Open-access “Do mesmo jeito que existe cachorro branco e preto”: uma análise acerca das intersecções entre raça e saúde

Resumo

Este artigo reflete sobre a compreensão dos profissionais que atuam na Estratégia Saúde da Família acerca das intersecções entre relações raciais e saúde. Para tanto, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com profissionais que compõem as equipes de saúde da família em um município de Pernambuco, cujos dados foram analisados à luz das discussões que se debruçam sobre a temática racial. Os resultados apontam para as divergências entre os modelos de saúde presentes no cotidiano, para a invisibilidade da raça/cor na formação e atuação profissional e a branquitude como elemento estruturante das relações raciais. O estudo reafirma a necessidade do campo da saúde coletiva se debruçar sobre a intersecção entre o quesito raça/cor e as relações de cuidado em saúde, bem como o investimento na formação dos profissionais, que inclua a temática racial.

Palavras-chave: Racismo; Branquitude; Saúde; Atenção Básica; Equidade

Abstract

This paper reflects on the Family Health Strategy (ESF) workers’ understanding of racial relationships and health intersections. We conducted semi-structured interviews with ESF teams’ professionals in the State of Pernambuco, Brazil, whose data were analyzed in light of the discussions that focused on the racial theme. The results point to discrepancies between different health models in the daily routine, race/skin color invisibility in training and professional work, and whiteness as a structuring element of race relationships. The study reaffirms the need for Public Health to focus on the intersection between the issue of race/skin color and healthcare relationships and invest in the training of professionals regarding race discussions.

Key words: Racism; Whiteness; Health; Primary Care Service; Equity

Introdução

Este trabalho objetiva contribuir para produção do conhecimento antirracista na saúde pública, através de um estudo sobre a compreensão de profissionais que compõem as equipes de Saúde da Família (eSF), acerca das intersecções entre raça e assistência à saúde da população adscrita.

Raça, aqui compreendida enquanto construção social dividida e circunscrita a partir do campo das relações, das diferenças históricas e sociais e, no Brasil, com destaque para o fenótipo, as relações étnico-raciais são traduzidas na manutenção da histórica hierarquia racial1.

Racialização, enquanto crença de que o indivíduo apresenta aspectos esperados socialmente como característica da raça2. E racismo, como processo sistêmico de discriminação, presente não apenas no trato entre indivíduos, mas expandindo-se para os âmbitos da política, economia e relações cotidianas3.

O racismo determina como atores públicos e privados tratam grupos minoritários, reproduzindo o ideário social que legitima uma posição de perene subordinação destes, responsável pela criação de desigualdades de status: cultural e material, repercutindo no acesso aos direitos sociais4.

Almeida³ destaca que no racismo o poder é tratado como elemento central das relações; detém o poder os grupos que exercem domínio da organização política e econômica de uma sociedade, cuja manutenção está condicionada a capacidade do grupo dominante em institucionalizar seus interesses.

Nesse cenário, Schucman5 discute branquitude, apontando que o contexto de miscigenação das raças no Brasil proporciona mediações desiguais na constituição de subjetividades, perpassando toda a socialização dos indivíduos. Assim, conceitua-se a branquitude como uma identidade vivenciada pelos sujeitos brancos como uma essência herdada, conferindo poderes, privilégios e aptidões intrínsecas; ou seja, uma racialização naturalizada a tal ponto que estes não se percebam racializados5.

A partir dessas discussões, questiona-se as repercussões raciais, em especial, como os profissionais de saúde, na sua maioria lidos como brancos, percebem os efeitos do racismo sobre a saúde. Sabe-se que os profissionais apresentam ausência de criticidade sobre as questões raciais e suas implicações na saúde, refletindo o racismo institucional e a negação do aspecto racializado das relações profissional-profissional e profissional-usuário6. A literatura aponta a estreita relação entre raça e iniquidades em saúde7 e sinaliza o racismo como barreira de acesso aos serviços e políticas de saúde8,9.

A inclusão do quesito raça/cor nos sistemas de informação, o subsistema de Atenção à Saúde Indígena no âmbito do SUS, a instituição da Política Nacional de Atenção à Saúde Indígena e da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) são marcos do reconhecimento das desigualdades étnico-raciais como determinante social de saúde10. Entretanto, tais esforços legislativos ainda enfrentam desafios de implementação e consolidação, persistindo significativas diferenças nos indicadores de saúde dessas populações, comparadas à população branca11,12.

