Open-access Subfinanciamento e orçamento federal do SUS: referências preliminares para a alocação adicional de recursos

Resumo

Este artigo objetiva identificar novas fontes de receitas para a alocação adicional de recursos para o atendimento das necessidades de saúde da população fixadas nas despesas do orçamento federal, no contexto do processo de subfinanciamento do Sistema Único de Saúde e dos efeitos negativos da Emenda Constitucional 95/2016 para esse processo – queda verificada na proporção da receita corrente líquida federal destinada para o SUS. Nessa perspectiva, é preciso enfrentar o problema do subfinanciamento vinculando à busca por recursos adicionais junto a novas fontes de financiamento com as ações e serviços públicos de saúde que serão aprimoradas, ampliadas e criadas, cujos critérios são: quanto às fontes, exclusividade para o SUS, não regressividade tributária e revisão da renúncia de receita; e, quanto aos usos, priorização da atenção básica como ordenadora da rede de atenção à saúde e valorização dos servidores. O resultado calculado para as fontes variou entre R$ 92 bilhões e R$ 100 bilhões, superior aos R$ 30,5 bilhões apurados para os usos nos termos descritos. Foi realizada pesquisa documental para o levantamento de dados junto a fontes secundárias, especialmente nos relatórios encaminhados ao Conselho Nacional de Saúde pelo Ministério da Saúde.

Palavras-chave Saúde Pública; Financiamento dos Sistemas de Saúde; Financiamento da Assistência à Saúde; Economia da Saúde

Abstract

This paper aims to identify new sources of revenue for the additional allocation of resources to meet the population’s health needs fixed in the federal budget expenses, in the context of the Unified Health System (SUS) underfunding process and the negative effects of Constitutional Amendment 95/2016 for this process – verified decrease in the proportion of federal net current revenue destined to SUS. From this perspective, it is necessary to address the problem of underfunding by linking the search for additional resources with new sources of funding with actions and public health services that will be improved, expanded and created, of which criteria are: regarding sources, exclusivity for SUS, non regressive taxing and review of revenue waiver; and, regarding uses, prioritization of primary care as reference of the health care network and appreciation of civil servants in the health area. The result calculated for the sources ranged from R$ 92 billion to R$ 100 billion, higher than the R$ 30.5 billion calculated for uses under the described terms. A documentary research was conducted to collect data from secondary sources, especially in the reports sent to the National Health Council by the Ministry of Health.

Key words Public Health; Health System Funding; Healthcare Funding; Health Economics

Introdução

Os processos de planejamento, monitoramento e avaliação das políticas públicas no Brasil têm como referências as ações e metas estabelecidas nos instrumentos legais do setor público brasileiro – Plano Plurianual (PPA), Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e Lei Orçamentária Anual (LOA), que expressam o ciclo orçamentário brasileiro, conforme Vignoli & Funcia1. A partir do PPA (quadrienal), são fixadas anualmente as diretrizes e prioridades por meio da LDO que, por sua vez, serve de referência para o detalhamento das ações orçamentárias na LOA de cada ente governamental (União, estados, Distrito Federal e municípios).

Esses instrumentos, por sua vez, devem expressar as programações de saúde que foram detalhadas sob a forma de objetivos e respectivas metas nos Planos de Saúde (que guardam relação direta com os PPA’s) e nas Programações Anuais de Saúde (que guardam relação direta com as LDO’s e LOA’s).

Arretche2 alerta para o fato de que é possível a ocorrência de situações imprevistas de ordens política e econômica, de restrição orçamentária e financeira, que resultam na revisão parcial tanto da programação planejada, como dos objetivos da própria política pública. Sobre isso, no caso do SUS, Arretche3 destaca o caráter dependente dos governos locais em relação às transferências de recursos da União para a implementação das políticas de saúde.

Nestes termos, a implementação da política de saúde no Brasil a partir da Constituição Federal de 1988 foi parcialmente condicionada pelo processo de subfinanciamento crônico do SUS - que pode ser caracterizado pela alocação insuficiente de recursos orçamentários e financeiros tanto para cumprir plenamente os princípios constitucionais de acesso universal, integralidade e equidade, como para equiparação comparativa a outros países que adotam sistemas públicos de saúde similares ao brasileiro, conforme estudos de Marques et al.4, Mendes & Funcia5 e Piola & Barros6.

