Open-access Envelhecimento e dependência no Brasil: características sociodemográficas e assistenciais de idosos e cuidadores

Resumo

O artigo tem como objetivo identificar características sociodemográficas e assistenciais de idosos dependentes, cuidadores formais e familiares em municípios de diferentes regiões brasileiras. Realizou-se um estudo transversal com amostra de 175 pessoas, sendo 64 idosos, 27 cuidadores formais e 84 cuidadores familiares. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas, com questões específicas para cada grupo sobre a temática do cuidado e dependência. A maioria dos idosos era do sexo feminino, com idade igual ou maior a 80 anos, com baixa escolaridade e dependente há quatro anos ou mais. Os idosos relataram sentimentos de solidão, apontaram dificuldades na assistência médica e 29% tinham acesso apenas a ações da Atenção Primária à Saúde. Entre os cuidadores familiares, encontrou-se desigualdades, sobrecargas, adoecimentos e problemas sociais. Entre os formais predominou o sexo feminino, a raça negra, sem vínculo legal de trabalho, pouca ou nenhuma formação para a função e baixa remuneração; o cuidado associou-se aos afazeres domésticos. Conclui-se que perduram as desigualdades de gênero e raça no cuidado às pessoas idosas em situação de dependência. Observou-se também que a rigidez dos papeis sociais atribuídos a homens e mulheres no Brasil persistem nas dinâmicas familiares e laborais no cuidado ao idoso dependente.

Palavras-chave: Envelhecimento; Idoso dependente; Cuidador; Saúde do idoso

Abstract

This paper aims to identify sociodemographic and care characteristics of dependent older adults, formal and family caregivers in municipalities from different Brazilian regions. A cross-sectional study was carried out with a sample of 175 people, of whom 64 were older adults, 27 formal caregivers, and 84 family caregivers. Semi-structured interviews were conducted with specific questions for each group on the theme of care and dependence. Most older adults were female, aged 80 years or older, with low education and have been dependent for four years or more. Older adults reported feelings of loneliness, pointed out difficulties in medical care, and 29% had only access to Primary Health Care actions. Inequalities, burden, illnesses, and social problems were found among family caregivers. Black females with no formal employment, little or no training for the function, and low remuneration predominated among formal caregivers, and care was associated with domestic chores. We can conclude that gender and race inequalities persist in the care of dependent older adults, and we observed that the rigid social roles assigned to men and women in Brazil persist in the family and work dynamics in caring for the dependent older adults.

Key words: Aging; Frail older adult; Caregivers; Elderly health

Introdução

Nas últimas décadas, o envelhecimento populacional foi marcado pelo aumento da expectativa de vida e redução das taxas de natalidade e mortalidade na maioria dos países do mundo. Houve crescimento da quantidade de idosos com 80 anos e mais, etapa vulnerável do ponto de vista social e da saúde física e mental, dentre as quais é comum a perda de autonomia e o aumento da dependência1.

A dependência é a incapacidade funcional dos idosos em realizar Atividades Básicas da Vida Diária (ABVD), como alimentar-se, vestir-se e tomar banho2, ou a impossibilidade de executar Atividades Instrumentais da Vida Diária (AIVD), como ir ao banco, pegar ônibus e comunicar-se3. Neste caso, os idosos necessitam de auxílio para a realização destas tarefas e para a gestão da própria vida4.

Na América Latina, 40% dos idosos precisam de cuidados prolongados e este número triplicará nas próximas três décadas5. Em 2050, o Brasil terá cerca de 77 milhões de pessoas dependentes de cuidados, entre idosos e crianças6, e apenas 30% dos municípios possuíam instituições assistenciais de longa permanência no ano de 2009, a maioria na região sudeste do país7. Ao mesmo tempo em que aumenta a população longeva e dependente, persiste o déficit de cuidadores, profissionais e serviços de saúde preparados para assisti-los8.

