RESENHAS BOOK REVIEWS
Elaine Ferreira do Nascimento
Instituto Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz
Barker G. Homens na linha de fogo: juventude, masculinidade e exclusão social. Rio de Janeiro: 7Letras; 2008. 256 p.
Gary Barker é psicólogo e doutor em psicologia do desenvolvimento infanto juvenil pela Loyola University. Foi durante longo período diretor do Instituo PROMUNDO e hoje ocupa o cargo de diretor de gênero, violência e direitos da SRW. Vem se debruçando há mais de duas décadas em pesquisas que têm gerado ações interventivas para e com homens jovens, sendo um dos principais atores sociais em promover a visibilidade dos homens jovens para além de potenciais autores de violência contra a mulher e outros homens considerados inferiores.
O objetivo do seu trabalho de campo, que podemos chamar de experiências e vivências que vem colhendo ao longo de praticamente dez anos, é apresentar um conjunto de pesquisas que envolvem situações de homens jovens, em contextos a princípio distintos, porém nem tanto, pois o eixo estruturante é sempre o mesmo e pode ser visto como um elemento comum e aglutinador entre esses homens de diversas partes do mundo. Os campos da pesquisa foram Rio de Janeiro, Chicago, Caribe e algumas cidades de países da África Subsaariana. Os elementos comuns foram masculinidade, juventude e raça/etnia, atravessadas pela questão de desigualdade de classe.
Gary busca refletir, a partir de uma série de questões que coloca ao mesmo tempo para si e para seus interlocutores e interlocutoras, ou seja, nós, que apesar da existência de múltiplas masculinidades, de um modo geral, a literatura tem quase que exclusivamente dado espaço ou explorado as facetas negativas das masculinidades.
O exercício que o autor faz é bastante interessante, pois apresenta um contexto em que várias características consideradas como pertença da masculinidade podem ser vistas como um processo naturalizado e se, por acaso, os homens não conseguem exercê-la, podem ser vistos como fragilizados e desmoralizados. Essas características se relacionam a questões étnicas/raciais e desigualdade de classe, gerando menos poder para um determinado grupo de homens.
Nessa perspectiva, ser negro e pobre são variáveis que podem ser consideradas de menor valia, o que pode acarretar um conjunto de situações desfavoráveis a muitos homens, em particular, aos homens jovens. Esse cenário poderia provocar uma grande bomba explosiva e, no entanto, ainda assim, há, de forma inegável e expressiva, homens que resistem à adesão a um scriptesperado, de ser violento ou pouco propositivo.
De fato é isso o que Gary nos põe a pensar; existem muito mais homens que não praticam violência do que o contrário e/ou mesmo assim a literatura de um modo geral não tem se ocupado deles.
Logo no início do texto, Gary apresenta como será a estrutura; para além disso, nos informa que dará um tom muito pessoal e não poderia ser de outra forma, uma vez que apresenta o livro a partir de suas próprias experiências de como se constitui em ser e estar no mundo como homem e em exercer a sua masculinidade.
Muito além de ser uma obra acadêmica, e não existe nenhuma preocupação com essa forma na pesquisa realizada pelo autor, apesar do rigor metodológico empregado no decorrer do processo, Gary busca uma forma muito subjetiva e paradoxalmente objetiva de nos brindar com sua visão de homem, branco, de classe média alta norte-americana e, portanto, privilegiada, mas com uma imensa sensibilidade de compreender o mundo para muito mais do que se espera de um homem que figura na hierarquia socioestrutural como dominador.
Para sustentar tal argumento, o autor organiza o livro em dez capítulos e mais um apêndice que se ocupa da parte metodológica de todas as pesquisas, com detalhes etnográficos riquíssimos.
O capítulo I descreve, a partir de dados de diversos estudos e pesquisas, articulados com diálogos que o próprio autor entabula, um conjunto de questões estruturais que tem posto tradicionalmente os homens, em particular os homens jovens, em situações extremas de vulnerabilidade e risco social. Ainda nesse capítulo, é apresentada a escolha do objeto de investigação: por que os homens jovens? Nesse processo, conjugam-se três dimensões que ao mesmo tempo são relacionais e estruturais: gênero (com recorte na masculinidade) e associado a juventude, classe (num contexto que discute exclusão social e acesso à saúde) e raça/etnia (ser negro ou, dependendo da etnia a que pertence, tende a agregar uma maior vulnerabilidade nas sociedades estudadas). O argumento central do capítulo é claramente exposto pelo autor [...] promover versões de masculinidade baseadas no respeito, na não-violência e em uma ética do cuidado em lugar de uma ética da violência e da dominação (p. 24).