De forma complementar, Marques7 define como de natureza estrutural esse caráter crônico do processo de subfinanciamento do SUS, pois não houve um “apoio maciço e de classe” a esse sistema público de saúde diante do neoliberalismo, da dinâmica dependente da economia brasileira em relação aos países desenvolvidos e da fragilidade “da economia perante o fluxo de capitais estrangeiros e a primazia assumida pela geração de superávits primários para honrar o serviço da dívida (...)”. Esses fatores condicionaram negativamente o orçamento federal e, particularmente, o da área da saúde, que gravitou em torno de 1,6% e 1,7% do Produto Interno Bruto (PIB) ao longo do século XXI.

Santos Neto et al.8 considera que uma das consequências negativas desse processo de subfinanciamento do SUS está relacionada à limitação para a efetivação da prioridade da atenção primária (ou básica) como ordenadora da rede de assistência à saúde da população.

Esse prejuízo também foi manifestado por Ocke-Reis9: considerando o subfinanciamento do SUS, a renúncia fiscal derivada da contratação de planos privados de saúde promove a redução de “recursos financeiros que poderiam ser alocados para ampliar programas de caráter preventivo e melhorar a qualidade dos serviços especializados, fundamentais para a consolidação do SUS”.

A questão estrutural do processo de subfinanciamento crônico do SUS abordada anteriormente está presente também na reflexão proposta por Noronha et al.10: “Um Sistema Único de Saúde estruturado, funcional e sem subfinanciamento cria muitas dificuldades, quando não inviabiliza, à atuação do capital tanto no mercado de planos de saúde quanto no provimento de serviços privados de saúde”.

Como somente serão programadas despesas na LOA correspondentes à capacidade de financiamento (ou receita estimada) para esse fim, o processo de subfinanciamento crônico do Sistema Único de Saúde (SUS) é um dos fatores condicionantes das necessidades de saúde da população que serão atendidas a cada ano.

Nesse contexto, o objetivo deste artigo, de caráter introdutório, é identificar novas fontes de receitas para a alocação adicional de recursos para o atendimento das necessidades de saúde da população por meio da programação de despesas do orçamento federal.

Para tanto, o artigo está estruturado em duas seções, além desta introdução e das considerações finais: a primeira trata da metodologia adotada; na segunda, os resultados estão desdobrados em quatro subseções que tratam (i) dos efeitos negativos das Emendas Constitucionais 86/2015 (EC 86) e 95/2016 (EC 95) para o financiamento do SUS, (ii) do piso para o financiamento das ações e serviços de saúde no orçamento federal do SUS de 2019, (iii) dos aspectos da execução orçamentária e financeira do Ministério da Saúde (MS) em 2017 e 2018 e (iv) dos critérios levantados para subsidiar o debate referente à identificação das fontes de receita e à destinação dos recursos adicionais para o SUS.

Metodologia

Do ponto de vista metodológico, foi realizada pesquisa documental, baseada em estudos e, principalmente documentos encaminhados ao Conselho Nacional de Saúde (CNS) pelo MS, especificamente, os Relatórios Anuais de Gestão (2014 a 2017 – último ano disponível à época da elaboração deste artigo) e os Relatórios Quadrimestrais de Prestação de Contas (2016 a 2018), ambos disponíveis para consulta em http://bvsms.saude.gov.br/, bem como as planilhas mensais de execução orçamentária e financeira das despesas federais em saúde (empenhadas, liquidadas e pagas, incluindo os restos a pagar), formatadas pela Subsecretaria de Planejamento e Orçamento/MS nos termos aprovados pelo CNS e que integram esses relatórios, que possibilitam avaliar o nível de liquidação de despesas.

Nessas planilhas, há a identificação das despesas classificadas como ações e serviços públicos de saúde (ASPS) para o cômputo do cumprimento da aplicação mínima (piso) segundo a Lei Complementar 141 (LC 141), que definiu também o conteúdo dos relatórios citados anteriormente e os procedimentos básicos do processo de planejamento e de prestação de contas que o gestor do SUS deve observar.

Por fim, foram considerados os efeitos das mudanças de regras para o financiamento federal do SUS estabelecidas pelas EC 86 e EC 95 para a alocação de recursos, bem como levantados dados do Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde (SIOPS), para avaliar a evolução da aplicação estadual e municipal com recursos próprios, e dos sites do Banco Central, Secretaria do Tesouro Nacional, Secretaria da Receita Federal e Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, para complementação da análise realizada. A comparação internacional da aplicação em saúde foi feita com base nos dados da Organização Mundial de Saúde.

