Acessibilidade / Reportar erro

Os autores respondem

The authors reply

DEBATEDORES DISCUSSANTS

Os autores respondem

The authors reply

A professora Martha Cristina Nunes Moreira nos brinda com um comentário muito interessante a respeito do artigo "Redes interfederativas de saúde: um desafio para o SUS nos seus vinte anos" e se centra em dois pontos relevantes: o da integralidade da atenção à saúde e os riscos inerentes às redes de saúde. Estes dois temas, integralidade da assistência e rede de saúde, são pontos centrais no artigo em comento.

Ao se falar em risco, não poderíamos deixar de lembrar que tudo na vida sempre encerra um lado luz e um lado sombra; são os riscos num mundo dual de polaridades negativa e positiva. A "sombra" de que fala Jung. Num mundo dual, não há como não haver o outro lado, as "iatrogenias" - que é como a professora denomina metaforicamente os riscos que as redes de saúde podem acarretar.

Riscos são inerentes à vida, em qualquer caminho que se tome, uma vez que todos sempre encerram vantagens e desvantagens. O artigo do professor Giovanni Gurgel Aciole se centra mais fortemente nos riscos que as redes de saúde podem vir a ter, destacando os riscos do engessamento e fechamento do agir da Administração Pública. Por isso é importante destacar nesta réplica a questão da integralidade da assistência à saúde e dos riscos que as redes possam ocasionar na atenção à saúde.

Contudo, primeiramente, gostaríamos de chamar a atenção, diante da pergunta do professor Aciole, para o fato de que a rede interfederativa de saúde não é uma estratégia gerencial, mas sim a consequência do formato jurídico-organizacional do Sistema Único de Saúde (SUS). De acordo com o art. 198 da Constituição Federal, o SUS é um sistema que conjuga todas as ações e serviços públicos de saúde de todos os entes federativos em um único sistema, organizado no formato de "rede regionalizada e hierarquizada". A rede é um mandamento constitucional e não uma estratégia gerencial, ainda que esse formato organizativo do SUS traga dentro de si um modelo de gestão. Gerir uma rede de saúde sempre será diferente do que gerir serviços hierarquizados administrativamente.

A partir da referência de que o SUS é organizado constitucionalmente no formato de rede interfederativa de saúde, passemos para a integralidade da assistência à saúde, definida no art. 7º, II, da Lei nº 8.080, de 1990, como o conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do "sistema".

A partir da necessidade de o SUS atender de maneira "integral" a todo cidadão, surge a necessidade de se organizarem os serviços de saúde em rede interfederativa, uma vez que os entes federativos, autônomos entre si, devem manter suas ações e serviços de saúde de forma integrada com a finalidade de conformar um sistema único e descentralizado. É na rede que os serviços municipais e estaduais se entrelaçam e se organizam de maneira que o cidadão de um município possa encontrar a assistência que necessita numa rede regional - composta pelos serviços de diversos entes federativos.

A integralidade da assistência é o ponto central da necessidade de se juntarem todos os serviços de saúde em uma rede. Certamente, esse modelo organizativo encerra vantagens e riscos, cabendo ao agente público evitar os riscos e reforçar os acertos e as vantagens.

Nesse modelo organizativo, os autores conceberam um formato de rede mais complexa que a rede de serviços de saúde; uma rede que denominaram de rede interfederativa por ser composta por entes federativos e seus serviços. Uma rede que comporta aspectos políticos e aspectos administrativos.

A rede interfederativa é a resposta para a necessidade de haver no SUS gestão compartilhada, a qual exige não apenas o manejo da rede, mas também a decisão de como os serviços de saúde serão organizados do ponto de vista da divisão de responsabilidades, financiamento, metas etc.

A rede interfederativa deve ser entendida de maneira mais alargada que uma simples rede de serviços, por exigir a instituição de arranjos político-administrativos que permitam a negociação entre os entes federativos, em razão das realidades locais, das diversidades culturais, econômicas e sociais. Na rede interfederativa, há espaço para uma administração que une os aspectos políticos (decisão, fixação de responsabilidade, definição das políticas) e os administrativos (a gestão da rede de serviços). Os aspectos políticos da gestão do SUS são relevantes e devem ocorrer nesta rede interfederativa, a qual comporta, por sua vez, a rede de serviços. Poderíamos falar na rede interfederativa como sendo a que comporta o todo e que exige que sejam criados alguns arranjos políticos para a existência de uma gestão compartilhada.

Na rede, os vínculos políticos ficam mais fortalecidos em razão de as autoridades sanitárias poderem discutir e conhecer as realidades territoriais umas das outras e discutir uma política regional de saúde. E será na rede regional que a integralidade da assistência à saúde irá se cumprir.

Esta rede não deve ser de laços apertados que venham a engessar a administração, conforme aponta o professor Aciole, mas sim de pluralismo, multiplicidade de interações, unidades sem isolamento, proximidade sem fusão. Nesta rede a gestão é mais participativa e menos isolada, com otimização de recursos, racionalidade de gastos. Um modelo de administração pública mais solidário em nome do atendimento da integralidade da assistência à saúde.

