Open-access A contratualização com os cuidados de saúde primários na Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, até 2023

Resumo

O artigo aborda a contratualização em Cuidados de Saúde Primários, relacionando o que foi contratualizado e obtido. O objetivo foi responder à seguinte pergunta: a contratualização poderá concorrer para garantir a equidade e o acesso adequado a cuidados de saúde primários? Usou-se uma metodologia de estudo de caso. Utilizaram-se dados disponíveis no Portal do SNS - transparência e dados utilizados em sede de contratualização externa. A recolha de dados decorreu em dezembro de 2023. Na região de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, em 2023, havia 29.6% de inscritos sem médico de família. As taxas de utilização de consultas, a um ano, entre 2021 e 2023 decresceram progressivamente (-2.7%). Quanto aos rastreios oncológicos, no caso do rastreio do cólon e reto, só foram realizados 34.4% dos contratualizados em 2021 e 28.9% em 2022. Em termos do Índice de Desempenho Global verificou-se que os intervalos de variação das propostas negociadas e os obtidos estavam acima dos 20 pontos. Analisou-se a prescrição farmacoterapêutica na Diabetes Mellitus, onde nenhum ACES alcançou os valores esperados. Concluiu-se que a contratualização não tem ajudado a melhorar acesso e equidade, pois parece ficar evidente uma dessintonia entre as fases de planeamento estratégico situacional e local.

Palavras-chave: Cuidados de Saúde Primários; Contratualização; Análise estratégica

Abstract

The article discusses contractualization in Primary Health Care (PHC), relating what has been contractualized and what has been achieved to answer the question: can contractualization contribute to guaranteeing equity and adequate access to PHC? A case study methodology was used, using data available on the SNS Transparency Portal and data used in external contractualization. Data was collected in December 2023. In the Lisbon and Tagus Valley Health Region, 29.6 percent of people were registered without a family doctor in 2023. One-year appointment usage rates fell progressively (-2.7%) between 2021 and 2023. As for cancer screening, in the case of colon and rectum screening, only 34.4% of those contractualized were performed in 2021 and 28.9% in 2022. Regarding the Overall Performance Index, the variation intervals between the negotiated proposals and those obtained were above 20 points. Drug therapy prescription in Diabetes Mellitus was analyzed, and no ACES achieved the expected values. We concluded that contractualization has not helped improve access and equity, as a gap between the situational or local strategic planning phases seems evident.

Key words: Primary Health Care; Contractualization; Strategic analysis

Resumen

El artículo analiza la contractualización en la atención primaria, relacionando lo que se ha contratado y lo que se ha conseguido. El objetivo era responder a la siguiente pregunta: ¿puede la contractualización concurrir para garantizar la equidad y el acceso adecua-do a la atención primaria? Se utilizó una metodología de estudio de casos. Se utilizaron los datos disponibles en el Portal SNS - transparencia y datos utilizados en la contractualización externa. La recogida de datos tuvo lugar en diciembre de 2023. En la Región Sanitaria de Lisboa y Valle del Tajo, había un 29,6% de personas registradas sin médico de familia en 2023. Las tasas de utilización de las consultas por año entre 2021 y 2023 disminuyeron progresivamente (-2,7%). En cuanto al cribado oncológico, en el caso del cribado de colon y recto, sólo se realizaron el 34,4% de los contratados en 2021, y el 28,9% en 2022. En cuanto al índice de rendimiento global, se observa que los rangos entre las propuestas negociadas y las obtenidas superan los 20 puntos. Se analizó la prescripción farmacoterapéutica en diabetes mellitus, en la que ninguna ACES alcanzó los valores esperados. Se concluyó que la contractualización no ha contribuido a mejorar el acceso y la equidad, ya que parece existir una falta de sintonía entre las fases de planificación estratégica situacional y local.

Palabras clave: Atención Primaria de Salud; Contractualización; Análisis estratégico

Introdução

Portugal possui um sistema de saúde misto, em que o Estado assegura aos cidadãos nacionais proteção contra o risco financeiro, associado a um episódio de doença, através do papel do Estado-segurador. Os cidadãos podem, ainda, contratar voluntariamente proteção adicional através de seguradoras de saúde, públicas ou privadas.

Como parte do sistema de saúde, o Serviço Nacional de Saúde (SNS)1, fundado em 1979 e de modelo beveridgeano, é um conjunto organizado e articulado de estabelecimentos e serviços públicos, dirigido pelo Ministério da Saúde, que efetiva a responsabilidade do Estado, na proteção de saúde, através de cuidados de saúde, nas vertentes de promoção, prevenção, tratamento, reabilitação e cuidados paliativos.

O SNS organizava-se, a nível territorial2, por regiões de saúde e a nível funcional, por níveis de cuidados. Incluíam-se no SNS, as Administrações Regionais de Saúde (ARS)3, criadas em 1982, em número de cinco, com a incumbência de planear e gerir coordenadamente as ações que envolvessem a promoção da saúde, prevenção e tratamento das doenças e reabilitação. No contexto da estrutura organizativa do SNS, cabia às ARS pôr em prática as políticas de saúde, ao nível das suas delimitações geográficas.

A reorganização acima referida estava em linha com a reforma dos CSP, iniciada em 2005, que resultou numa profunda reconfiguração da sua estrutura organizacional. Em 2008 ocorreu uma intervenção legislativa4 que criou os agrupamentos de centros de saúde (ACES). Resultaram da junção dos centros de saúde existentes numa dada área geográfica, sob a gestão unificada dos ACES.