Discussão e Resultados

As Emendas Constitucionais 86/2015 e 95/2016 e o processo de subfinanciamento do SUS

A EC 86 e a EC 95 introduziram dispositivos com efeitos negativos para o planejamento e execução orçamentária e financeira do Ministério da Saúde, agravando o processo de subfinanciamento do SUS: a primeira estabeleceu a execução orçamentária obrigatória das emendas parlamentares individuais em 0,6% da Receita Corrente Líquida como parte das despesas que são computadas para o piso federal; e a segunda retira recursos orçamentários a partir de 2018 (baseado no piso federal referente ao valor apurado em 2017) e financeiros do SUS a partir de 2017 (baseado no “teto” global de despesas primárias pagas em 2016), ambos atualizados pela variação anual do IPCA/IBGE até 2036, mesmo que ocorra crescimento da receita – o que implicará na redução dessas despesas em termos per capita como decorrência do crescimento populacional no mesmo período.

A principal motivação para a promulgação da EC 95 foi a necessidade de reduzir o déficit primário (diferença negativa entre receitas e despesas primárias) por meio de um ajuste fiscal concentrado na redução dessas despesas, para geração de superávit primário destinado ao financiamento das despesas financeiras (principalmente juros e amortização da dívida pública) que, diferentemente das primárias, não terão nenhuma limitação até 2036 e, também, não serão auditadas.

Essa forma de ajuste fiscal, de caráter recessivo, com vigência fixada em vinte anos a partir do final de 2016, inviabilizou o processo de retomada do crescimento econômico, com prejuízo para as condições de vida e de saúde da maioria da população, especialmente como decorrência do desemprego e da queda dos níveis de renda, ainda presente em 2019. Nesse contexto do “teto” financeiro de despesas federais até 2036, aumenta a pressão pela alocação adicional de recursos estaduais e municipais para o financiamento do SUS.

Contudo, conforme Funcia11, a participação da União no processo de financiamento do SUS foi reduzida de 73% para 43% no período 1991-2017, compensada pelo aumento da alocação de recursos das esferas estadual (de 15% para 26%) e, principalmente, municipal (que cresceu 2,5 vezes nesse período – de 12% para 31%).

O Gráfico 1 ilustra o crescimento dos percentuais de aplicação em ações e serviços públicos de saúde (ASPS) com recursos próprios no período 2004-2017 pelas esferas estadual e municipal de governo. Enquanto os Estados têm aplicado percentuais próximos ao parâmetro mínimo de 12% da receita estadual base de cálculo, os Municípios têm aplicado de forma crescente muito acima do parâmetro mínimo de 15% da receita municipal base de cálculo – esses parâmetros foram estabelecidos pela EC 29 e pela LC 141.

Gráfico 1
Estados e municípios: aplicação com recursos próprios em ações e serviços públicos de saúde (em % das respectivas receitas base de cálculo).

Diante desse cenário, a capacidade de ampliação dos percentuais de aplicação em ASPS com recursos próprios por essas esferas de governo, especialmente a municipal, está restringida também quando analisada em conjunto com as competências constitucionais de tributar e com a receita disponível de cada ente da Federação, respectivamente: segundo Afonso12, União (69% e 57%); estados (25% e 25%); e municípios (6% e 18%).

Em outros termos, mesmo após as transferências intergovernamentais (pelo conceito de receita disponível), a União ainda detém a maior parte dos recursos, o que tornou a descentralização constitucional da política de saúde excessivamente dependente das transferências federais, no caso do SUS, a quase totalidade na modalidade fundo a fundo – quase 2/3 do orçamento do Ministério da Saúde são despesas com essas transferências para os fundos estaduais e municipais de saúde.

Piso ASPS no Orçamento Federal do SUS para 2019

O valor do piso ASPS no Orçamento Federal da União de 2019 é de R$ 117,293 bilhões e R$ 560,41 per capita, abaixo dos respectivos valores empenhados de 2014 a 2018 (a preços de 2019). Esses valores representam 13,87% da Receita Corrente Líquida (RCL) da União e 1,65% do PIB brasileiro, abaixo das proporções observadas em 2017 e 2018, conforme Tabela 1.