No Brasil, a maioria dos cuidadores são pessoas da família, mulheres (cônjuges ou filhas) com 50 anos ou mais e com proximidade física e afetiva com o idoso. O trabalho, muitas vezes, é ininterrupto e solitário, sem o apoio de serviços e políticas públicas de proteção para o desenvolvimento desta função. Os mesmos sofrem restrições em suas vidas pessoais, gerando sobrecarga, adoecimento, desemprego e afastamento da rede social e afetiva9,10.

No ano de 2002 a função de cuidador foi reconhecida como ocupação pelo Ministério do Trabalho e Renda no Brasil. Foi considerado “cuidador” o indivíduo que assiste e promove bem-estar, saúde, alimentação, higiene, educação, cultura e lazer à pessoa dependente. Entretanto, a profissão é marcada por precarização nos vínculos trabalhistas, falta de preparação específica, baixos salários e longas jornadas11. Apesar das políticas de proteção social ao idoso implementadas no país nas últimas décadas, a oferta de serviços pelo Estado restringe-se a ações específicas e pontuais de assistência à saúde, e atribui à família o compromisso pelo cuidado prolongado no âmbito do domicílio. Inexiste uma política específica que determine os papéis atribuídos à família e à rede de serviços públicos12, tornando vulnerável tanto o idoso quanto o cuidador.

O conceito de vulnerabilidade contribui para compreender a situação dos idosos e seus cuidadores, pois refere-se à garantia de cidadania de populações politicamente fragilizadas na perspectiva dos direitos humanos, resultado da combinação dos domínios individual, social e pragmático. A vulnerabilidade individual compreende os aspectos biológicos, emocionais, cognitivos e atitudinais; a social é caracterizada por aspectos culturais, sociais e econômicos que determinam as oportunidades de acesso a bens e serviços; e a vulnerabilidade programática refere-se aos recursos sociais necessários para a proteção do indivíduo a riscos à integridade e ao bem-estar físico, psicológico e social13.

Neste estudo, um conjunto de pessoas envolvidas no contexto da dependência e do cuidado ao idoso foi entrevistado, tendo em vista a necessidade de se conhecer in loco sua situação e vulnerabilidades. Assim, este estudo tem como objetivo identificar as características sociodemográficas e assistenciais de idosos dependentes, cuidadores familiares e cuidadores formais em oito municípios das diferentes regiões do Brasil.

Método

Tipo de estudo

Trata-se de um estudo transversal e descritivo realizado no ano de 2019 em oito municípios localizados nas cinco regiões brasileiras: Araranguá (SC), Brasília (DF), Fortaleza (CE), Manaus (AM), Porto Alegre (RS), Recife (PE), Rio de Janeiro (RJ) e Teresina (PI). Faz parte de uma pesquisa multicêntrica que estudou a situação de idosos com dependência física, mental/emocional, cognitiva ou social, cujo foco é subsidiar a elaboração de uma política pública que atenda ao idoso dependente e à pessoa que o cuida. Foi coordenada pela Fundação Oswaldo Cruz em parceria com instituições de ensino brasileiras14.

Amostra

Com amostra intencional, 175 pessoas participaram deste estudo, sendo 64 idosos com dependências, 27 cuidadores formais e 84 cuidadores familiares (Tabela 1). Considerou-se “idoso dependente” a pessoa com 60 anos e mais que, pela redução ou falta de capacidade física ou cognitiva, tem necessidade de ajuda para a realização das ABVD ou AIVD, implicando na presença de, pelo menos, mais uma pessoa para exercer cuidado15.

Tabela 1
Quantitativo de idosos dependentes, cuidadores familiares e cuidadores formais entrevistados na pesquisa, municípios de diferentes regiões do Brasil, 2019.

Considerou-se dependência física a incapacidade funcional, prática ou motora para realizar ABVD ou AIVD; e dependência cognitiva a perda completa ou parcial da orientação no tempo, da memória, atenção, realização de cálculo, linguagem e capacidade visual16. Os cuidadores foram compreendidos como formais (contratados) ou familiares, considerados como aqueles que prestam assistência ou cuidado ao idoso no exercício das atividades diárias17.

Foram excluídos os idosos que estavam em Instituições de Longa Permanência ou que residem sozinhos, por causa do objeto de estudo que previa compreender a situação da díade: idoso dependente-cuidador familiar.

