DEBATEDORES DISCUSSANTS
Blanca Susana Guevara Werlang
Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Pontifícia Universidade do Rio Grande do Sul (PUCRS). bwerlang@pucrs.br
Pensar e abordar o tema da morte como consequência natural da vida é, muitas vezes, uma situação de difícil manejo que envolve algum grau de dificuldade. Esta circunstância se amplia significativamente quando o tema específico através do qual se fala da morte é o suicídio. É difícil compreender e explicar porque algumas pessoas decidem cometer suicídio, enquanto outras em situação similar ou pior não o fazem. Esse comportamento resulta, sem dúvida, de uma complexa interação de fatores biológicos, psicológicos, sociais, culturais e ambientais.
Dessa forma, torna-se evidente a importância e relevância de estudos sobre este tema, pois, como bem destacam Werlang et al.1, o comportamento suicida contempla, independente do ponto de vista pelo qual é analisado, uma dimensão central relacionada ao sofrimento. Pode-se pensar no sofrimento que leva o indivíduo ao ato suicida, no sofrimento resultante do enfrentamento familiar frente ao suicídio de um de seus membros, assim como nas consequências sociais que tal ato provoca.
Nessa direção, acredita-se que a ideia básica que predomina entre os profissionais da área da saúde é a de fazer o possível e até o impossível em beneficio das pessoas em sofrimento, objetivando sempre a vida por ser esta o bem maior de todo ser humano. Entendo que certamente este seja o motivador de Fátima Cavalcante e Maria Cecília Minayo para se envolverem com a temática do suicídio e a operacionalizar um estudo multicêntrico com o objetivo de identificar e compreender as variáveis que interagem e alimentam a associação do evento suicídio com a velhice.
O artigo Autópsias psicológicas e psicossociais de idosos que morreram por suicídio no Brasil retrata um estudo de pertinência cientifica, clínica e social. O texto traz informações muito importantes relacionadas a fatores de risco e de proteção que podem possibilitar a implementação de ações para a prevenção do suicídio em idosos. Vários aspectos do artigo poderiam ser comentados, mas optei problematizar alguns deles.
Entendo que o ponto principal do artigo é a estratégia utilizada para a coleta dos dados. A mais de uma década que estudo problemáticas relacionadas ao suicídio e utilizo a autópsia psicológica por entender que, por meio deste recurso de exames retrospectivos, torna-se possível alcançar importantes elementos referentes à compreensão do suicídio. Este tipo de avaliação tem possibilitado identificar pistas diretas ou indiretas relacionadas ao comportamento letal que estava por ocorrer, esclarecendo a intenção e o papel do falecido em relação à sua própria morte. Através do método que se convencionou chamar de "autópsia psicológica", expressão cunhada por Shneidman no final dos anos cinquenta2, pode-se compreender os aspectos psicológicos envolvidos em uma morte específica. A autopsia psicológica nasce como um procedimento para assessorar médicos forenses para classificar com maior precisão o registro de suicídio (ato de se matar intencionalmente) no certificado de óbito. Rapidamente torna-se um procedimento aceito e muito utilizado. Entretanto, por tratar-se de uma estratégia de avaliação complexa, que carecia de um modelo de procedimento estruturado, e na ausência do objeto em estudo, a vítima, alguns estudiosos entenderam que tanto o informante (familiares, amigos, médicos, etc.) quanto o profissional entrevistador poderiam estar potencialmente vulneráveis a tendenciosidades3,4. Ciente deste problema e explorando um aspecto de minha formação profissional desenvolvi uma Entrevista Semiestruturada para Autópsia Psicológica (ESAP) na minha tese de doutorado5. A proposta foi viabilizar um estudo6,7 para diminuir o viés produzido pela subjetividade no uso deste recurso de avaliação, investigando a aplicabilidade desse instrumento para a autópsia psicológica, cujos dados demonstrassem permitir um grau razoável de concordância entre avaliadores. Outras produções8-10 decorreram desta Tese e a ESAP já foi adaptada para o espanhol11 num estudo desenvolvido na Espanha.
Então, a autópsia psicológica é uma estratégia utilizada para delinear as características psicológicas de vítimas de morte violenta, sendo utilizada durante o curso de uma investigação de morte, para auxiliar a determinar o modo de morte de um indivíduo, especialmente em casos duvidosos. Com o passar do tempo, este recurso que muito auxiliou a médicos legistas e profissionais da área do direito penal e cível3,4, passou, também, a contribuir na corroboração e/ou identificação de novos fatores de risco e correlatos sociodemográficos do suicídio. É com esta finalidade que Fátima Cavalcante e Maria Cecília Minayo desenvolveram e utilizaram o "Roteiro de entrevista semiestruturado para autopsias psicológicas e psicossociais". Com base na literatura científica organizaram um roteiro composto por 43 perguntas que avaliam aspectos sociais, modo de vida, estado mental, descrição do suicídio e aspectos familiares. Fico muito feliz frente à constatação de que profissionais qualificadas e identificadas com a preocupação e a necessidade de auxiliar na promoção da saúde, estejam empenhadas em qualificar a estratégia de autópsia psicológica. Trabalhos científicos como este, contribuirão com a qualificação da estratégia de autópsia psicológica para que esta deixe de ser vista como um recurso subjetivo, não fidedigno e com dificuldades para chegar a ser um instrumento adequadamente validado.
Entendo que um dos problemas que os profissionais da área da saúde enfrentam é saber como predizer que indivíduos potencialmente suicidas, vão transformar suas fantasias e/ou ideações em atos concretos5. Mas, estudos como o realizado por Fátima Cavalcante e Maria Cecília Minayo, colaboram, em muito, no sentido de alertar para os sinais que devem ser procurados na história de vida e no comportamento das pessoas como indicativo de risco de atos autoinfligidos fatais.