O capítulo II situa quem é o homem que está por trás da escrita e, para tal revelação, Gary se apresenta de forma totalmente exposta; possivelmente, não poderia ser de uma outra forma. Faz questão de se colocar na primeira pessoa, de compartilhar experiência de forja de sua masculinidade e, portanto, seus medos em romper com os scripts, suas expectativas em não ser rejeitado e a sua coragem em poder superar o que estava colocado como hegemônico e só pode fazer isso ao deslocar ou relativizar os sujeitos que se encontram no lugar de dominadores, não justificando, obviamente, mas sempre problematizando que as armadilhas podem ser vias de mãos duplas.
Do terceiro ao sétimo capítulos, são apresentados cenários que têm como recorte principalmente as discussões de classe, raça/etnia, passando por situações de sociabilidade masculina, em que a violência (relação com gangues, tráficos e milícias) aparece fortemente num contexto em que há uma quase que total ausência do Estado em ofertar políticas públicas. Os homens jovens e negros são invisíveis para o Estado, residem em localidades, comunidades, bairros, territórios geográficos sem nenhum ou pouquíssimo investimento estatal, mas assim como o restante da população, são contribuintes e isso não significa nenhuma diferença. A rede socioassistencial nesses espaços será mínima; desta feita, o acesso e permanência nas escolas públicas serão sempre de muita dificuldade, um sistema de educação que não consegue dialogar com esses jovens. Por sua vez, tanto a renda quanto a capacidade de uma inserção melhor no mercado formal de trabalho será ínfima. Com todo esse cenário desfavorável, os homens jovens do estudo apresentam uma outra inserção de ser e estar no mundo, diferente de exercer a violência como a única possibilidade de expressão.
Então, será a partir de um conjunto de relatos e experiências compartilhadas desses jovens que outras histórias são contadas, apresentando um universo que pouco tem sido explorado.
O capítulo VIII relata as experiências de relacionamentos sexuais em tempos de aids e das relações de desigualdade de gênero. Discute muito a presença da tensão e conflito das relações entre homens e mulheres jovens e, em particular, na cidade do Rio de Janeiro, os jovens apontam não terem exemplos positivos dessas relações dos seus ambientes familiares e mesmo do espaço mais amplo em que são socializados, tendo por muitas vezes crescido em contextos de violência doméstica ou sido testemunha ocular da violência que suas mães sofriam por parte de seus pais ou padrastos ou mesmo vítimas dessas violências. Muito foi problematizado pelo autor acerca das desigualdades de gênero, em que as visões dos jovens estão inseridas num contexto ainda pouco favorável para mudanças das relações entre homens e mulheres; porém, existem jovens que tendem a questionar essas desigualdades e que acham que os homens não devem ter mais poder do que as mulheres. Outra discussão apontada nesse capítulo pelos jovens é de que as meninas das comunidades pouco valorizam os rapazes se eles não são pertencentes aos grupos de gangues ou do tráfico, pois eles terão menos dinheiro e poder nos espaços em que residem.
O capítulo IX é trabalhado de forma muito singular; aqui será discutida a questão do exercício da paternidade. O autor dá, como sempre, voz aos jovens, buscando estabelecer uma análise e interpretação dos processos das relações mais ocasionais até as mais regulares e de longa duração. Como acontece esse processo, como esses jovens aprendem a lidar com a paternidade e de que forma esta relação com seus filhos promove mudanças significativas na vida desses jovens. São apresentadas várias histórias de como foi fundamental ser pai na juventude para que outras posturas, mais positivas, pudessem ser adotadas por esses jovens, ou seja, o que a literatura diz em relação à paternidade precoce, Gary põe em cheque.
E, por fim, o capítulo X é a conclusão do autor sobre a trajetória desse processo etnográfico. De acordo com Gary, um dos principais desafios a serem superados é o reconhecimento de que o processo de socialização dos homens e das mulheres tende a colocar armadilhas para a humanidade como um todo, como ele mesmo afirma [...] jovens demais estão morrendo para se tornarem homens morrendo por efeito da violência, da aids, de acidentes de carro e de outras causas que têm pouco a ver com questões genéticas e biológicas e muito a ver com a maneira pela qual eles são socializados (p. 201).
Gary defende com fervor que é preciso acreditar na capacidade de mudança dos homens e das mulheres em nossa sociedade. Assim, Homens na linha de fogo: juventude, masculinidade e exclusão social é um trabalho que fala muito da vida, do potencial de gerar produtos positivos e de que nós, homens e mulheres, somos capazes de realizar tal feito, está em nós essa possibilidade. Um exercício necessário é se implicar e não aceitar o que pode parecer natural, é questionar e acreditar em outros processos de sociabilidade de ser e estar no mundo. É uma obra que toca, pois fala do que é humano, do que é complexo e do que é fundamental para construirmos outras perspectivas de masculinidades e também de feminilidades em nosso cotidiano. Portanto, se faz um livro imperdível que nos toca e nos emociona da primeira a última página.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
27 Out 2009 -
Data do Fascículo
Ago 2009