Os ACES passaram a funcionar como serviços públicos com autonomia administrativa, constituídos por várias unidades funcionais (UF), e tinham por missão garantir a prestação de cuidados de saúde primários à população de uma determinada área geográfica. As referidas UF eram: as Unidades de Saúde Familiar (USF, de modelo A - salário fixo; e de modelo B - os médicos auferem salário fixo + incentivos); as Unidades de Cuidados de Saúde Personalizados (UCSP - salário fixo); as Unidades de Cuidados na Comunidade (UCC); as Unidades de Saúde Pública (USP) e as Unidades de Recursos Assistenciais Partilhados (URAP). Existem, de momento, 55 ACES em território continental português, 15 dos quais na Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo (ARSLVT).

A contratualização5 foi o elemento estruturante e essencial da reforma dos CSP, num processo de reengenharia organizacional que tinha como pontos-chave: a criação de equipas multiprofissionais, funcionalmente autónomas; o desenvolvimento de uma cultura de governação clínica e de saúde e a progressiva implementação de um sistema retributivo ligado ao desempenho. Foi nesta reorganização que surgiram as USF, criadas a partir de candidaturas voluntárias de equipas autónomas de profissionais de saúde, nomeadamente especialistas em medicina familiar, enfermeiros e administrativos. Estas equipas responsabilizam-se pela definição de um plano de ação, no qual se incluem a carteira de serviços, o compromisso assistencial, o horário de funcionamento e a articulação com outras unidades.

O processo de contratualização origina um contexto de gestão descentralizada, sendo os contratos de desempenho definidos como um conjunto de instrumentos de gestão utilizados para responsabilizar cada uma das partes envolvidas e para atingir os resultados mutuamente acordados. A implementação deste mecanismo tem por objetivo uma maior efetividade na prestação de CSP, garantindo às unidades prestadoras de cuidados uma maior autonomia e responsabilização, no sentido de delinear as estratégias mais adequadas para colmatar as necessidades em saúde da população servida, buscando, também, uma maior racionalidade na utilização de recursos e na obtenção de melhorias na saúde das populações servidas.

A contratualização nos CSP tem-se constituído como um processo em construção que comporta dois subprocessos: a contratualização externa, realizada entre as ARS e os respetivos ACES; a contratualização interna, realizada entre os ACES e as respetivas UF.

A contratualização externa6 baseava-se numa matriz de 20 indicadores, organizada em 3 eixos: o eixo nacional composto de 14 indicadores, a nível nacional, suscetíveis de avaliar os ganhos em saúde e em linha com os objetivos de contratualização interna com as USF e UCSP; o eixo regional com 4 indicadores selecionados pelas ARS, alinhados com programas regionais ou as prioridades de saúde definidas regionalmente, não sobreponíveis aos anteriores; eixo local, atribuindo-se a cada ACES a possibilidade de, em conjunto com as ARS definir 2 indicadores específicos, de acordo com as necessidades locais de saúde, não sobreponíveis a qualquer dos anteriores.

A contratualização interna baseava-se numa matriz de 22 indicadores: 12 indicadores comuns a todas as USF/UCSP de cada ARS, em termos de acesso e/ou desempenho assistencial; 4 indicadores, selecionados a cada 3 anos pela ARS, comuns às respetivas USF/UCSP, em termos de acesso e/ou desempenho assistencial; 2 indicadores selecionados, a cada 3 anos pelos ACES, específicos para as USF/UCSP do ACES; 4 indicadores propostos pelas USF/UCSP, para o triénio, em termos de acesso e/ou desempenho assistencial.

Em 2017 o processo de contratualização nos CSP7 passou a assentar num novo modelo conceptual que retirava o foco da negociação de metas de indicadores estabelecidos, para a prossecução de resultados em saúde, num contexto de boas práticas e de gestão dos percursos integrados em saúde, bem como no desempenho das organizações, considerando as suas diferentes áreas e dimensões. Deste modo, o processo passou a ser transversal, integrando a ARSLVT, os ACES e as UF. Ao invés de centrar a negociação nas metas e indicadores, passou a ter como referencial o valor do Índice de Desempenho Global (IDG) que se pretende melhorar e alcançar.

O IDG serve para avaliar resultados dos indicadores e a determinação dos incentivos aos ACES. Desde 2014 que se aplicam os IDG na avaliação dos ACES, deixando os indicadores de ter validade individual, já que passaram a ser entendidos como contributo para a construção daquele índice. Contribuem para o cálculo do IDG: o grau de cumprimento de cada indicador (percentagem de concretização da meta definida) e o grau de cumprimento ajustado do indicador (grau de cumprimento balizado por um limite superior e inferior); o peso relativo do indicador ou ponderação (importância relativa de cada indicador no cálculo do IDG); a ponderação do grau de cumprimento ajustado ao indicador (é o valor que resulta do produto entre o grau de cumprimento ajustado e o peso relativo do indicador); o IDG (corresponde à soma das ponderações do grau de cumprimento ajustado de cada indicador); incentivo potencial (incentivo a atribuir se o valor for 100%); incentivo atribuído (valor monetário do incentivo a que a entidade contratualizada tem direito, calculado pelo produto entre o valor do IDG e o incentivo potencial).

Reconhece-se que o sistema de incentivos incluído na contratualização com os CSP é, apesar da sua dimensão relativa e do seu carácter unicamente institucional, uma peça central do processo, porque todo o trabalho de monitorização e acompanhamento baseia-se na avaliação do desempenho negociado, sendo esta a variável do processo que verdadeiramente lhe confere uma dimensão8 estratégica.

