais, ultrapassa o campo da saúde. Elas nos demonstram, mais uma vez, que é também pela compreensão dos erros e das formas de solidariedade e luta desencadeadas nos processos históricos, que podemos iluminar nossas possibilidades de ação atuais. Assim, analisar o modo como o Brasil viveu a época em que a gripe espanhola “dançou” pelo mundo pode ser uma maneira de entendermos melhor nosso período, em que a COVID-19 ainda segue sua trajetória de contaminação e óbitos, mas também em que formas autônomas de cuidado e de defesa da vida resistem.
Referências
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1Schwarcz LM, Starling HM. A bailarina da morte: a gripe espanhola no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras; 2020.
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2Giovanella L, Medina MG, Aquino R, Bousquat A. Negacionismo, desdém e mortes: notas sobre a atuação criminosa do governo federal brasileiro no enfrentamento da Covid-19. Saude Debate 2020; 44(126): 895-901.
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3Medina MG, Giovanella L, Bousquat A, Mendonça MHM, Aquino R. Atenção primária à saúde em tempos de COVID-19: o que fazer? Cad Saude Publica 2020; 36(8): e00149720.
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4Seixas CT, Merhy EE, Feuerwerker LCM, Santo TBE, Slomp Junior H, Cruz KT. A crise como potência: os cuidados de proximidade e a epidemia pela Covid-19. Interface 2021; 25(Supl. 1):e200379.
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5Carvalho L. Curto-circuito: o vírus e a volta do Estado. São Paulo: Todavia; 2020.
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6Kerr L, Kendall C, Silva AAM, Aquino EML, Pescarini JM, Almeida RLF, Ichihara MY, Oliveira JF, Araújo TVB, Jorge DCP, Miranda Filho DB, Santana G, Gabrielli L, Albuquerque MFPM, Almeida-Filho N, Silva NJ, Souza R, Ximenes RAA, Martelli CMT, Brandão Filho SP, Souza WV, Barreto ML. COVID-19 no Nordeste brasileiro: sucessos e limitações nas respostas dos governos dos estados. Cien Saude Colet 2020; 25(Supl. 2):4099-4120.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
22 Abr 2022 -
Data do Fascículo
Abr 2022