No SUS, é importante que os entes políticos responsáveis pela saúde organizem espaços colegiados com a finalidade de discutir e decidir de maneira consensual as questões estruturais da saúde - como o seu planejamento, que deve ser integrado por região de saúde; o financiamento, que deve ser compartilhado; a rede de serviços, que deve ser regionalizada; a avaliação e a fiscalização, que devem ser comuns.

Como discutir e manter uno o padrão de integralidade, os critérios gerais para a incorporação tecnológica, os regulamentos técnicos, os protocolos clínicos, sem um espaço para se formar esses consensos? Somente uma rede flexível no tocante à gestão e inflexível no tocante às diretrizes e aos princípios será capaz de conter o sistema público de saúde que tem um formato tão diferenciado que não cabe na Administração Pública sem esses arranjos organizativos.

O professor Aciole aponta a ambivalência da rede: rede no sentido de ordem e organização ou rede no sentido de se instituírem tramas sem controle. Aponta ainda que na rede os serviços até se fortalecem, naquilo que seja aumentar a eficiência, a eficácia e a efetividade de interligar e expandir políticas sociais, com ganhos em qualidade e em redução de custos. Porém, mesmo em nome da produção de um bem social, a "rede" pode não passar de resposta à insuficiência da capacidade de integração das lógicas burocráticas (no melhor sentido weberiano), administrativas (na máxima expressão flexneriana) ou racionalizadoras do planejamento (ainda que seja o do estratégico-situacional, ou sua vertente comunicativa-relacional). Tal conjunto de argumentos não deixa de ser o reconhecimento implícito de uma "dobra", uma espécie de moeda de duas faces que também delimita o fato de que as "redes" têm o seu avesso.

Os riscos apontados pelo professor Aciole devem ser considerados pelas autoridades administrativas e agentes públicos, sem, contudo, deixarem-se o conceito e a necessidade de se terem redes de serviços, uma vez que esse modelo é o único possível para um sistema de saúde operado por entes autônomos, mas que precisam manter-se unidos em nome da integralidade da assistência que somente pode ser cumprida numa rede de serviços.

As considerações do professor devem servir como alerta para os operadores da rede pública de saúde, sem, contudo, inibir a sua organização.

Para finalizar, entendemos que restará aos agentes públicos organizarem a rede de modo a terem princípios e diretrizes fortes e flexibilidades na sua gestão. Diretrizes para evitar as distorções que possam surgir ou as iatrogenias de que fala a professora Martha Moreira, e flexibilidades para evitar rigidez incompatível com as necessidades da saúde, conforme pensamento do professor Aciole.

O importante é atentar para o conceito de rede interfederativa de saúde no sentido de que ela não é a rede de serviços propriamente dita. A rede interfederativa é mais abrangente, com acentuado cunho político que nos remete para a gestão compartilhada de entes autônomos de um mesmo serviço; dentro dessa rede, teremos então as redes de serviços.

A rede interfederativa ou as relações interfederativas na área da saúde são relevantes para a existência de uma gestão verdadeiramente compartilhada do SUS. A interdependência dos entes federativos no Sistema Único de Saúde é um fato concreto em nome da integralidade da assistência que não se cumpre em um único ente federativo. E quando pensamos que 70% de nossos municípios êm menos de 20 mil habitantes, certamente um sistema de saúde que não seja pautado pelo formato de rede não será eficaz.

A professora Martha Moreira insiste na necessidade de as relações no SUS serem de cooperação, solidariedade, destacando a teoria das trocas sociais e das interações dos vínculos sociais. Esse ponto é relevante para o modelo de saúde pública que temos, uma vez que a própria constituição nos impõe uma integração de todas as ações e serviços públicos de saúde de um imenso e desigual país, cabendo a todos uma solidariedade cooperativa e negociada para que a integralidade da atenção à saúde possa se realizar.

Nesse ponto é relevante anotar, ainda, que a rede interfederativa não deve estar normatizada conforme aponta o professor Aciole, mas sim negociada entre os entes federativos no tocante à definição de responsabilidades, recursos, metas, qualidade dos serviços e demais aspectos necessários à garantia do direito à saúde. Por estarmos falando em serviços públicos de saúde, não seria viável deixar uma rede sem critérios e controles, de acordo com o seu ciclo vital, conforme propõe o professor Aciole. Daí também a necessidade de a lei respaldar as decisões consensuais tomadas pelos entes federativos em colegiados, não imobilizando decisões na própria lei, mas flexibilizando-a para que os entes federativos possam, de acordo com as suas realidades, que também são móveis, ir produzindo um sistema que atenda às suas realidades.

A rede não pode ser ambivalente. Ela tem que ser assertiva e ter um sentido de ordem, organização, sob pena de os riscos que apontamos acontecer, em especial o do fracionamento com consequente enfraquecimento. Contudo, isso não significa rigidez ou falta de possibilidade de adequação e possibilidade de expansão de acordo com as realidades sociais. Por isso, propomos que a rede interfederativa seja dotada de elementos que permitam combinar a necessária ordem com flexibilidades do agir administrativo para não haver o risco do engessamento nem o risco da dispersão.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Abr 2011
  • Data do Fascículo
    Mar 2011
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Av. Brasil, 4036 - sala 700 Manguinhos, 21040-361 Rio de Janeiro RJ - Brazil, Tel.: +55 21 3882-9153 / 3882-9151 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cienciasaudecoletiva@fiocruz.br