Fez-se o levantamento exaustivo da literatura cinzenta sobre contratualização nos CSP, em Portugal, já que em países estrangeiros o conceito de contratualização não é sobreponível ao que aqui se utiliza. Verificou-se que num estudo9 de 2020 os autores pretenderam avaliar o impacto da implementação das Unidades de Saúde Familiar (USF) sobre os resultados de saúde da população, medidos pelos Internamentos por Causas Sensíveis aos Cuidados de Saúde Primários (ICSCSP), e outro10 onde os autores verificaram que, em geral, os valores dos indicadores melhoraram com o tempo, nos três tipos de UF, particularmente naquelas onde se aplica o pagamento por desempenho.

Cuidados adequados, no momento certo

Os prestadores dos CSP são parte essencial do ecossistema de cuidados de saúde funcionando, frequentemente, como ponto de entrada no sistema. CSP acessíveis, de elevada qualidade e equitativos estão associados a resultados positivos de saúde. Porém, o acesso aos CSP tem vindo a diminuir, fruto de uma complexa reciprocidade entre o cidadão, o contexto e os serviços de saúde. Uma auto perceção negativa de saúde, leva os cidadãos que vivem habitualmente nos desertos de cuidados, a atribuir menor valor à prevenção e a procurarem os serviços de urgência.

Embora a equidade seja um alicerce fundamental na legislação do sistema de saúde português, tem havido pouca preocupação, no passado, em concretizar, promover e monitorizar este objetivo. Quando a Organização Mundial de Saúde (OMS) avaliou o Plano Nacional de Saúde11 (PNS), que vigorou entre 2004 e 2010, identificando as suas potencialidades, limitações e lacunas, deixou claro que aquele PNS prestou muito pouca atenção ao tema da equidade em saúde, nomeadamente em termos de estratégias e programas para combater as desigualdades. Noutro documento12 de avaliação do sistema de saúde, a OMS apontou para melhorias assinaláveis nesta área, não deixando, todavia, de especificar que ainda persistem diferenças significativas no Estado de saúde dos portugueses, de acordo com o género, região geográfica e nível socioeconómico (por nível educacional ou rendimento). Assim, Portugal tem como desafio, para a consolidação e melhoria do estado de saúde dos cidadãos, a diminuição dos níveis de desigualdade entre grupos e a adequação da resposta às expectativas dos portugueses.

Os CSP contribuem de forma decisiva para os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e a Cobertura Universal de Saúde. Durante a pandemia de COVID-19 os CSP portugueses foram decisivos para que se tivesse alcançado uma das taxas de vacinação mais elevadas do mundo13.

Numa análise feita pelo Conselho das Finanças Públicas, relativa a 2020, descrevia-se o impacto que a pandemia de COVID-19 teve ao nível económico e social, para além da crise sanitária. Neste contexto, Portugal foi dos países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Económico (OCDE) onde a atividade presencial dos médicos mais se ressentiu, com o número de consultas a cair 66%, em maio de 2020, face ao mesmo mês de 2019. Aquele Conselho assinalou ainda que, em 2021, os principais indicadores de acesso, eficiência e qualidade dos CSP tiveram uma ligeira recuperação em relação ao ano anterior, apesar de ainda estarem distantes dos valores pré-pandemia. No ano seguinte (2022) esta mesma entidade escrevia que o número de utentes sem médico de família (MdF) atribuído tinha aumentado e que isso iria ter um efeito desfavorável nos atendimentos dos serviços de urgência hospitalares.

A Entidade Reguladora da Saúde (ERS)14 assinala que, entre 2018 e 2021 os cidadãos que utilizaram os CSP reclamaram principalmente das condições de acesso, mas também dos procedimentos administrativos e dos cuidados de saúde. Estas reclamações eram maioritariamente dirigidas à ARSLVT (comparando com as restantes quatro ARS). Em 2021, o acesso foi mencionado em 89% das reclamações recebidas pela ERS.

Outro aspeto importante descrito pela ERS é que, no final de 2021, a maioria dos cidadãos inscritos nos CSP tinha MdF atribuído (88.8%). No entanto, assinalava ainda que esta percentagem tem vindo a diminuir desde 2019, apesar do número crescente de USF em funcionamento. Deve notar-se que a distribuição destas unidades é assimétrica no país. Existem mais USF do modelo que usufrui de incentivos financeiros aos profissionais na região Norte, comparativamente à região Centro, Alentejo e Algarve. Uma das conclusões deste estudo da ERS é que as taxas de utilização de consultas são maiores, onde existe uma maior percentagem de cidadãos com MdF atribuído. Assim, ter MdF atribuído parece ser um fator promotor do acesso.

Percebe-se, deste modo, que os cidadãos que não são atendidos nos CSP, tenham de procurar cuidados noutro lado, ou ficarão sem assistência, por não terem condições financeiras para os obter, ou arriscam assumir despesas diretas com saúde, ou vão aos serviços de urgência. É nesta medida que o acesso tem uma íntima relação com a equidade e é ainda neste contexto que teremos de estudar se a contratualização será condição necessária e suficiente para promover acesso e equidade, como é habitualmente assumido.

A contratualização é um tema difícil em muitos sentidos, e a sua aplicação numa área complexa como a saúde pode torná-la ainda mais desafiadora. Em última análise, a contratualização é mais do que um simples processo técnico ou operacional, pois é baseado em valores e relacional. Isso não significa menosprezar os aspetos técnicos, mas antes valorizar os elementos operacionais e relacionais da contratualização. Nesta complexidade, não se controlam as inúmeras variáveis intervenientes, mas deve constituir problema de investigação e debate científico. Talvez que a complexidade do tema seja motivo para a escassa investigação existente. Pretende-se com este estudo contribuir para uma melhor compreensão dos desafios que se colocam ao modelo de financiamento e dos CSP em Portugal.

Metodologia

O objetivo desta investigação foi responder à seguinte pergunta: a contratualização poderá concorrer para garantir a equidade e o acesso adequado aos cuidados de saúde primários?