Coleta de dados

Para a coleta de dados, os participantes foram identificados por meio das Secretarias Municipais de Saúde e dos serviços de Atenção Primária à Saúde (APS) de cada município envolvido no estudo. Em seguida, procedeu-se o contato e o agendamento das entrevistas com os interlocutores, todas realizadas em suas residências por entrevistadores previamente capacitados.

Os dados foram coletados por meio de entrevistas semiestruturadas, com itens que contemplaram a obtenção de dados quantitativos e qualitativos, utilizando-se um roteiro construído e consensualizado por um grupo de pesquisadores de diferentes universidades brasileiras. Foram utilizadas perguntas específicas para cada grupo entrevistado que envolveu a percepção acerca de temas relativos ao cuidado e à dependência.

As entrevistas foram gravadas em áudio (com permissão dos entrevistados) e transcritas. Destaca-se que as variáveis quantitativas selecionadas para este estudo foram coletadas do corpus textual gerado pelas transcrições realizadas pelos pesquisadores, contendo informações sociodemográficas e assistenciais relacionadas às práticas de cuidado e aspectos do mundo do trabalho.

Variáveis

As variáveis foram agrupadas de acordo com cada grupo de participante na pesquisa:

Idoso dependente:

Características sociodemográficas: sexo, raça, estado civil, faixa etária, quantidade de filhos e netos, religião, escolaridade, com quem reside, adaptação da residência às necessidades, cognição (capacidade preservada ou prejudicada de orientação no tempo, da memória, atenção, realização de cálculo, linguagem e capacidade visual) e convívio social (mantém convivência afetiva com familiares, amigos, vizinhos ou outros).

Características assistenciais: tempo que necessita de cuidado, cuidador profissional e médico que acompanha.

Cuidadores familiares:

Características sociodemográficas: sexo, raça/cor e faixa etária;

Características assistenciais: grau de parentesco, motivo para ser cuidador, tempo na função, alternância nos cuidados, autopercepção sobre a própria saúde e problemas emocionais (Tristeza, estresse, cansaço, sobrecarga, insônia e irritação).

Cuidadores formais:

Características sociodemográficas: sexo, raça/cor e faixa etária;

Características assistenciais e profissionais: contrato de trabalho, curso de formação, remuneração, tempo de atuação, realização de outras atividades no lar onde trabalha, dificuldades vivenciadas no trabalho, sentimento pela pessoa idosa e problemas emocionais (Tristeza, depressão, fadiga, sobrecarga e ansiedade) e sociais (Falta de reconhecimento, liberdade e relações sociais).

Análise estatística

As variáveis foram inseridas e categorizadas em um banco de dados no software Excel e codificadas. Posteriormente, para a análise estatística, utilizou-se o programa Statistical Package for the Social Sciences (SPSS), versão 20.0, e as variáveis foram apresentadas por meio de frequência bruta e relativa.

Ética da pesquisa

O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Resultados

Foram entrevistados 64 idosos dependentes, 84 cuidadores familiares e 27 cuidadores formais em diferentes municípios brasileiros, constituindo uma amostra de 175 pessoas. Dentre os idosos, a maioria era mulher (64,1%), da raça branca (56,3%), com baixa escolaridade (15,6% eram analfabetos e 40,6% possuíam ensino fundamental incompleto) e de religião católica (71,9%). A maioria dos idosos possuía idade superior a 80 anos (54,7%), viviam sem a presença de companheiro (68,7%), tinham filhos (87,6%) e netos (75%). Do total, 37,5% moravam com a filha, 31,3% com companheiro e 70,3% em casa adaptada às necessidades (Tabela 2).

Tabela 2
Características sociodemográficas dos idosos dependentes de municípios em diferentes regiões do Brasil, 2019.

Dos idosos, 23,1% necessitavam de cuidados há tempo maior ou igual a quatro anos; 87,7% não tinham cuidador profissional e 29,2% eram acompanhados pelo médico da APS. A maioria referiu sentir mal-estar com a situação em que se encontrava, tinham a cognição preservada, porém não mantinham relações sociais (Tabela 3).

