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RESENHAS

REVIEWS

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La vida en la adversidad: el significado de la salud y la reproducción en la pobreza.

Castro Pérez, Roberto. Cuernavaca, UNAM - Centro Regional de Investigaciones Multidisciplinárias, 2000, 541pp.

Brani Rozemberg

Instituto de Pesquisas Clínicas Evandro Chagas, Fundação Oswaldo Cruz

Esta obra descreve um bem-sucedido mergulho na experiência subjetiva de saúde e doença dos habitantes de Ocuituco, comunidade rural de cerca de 3.200 habitantes a 90km da Cidade do México, estabelecendo conexões entre experiência subjetiva e condições concretas de existência. Fruto de mais de uma década de esforços científicos, o livro é uma valiosa contribuição ao campo de estudos da hermenêutica aplicada à saúde coletiva. Um de seus muitos méritos é o de escapar da mera "documentação e denúncia" das precárias condições de vida e saúde (ainda que dando visibilidade a elas), levando o leitor a compreender o quanto tais condições são decisivas na maneira como os indivíduos dão sentido às suas experiências de saúde e doença. Sendo assim, a pesquisa desconstrói preconceitos ainda tão freqüentes nas produções acadêmicas sobre saúde/doença, tais como os de que a população rural sem escolaridade sofre de "falta de compreensão" "ignorância" ou "incongruência". Ao contrário, baseado no postulado da interpretação subjetiva de Schutz, o autor demonstra, através de numerosos exemplos de campo, que há sempre uma lógica na aparente falta de sentido das respostas ou narrativas de seus entrevistados, e que esta lógica, que articula o sentido de seu discurso, se ajusta a toda uma racionalidade, a toda uma visão de mundo ainda muito pouco conhecida e compreendida. O fato de diferir em muito da racionalidade proposta pela medicina moderna não a torna menos lógica ou menos válida para a ação. O objetivo do livro é o de caracterizar essa racionalidade no discurso dos atores, desentranhando a lógica com a qual eles dão conta, narrativamente, de sua experiência com os fenômenos da saúde, da doença e da reprodução. A idéia não é a de simplesmente inventariar os conceitos e crenças tradicionais que subsistem nos dias de hoje entre habitantes rurais, mas sim a de explicar de que forma se combinam crenças tradicionais e conceitos médicos modernos, sofrendo a influência e articulando-se a elementos provenientes de outros níveis de realidade como a situação econômica e as relações de gênero dominantes

No primeiro capítulo o autor revisa as contribuições da literatura sobre antropologia e sociologia médicas no que concerne ao seu objetivo central: desvelar com o máximo esmero e rigor o duplo vínculo entre ordem social e experiência subjetiva. Encontram-se aí verdadeiras resenhas de obras fundamentais como as de Boltanski, Herzlich, Cornwell e Kleinman entre outros. Trata-se de um mapa altamente didático, atualizado e comentado do que de mais relevante se produziu na área da experiência subjetiva em saúde/doença, distinguindo as abordagens estruturais das interpretativas e apontando, com notável domínio teórico, as contribuições e limitações de cada uma delas, que retomaremos aqui brevemente. As abordagens normativas apresentam importantes limitações no estudo da experiência subjetiva dos indivíduos. Como conseqüência do positivismo, além do acúmulo de estereótipos e determinismos, tais abordagens se concentram apenas em fenômenos observáveis e tangíveis e a subjetividade é estudada de maneira indireta, ou seja, apenas a partir de "comportamentos observáveis" que estariam associados às interpretações dos atores. Já as abordagens estruturais, utilizando o conceito de classe social, conseguem vincular diretamente variáveis socioeconômicas e narrativas de saúde e reprodução, porém representam o indivíduo como bastante restrito por seu ambiente social. Como alternativa menos rígida, a abordagem das representações sociais reconhece, ao mesmo tempo, a capacidade interpretativa dos atores sociais e a lógica da ordem social onde ela tem origem, mas, segundo o autor, existe uma confusão conceitual recorrente entre representações sociais e opiniões individuais. Outros problemas seriam uma perspectiva muitas vezes determinista dos atores individuais que aparecem submetidos à lógica das representações, conformados a uma ordem social preexistente, e não como atores ativos e criativos. Nos termos do autor, o conceito de self é praticamente eliminado. Em outros estudos, ainda, é o contexto social, que nem sequer é descrito, o que pode levar à falsa conclusão de que o contexto é irrelevante no estudo da experiência subjetiva.