Tabela 1
Ministério da Saúde: Avaliação das Despesas Empenhadas com Ações e Serviços Públicos de Saúde de 2014 a 2018 e do Piso Federal da Saúde para 2019.

O orçamento federal do SUS expressa também um forte componente de participação parlamentar nas decisões das escolhas de ações que serão empreendidas: conforme Funcia11, em 2018, as despesas ASPS empenhadas referentes às emendas parlamentares foi R$ 8,841 bilhões – o que representou 7,6% do total das despesas ASPS e 83,0% acima de R$ 4,832 bilhões (calculado de acordo com a regra estabelecida pela EC 86, isto é, 0,6% da Receita Corrente Líquida da União para execução obrigatória das emendas individuais).

Considerando outros dados analisados referentes à programação orçamentária de 2019, as despesas ASPS do Fundo Nacional de Saúde (R$ 106,363 bilhões) – unidade orçamentária do Ministério da Saúde que apresenta a maior alocação de recursos em comparação às demais – é apenas 0,63% (em termos nominais) maior que o valor executado em 2018 (R$ 105,692 bilhões), ou seja, abaixo da inflação de 3,90% projetada para 2019, o que representa uma queda real de recursos, também observada para a maioria das despesas selecionadas (valores acima de R$ 500 milhões) dessa unidade, conforme Tabela 2.

Tabela 2
Ministério da Saúde - Fundo Nacional de Saúde: principais despesas empenhadas em 2018 e programadas no orçamento de 2019 (em R$ 1,00 a preços correntes).

A seleção de despesas do FNS acima de R$ 500 milhões representa em torno de 96% do total das despesas dessa unidade: das 18 selecionadas, 12 apresentam variação nominal de recursos para 2019 abaixo da inflação projetada de 3,90%. Dessas, 8 estão com variação nominal negativa e 4 com variação entre zero e 3,90%.

Dentre as variações negativas, destacam-se Emendas Vinculadas ao Fundo Nacional de Saúde (-5,23%), Saúde Índigena (-7,48%), Medicamentos Excepcionais (-23,31%) e Reaparelhamento Unidades do SUS/MS (-36,47%); a variação negativa em Vacinas e Vacinação (-19,90%) decorre das alterações nos procedimentos de realocação orçamentária e execução das despesas – do Fundo Nacional de Saúde para a Fundação Oswaldo Cruz (o valor deste item nessa unidade apresenta um expressivo crescimento nominal e real).

No caso das variações positivas, os destaques são para Farmácia Básica-PAB (20,67%), Qualificação Profissional do SUS (16,7%), Incentivo Financeiro-Vigilância em Saúde (13,55%) o Programa Saúde da Família (11,71%); entretanto, como as variações consolidadas das despesas do FNS e das despesas selecionadas do FNS são semelhantes (respectivamente, 0,63% e 0,40%), é possível inferir que houve uma realocação interna no processo de programação de despesas, cujo resultado expressa uma variação nominal abaixo da inflação.

Aspectos da Execução Orçamentária do Ministério da Saúde em 2017 e 2018

As despesas empenhadas na Função Saúde (ASPS e não ASPS) em 2017 foram analisadas à luz das principais subfunções de governo que integram a classificação das dotações orçamentária do Ministério da Saúde, destacadas aqui da seguinte forma: Atenção Básica (AB), Assistência Hospitalar e Ambulatorial (AHA), Suporte Profilático e Terapêutico (SPT), Vigilância Epidemiológica (VE), Vigilância Sanitária (VS) e Outras Subfunções (OSF).

O Gráfico 2 revela a participação percentual das despesas por subfunção de governo no período 2009 a 2017, com forte predomínio da alocação de recursos para a AHA. Nesse período, a razão das despesas entre as subfunções “AB/AHA” apresentou crescimento no período 2009 a 2014 e estagnou em seguida, considerando a média do período 2014 a 2017, o que pode ser resultado de uma mudança de orientação da política de saúde combinado com os efeitos da EC 95.

Gráfico 2
Ministério da Saúde – Participação percentual das principais subfunções em termos de valores empenhados e razão entre as subfunções “Atenção Básica/Assistência Hospitalar Ambulatorial” no período 2009-2017.

Legenda: AB = Atenção Básica; AHA = Assistência Hospitalar Ambulatorial.