Tabela 3
Características assistenciais dos idosos dependentes em municípios de diferentes regiões do Brasil, 2019.

Na Tabela 4, é possível observar que a maioria dos cuidadores familiares era do sexo feminino (84,5%), da raça/cor branca (40,5%) e tinha entre 40 a 59 anos (52,4%). Os que exerciam o cuidado dos idosos com maior frequência eram as “filhas”, que relataram estarem nessa função justamente pelo fato de serem “filhas” ou por “não ter outra pessoa que cuide”. Grande parte dos cuidadores assistiam aos idosos há mais de 2 anos e não dividiam o trabalho com outras pessoas. A maioria referiu que, no exercício dessa atividade têm passado por adoecimentos (60,7%), problemas emocionais (75,0%), problemas sociais (75,0%) e relatou que a família constitui a principal rede de apoio que ajuda no cuidado com o idoso (48,8%).

Tabela 4
Características sociodemográficas e assistenciais dos cuidadores familiares em municípios de diferentes regiões do Brasil, 2019.

A Tabela 5 apresenta as características dos cuidadores formais. Foi possível observar que a maioria era mulher (92,6%), de raça negra (63,0%) e encontrava-se na faixa etária de 40 a 59 anos (74,1%). Grande parte não tinha contrato de trabalho (74,1%), nunca realizou curso de formação para a função (77,8%), recebia aproximadamente um salário mínimo (≤ R$ 1.000,00) e atuava na função há menos de um ano (59,3%). Nessa população, 74,1% realizaram outras atividades na residência do idoso e 55,6% enfrentaram dificuldades no trabalho. A maioria referiu gostar do que faz, não sofria com problemas emocionais e contava com o apoio de familiares do idoso e de outros cuidadores.

Tabela 5
Características sociodemográficas, de trabalho, psicológicas e de cuidado dos cuidadores formais em municípios de diferentes regiões do Brasil, 2019.

Discussão

Este estudo identificou características sociodemográficas e assistenciais que indicam vulnerabilidades em idosos dependentes, cuidadores familiares e formais. Observou-se que os entrevistados são afetados por vulnerabilidades individuais, sociais e programáticas13, envolvendo aspectos que sugerem a precarização das condições de vida e saúde.

Com relação às vulnerabilidades individuais e sociais, evidencia-se que a maioria dos idosos é do sexo feminino, com idade maior ou igual a 80 anos e com baixa escolaridade. Essas mulheres necessitam de cuidado há muito tempo (quatro anos ou mais) e relataram sintomas depressivos, de tristeza e solidão. Embora tenham filhos e netos, reclamam que muitos não mantêm um convívio frequente com elas. Não possuem cuidador profissional e nem assistência regular à saúde.

Esses dados corroboram a projeção demográfica para o Brasil, que aponta maior proporção de mulheres entre as pessoas idosas, em decorrência da mortalidade diferencial por sexo, que afeta precocemente a população masculina18,19. Nas famílias, além de constituírem o grupo que mais sofre com a dependência20-22, elas também se caracterizam pelo cuidado que prestam a outros idosos23-25. É preciso lembrar que a população com 80 anos ou mais está aumentando no Brasil, e sendo a mais vulnerável aos vários tipos de dependência, é a que exige uma maior quantidade de cuidadores14.

Estudos apontam que a baixa escolaridade e as piores condições socioeconômicas dos idosos estão associadas à perda da capacidade física e funcional precocemente, pois essas pessoas tendem a acumular mais doenças ao longo da vida, desempenharam atividades laborais insalubres, possuem hábitos de vida prejudiciais e menor acesso aos serviços de saúde26-29. Além do mais, enfrentam maior dificuldade para receber ajuda, constituindo-se em um grupo extremamente vulnerável29,30.