Optou-se por uma metodologia de estudo de caso (EdC), porque se trata de uma situação de pesquisa na qual as inúmeras variáveis existentes superam a quantidade de dados disponíveis15. Resulta, portanto, que o estudo de caso assim definido não fica associado a nenhuma tipologia de investigação, nem a nenhuma forma específica de recolha de dados. O EdC possui suficiente flexibilidade para se adaptar a todos os contextos e situações, onde a fronteira entre o fenómeno em estudo e o seu contexto não são bem definidos.

Para além da revisão de bibliografia, conduziu-se uma recolha de dados sobre indicadores de acesso, do desempenho global dos ACES, dos rastreios e da prescrição farmacoterapêutica.

A recolha de dados ocorreu em dezembro de 2023. Os dados constam da documentação de suporte ao processo de contratualização entre a ARSLVT e os ACES, entre 2018 e 2022 e outros foram recolhidos no repositório aberto do Portal do SNS. Os dados foram analisados com a ajuda de uma folha de cálculo, para fins de estatística descritiva.

Para fins de escrita do artigo seguiu-se o Consensus Reporting Items for Studies in Primary Care16.

Resultados

Em 2022 residiam 3.721.156 habitantes nos municípios17 incluídos na ARSLVT, sendo que os mais populosos eram Lisboa (546.923 habitantes), Sintra (388.001 habitantes), Cascais (213.902 habitantes), Loures (203.213) e de Almada (178.113). Os municípios de Lisboa, Sintra, Cascais e Loures concentravam 41,1% de todos os habitantes da ARLVT.

O número de cidadãos inscritos é uma realidade dinâmica18, na ARSLVT. Em 2019 eram 3.761.865 e em 2023 (novembro) eram 3.929.061 os cidadãos inscritos em todas as UF da ARSLVT (Tabela 1). Corresponde a um aumento de 167.196 novos inscritos em cinco anos (3.439 cidadãos/ano). Para além dos nascimentos, concorre para o crescente aumento de inscritos a vaga migratória17 que se concentra preferencialmente nas grandes áreas urbanas.

Tabela 1
Ponto de situação dos inscritos em Unidades Funcionais ARSLVT, Portugal, 2019-2023(*).

Na mesma tabela verifica-se que, nos cinco anos estudados18, ocorreu um aumento significativo de cidadãos sem MdF atribuído (649.965), cifrando-se em 1.162.043, em 2023. Enquanto o número de inscritos e de cidadãos sem MdF atribuído seguiam uma tendência de crescimento, o inverso estava a ocorrer com os cidadãos com MdF atribuído, pois que eram 3.240.187 em 2019 e passaram a 2.754.274 em 2023. Veja-se que a soma entre os inscritos com MdF atribuído e sem Mdf atribuído não corresponde ao total de inscritos, pois existe uma quantidade residual de cidadãos (variou entre 9.600, em 2019 e 12.744, em 2023) que optam por estar inscritos e não ter MdF atribuído. Concluindo verifica-se que em 2019 havia 86,1% de inscritos com MdF atribuído e este valor veio a decrescer para 70,1% em 2023, não tendo recuperado o valor inicial em nenhum dos anos estudados.

As taxas de utilização de consultas anuais18 evidenciam que, entre 2018 e 2021 ocorreu um aumento consistente em todos os ACES (média de 10,8%), registando-se o valor máximo no ACES Estuário do Tejo (14,1%) (área predominantemente urbana)19 e mínimo no ACES Loures/Odivelas (6,5%) (área predominantemente urbana). O intervalo de variação foi de 7,6%, indicativo do que se passou durante o ano de 2020, com o condicionamento de acesso às unidades de saúde (Tabela 2). Entre 2021 e 2023 ocorreu uma progressiva diminuição da taxa de utilização de consultas (-2,7%) em todos os ACES, tendo variado entre o máximo de (-6,8%, no ACES Estuário do Tejo) e um mínimo de 0,4% (ACES Cascais) (área predominantemente urbana).

Tabela 2
Taxa de Utilização Consultas Médicas de um Ano (Todos os Usuários) nos ACES da ARSLVT, entre 2018 e 2023.

No Plano Nacional de Saúde 2012/2015 (com extensão a 2020)20 ficou estabelecido, no âmbito oncológico, o reforço da disponibilidade e da garantia de qualidade na realização de rastreios de base populacional, assegurando-se assim, o acesso a estratégias de prevenção e diagnóstico precoce, bem como o desenvolvimento e implementação dos processos assistenciais de diagnóstico e tratamento, para que os cidadãos recebessem cuidados de saúde adequados e de forma atempada. Ficaram as ARS de promover os rastreios do cancro da mama, do colon e reto e do colo do útero.

De acordo com o Relatório de Monitorização e Avaliação dos Rastreios Oncológicos21 de 2016, Portugal constava entre os países europeus com menor taxa de mortalidade evitável. Portugal foi o país europeu com maior taxa de mamografias realizadas em mulheres (84,2%), muito acima da média europeia (62,8%). O mesmo ocorreu quanto ao Rastreio do Cancro do Colo do Útero (RCCU), tendo Portugal registado uma taxa de 70,7% de mulheres rastreadas, face a uma média europeia de 63%. Quanto ao Rastreio do Cancro do Colón e Reto (RCCR), na ausência de consenso internacional quanto à abordagem a utilizar, não se podem fazer comparações europeias.