Segundo Funcia11, em 2017, também foi verificado um crescimento tanto dos empenhos a pagar no final do exercício (acima de 81%), como dos restos a pagar inscritos e reinscritos para execução nesse exercício (acima de 50%); ambas situações podem ser explicadas pelo teto financeiro da EC 95/2016 que condicionou a liquidação e o pagamento das despesas empenhadas em 2017 e dos restos a pagar. Ainda que em menor escala, este fato voltou a ocorrer em 2018, evidenciando um novo patamar dos valores de inscrição e reinscrição de restos a pagar – em torno de R$ 20,0 bilhões, acima dos R$ 14,0 bilhões verificados em 2016.

Quanto à execução orçamentária e financeira do Ministério da Saúde em 2018, há o indicador do nível de liquidação da despesa, tomando como referência os parâmetros adotados pela Comissão de Orçamento e Financiamento do Conselho Nacional de Saúde (Cofin/CNS) para analisar a execução da despesa executada pelo Ministério da Saúde. A Tabela 3 apresenta os itens de despesas do Fundo Nacional de Saúde com baixa execução, evidenciando um comportamento reincidente nos períodos analisados. Esse baixo nível de liquidação pode estar relacionado tanto à dinâmica da execução orçamentária, em que a velocidade da realização da despesa influi na alocação dos recursos (que são escassos e de usos alternativos) durante o ano, como aos efeitos da EC 95.

Tabela 3
Ministério da Saúde - Fundo Nacional de Saúde - Grupos de itens de despesas com baixa execução segundo os níveis de liquidação1 classificados como intoleráveis e inaceitáveis no 3ª quadrimestre de 2018 (e a classificação nos quadrimestres e semestres anteriores a partir de 2016)

Critérios para a Identificação das Fontes e Alocação de Recursos Adicionais

O debate em torno da necessidade de recursos adicionais para o financiamento do SUS tem demonstrado que não há contradição entre aqueles que defendem tal necessidade e os que querem priorizar a gestão. É possível afirmar, inclusive, que é preciso alocar mais recursos orçamentários e financeiros para o SUS de modo a permitir também o aprimoramento da gestão – afinal, considerando as três esferas de governo, o SUS gastou aproximadamente R$ 3,60 per capita por dia, conforme Funcia11.

O Conselho Nacional de Saúde18 aprovou um documento contendo as referências para novas fontes de financiamento: “sejam exclusivas para o SUS e prioritariamente para as ações e serviços de natureza pública, sem aprofundar o caráter regressivo da tributação vigente no Brasil” e “tenham previamente definidas a destinação destes recursos para a mudança do modelo de atenção, para que a atenção primária seja a ordenadora do cuidado, e para a valorização dos servidores públicos da saúde”.

Considerando essas referências, quais seriam as estimativas desses recursos adicionais e quais despesas poderiam ter os recursos orçamentários e financeiros ampliados?

Em resposta à primeira pergunta, seguem três estimativas:

  1. Se o Projeto “Saúde+10” (Projeto de Lei Complementar 321/2013) tivesse sido aprovado pelo Congresso Nacional, o SUS contaria com a aplicação mínima de 10% das receitas correntes brutas (RCB) da União – conforme Brasil, Secretaria do Tesouro Nacional15, a RCB foi de R$ 1.535.662.595.325,00 em 2018 - o que corresponderia a R$ 153,566 bilhões, isto é, uma alocação anual adicional de recursos ao orçamento federal do SUS de aproximadamente R$ 36,0 bilhões em comparação ao que foi empenhado em ASPS em 2018 (R$ 117,293 bilhões, conforme Tabela 1 deste artigo);

  2. Se, como resultado de um processo da auditoria da dívida pública, fosse possível reduzir R$ 200,0 bilhões das despesas com juros e amortização da dívida pública de um total estimado em R$ 1.065.725.301.673 em 2018, conforme Auditoria Cidadã da Dívida19, metade desse valor (R$ 100,0 bilhões), quando o país voltasse a ter superávit primário, poderia ser alocado anualmente para o SUS; e

  3. Se a renúncia de receita federal, estimada por Brasil, Secretaria da Receita Federal do Brasil20 em R$ 306,4 bilhões para 2019, fosse auditada, revisada e reduzida em 30%, haveria aproximadamente R$ 92 bilhões adicionais de receita ao Tesouro Nacional que poderiam ser alocados para o financiamento do SUS. Uma parcela desse valor poderia ser encontrada a partir da auditoria, revisão e redução da renúncia de receita somente vinculada à saúde – segundo Ocke-Reis9, esse valor em 2015 foi de R$ 32,3 bilhões (equivalente a 11,7% do total), sendo R$ 12,5 bilhões referentes aos “subsídios que patrocinam o consumo no mercado de planos de saúde”.