Assim, o presente artigo busca comunicar os resultados de pesquisa desenvolvida, que teve como principal pergunta: como os profissionais das Unidades de Saúde da Família compreendem as intersecções entre raça e assistência à saúde e como essa compreensão repercute na forma como se oferta o cuidado à população adscrita no território? A autora principal é uma mulher branca, psicóloga e residente em Saúde da Família, enquanto a coautora é uma mulher negra, psicóloga, com atuação na Atenção Primária à Saúde (APS), ambas oriundas da classe trabalhadora.

Aspectos metodológicos

Trata-se de um estudo exploratório e descritivo realizado em município nordestino, que a partir de 2006 assumiu a implementação PNSIPN13. O município divide-se em distritos, e cada qual subdivide-se em microáreas.

Foram entrevistados profissionais com nível superior exigido para integrar as eSF e equipes de saúde bucal, brancos e não brancos, sendo três de cada categoria profissional: enfermagem, medicina e odontologia. Os profissionais foram elencados a partir do contato com os gestores das microáreas, estes convidaram as equipes e destacaram profissionais. Estas categorias foram escolhidas considerando o lugar de poder que ocupam nas eSF, a representação dessas relações na dinâmica das equipes14 e no contato com os usuários.

Os entrevistados tinham, em média, 37 anos de idade, maioria mulheres, 11 anos de atuação no SUS, 7 anos na atenção básica; 8 possuíam formação complementar no campo da saúde coletiva.

A percepção das autoras sobre a raça/cor dos profissionais foi considerada, pois a compreensão sobre a temática racial no Brasil perpassa a crença coletiva na miscigenação15; ademais, se compreende que a socialização dos indivíduos, a partir da raça, pode interferir na compreensão do tema. Dos entrevistados, 5 se autodeclararam brancos e 1 pardo; assim identificados pelas pesquisadoras; quanto aos demais, houve divergência entre a autodeclaração e a percepção das pesquisadoras. Destaca-se que nenhum dos entrevistados se declarou ou foi identificado pelas autoras, como preto.

Realizou-se entrevista piloto e posteriormente entrevistas semiestruturadas com os profissionais, com um roteiro que abordava informações sociodemográficas, além de perguntas disparadoras sobre a temática racial. O diário de campo foi utilizado como instrumento de coleta para registro de informações e percepções das pesquisadoras.

As entrevistas foram realizadas por uma das pesquisadoras, filmadas e transcritas. Em seguida, as transcrições foram assistidas e lidas, pelas pesquisadoras. O estudo respeitou os aspectos éticos necessários, com aprovação no comitê de ética e uso do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Após análises sistemáticas, identificou-se os núcleos de sentido nos dados encontrados para categorização, os quais foram discutidos em reuniões e definidas subcategorias e categorias temáticas, com base na técnica de Análise de Conteúdo16.

As categorias foram organizadas e estão apresentadas a partir das seguintes discussões: a) Os divergentes modelos de atenção à saúde presentes no cotidiano dos profissionais; b) A invisibilidade da raça/cor na formação e atuação profissional; c) A branquitude como elemento das relações raciais na AB.

Resultados e discussões

Divergentes modelos de atenção à saúde presentes no cotidiano dos profissionais

Os profissionais discorreram sobre o uso dos dispositivos de saúde pelos usuários sugerindo que a importância da AB estava condicionada ao fato destes não conseguirem custear a assistência à saúde na rede privada, e a função do SUS reduzida à oferta assistencial dos serviços, nos diversos níveis de atenção, deixando margem para compreensão de uma política focalizada, na contramão de uma compreensão da universalização, aspecto este importante de atentar-se quando direcionado às políticas voltadas às populações vulnerabilizadas, como destacado por Faustino17 ao discutir a política da população negra.

Sobre a saúde, o SUS e os dispositivos da rede, os profissionais retrataram a vivência, mas também, as assertivas presentes nos conteúdos teóricos que compõem a formação dos trabalhadores que atuam na saúde pública, sem que, necessariamente, estivessem interligados. A frequente menção ao princípio da equidade, acompanhada da dificuldade em demonstrar como este se operacionaliza no cotidiano, foi um exemplo.