Quanto ao Rastreio do Cancro da Mama (RCM), de base populacional (Tabela 3), o teste primário do rastreio seria realizado de 2/2 anos, com mamografia bilateral (2 incidências) e a população-alvo seriam as mulheres entre os 45-69 anos, tendo o programa tido início, na ARSLVT, em 1991. Entre 2019 e 2022 foram rastreadas 176.830 mulheres, correspondendo o máximo a 2021 (333,1‰) e o mínimo a 2020 (109,6‰).

Tabela 3
Evolução dos rastreios oncológicos de base populacional ARSLVT, Portugal, 2019-2022 (dados por 10 mil habitantes (%)).

O RCCR, também de base populacional partia de um teste primário de Pesquisa de Sangue Oculto nas Fezes e a população alvo eram as mulheres e homens, com idades compreendidas entre os 50 e os 74 anos. Deveria ser repetido de 2 em 2 anos. Nos anos considerados foram rastreados 64.866 cidadãos, tendo ocorrido o máximo em 2019 (63,1‰) e o mínimo em 2020 (21,2‰).

O RCCU, de base populacional, tinha como teste primário uma colheita, em meio líquido, com teste HPV e citologia reflexa nos casos positivos para HPV de alto risco, que não o 16 e/ou 18. Deveria abranger as mulheres entre os 30-65 anos de idade e ser feito de 5 em 5 anos. Nos anos estudados foram rastreadas 163.462 mulheres, ocorrendo o máximo em 2022 (268,9‰) e o mínimo em 2020 (104,9‰).

A negociação em sede de contratualização sobre este tema foi estudada, a título de exemplo, nos anos de 2021e 2022, para o RCCR e o RCCU. Quanto ao RCCR verificou-se que, os 13 ACES com dados disponíveis, atingiram, em média, 44,1% dos valores contratualizados. Houve 5 que alcançaram valores acima da média, dos quais o ACES Amadora ultrapassou a proposta contratualizada (contratualizou 2.500 rastreios e realizou 3.493). O ACES Lisboa Norte contratualizou 3.000 rastreios e realizou 2.457, tendo alcançado 81,9% da proposta negociada. Em 2022 (RCCR) analisaram-se dados dos 15 ACES, que atingiram uma média de 22,8% dos valores contratualizados. O máximo foi obtido no ACES Almada/Seixal (81,3% do valor negociado) e o mínimo foi de 0.8%, do ACES Loures/Odivelas.

Quanto à contratualização do RCCU obtiveram-se dados de 11 ACES, para 2021. Estes 11 ACES realizaram 44.8% dos valores contratualizados. O ACES Almada/Seixal conseguiu fazer 94,2% do total negociado e o ACES Sintra apenas realizou 13% do que tinha contratualizado (391 rastreios em relação aos 3.000 negociados). Em 2022 obtiveram-se dados de 15 ACES, que, em conjunto realizaram, em média 85,6% do que haviam contratualizado. O ACES Loures/Odivelas superou o que tinha negociado em sede de contratualização (realizou 6.946 rastreios, comparando com os 5.000 contratualizados). O ACES Almada/Seixal realizou 77,5% do total contratualizado (realizaram 10.457 e tinham contratualizado 13.500).

Em 2014 foi introduzido o IDG, destinado à avaliação dos resultados dos indicadores e à determinação da atribuição de incentivos aos ACES.

Compararam-se os valores do IDG obtido em cada um dos ACES, entre 2018 e 2022 (Tabela 4), tendo-se verificado que o valor mínimo, entre todos os anos considerados, foi obtido em 2022 no ACES Amadora (37,6). O valor mais elevado ocorreu no ACES Almada/Seixal (2019) e foi de 71,2. A média do IDG de cada ACES nos cinco anos estudados, oscilou entre o máximo de 65.5 (ACES Almada/Seixal) e mínimo de 51,4 (ACES Lisboa Central). A amplitude do intervalo de variação foi de 14,2.

Tabela 4
Evolução do Índice de Desempenho Global segundo ACES ARSLVT, Portugal, 2018-2022.

Para os anos de 2021 e 2022 compararam-se os IDG propostos em sede de contratualização com o IDG obtido por cada um dos ACES. Em 2021 foram apresentadas propostas que oscilavam entre um IDG máximo de 75,5 (ACES Oeste Sul) e mínimo de 49,4 (ACES Sintra), no total dos 15 ACES, com uma amplitude do intervalo de variação de 26,1. O valor médio do IDG proposto aos 15 ACES, nesse ano, seria de 61,1. Os IDG obtidos pelos 15 ACES, em 2021, oscilaram entre o mínimo de 48,0 (ACES Lisboa Central) e o máximo de 70,7 (ACES Lisboa Ocidental e Oeiras), ou seja, um intervalo de variação de 23,0 no IDG obtido pelos ACES e média de 57,9.

Para 2022 foram feitas propostas de IDG que oscilavam entre um máximo de 77,7 (ACES Almada/Seixal) e um mínimo de 54,3 (ACES Amadora) (intervalo de variação de 23,4 no IDG proposto aos ACES). O IDG médio proposto aos 15 ACES seria de 64,8, ligeiramente acima do ano anterior. Os IDG obtidos pelos ACES em 2022 apresentaram uma média de 54,6, (que compara com os 57,9 do ano anterior), com um máximo de 64,2 (ACES Almada/Seixal) e um mínimo de 37,6 (ACES Amadora), ou seja, um intervalo de 26,6 no desempenho dos ACES.

Resulta desta análise que os intervalos de variação das propostas negociadas e dos IDG obtidos pelos ACES estão acima dos 20 pontos (2021 e anos seguintes), valores significativos, para os quais falta evidência sobre se os contextos sociodemográficos foram tidos em conta, quer em sede de negociação, quer de acompanhamento.