Em resumo: as estimativas de recursos adicionais para o SUS apresentadas anteriormente em “b” e “c” (respectivamente, R$ 100 bilhões e R$ 92 bilhões por ano) estão muito acima do requerido pelo Projeto “Saúde+10”, além de possibilitar o financiamento federal para aumentar gasto consolidado em saúde (soma das três esferas de governo) para cifras entre R$ 300 bilhões e R$ 365 bilhões (ou entre 4,3% e 5,4% do PIB) – ainda inferiores ao parâmetro mínimo internacional de 7,9% do PIB encontrado para os sistemas de acesso universal, como o do Reino Unido, conforme a Organização Mundial de Saúde21.

Quanto à resposta da segunda pergunta (“quais despesas poderiam ter os recursos orçamentários e financeiros ampliados”), se houvesse a decisão política de:

  1. Rever o modelo de atenção à saúde para priorizar fortemente a atenção básica e, dentre as iniciativas para esse fim, fosse proposto quadruplicar o valor da despesa empenhada para o Piso de Atenção Básica-PAB Fixo em 2018 (R$ 5,150 bilhões), conforme Brasil, Ministério da Saúde/SPO14, seriam necessários R$ 15,500 bilhões/ano de recursos adicionais;

  2. Fortalecer a assistência farmacêutica e, dentre as iniciativas para esse fim, fosse proposto quadruplicar os recursos orçamentários para a Farmácia Básica-PAB em comparação ao valor empenhado em 2018 (R$ 1,500 bilhão), conforme Brasil, Ministério da Saúde/SPO14, seriam necessários aproximadamente R$ 4,5 bilhões/ano de recursos adicionais;

  3. Ampliar em 50% o valor das despesas empenhadas com Programa de Agentes Comunitários de Saúde e do Programa de Saúde da Família (PACS/PSF) pelo Ministério da Saúde em 2018 (R$ 14,622 bilhões), conforme Brasil, Ministério da Saúde/SPO14, a serem transferidos na modalidade fundo a fundo para os Municípios, seriam necessários R$ 7,300 bilhões/ano de recursos adicionais.

  4. Quadruplicar o valor das despesas empenhadas com o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) pelo Ministério da Saúde em 2018 (R$ 1,078 bilhão), conforme Brasil, Ministério da Saúde/SPO14, a serem transferidos na modalidade fundo a fundo para os municípios, seriam necessários R$ 3,200 bilhões/ano de recursos adicionais.

O resultado da soma dos valores de recursos adicionais para fortalecer as ações e serviços públicos de saúde conforme descrição de I a IV é de R$ 30,5 bilhões, muito inferior aos valores sugeridos em “b” e “c” (cuja soma resulta até um valor total de R$ 192 bilhões) de novas fontes de financiamento. É possível inferir que há espaço fiscal para buscar uma equação política que resulte em recursos adicionais para o financiamento federal do SUS no curto prazo sem a necessidade de realização de uma reforma tributária (cujos conflitos de interesses e efeitos sobre o nível de atividade econômica requerem tempo para encontrar uma proposta de consenso) e sem comprometer a meta de equilíbrio das contas públicas. Tal cenário, se efetivado, contribuiria para estimular o crescimento econômico com geração de emprego e renda, considerando a importância do setor saúde na economia brasileira, com efeitos positivos sobre a qualidade de vida e de saúde da população.

Considerações Finais

O SUS precisa de novas fontes de receita permanentes, estáveis e exclusivas (com previsão legal de proibição de desvinculação e respeito ao princípio da capacidade contributiva ou progressividade), considerando a restrita possibilidade do aumento da participação dos estados e municípios no financiamento do SUS (juntos representam 57%) e a queda da participação federal observada desde o início dos anos 90, que deve continuar em razão da redução do piso federal decorrente da EC 95, conforme demonstrado anteriormente.