Trechos de experiências utilizando a palavra privilégio para situações que poderiam ser exemplos de equidade, foram destaque, como se observa na fala do profissional 2, quando recorda o período em que trabalhou junto a população indígena:

[...] os atendimentos, quando era pra fora do município, era mais facilitado. Quando eles [usuários indígenas] vinham pra cá, tinha um carro que trazia, eles ficavam numa, tipo uma pousada, né? Aí ficavam nessa pousada, depois retornava... [risos] tinha lá seus privilégios, sabe? (profissional 2).

No campo teórico, o conceito não possui definição própria, corroborando para sua localização abstrata nas discussões, resultando na dificuldade em operacionalizá-lo18. Apesar disto, o conceito tem sido frequentemente compreendido como estratégia indispensável à justiça social, necessitando de intervenção do Estado na redistribuição de recursos e erradicação de desvantagens evitáveis, que transcendem o controle do indivíduo e impõem prejuízos à saúde18.

No tocante à compreensão sobre saúde, houve associação com ausência de doença; foi concebido raça como determinante de saúde se estivesse diretamente ligada ao corpo. Semelhantemente, as estratégias de cuidado se apresentaram significativamente vinculadas à doença:

No discurso que é politicamente correto, a gente teria que falar sobre equidade, e outras questões, mas na prática, no dia a dia, a gente não consegue [...] a gente acaba fazendo o acolhimento e dando o acesso ao tratamento clínico sem levar em consideração essas particularidades (profissional 1).

Sobre a importância da AB para a assistência à saúde, os profissionais passaram a usar a primeira pessoa para se referir a AB, enfatizando o trabalho que desempenhavam e localizando o usuário como receptor de seu conhecimento e assistência, sugerindo que ocupam lugar de protagonismo na relação de cuidado.

Esse aspecto também esteve presente em relação às atividades de educação em saúde que, embora sinalizadas com os objetivos de: prevenção de doenças e agravos, ampliação do conceito de saúde, para além da ausência de doença, e conscientização à corresponsabilidade e protagonismo do usuário no cuidado, foram acrescentadas queixas sobre o nível de escolaridade dos usuários, associando a isto a resistência deles em se afastar do modelo médico-centrado e assistencial de saúde:

Por mais que eu tente fazer com que o meu conhecimento se torne acessível a eles, seja na linguagem, no vínculo, num é acessível, entendeu? Eu esbarro na falta de educação, na falta de instrução [...] eles não entendem o que é a saúde que eu tento fazer. Saúde pra eles é ter acesso a consulta e a um comprimido (profissional 8).

Esse último dado faz refletir que, em um primeiro momento, o usuário é apontado como o não saber, o que direciona para o modelo assistencialista em saúde. Ao passo que, para transmitir conhecimento sobre saúde, a dimensão teórica predomina no discurso, desvinculada da prática.

Os profissionais não se atentam que, aparentemente, os usuários apreenderam o modelo de saúde que lhes é comunicado no dia a dia dos serviços, e tem dificuldade em absorver as orientações dadas nas atividades de educação em saúde porque estas se configuram em um discurso desvinculado da realidade. hooks19, na discussão da educação como prática libertadora, dialoga com Paulo Freire e sinaliza que a cisão entre teoria e prática nega a construção da consciência crítica, e alimentam a hierarquização, elitismo e políticas de dominação.

Souza e Jacobina20 apontam que a prática de educação em saúde sofre influência do modelo higienista, com transmissão de conhecimento vertical, considerando as pessoas que o recebem incapazes de maiores entendimentos, desconsiderando, assim, o saber popular e obstaculizando a construção compartilhada e corresponsável do cuidado.

Esse entrave dialoga com a persistente presença do modelo médico-assistencial, tanto na formação profissional quanto na atuação, contribuindo para a fragilização do sistema diante das transformações complexas nos diversos ambientes em que vivem as pessoas, advindas dos precários processos de urbanização e segregação socioespacial21.