A qualificação da prescrição é uma subárea do desempenho e engloba as dimensões de prescrição farmacoterapêutica, de meios complementares de diagnóstico e de cuidados. A este propósito a Comissão de Farmácia e Terapêutica (CFT) da ARSLVT elabora relatórios trimestrais com a análise da prescrição que fazem parte do processo de contratualização. A finalidade primordial destes relatórios é a informação de suporte à reflexão sobre práticas de utilização de medicamentos na ARSLVT, em todos os contextos de prescrição (público e privado).

No relatório do primeiro trimestre de 2023 a CFT referia que o setor CSP mantinha a liderança em termos de encargos financeiros gerados pelas prescrições medicamentosas, representando 41% do total da despesa com medicamentos, em Preço de Venda ao Público (PVP), sendo o setor Outros Locais Privados, o segundo gerador deste tipo de despesa, seguidos dos Hospitais Privados e finalmente pelos Hospitais Públicos. A CFT afirma que os CSP da ARSLVT aumentaram a utilização de medicamentos em valor PVP, de despesa para o SNS, no volume e no PVP/embalagem, no primeiro trimestre de 2023, quando comparado com o semestre homólogo de 2022. O PVP/doente aumentou 5,0%, em relação ao semestre homólogo anterior. Os dispositivos médicos e outros produtos de saúde representavam 9.7M€ (variação homóloga de 4,6% do PVP). Estes valores estão associados à disponibilização de tiras-teste e lancetas para determinação da glicemia capilar e englobam ainda dispositivos para incontinência, câmaras expansoras, material de ostomia de eliminação, material de penso, medicamentos homeopáticos e produtos manipulados, embora com menor expressão económica.

Analisaram-se dois indicadores relacionados com os doentes com Diabetes Mellitus (DM). O relatório que está a ser citado enfatiza o facto de 7 em 15 ACES da ARSLVT terem apresentado valores dentro do intervalo aceitável, para os indicadores “Proporção DM com última HbA1c≤8%” e “Custo com terapêutica do doente com DM controlada”. Porém, nenhum ACES alcançou os valores esperados (Gráfico 1).

Gráfico 1
Proporção de doentes com Diabetes Mellitus controlada e com última HbA1c inferior ou igual a 8% e custo médio com terapêutica, em todos os ACES ARSLVT, Portugal, 1º semestre/2023.

O intervalo esperado para o indicador “Proporção DM com última HbA1c≤8%” era entre 70% e 100%, sendo aceitável um intervalo um pouco mais lato entre 55% e 100%. Ao nível da ARSLVT, a proporção de doentes com DM com últimas HbA1c≤8% atingiu o valor de 62%, considerado aceitável, associado a um custo médio de €425, valor acima do intervalo aceitável.

Para o indicador “Custo com terapêutica do doente com DM controlada” era esperado um intervalo entre os 0 e os 350€, sendo aceitável um intervalo entre os €0 e os €420. Como se verifica no gráfico, o ACES Lisboa Central foi o que mais se aproximou do valor esperado, em termos de custos (€352), mas que ficou muito distante do valor esperado em termos de controlo dos doentes diabéticos (52%). No ACES Oeste Norte ocorreu um maior desvio em relação aos custos (+€144 do que o esperado), para obter o valor mais elevado em termos de controlo de doentes diabéticos (70%), que seria o valor mínimo no intervalo esperado.

Discussão

Portugal está a enfrentar uma situação complexa em termos de recrutamento e retenção de trabalhadores em funções públicas. Na saúde, a falta de pessoal tem razões bem documentadas (esgotamento, falta de equilíbrio entre a vida profissional e pessoal, baixos salários que levam a duplo emprego, por exemplo) e o impacto direto no acesso a cuidados de saúde é óbvio. A falta de pessoal médico na ARSLVT é uma das principais razões pelas quais há enormes variabilidades nos atendimentos e nos resultados em saúde, bem assim como no aumento de cidadãos sem MdF atribuído.

A ARSLVT cumpriu com os processos administrativos de recrutamento e retenção de pessoal médico, e esforçou-se, ao longo do tempo, por melhorar estruturalmente os serviços de atendimento dos CSP, tendo uma notável obra feita e um enorme investimento financeiro nessa área. A melhoria das condições de trabalho dos profissionais e das amenidades de atendimento público foram uma prioridade, resultando ainda da capacidade negocial com os municípios. Exemplo disto foi o Acordo de Colaboração denominado “Programa Global de Modernização das Infraestruturas e Equipamentos dos Cuidados de Saúde Primários do Concelho de Lisboa 2017-2020 - Programa Lisboa, SNS Mais Próximo” celebrado entre a ARSLVT e a Câmara Municipal de Lisboa, a 14 de março de 2017. No âmbito deste acordo, ficou estabelecido o compromisso de estudar a localização, conceber e construir de raiz ou adaptar edifícios para instalação de um total de 14 unidades de saúde que revestissem as condições necessárias ao funcionamento e atendimento condignos das populações. A maioria destas unidades ficaram concluídas até 2023. Durante o desenvolvimento do citado acordo, foi construída mais uma unidade de saúde, denominada “Unidade de Saúde Ribeira Nova”, para além daquelas 14 previstas. Por outro lado, constata-se o investimento muito significativo na constituição de USF de modelo B, na sua acreditação e na constituição de UCC.