De um lado, seria imprescindível tributar as grandes fortunas, as heranças (rever o atual Imposto Transmissão Causa Mortis e Doação – ITCMD, de competência estadual), as grandes transações financeiras, os dividendos, bem como criar alíquotas mais elevadas no Imposto de Renda tanto para os altos rendimentos, como para produtos como tabaco, álcool, bebidas açucaradas, etc. Trata-se de um debate em que emerge conflito de interesses existente na sociedade, o que requer tempo para a construção de consenso político para viabilizar a aprovação dessa reforma tributária.

Mas, de outro lado, essa busca por novas fontes poderia ser iniciada com a auditoria cidadã da dívida pública e com a auditoria da renúncia de receita, que permitiriam um ingresso adicional de recursos para o Tesouro Nacional em R$ 292,0 bilhões, dos quais até R$ 192,0 bilhões para o SUS, conforme cálculos realizados anteriormente, muito acima do necessário para a mudança do modelo de atenção à saúde de modo a priorizar a atenção básica. Neste caso, não haveria o desgaste decorrente de uma reforma tributária, nem comprometeria a meta de restabelecer o equilíbrio das contas públicas.

A defesa do SUS e de seu financiamento adequado deve estar integrada à garantia da seguridade social e dos direitos de cidadania inscritos na Constituição Federal, de forma oposta à retirada que está ocorrendo com o apoio do Congresso Nacional mediante a aprovação de Propostas de Emenda à Constituição sob o patrocínio dos governos dos Presidentes Temer (2016-2018) e Bolsonaro (a partir de janeiro de 2019), que aprofundam os efeitos negativos da EC 95 para o desenvolvimento socioeconômico e, especialmente, para o financiamento do SUS.