A solidão e o isolamento vivenciados pelos idosos são indicativos de perdas de convívio no âmbito familiar e social e, conforme Santini et al.31, podem ocasionar problemas emocionais e psicológicos, principalmente depressão. Essas questões que aparecem no estudo como queixas frequentes indicam a necessidade de atenção à saúde mental visando aumentar seus vínculos sociais, assim como tratar temáticas relacionadas à morte e à terminalidade32. A rede social de proteção, constituída por pessoas próximas, pode potencializar ou reduzir as vulnerabilidades9.

Embora os idosos entrevistados nesta pesquisa apresentem elevado número de filhos, netos e contem com a presença do cônjuge ou da pessoa que os cuida, muitos se sentem sozinhos. Este paradoxo pode ser resultado das mudanças e das dinâmicas familiares marcadas pela coexistência de bisnetos, netos e filhos na mesma residência, ao mesmo tempo em que se constata a perda de vínculo e de solidariedade33.

A vulnerabilidade programática encontrada neste estudo refere-se ao fato de que muitos idosos não contam com assistência médica e apenas 29% relataram acesso aos cuidados ofertados na APS. Esse achado reforça a hipótese acerca da necessidade de os serviços de saúde reconfigurarem suas práticas assistenciais para enfrentarem os desafios da multimorbidade e das necessidades associadas ao processo de envelhecimento. Necessitam-se estratégias que promovam acesso, reduzam a fragmentação do cuidado e valorizem e promovam as competências da APS para melhorar o atendimento e, a partir dela, se dinamize uma nova organização das redes de atenção à saúde32,34,35. Não há solução: o número de idosos vai aumentar e é fundamental que o cuidado com essa população seja adequado e qualificado.

Com relação aos cuidadores familiares, foi possível identificar características que indicam vulnerabilidades individuais, emocionais e sociais. As condições em que vive este grupo denotam a precariedade da função de “cuidador”, marcada por desigualdades, sobrecargas, adoecimentos e diversos problemas. A maioria são mulheres, principalmente filhas e esposas, corroborando outras pesquisas brasileiras, segundo as quais a pessoa que mais cuida geralmente é a filha, o que incide sobre sua vida econômico-financeira, pois a empobrece (por não ser uma atividade remunerada), provoca-lhe sobrecarga por um trabalho ininterrupto, aumenta os riscos à saúde e seu isolamento social14,23,36. Muitas são também idosas, inclusive longevas, o que configura um contexto de pessoas idosas cuidando de idosos.

Embora uma parte das mulheres entrevistadas afirme que recebe apoio dos familiares no cuidado com seu familiar dependente, outra refere não possuir redes sociais. A rede e o apoio social são importantes como medidas de suporte para o enfrentamento de problemas tanto do idoso como da pessoa que cuida10.

O cuidado familiar exercido majoritariamente por mulheres simboliza as desigualdades de gênero presentes na sociedade, historicamente constituídas por relações de poder assimétricas entre os sexos, cuja atividade de cuidar no âmbito privado tem sido função predominantemente feminina. Nesta pesquisa, parte das entrevistadas revelou que a condição de “ser filha” foi determinante para assumir o papel de cuidadora. Esse fato impacta na vida pessoal, profissional, social e afetiva da mesma, além de produzir efeitos na sociedade como um todo. Apesar das transformações dos arranjos familiares e o papel social das mulheres, o processo de envelhecimento populacional não está sendo acompanhado de mudanças na divisão sexual do trabalho de cuidar, a não ser em casos excepcionais, especialmente no âmbito familiar33.

Na maioria dos casos, observou-se ausência de alternância nos cuidados, como se a família entregasse de vez a assistência a uma única pessoa que arca, de um lado, com o conforto emocional de assistir seu ente querido, mas, de outro, com o ônus da sobrecarga de trabalho e da perda do convívio social e, por vezes, do emprego24,36. Vários estudiosos têm mostrado que essas pessoas são também mais suscetíveis aos agravos em sua saúde mental, na medida em que o tempo gasto com os cuidados do idoso são longos e ininterruptos12, frequentemente elas dormem mal e se afastam do convívio social37.