Importante sinalizar que surgiram dados que divergiram das concepções hegemônicas, os quais se apresentaram de forma excepcional, na fala de um entrevistado com vivência em movimentos sociais, apontando que, possivelmente, a aproximação da atuação equânime está condicionada a sensibilidade e compromisso do profissional, individualmente.

A invisibilidade da raça/cor na formação e atuação profissional

Hesitações, comportamentos defensivos e dificuldades em compreender as perguntas foram notados quando a temática racial surgiu diretamente na entrevista, explicações em relação às questões foram solicitadas com frequência.

Nesse ponto, as definições de raça foram estreitamente ligadas às características físicas (cor da pele e traços fenotípicos) e autoidentificação. Neste aspecto, houve considerações sugestivas de que o indivíduo que não se identifica com a leitura social feita sobre seu corpo, em relação à raça, nutria auto preconceito. A interpretação dos profissionais pode ser associada a reprodução da imposição social racista que retém o indivíduo à dimensão da raça.

Foi identificado, em primeiro plano, o reconhecimento de que racismo existe na forma de atos discriminatórios entre indivíduos; ainda assim, numa realidade distante dos entrevistados, os quais apresentavam postura defensiva, buscando afastar de si o status de racista e reforçando, em seguida, a ideia de igualdade entre as pessoas.

Destaca-se que as falas direcionaram a temática do racismo para a população negra, com invisibilização de outros povos não-brancos, ainda que alguns profissionais tivessem mencionado ter experiência na assistência à saúde junto à população indígena.

A crença de raça apareceu reduzida a características físicas e a negação de que a leitura social racializada sobre os corpos pode produzir desigualdades:

O que muda é a quantidade de melanina, e isso num vai interferir em nada no ser humano. Do mesmo jeito que existe cachorro branco e cachorro preto, qual o problema? [...] né tudo cachorro? É tudo gente (profissional 3).

Eu aprendi que, num existe isso do paciente ser branco, ser preto, ter olho puxado, num tem isso, ser amarelo, num tem isso. A gente, eu fui formada para tratar pessoas, então a cor da pele... isso é independente (profissional 4).

A insistência no status de igualdade entre as pessoas vinha acompanhada de comentários específicos sobre a miscigenação no Brasil, apontando para uma ideia de harmonia racial do povo brasileiro.

Sobre o perfil do território e do usuário, os profissionais identificaram aspectos geográficos, dados epidemiológicos, faixa etária, gênero e dados relacionados à vulnerabilidade social, tais como ocupações, renda e tipo de moradia; ainda que a apresentação do tema da pesquisa fosse apontada no início de cada entrevista, os profissionais não traziam qualquer dado sobre raça/cor. Os profissionais que sinalizaram ter trabalhado na assistência à saúde indígena não demonstraram ter ampliado suas compreensões acerca da temática racial e sua repercussão na saúde.

A informação de que a maioria dos usuários assistidos eram negros surgiu quando se passou a abordar diretamente a raça no roteiro da entrevista. Nesse ponto, as respostas reforçaram a definição de raça vinculada a pessoa negra e percebida a partir de um olhar para doença física, fortalecendo a crença de que a diferença entre as raças está restrita a características biológicas, negando as repercussões sociais do racismo.

Esse dado nos faz refletir sobre a territorialização na atenção básica e a influência da distribuição do processo de trabalho direcionado ao atendimento dos grupos prioritários que compõem a lente pela qual o profissional enxerga o território. Reflete-se que, se o profissional não identifica a raça como elemento integrante do perfil do usuário, isto sinaliza que o processo de trabalho não inclui estratégias equitativas de cuidado.

Nesse sentido, observou-se que, no tocante às repercussões raciais sobre a saúde, alguns profissionais negaram qualquer relação entre raça e saúde, outros apresentaram o fator classe social como uma condicionante das distribuições de recursos e acesso a direitos sociais, e consequentemente, efeitos sobre a saúde.

Por fim, os entrevistados sinalizaram fragilidades na forma como a discussão acerca da temática racial se apresenta nos processos formativos institucionalizados, seja na graduação, ou na atuação profissional.

