Open-access Cohabitar la diferencia: de la reforma psiquiátrica a la salud mental colectiva

Cohabiting the difference: from psychiatric reform to collective mental health

Desviat, M. Cohabitar la diferencia: de la reforma psiquiátrica a la salud mental colectiva. Madrid: Editorial Grupo 5, 2016.

Manuel Desviat é um importante ator no processo da reforma psiquiátrica espanhola, tendo contribuído em diversas experiências na América Latina, inclusive no Brasil. Seu livro A Reforma Psiquiátrica1, lançado na Espanha em 1994, traduzido para o português em 1999 pela Editora Fiocruz e com uma segunda edição publicada em 2015, mantem-se como referência para profissionais, pesquisadores e outros interessados no campo da atenção psicossocial no Brasil.

Em seu último livro, lançado em Madrid em 2016, retoma, da forma aprofundada e consistente que caracterizam seu pensamento, as principais questões e desafios que cercam as reformas psiquiátricas nos sistemas de saúde contemporâneos.

O livro Cohabitar la diferencia constrói-se a partir da premissa, desenvolvida ao longo dos 12 capítulos, de uma necessária reforma da reforma psiquiátrica que passa pela atualização das formas de enfrentamento do mal-estar, com a inclusão da expertise experiencial de familiares e usuários.

Analisando o processo histórico, considera que, ao mesmo tempo que se fecham os manicômios, a redução biológica ganha terreno, amparada no suposto avanço da psicofarmacologia e das neurociências. A reforma, o modelo comunitário de atenção, se defronta então com três frentes adversas: a insuficiência de sua bagagem psicossocial, a crise de seu suporte principal – crise dos serviços sanitários, sociais e comunitários do chamado estado de bem-estar – e a crescente medicalização da sociedade.

Desviat observa, nos últimos anos, um deslocamento da prioridade sanitária para a prevenção, com a crescente promoção de um estilo de vida saudável e a busca por estratégias que fomentem a autoajuda. O autor chama a atenção para o fato de que esse tipo de iniciativa desconhece a influência das relações sociais e do modo de organização da sociedade na vivência do adoecimento mental, advertindo para a necessidade de análise crítica desse tipo de proposta. Retoma a análise de Bourdieu para apontar novas formas de dominação baseadas no capital cultural e simbólico, que se refletem na hipocrisia do discurso meritocrático do século XXI. Este modo discursivo tende a culpabilizar e responsabilizar aqueles que não se encaixam, fazendo daquele que fracassa diante da proposta capitalista um perdedor, sem nenhum tipo de consideração acerca da produção de desigualdade social e da heterogeneidade de oportunidades e possibilidades segundo a classe a que se pertence.

O autor enfatiza o aspecto social e histórico dos transtornos mentais ao retomar o caso da Espanha, com um aumento significativo entre 2006 e 2010 de pessoas atendidas na atenção primária e em uso de antidepressivos, decréscimo da esperança de vida e aumento do número de suicídios. Essa perspectiva o leva a enfatizar a necessidade de um olhar sobre a comunidade, que amplie a visão focada no adoecimento como processo individual de um sujeito, produzindo mudanças significativas nas instituições, modelo que exige compromisso social e ético, além de novas atitudes para seu enfrentamento.

Destaca alguns princípios que devem marcar as iniciativas clinicas e sociais para atender às demandas das pessoas com transtornos mentais graves, focando-se não apenas na modificação da sintomatologia e das condições de vida, mas acima de tudo na percepção subjetiva dos usuários acerca de sua vivência. Elenca, nesse sentido, algumas pré-condições para o trabalho clínico, que passam pelo respeito à diversidade, com o estabelecimento de propostas terapêuticas individuais e flexíveis, que respondam às diferentes necessidades que podem surgir ao longo de um tratamento, participação e implicação do usuário em seu processo de cuidado, consideração acerca do contexto cultural e dos valores envolvidos e ênfase na relação intersubjetiva.

No que se refere ao uso de psicofármacos em pessoas com transtornos mentais graves, Desviat mostra que as organizações de usuários têm se dividido entre uma perspectiva que recusa abertamente a medicação e outra que nega que esta seja a principal estratégia terapêutica. Iniciativas inovadoras são destacadas e comentadas pelo autor, como o Open dialog da Finlândia que busca realizar uma ação conjunta entre usuários, profissionais e familiares construindo um projeto adaptado às necessidades dos pacientes, com tratamento psicofarmacológico como medida auxiliar à psicoterapia, fornecido em doses baixas ou moderadas.

Desviat aponta ainda alguns casos de difícil resolução e que costumam ser medicalizados pela atenção primária ou por outros especialistas, sem que, no entanto, um transtorno mental justifique esta prática, como, por exemplo, em situações sociais específicas, como dificuldades de encontrar trabalho ou de lidar com ele. O uso de medicação pode ser prejudicial, sendo importante que os clínicos não se deixem seduzir pelo marketing das empresas farmacêuticas.

No que se refere à formação dos profissionais na prática comunitária, Desviat é bastante crítico e mostra o quanto o modelo tradicional ainda prevalece, o que ele atribui em grande parte à escassa importância que se deu à universidade no processo da reforma de um lado e, de outro, à pouca implicação da universidade no processo, situação que gera graves problemas que dizem respeito à formação curricular dos futuros profissionais, com o predomínio de correntes opostas aos princípios reformadores.

O autor demonstra preocupação com a tendência à privatização da saúde que se faz ver em alguns países da Europa e do mundo, assinalando efeitos que apontam mudanças na mentalidade e um retrocesso que tem gerado a abertura de serviços de psiquiatria, centrados na medicina hospitalocêntrica e meramente biológica. Em contrapartida, aponta para a insurgência de novas vozes que tem contestado e denunciado a colonização e a exploração de todos os âmbitos da vida no neocapitalismo, com efeitos de degradação ambiental, inequidade de gênero, pobreza, miséria urbana, xenofobia, intolerância religiosa, entre outros. A precarização da vida ganha contornos extremos, em contrapartida surgem vozes de resistência que fazem frente ao modelo de sociedade atual em fóruns e movimentos de contestação na luta por novas formas de governo e de representação.

Sobre a pungente situação dos refugiados na Europa, Desviat considera que a política da União Europeia viola direitos fundamentais à vida dos imigrantes, que enfrentam riscos na tentativa de escapar da guerra em seus países, a violência do fechamento de fronteiras e as condições de insalubridade nos campos de refugiados. As diretrizes da União Europeia em relação aos refugiados e imigrantes viola direitos fundamentais, desigualdade que adoece e mata assim como a pobreza que assola boa parte do mundo.

No momento de incerteza em que vive o Brasil no que concerne ao futuro do sistema sanitário público, e em particular no que diz respeito à manutenção das conquistas e ao desejável avanço da reforma psiquiátrica brasileira, as questões levantadas por Manuel Desviat em Cohabitar la diferencia se mostram extremamente pertinentes e uma leitura obrigatória.

Referências

  • 1 Desviat M. A reforma psiquiátrica 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2015.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Mar 2017
location_on
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Av. Brasil, 4036 - sala 700 Manguinhos, 21040-361 Rio de Janeiro RJ - Brazil, Tel.: +55 21 3882-9153 / 3882-9151 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cienciasaudecoletiva@fiocruz.br
rss_feed Acompanhe os números deste periódico no seu leitor de RSS
Acessibilidade / Reportar erro