A atribuição de MdF aos cidadãos inscritos tem constituído uma bandeira governativa que, como acima demonstrado é de difícil concretização, com enormes reflexos sobre muitos dos indicadores contratualizados. Esta situação deriva da convergência de vários fatores: em primeiro lugar a dificuldade que o setor público está a ter para recrutar e reter profissionais de saúde; em segundo lugar verifica-se que há regiões com melhor capacidade de recrutamento e retenção de médicos que outras, por motivos que ainda não estarão bem identificados, o mesmo ocorrendo com algumas áreas geográficas dentro da ARSLVT; interessa ainda que o facto de haver USF que recebem incentivos e outras UF sem esta prerrogativa institucional e profissional, coloca os cidadãos perante duas realidades discriminatórias, na mesma rede de cuidados. Se, como afirma a ERS, ter MdF atribuído aumenta as taxas de utilização de consultas, os cidadãos que não têm MdF atribuído, dificilmente acedem a consultas, tendo por isso, de recorrer às alternativas disponíveis, das quais os serviços de urgências hospitalares.

No Reino Unido22 verificaram que comunidades que juntam privação material, envelhecimento populacional e problemas de saúde e também aquelas onde existe maior pressão para transferir cuidados hospitalares para a comunidade e maiores entraves à aprendizagem contínua e de progressão nas carreiras médicas, normalmente serão as menos atrativas para o pessoal médico. Ainda recentemente, em Portugal, um estudo citado pelo Jornal Expresso23 revela que “os empregos que oferecem mais autonomia e oportunidades de formação são “fortemente preferidos” pelos médicos.

A variação das taxas de utilização de consultas entre os ACES da ARSLVT evidencia as dificuldades de acesso, devendo estas ser apreciadas de acordo com o contexto sociodemográfico. É possível saber quais os locais onde existem mais idosos a viver sozinhos22, crianças até aos 5 anos em famílias monoparentais, desemprego e precariedade. Nestes locais, as baixas taxas de utilização de consultas assumem importância particular para os cidadãos. Este é o caso dos ICSCSP, assunto que é recorrente. No Reino Unido23 os ICSCSP levaram a uma estratégia de atribuição de incentivos no valor de 96% sobre o vencimento, aos médicos que se voluntariassem a diminuir estes internamentos. Concluiu-se que este processo baixou a variabilidade das práticas dos CSP, melhorou a utilização dos processos clínicos eletrónicos e aumentou as intervenções de enfermagem nas atividades multidisciplinares e nos doentes crónicos, mas não teve impacto na mortalidade. Verificou-se ainda que cidadãos acima dos 85 anos, sobretudo mulheres, que habitavam em áreas de maior privação económica, social e ambiental tendiam a recorrer mais às urgências, apesar do projeto de incentivos acima referido.

É ainda importante reter que, na análise feita neste artigo sobre as taxas de utilização de consultas médicas anuais verificou-se que estas foram mais elevadas nas áreas medianamente urbanas, o que permite debater a tradicional tendência para afirmar que as áreas rurais são os desertos de saúde. Ao que nos parece, na ARSLVT as áreas de maior privação encontram-se nas áreas predominantemente urbanas e essas parecem ter tendência a ser, também, as menos apelativas para o pessoal de saúde.

A análise de dados sobre rastreios e sobre os IDG dos ACES remetem para os estudos24 que têm defendido que o papel dos sistemas na defesa da saúde dos cidadãos é, de facto, diminuto, já que aquilo que defende a saúde está fortemente relacionado com as condições em que os cidadãos nascem, crescem, trabalham e envelhecem, em resultado das condições estruturais e políticas de cada sociedade. De facto, a lei dos cuidados inversos25 afirmava que, quando os cuidados médicos estão mais expostos às forças do mercado, tendem a ser menos acessíveis para as populações com maiores necessidades de saúde. Por outro lado, onde essa exposição é reduzida, os efeitos dessa lei atenuam-se. Esta parece ser uma das explicações para o aumento das desigualdades em saúde que estão a ocorrer na ARSLVT.

Sem desmerecer todo o trabalho realizado na ARSLVT, reconhece-se que os programas de rastreios não são garantia dos melhores efeitos, apesar da sua arquitetura universalista. Influenciam os desejados objetivos, alguns fatores intermédios como sejam as circunstâncias materiais dos cidadãos, os fatores psicossociais (apoio social, por exemplo), a recetividade às mensagens preventivas, particularmente entre cidadãos com menores condições socioeconómicas e menor literacia para a saúde. Porém, quando se verifica que os ACES cumpriram, em média 22.8% do que foi contratualizado e que num se cumpriu 0.8% e noutro se cumpriram 81.3%, do que foi contratualizado estamos perante uma atividade que expõe os cidadãos a desigualdades de acesso aos atos preventivos que acumulam com aquelas a que já estão expostos no seu quotidiano.

Isto significa que, para além das orientações clínicas em matéria de rastreios há a necessidade de atuar perante os níveis de adesão. Não se trata de centralizar as iniciativas e coordenação dos rastreios. Ações multifatoriais são necessárias de modo a aumentar a motivação, identificar os facilitadores e esbater as barreiras à adesão aos rastreios. Sobre este assunto, os resultados evidenciam uma maior participação das mulheres aos rastreios do cancro da mama e do colo do útero, mas piores resultados nos rastreios do cancro do colón e reto, por ambos os sexos. As questões de género em matéria de adesão aos rastreios são conhecidas26 e sabe-se que a masculinidade influi muito na participação dos homens.

Por outro lado, se o propósito do IDG é garantir o necessário equilíbrio entre exigência e exequibilidade, no sentido de conduzir a ganhos de saúde, bem como premiar o esforço, a maior disponibilidade, a qualidade do atendimento e do desempenho, então, a variabilidade das propostas de IDG a cada um dos ACES, em sede de contratualização e os resultados obtidos indicam que estamos perante eventuais necessidades de intervenção tendentes a melhorar o Grau de Cumprimento dos Indicadores, em relação à meta contratualizada e o Grau de cumprimento ajustado dos indicadores.