Alguns mencionaram aproximação com a temática a partir do movimento estudantil, e, após ingressar no SUS, na realização de cursos do UNA-SUS, oferecidos para acesso voluntário do profissional; e ainda, porque no nível social mais amplo, as discussões raciais estiveram mais presentes:

Nem na universidade, é só tive, na verdade, eu comecei a ter, a entender um pouco essa questão, a ter contato com essa temática no movimento estudantil, [...] dentro da própria residência, eu comecei a ter essa aproximação na área indígena né, aí eu comecei a estudar mais a questão da etnia, de tudo mais (profissional 7).

Eu entrei em contato mais porque as coisas evoluíram do que realmente o SUS fez um caminho em relação a isso, sabe? [...] o SUS facilita um pouco quando você é sensível a isso. Eu acho que precisa também que esse caminho não esteja só pela sensibilidade das pessoas. Mas isso precisa ser mais institucionalizado (profissional 9).

Foram trazidas capacitações abordando especificidades clínicas da população negra e preenchimento do quesito raça/cor em formulários. Curiosamente, os profissionais associavam estas últimas ações ao cuidado desta população, ao passo que sugeriam ser a temática racial uma questão mais ampla que a saúde:

Olha, no SUS, eu já tive acesso a palestras falando sobre doenças associadas à raça, por exemplo, anemia falciforme. Mas, abordando exclusivamente o tema, sem estar associado à saúde, não (profissional 1).

Observa-se que as ações voltadas à população negra são, em geral, desvinculadas do racismo como componente do cenário de saúde e, assim, as peculiaridades das relações raciais no cotidiano do trabalho ficam esvaziadas, não sendo consideradas na composição das estratégias de cuidado.

Provoca-se, nesta categoria, a discussão acerca da fragilidade branca, que consiste em comportamentos defensivos que vão desde demonstrar desinteresse pelo tema até reações desproporcionais, nos momentos em que se discute raça, refletindo como a socialização branca ocorre em ambientes em que há conforto racial, ou seja, sem que as relações raciais sejam problematizadas, contribuindo para a diminuição da capacidade em lidar com o estresse racial que a abordagem do tema pode provocar22.

Quanto a predominância dos profissionais em definir raça a partir de características físicas e autoidentificação, vê-se refletido o alcance e repercussão da classificação oficial brasileira, remetendo à aparência e não à ascendência; tal classificação tem sua origem no Brasil colônia e permanece até os dias atuais, como demonstram os censos do IBGE23.

Ainda nesse ponto, Schucman5 retrata a dificuldade de pessoas negras em se auto definirem racialmente com adjetivos que se afastam do espectro de cores associadas à pele humana, contrastando com a facilidade com que pessoas brancas se auto definem racialmente no Brasil, com maior pluralidade de adjetivos, utilizando termos como “latino” ou “humano”; apontando para a imposição sofrida por pessoas que integram grupos não brancos em sociedades hierarquicamente racializadas, reduzindo-as a uma raça.

Sobre a dinâmica ambivalente dos profissionais em, simultaneamente, reconhecer a existência do racismo, reduzi-lo à dimensão individual/relacional e afastar-se do status de racista, atenta-se a característica do racismo à brasileira, o qual evidencia o preconceito de ter preconceito1.

Ademais, o mito da democracia racial, elemento fundante da identidade do brasileiro, o qual se origina na romantização da miscigenação das raças no período colonial escravocrata e na política de branqueamento adotada pelo Estado, consistindo na crença da existência de igualdade entre brancos e negros, configurando-se como arma ideológica que obstaculiza os avanços no debate racial, e consequentemente, auxilia na manutenção da estrutura racista24.

Quanto a invisibilidade da percepção de raça/cor no perfil do território/usuário, recorda-se as contribuições de Santos e Rigotto21 acerca do processo de territorialização, que, embora consista na busca de delimitação das áreas de atuação dos serviços, reconhecimento do ambiente, população e dinâmica social existente, além do estabelecimento de relações horizontais com outros serviços adjacentes; a depender da forma como este processo aconteça, pode ter reduzida sua potência analítica e descritiva sobre inúmeros aspectos da vida das pessoas.

Em que pese as prerrogativas da eSF estarem direcionadas ao cuidado integral em saúde com estratégias de cuidado que contemplem as reais necessidades dos usuários no território, estas não são operacionalizadas e percebidas por trabalhadores e usuários de forma homogênea, evidenciando desafios e contradições. Na prática, há rigidez na prescrição das atividades programáticas previstas, obstaculizando a percepção do ambiente-território, distanciando-se das reais condições de vida da população, contribuindo para que algumas necessidades de saúde não sejam incluídas no rol das ações programáticas das equipes de saúde21.