Ressalta-se a importância da atenção à saúde do cuidador, no sentido de reduzir os fatores de risco que ele (mais corretamente ela) corre no exercício de sua atividade. Neste estudo, a presença de cuidador profissional foi pequena e inferior se comparada aos cuidadores familiares. Esse dado reforça o quanto o cuidado familiar e informal é predominante com o idoso dependente, corroborando com outros estudos brasileiros23,24,36 e precisam de apoio dos serviços públicos.

As características dos cuidadores formais também sugerem vulnerabilidades sociais, principalmente relacionadas ao mundo do trabalho. A maioria era do sexo feminino, de raça negra, sem vínculo trabalhista formal, com pouca ou nenhuma formação para o exercício profissional e recebe baixa remuneração. Além das condições precárias de trabalho, a maioria dos cuidadores formais acumulava outras atividades na residência onde cuida do idoso, como cozinhar, limpar a casa e cuidar dos demais membros da família.

Dentre as vulnerabilidades dos cuidadores formais participantes deste estudo, estão a mão de obra predominantemente negra, com pouca qualificação e, na maioria das vezes, sem contrato de trabalho formal e garantias trabalhistas. A participação de mulheres negras e com baixa escolaridade no mercado de trabalho reflete a intersecção entre as desigualdades de gênero, raça e classe social presentes na sociedade. Elas constituem o grupo social mais desfavorecido e vulnerável, pois os regimes capitalistas, patriarcais e racistas impedem que as mesmas consigam melhores rendimentos e postos de trabalho, ficando sobrerrepresentadas nas ocupações de menor prestígio38.

No Brasil, as taxas de escolarização dos negros são baixas e muitos ocupam trabalhos domésticos, precários e com menores remunerações quando comparados às pessoas brancas39. A ausência de contrato de trabalho formal e de formação para o exercício da profissão evidencia a falta de políticas públicas e sociais que garantam a qualificação dos cuidadores formais36. Isso ocorre, apesar de iniciativas governamentais, como o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec), que oferece cursos técnicos para cuidadores de idosos. No entanto, se bem formadas, essas pessoas exigiriam melhores salários e vínculo trabalhista, o que, aliás, já é feito nos casos em que os cuidadores são organizados em cooperativas ou em pequenas empresas.

Este estudo, embora aborde aspectos fundamentais da díade idoso dependente-cuidador, apresenta algumas limitações. A coleta de dados é de natureza eminentemente qualitativa, a amostra é constituída por um pequeno número de pessoas e houve algumas não respostas às questões das entrevistas. Entretanto, os resultados identificam situações que são corroboradas por muitas outras pesquisas nacionais e internacionais aqui citadas.

Conclusão

As características sociodemográficas e assistenciais de uma amostra de idosos e cuidadores formais e familiares de diferentes municípios brasileiros identificadas nesta investigação constituem vulnerabilidades individuais, sociais e programáticas.

O estudo identificou fragilidades nos idosos decorrentes da situação de dependência. Além do mais, observou-se desigualdades de gênero e raça no cuidado às pessoas idosas, demonstrando a rigidez dos papeis sociais atribuídos aos homens e mulheres de acordo com a cor da pele na sociedade brasileira. No âmbito familiar, as redes de apoio demonstram relevância diante da temática estudada particularmente para prevenir agravos emocionais e sociais. E quanto aos cuidadores formais, há a necessidade de uma política de valorização e qualificação, contribuindo para a formalização da profissão.

Os dados apresentados são de uma amostra de idosos e cuidadores, não podendo ser generalizados e ou considerados representativos da sociedade brasileira. Entretanto, podem contribuir para a criação, o desenvolvimento e a implementação de estratégias governamentais e sociais para a melhoria e a ampliação das redes de apoio e a regulamentação de uma política e adequada que trate da dependência e do exercício do cuidar.

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Editado por

  • Editores chefes:
    Maria Cecília de Souza Minayo, Romeu Gomes, Antônio Augusto Moura da Silva. Editora Associada da área de Saúde do Idoso: Joselia Oliveira Araújo Firmo

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Jan 2021
  • Data do Fascículo
    Jan 2021

Histórico

  • Recebido
    12 Maio 2020
  • Aceito
    11 Ago 2020
  • Publicado
    13 Ago 2020
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