A diabetes é uma doença complexa cujo tratamento pode variar de acordo com as necessidades do doente, os seus recursos e as suas preferências. No tratamento incluem-se as opções alimentares adequadas à doença e os tratamentos e consultas adjuvantes, uma vez que a doença tem impacto sistémico. No Reino Unido27, uma em cada 20 prescrições feitas por MdF destina-se ao tratamento de doentes diabéticos.

O gráfico que foi incluído no estudo demonstra a desigualdade de custos por doente diabético e o que isso implicará no orçamento familiar, mas também a variabilidade entre as proporções de doentes diabéticos controlados e os custos associados. Um estudo feito no Canadá27. evidencia a disparidade de custos dos medicamentos para a DM entre as diferentes províncias do país e defende que esta despesa é parte significativa da despesa direta em saúde dos cidadãos. Refere ainda que uma despesa catastrófica em medicamentos para a diabetes ultrapassará os 3% de todas as despesas diretas em saúde de cada família. Dado que são as famílias de menores recursos as que tendem a ter doentes diabéticos28, mesmo que a política de copagamentos ou reembolsos tenda a privilegiar este grupo populacional, não os defende das despesas inerentes ao tratamento da DM. Nessas circunstâncias um doente diabético tem de fazer opções entre o que pode despender para fazer face à doença (no curto e longo prazo) e as restantes despesas financeiras do agregado familiar.

Limitações do estudo

Estudar a contratualização em CSP é tarefa difícil, principalmente porque a quantidade de variáveis intervenientes não é controlável. Não se trata de debater os aspetos técnicos da contratualização, mas sobretudo os valores e as questões relacionais que encerra. Por esse motivo a escolha da metodologia parece ser adequada e de fácil replicação. A principal limitação do estudo é a recolha de dados sobre as unidades de análise, sobretudo quando se trata de comparar valores negociados em sede de contratualização e resultados obtidos.

Outra limitação é a falta de resultados de investigação nesta área. Se houvesse mais investigação, enriqueciam-se os fundamentos teóricos deste estudo e a pergunta de investigação.

Conclusão

Perguntava-se, à partida, se a contratualização poderá concorrer para garantir a equidade e o acesso adequado aos cuidados de saúde primários. Do que analisámos neste estudo poderemos enveredar por duas opções de resposta. Em primeiro lugar a construção do processo de contratualização, quer em termos de interlocutores, do quadro conceptual e também em termos das métricas utilizadas, tem contribuído para a consolidação de uma das reformas mais bem-sucedidas na Administração Pública, na área dos CSP. Cresceu com este processo, um sistema de informação complexo que permite dar resposta às necessidades do modelo em vigor.

Em segundo lugar verificou-se ao longo do estudo que está a aumentar a população sem MdF atribuído, na ARSLVT. Significa que são cada vez mais os cidadãos que têm de recorrer a outro modelo de atendimento, o que agudiza a desigualdade entre aqueles que usufruem de um modelo de cuidados incentivados e dos que só podem acorrer ao modelo tradicional de atendimento. Uma das causas comumente apontadas é a falta de pessoal médico. Porém, veja-se que a reforma dos CSP, iniciada em 2005, veio apresentar um novo modelo de organização, mas também de prestação de cuidados. Passados quase 20 anos de reforma, seria tempo de se proporem novos modelos de prestação de cuidados e reorganização das UF, que atendessem às necessidades dos cidadãos, no dealbar da Indústria 4.0.

Assinalou-se durante o estudo que os desertos de saúde já não corresponderão, sempre, às áreas geográficas mais afastadas dos grandes centros urbanos. Estes desertos estão a ocorrer e a aprofundar-se na Área Metropolitana de Lisboa, nos bairros mais carenciados, que concentram também as vítimas de gentrificação, devido à reabilitação urbana e consequente especulação imobiliária, originando assim alterações de dinâmica social e cultural. Associa-se a este, o problema que se identificou de acesso aos medicamentos para a DM. O aumento da despesa com medicamentos foi generalizado em 2022, em todo o país, tanto em hospitais, quando nos CSP, sendo maior na ARSLVT (>100M€), em comparação com as restantes ARS.

Também se verificou que a introdução dos IDG ainda não conseguiu que o desempenho dos ACES correspondesse aos valores contratualizados. É evidente que não se trata de normalizar o desempenho, mas de obter melhores desempenhos nas áreas onde os CSP fazem a diferença. Sem debater a vertente técnica, mas apenas a relacional da contratualização, verifica-se que esta não tem sido a estratégia que contribui para um melhor acesso e equidade, pois parece ficar evidente uma dessintonia entre as fases de planeamento estratégico e de planeamento estratégico situacional, ou local.

No primeiro, estabelecem-se as estratégias de contratualização para alcançar metas de longo prazo, procurando uma melhoria sustentável do sistema de saúde. No segundo, especialmente útil em contextos de incerteza e rápida transformação, analisa-se a realidade e a dinâmica social. Implica a análise dos determinantes da saúde (sociais, políticos, culturais, económicos) que influenciam a saúde da população local. Nos ACES vive-se uma realidade fragmentada, não apenas na perspetiva profissional, mas também populacional. Esta dinâmica exige a intervenção, que já se faz sentir desde o período epidémico, da comunidade organizada, das associações de cidadãos, dos municípios e de outras forças vivas da comunidade.

Referências

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  • Editores-chefes:
    Maria Cecília de Souza Minayo, Romeu Gomes, Antônio Augusto Moura da Silva

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Out 2024
  • Data do Fascículo
    Nov 2024

Histórico

  • Recebido
    27 Fev 2024
  • Aceito
    10 Abr 2024
  • Publicado
    12 Abr 2024
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