Apesar de não ter sido citada pelos profissionais, cabe destacar que, apesar das dificuldades17, há iniciativas de sensibilização dos profissionais para a realidade do racismo como determinante social da saúde a partir da PNSIPN; no entanto o alcance e eficácia da política precisa contar com o compromisso compartilhado entre gestores e técnicos, movimento social, articulação intersetorial e avanços sociais na consolidação de direitos11.

Assim, as ações da política não serão suficientes para alcançar a assistência integral à saúde da população negra, tampouco para trazer consciência racial aos profissionais, ampliando a compreensão racial, se não estiverem compondo um conjunto de ações antirracista que contemple o cenário social mais amplo.

A branquitude como elemento das relações raciais na AB

No âmbito da AB, relacionado à dinâmica da branquitude, está a forma como recai sobre o usuário a responsabilidade dos mais variados fatores, desde as condições de vida no território até o sofrimento ligado ao racismo.

A descrição das condições de vida se apresentou acompanhada da tentativa de explicá-las por motivos outros, que não o racismo, estando o usuário frequentemente identificado como alguém que, por desinteresse ou desinformação, não teve acesso a instrução formal; e a correção desse fator seria suficiente para mudar as condições de vida:

Pessoas negras, talvez não tenham o mesmo acesso porque não recebem a mesma orientação, né? da importância do estudo, da informação, na vida da gente (profissional 1).

A fala do profissional 8 sintetiza os dados encontrados acerca da dinâmica da branquitude na relação profissional-usuário:

É um reflexo como um todo, da escravidão que a gente viveu. A raça negra ainda sofre. Não são os que nascem em berço de ouro, tem que lutar muito mais pra conseguir ter as coisas, né? Um ou outro vence, mas a grande maioria tá resignada a viver na sua realidade porque é muita coisa que puxa pra baixo. Por exemplo, na época que teve aquele negócio do governador que os meninos iam fazer intercâmbio no exterior, eu tive um menino que ia; a mãe não deixou ele ir porque era ele que ajudava em casa com a irmã mais nova. Tu acredita?! Aí você vê, né, tudo puxa pra baixo. A ignorância puxa pra baixo. Pessoas com outro nível de entendimento, teriam outra atitude (profissional 8).

O profissional sugere que aspectos como pobreza e distribuição desigual de recursos podem ser explicadas como “reflexo da escravidão”, e que a continuidade dessa realidade tem sua principal causa na ignorância da ‘grande maioria’ das pessoas negras. Não se observa reflexões críticas sobre o contexto social em que a família está inserida, ou qualquer referência a mecanismos atuais de exclusão que contribuam para a manutenção da marginalização social do usuário; apenas a responsabilização, que a princípio é individual, mas que se expande para toda a raça.

Responsabilização do negro e desresponsabilização do branco são duas faces da mesma discussão e compõe o cenário que busca reduzir o problema do racismo a uma consequência do passado; somando-se a isso, a responsabilização do indivíduo negro acerca dos aspectos que o vitimam, configura-se o contexto de conforto racial no qual se localiza a branquitude25.

O profissional descreve a usuária negra como ignorante, sugerindo ser esta uma característica intrínseca a ela, sem acrescentar reflexões de que, enquanto pessoa que experiência uma dinâmica social diferente, possa também desconhecer as peculiaridades da realidade da usuária e, assim, projeta sua ignorância sobre o corpo negro, em consonância com a atuação social branca que concentra no grupo branco os aspectos positivos, e desloca para o grupo negro, características negativas que não reconhece em si mesmo.

Ainda, demonstra identificação com a pesquisadora branca, situação frequente em outras entrevistas, fazendo uma indagação de forma retórica como se esta compartilhasse naturalmente de sua leitura sobre o exemplo dado: “Tu acredita?”; e encerra sua fala afirmando que: “pessoas com outro nível de entendimento, teriam outra atitude”. Nesse contexto, se identifica com este segundo grupo de pessoas, e novamente não traz considerações críticas, localizando a si mesma no polo oposto ao da ignorância, onde posicionou a usuária, reduzindo a possibilidade de agir diferente, estando hipoteticamente em situação semelhante, apenas por ter “outro nível de entendimento”.