Referências

  • 1 Vignoli F, Funcia FR. Planejamento e Orçamento Público Rio de Janeiro: Editora FGV; 2014.
  • 2 Arretche M. Uma contribuição para fazermos avaliações menos ingênuas. In: Barreira MCRN, Carvalho MCB, organizadores. Tendências e Perspectivas na Avaliação de Políticas e Programas Sociais São Paulo: IEE/PUC; 2001. p. 43-56.
  • 3 Arretche M. Democracia, federalismo e centralização no Brasil Rio de Janeiro: Editora FGV; 2012.
  • 4 Marques RM, Piola SF, Ocke-Reis CO. O financiamento do SUS numa perspectiva futura. In: Marques RM, Piola SF, Roa AC, organizadores. Sistema de Saúde no Brasil: organização e financiamento Brasília: MS, Departamento de Economia da Saúde, Investimento e Desenvolvimento, OPAS/OMS no Brasil; 2016. p. 247-258.
  • 5 Mendes A, Funcia FR. O SUS e seu financiamento. In: Marques RM, Piola SF, Roa AC, organizadores. Sistema de Saúde no Brasil: organização e financiamento Brasília: MS, Departamento de Economia da Saúde, Investimento e Desenvolvimento, OPAS/OMS no Brasil; 2016. p. 139-168.
  • 6 Piola SF, Barros E. O financiamento dos serviços de saúde no Brasil. In: Marques RM, Piola SF, Roa AC, organizadores. Sistema de Saúde no Brasil: organização e financiamento Brasília: MS, Departamento de Economia da Saúde, Investimento e Desenvolvimento, OPAS/OMS no Brasil; 2016. p. 101-138.
  • 7 Marques RM. Notas exploratórias sobre as razões do subfinanciamento estrutural do SUS. Planejamento e Políticas Públicas 2017; 49:35-53.
  • 8 Santos Neto JA, Mendes AN, Pereira AP, Paranhos LR. Análise do financiamento e gasto do Sistema Único de Saúde dos municípios da região de saúde Rota dos Bandeirantes do estado de São Paulo, Brasil. Ciên Saude Colet 2017; 22(4):1269-1280.
  • 9 Ocke-Reis CO. Sustentabilidade do SUS e renúncia de arrecadação fiscal em saúde. Ciên Saude Colet 2018; 23(6):2035-2042.
  • 10 Noronha JC, Noronha GS, Pereira TT, Costa AM. Notas sobre o futuro do SUS: breve exame de caminhos e descaminhos trilhados em um horizonte de incertezas e desalentos. Ciên Saude Colet 2018; 23(6):2051-2060.
  • 11 Funcia FR. Financiamento: perspectivas para os próximos 4 anos. In: 33º Congresso de Secretários Municipais de Saúde do Estado de São Paulo [apresentação na Internet]. 2019 Mar 27-29; São Paulo, Brasil. [acessado 2019 Ago 11]. Disponível em: http://www.cosemssp.org.br/congresso/congresso-2019/programacao/apresentacoes/
    » http://www.cosemssp.org.br/congresso/congresso-2019/programacao/apresentacoes/
  • 12 Afonso JR. Federalismo Fiscal Brasileiro: uma visão atualizada. Caderno Virtual [periódico na Internet] 2016 [acessado 2019 Ago 11]; 1(34):[cerca de 24 p.]. Disponível em: https://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:f8a6IaN0E_cJ:https://www.portaldeperiodicos.idp.edu.br/cadernovirtual/issue/download/157/4+&cd=17&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br
    » https://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:f8a6IaN0E_cJ:https://www.portaldeperiodicos.idp.edu.br/cadernovirtual/issue/download/157/4+&cd=17&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br
  • 13 Brasil. Ministério da Saúde (MS)/Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde (SIOPS) [página na Internet]. Brasília: MS, Departamento de Economia da Saúde e Investimentos e Desenvolvimento; 2019. [acessado 2019 Abr 04]. Disponível em: http://siops.datasus.gov.br/evolpercEC29.php
    » http://siops.datasus.gov.br/evolpercEC29.php
  • 14 Brasil. Ministério da Saúde (MS)/Subsecretaria de Planejamento e Orçamento (SPO). Relatórios Anuais de Gestão 2014 a 2017, Relatório de Prestação de Contas Quadrimestrais 2016 a 2018 e planilhas de execução orçamentária disponibilizadas ao Conselho Nacional de Saúde até março de 2019 Brasília: MS/SPO; 2015 a 2019.
  • 15 Brasil. Ministério da Fazenda (MF)/Secretaria do Tesouro Nacional (STN). Demonstrativo da Receita Corrente Líquida Brasília: MF/STN; 2014 a 2019.
  • 16 Banco Central do Brasil. Relatório FOCUS Brasília: BCB; 2019.
  • 17 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Séries do Produto Interno Bruto (PIB), Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) e População [página na Internet]. Brasília: IBGE; 2014 a 2018. [acessado 2019 Abr 14]. Disponível em: http://www.ibge.gov.br
    » http://www.ibge.gov.br
  • 18 Conselho Nacional de Saúde (CNS). Seminário CNS/COFIN no 11º Congresso da Associação Brasileira de Saúde Coletiva - Documento Final - 28 de Julho de 2015 [documento na Internet]. Brasília: CNS; 2015. [acessado 2019 Ago 11]. Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/ultimas_noticias/2015/docs/documento_final_seminario_cns_Cofin_abrasco.pdf
    » http://conselho.saude.gov.br/ultimas_noticias/2015/docs/documento_final_seminario_cns_Cofin_abrasco.pdf
  • 19 Auditoria Cidadã da Dívida. Dividômetro [página na Internet]. Brasília: Auditoria Cidadã da Dívida; 2019. [acessado 2019 Abr 15]. Disponível em: https://auditoriacidada.org.br
    » https://auditoriacidada.org.br
  • 20 Brasil. Ministério da Fazenda (MF), Secretaria da Receita Federal do Brasil. Demonstrativo dos Gastos Tributários PLOA 2019 Brasília: MF; 2018.
  • 21 Organização Mundial da Saúde (OMS). Domestic general government health expenditure (GGHE-D) as percentage of gross domestic product (GDP) (%) [página na Internet]. Geneva: WHO; 2017. [acessado 2018 Mar 24]. Disponível em: http://apps.who.int/gho/data/node.main.GHEDGGHEDGDPSHA2011?lang=en
    » http://apps.who.int/gho/data/node.main.GHEDGGHEDGDPSHA2011?lang=en

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Nov 2019
  • Data do Fascículo
    Dez 2019

Histórico

  • Recebido
    15 Abr 2019
  • Aceito
    12 Jul 2019
  • Publicado
    03 Set 2019
location_on
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Av. Brasil, 4036 - sala 700 Manguinhos, 21040-361 Rio de Janeiro RJ - Brazil, Tel.: +55 21 3882-9153 / 3882-9151 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cienciasaudecoletiva@fiocruz.br
rss_feed Acompanhe os números deste periódico no seu leitor de RSS
Acessibilidade / Reportar erro