Outro aspecto importante do texto é a questão do entendimento da morte por suicídio em uma determinada etapa do ciclo vital. Sabemos que o evento morte pode ocorrer a qualquer momento, contudo a maioria das pessoas deseja e espera alcançar e usufruir a longevidade. A ciência progrediu e os avanços alcançados em todas as áreas do conhecimento têm contribuido para aumentar a duração média de vida. Assim, na sociedade atual o número de pessoas idosas tem aumentado significativamente. Acabou, portanto, a vigência da ideia de que um idoso não tem futuro. As pessoas estão vivendo mais e os cuidados com a saúde têm possibilitado diminuir as limitações e as incapacidades típicas deste momento da vida. A velhice, não é mais vista apenas como um processo desfavorável de perdas fisiológicas, psicológicas e sociais que levava rapidamente a morte.
Mas, embora os avanços científicos sejam evidentes e tenham contribuído para incrementar os anos de vida da população, em termos mundiais e nacionais, o crescimento do risco de suicídio tem aumentado com a idade. O suicídio, em qualquer faixa etária, é um fenômeno trágico, doloroso, que impressiona, choca e coloca o indivíduo frente a uma situação sem ponto de retorno, afetando emocionalmente a todos os que estão relacionados, direta ou indiretamente, a este fato12. Quando a ocorrência de um comportamento autodestrutivo se dá na velhice, a repercussão e os questionamentos além de serem muito inquietantes dão voz à visão antiga da velhice como aquela etapa em que predomina unicamente um contexto de declínio e perdas. Por que uma pessoa idosa que alcança a possibilidade da longevidade decide dar cabo de si mesmo? Todas as experiências acumuladas ao longo dos anos não foram suficientes para instrumentalizá-las no enfrentamento de suas dificuldades?
A questão que se impõem à reflexão, diz respeito à constatação do fato de que além do valioso avanço científico que facilita uma maior expectativa de vida, cada vez mais é necessário aportes que venham a contribuir e garantir a melhoria da qualidade de vida das pessoas. Neste sentido, entendo que não se pode compreender a singularidade da velhice sem se fazer um recorte de suas interfaces com o contexto social, político e cultural no qual o idoso habita. No Brasil o processo de envelhecimento, não é acompanhado de melhorias no atendimento no sistema de saúde, nas condições de habitação, trabalho e alimentação. O contexto é de desigualdade social e da falta de estruturas para responder adequadamente às demandas do idoso.
Os dados identificados por Fátima Cavalcante e Maria Cecília Minayo são claros e denunciam a vulnerabilidade de 51 idosos de dez municípios brasileiros. Estes cometeram suicídio atormentados pela sobrecarga financeira/endividamento pessoal ou familiar, abusos e desqualificações, morte e adoecimentos de parentes, doenças físicas/limitação da capacidade funcional, sintomas/transtornos mentais, isolamento social/solidão/falta de apoio e ideações, tentativas e suicídio na família.
Urge pensar em ações e políticas públicas de saúde que possibilitem aproximar os benefícios da ciência, aos idosos de todos os contextos socioeconômicos de nosso país. Devemos compreender o idoso em seu processo de vida, conhecer suas potencialidades e fragilidades e colaborar para que este mantenha sua posição junto ao grupo familiar e à sociedade.
Um ponto alto do texto de Fátima Cavalcante e Maria Cecília Minayo é a descrição mais detalhada de seis casos, dos 51 estudados com o Roteiro de entrevista semiestruturado para autopsias psicológicas e psicossociais. A estratégia de autópsia psicológica possibilita reconstruir a biografia da pessoa falecida focando a intenção do morto em relação a sua própria morte5. Nos casos apresentados é clara a vivência de uma dor psicológica insuportável, o que possibilita afirmar que o suicídio, não é um ato aleatório, sem finalidade, pelo contrário, é vivenciado como a melhor saída disponível frente a uma situação conflituosa para o sujeito e tem o propósito de viabilizar uma solução para um sofrimento muito intenso. O alvo é interromper o fluxo doloroso de consciência, parando com o sentimento invasor de desesperança que deixa o indivíduo derrotado e sem saída para a vida3,4.
Mas, não podemos perder de vista que o suicídio, em qualquer faixa etária, pode ser prevenido. Os fatores identificados por Fátima Cavalcante e Maria Cecília Minayo relacionam-se a: doenças e deficiências, depressão e estados depressivos, conflitos familiares e crises conjugais. Concordamos que os esforços de prevenção do comportamento suicida devem estar pautados no conhecimento desses e de outros fatores de risco, sendo fundamental que as ações12 se voltem ao que pode ser transformado, evitando aquilo que possa ser evitado e amenizando o que foge de qualquer possibilidade de intervenção. Como destacam Botega et al.12 pensar em aspectos preventivos do suicídio significa acreditar que se possam oferecer aos indivíduos outras possibilidades de enfrentamento das dificuldades ou patologias que os levam a buscar, nesse ato fatal, uma espécie de solução para seu sofrimento. Da mesma forma, entendo que abordar a temática da prevenção do suicídio conclama a todos os profissionais da área da saúde a estudar e a reconhecer a singularidade de fatores envolvidos nesta complexa situação. Daí outro aspecto relevante do estudo das autoras: a produção de conhecimento científico a ser compartilhado com outros profissionais.
Finalizando, gostaria de agradecer pela oportunidade de participar deste debate e enfatizar que estudos, como este que foi debatido, são fundamentais e contribuirão para estruturar ações de prevenção e atendimento baseadas em evidências científicas.
Referências bibliográficas
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
24 Jan 2013 -
Data do Fascículo
Ago 2012