Aqui, a cena do racismo está instalada: o profissional que fala abertamente sobre suas percepções de cunho racista; a pesquisadora, profissional branca identificada como aliada na sua leitura do exemplo dado; e por último; a usuária, pessoa negra que recebe a leitura racista do olhar branco. Importante salientar que toda a fala ocorre sem que a raça branca seja mencionada.

Kilomba26 denomina tal cena como constelação triangular, a qual é importante para o consenso branco, presente nos episódios de racismo cotidiano; nesta, cada sujeito desempenha um papel pré-estabelecido; sem a necessidade de que os indivíduos estejam fisicamente presentes; neste, há uma pessoa negra ocupando o lugar de objeto da agressão racista, um sujeito branco que performa o racismo e um terceiro elemento que, simultaneamente, assiste e valida o ato.

No tocante a justificativa sobre as condições de vida em que pessoas negras estão inseridas, relacionando-as com o período de escravidão, Schucman25 identifica ser essa uma argumentação comum apresentada por pessoas brancas, entretanto, tal argumento não se mantêm no discurso, sendo acrescentadas outras explicações, expandindo as diferenças entre raças às características morais, psicológicas e intelectuais.

Quanto à localização social que o profissional coloca a usuária e a si mesmo, recorda-se a crença de que no interior dos grupos raciais atitudes consideradas “melhores” são naturalmente associadas aos brancos, e “a crença de uma superioridade moral e intelectual dos brancos está diretamente relacionada a uma contraposição que fazem em relação aos negros”25(p.91).

Destaca-se a identificação essencialista que recai sobre a pessoa negra, e que a encarcera em imagens racializadas, sendo-lhe negado o direito à subjetividade24; o sujeito negro é percebido não apenas como uma pessoa, mas um corpo, uma raça e uma história (descendente de escravizados), desse modo, sua existência está condicionada a essa triplicidade, localizando-o socialmente como representante da raça, e sujeito a constante verificação branca24.

Soma-se à discussão a concepção de cultura transformada em uma noção fixa e estável de raça biológica25. A hierarquia entre culturas embasa um discurso racializado sem remeter à raça ou cor da pele, de modo que brancos são considerados mais civilizados e cultos, horizonte civilizatório e universal27, e não brancos como tendo inerentes características compreendidas como inferiores evidenciando um deslocamento de uma linguagem racista biológica para a cultural25. Há a internalização do branco-colonizador e negro-colonizado28.

Destaca-se a utilização da palavra “resignada”, na fala do profissional 8. Define-se resignação como a ação de submeter-se ao desejo de outra pessoa, sendo considerados sinônimos: conformada e submissa29. Essa percepção da pessoa negra conformada a sua localização subalternizada remete à higienização da história da escravidão, com a negação da vitimização, resistência e luta negra, bem como da narrativa branca embelezada pela descoberta, contribuindo para uma autorrepresentação em que privilégio branco e a necessidade de corrigi-lo é inexistente30.

O profissional faz uma sugestão hipotética sobre uma reação diferente da usuária para a mesma situação que ela vivencia; aqui identifica-se a ausência de reflexão sobre diversos fatores que podem estar presentes, para além de “outro nível de entendimento”, tais como recursos financeiros e dispositivos sociais que funcionem como rede de apoio à família.

Woody Doane apud Mills30 aponta para uma ideologia do daltonismo racial, que consiste na dificuldade da pessoa branca em reconhecer a estrutura de privilégios que permeia seu cotidiano, somada a percepção da estrutura de oportunidades como aberta e disponível para todos e as instituições como imparciais; promovendo uma interpretação equivocada de que as desigualdades sociais se justificam por características culturais, motivação e valores de grupos subordinados, promovendo a culpabilização desses por sua posição desvantajosa.

Outro ponto importante nessa análise é a reação dos profissionais diante do discurso de usuários expondo situações de racismo. Observemos o trecho de fala do profissional 2:

Eu atendi uma mãe que tava com a filha; ela é morena, tá? e a bebê dela é bem branquinha mesmo. Ela chorou tanto aqui, porque disse que num tava aguentando mais as pessoas olharem pra ela e perguntarem, às vezes pessoas que ela nem conhece, se ela tava cuidando da menina. Não a via como mãe, né? E eu conversei muito com ela, eu disse: Olhe, [risos] você é muito linda! (Ela é muito bonita, sabe? É uma morena muito bonita). E você não tem que se preocupar com isso, com esse preconceito das pessoas, porque as pessoas realmente podem tá falando por maldade, né? Mas às vezes é você mesmo que tá tendo esse preconceito com você [...] eu percebo é que partiu mais da parte dela, sabe? Esse preconceito. Ela mesmo tinha com a cor, pela menina ser diferente dela (profissional 2).

O relato remete ao período colonial, no qual a relação entre brancos e negros estava reduzida a exploração da força de trabalho, e mulheres negras escravizadas eram incumbidas do cuidado de crianças brancas. O não reconhecimento da criança enquanto sua filha traz para o presente a cena colonial, reencenando-a, rejeitando novas configurações para relações interraciais e produzindo o sofrimento do qual a usuária se queixa.

A natureza do vínculo profissional-usuário no território pode explicar a escolha dessa usuária em expor seu sofrimento para o profissional 2; entretanto não se percebe um movimento de validação do sofrimento da usuária, ao contrário, há sugestão de que a reação dela é desproporcional ao ocorrido, uma vez que, segundo a percepção do profissional, o conteúdo da queixa não trata de violência racista, mas de auto preconceito.

A interpretação de um episódio de racismo como auto preconceito tem sua origem na compreensão equivocada, embora largamente difundida, de que racismo é uma questão pessoal/moral, e não um fenômeno social26; ou mesmo da análise da pessoa branca sobre a pessoa negra, a partir da branquitude15, sobre o que é racismo.

O discurso do profissional nega a construção da subjetividade atravessada pelo processo de racialização27, naturaliza o racismo31 e se articula com a construção do lugar na mulher negra na sociedade brasileira e seus efeitos violentos, como discutido por Lélia Gonzalez31: “ser negra e mulher no Brasil, repetimos, é ser objeto de tripla discriminação, uma vez que os estereótipos gerados pelo racismo e sexismo a colocam no nível mais alto da opressão”(p.58).

Observa-se que há fragilidade na formação profissional das eSF para lidar com situações de racismo, resultando em revitimização da pessoa negra nos espaços de saúde no território.

Conclusão

O estudo sinaliza que dificilmente os profissionais que compõem as eSF percebem o efeito do racismo. A dificuldade está atravessada por concepções hegemônicas relativas à saúde, que alimentam condutas excludentes, construídas a partir de uma compreensão de superioridade na relação profissional-usuário e intrinsecamente relacionadas aos aspectos discutidos nas categorias apresentadas.

Ademais, a autopercepção dos profissionais e a relação destes com o usuário se mostrou fortemente atravessada pela branquitude, materializada pela ausência de consciência racial e negação do racismo como problema social com repercussões diretas na saúde e no acesso aos serviços. A dinâmica das relações raciais aqui apresentadas, construídas a partir de estruturas de poder que envolvem o racismo, se mostraram como fator contribuinte para a revitimização do usuário e obstáculo à construção de estratégias de cuidado equitativas.

Destaca-se, como limitação do estudo, a não inclusão de outros profissionais que compõem a eSF. Sugere-se a ampliação das entrevistas e aprofundamento a partir de outras perspectivas metodológicas. Por fim, sinaliza-se a urgência na formação dos profissionais, com vistas à ampliação e consolidação de uma concepção de saúde que transcenda o foco na doença e considere a raça como primordial para se pensar as relações de cuidado no campo da saúde, valorizando o modelo de atenção integral à saúde, com estratégias equânimes e democráticas de cuidado, combate ao racismo institucional e à revitimização da população não-branca no âmbito da AB.

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  • Editores-chefes:
    Romeu Gomes, Antônio Augusto Moura da Silva

Disponibilidade de dados

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    Ago 2023

Histórico

  • Recebido
    22 Maio 2022
  • Aceito
    28 Mar 2023
  • Publicado
    14 Abr 2023
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