O autor compila também a contribuição da abordagem de gênero que postula a necessidade de entender relatos subjetivos de saúde e reprodução como produtos históricos e com atenção às particularidades da sociedade onde ocorrem. Considerando que a sociedade é governada, em um nível mais geral, pela lógica do capitalismo e do patriarcado, a dificuldade nestes trabalhos é vincular conceitualmente esta lógica com a natureza particular dos relatos dos indivíduos. Muitos estudos ao invés de explicar, simplesmente assumem tal conexão, representando assim as mulheres como submetidas a tanta opressão que aparentemente não há lugar para a criatividade individual.

Em seguida, o autor ressalta o alcance da abordagem interpretativa, onde o ponto de partida é a subjetividade dos indivíduos enquanto que a estrutura social adquire a posição de variável independente. Ao invés de deduzir o que ocorre com os atores a partir de um marco teórico preconcebido e abrangente, tais estudos colocam o relato dos atores no papel central, passando a uma exploração sistemática da inter-relação entre estrutura social e subjetividade sem sacrificar a capacidade criativa dos agentes. As limitações associadas a esta abordagem relacionam-se com a dificuldade em reposicionar o papel da estrutura social, que praticamente desaparece como uma realidade independente e externa aos indivíduos. O autor destaca algumas obras interpretativas sobre reprodução humana e direitos das mulheres, além dos trabalhos de Cornwell e os de Kleinman e Good entre os mais sérios da tradição interpretativa por conseguirem vincular os três níveis: estrutura social, visão de mundo dos indivíduos, e experiência subjetiva de saúde/doença. Neste sentido, particular atenção é dedicada às contribuições da escola hermenêutica brasileira. A abordagem hermenêutica, na qual o autor situa sua obra, é apresentada como solução promissora entre a total "indeterminação social" - da abordagem interpretativa clássica - e o dilema da supressão dos atores - típica dos enfoques coletivistas. Com uma leitura da realidade menos ortodoxa que as demais abordagens, a hermenêutica teoriza sobre relatos subjetivos de saúde/doença entendendo que o estrutural e o subjetivo são duas ordens de realidade independentes e relativamente autônomas. Nenhuma predomina sobre a outra, ainda que nenhuma se explica sem a outra.

No segundo capítulo, o autor descreve o processo de coleta e análise qualitativa de dados e a definição dos grupos de informantes. Situa a ciência social interpretativa de Weber como perspectiva teórica geral da pesquisa, fundamentando sua opção pelo trabalho com narrativas e explicações verbais dos entrevistados, por considerar que a linguagem que um grupo usa para falar de saúde, sintomas e reprodução é o meio de transmissão por excelência de significados, que representa a acumulação objetiva de vastas quantidades não só de significados mas também de experiências deste grupo. O autor trabalha o conceito de senso comum como um acervo de pressuposições, socialmente criado e interiorizado pelos indivíduos. Sendo fruto do processo social de interpretação seletiva e compartilhada da realidade, o campo semântico acaba portanto sendo um elemento determinante da experiência real dos membros do grupo. Para o autor, as explicações que os indivíduos oferecem sobre saúde e doença são mais do que meras descrições de sua condição física, elas articulam a situação da pessoa no mundo e com isso articulam esse mundo, no qual o indivíduo pode responder aos demais.

O terceiro capítulo apresenta o contexto sociodemográfico, em que se desenrola o cotidiano dos habitantes de Ocuituco, enquanto o quarto capítulo apresenta os aspectos mais significativos da visão de mundo (ou senso comum) que os atores têm de sua própria cotidianidade. O nível do senso comum representa a mediação entre os determinantes estruturais e a experiência subjetiva. Sendo assim, uma vez caracterizados estes dois níveis de realidade, e identificadas as principais formas de vinculação entre ambos, o quinto capítulo inaugura a apresentação de refinadas análises subjetivas, sendo dedicado ao significado atribuído pelos entrevistados à noção geral de saúde e a origens e causas das doenças. O sexto capítulo analisa a experiência popular sobre "susto", "queda da moleira" e "perda da sombra", queixas populares contextualizadas pelo autor com base em uma breve revisão da literatura. O sétimo capítulo aborda a experiência diferenciada de homens e mulheres com a reprodução, a sexualidade e a anticoncepção, enquanto o oitavo se ocupa do tema da busca da atenção médica e da recuperação da saúde, trabalhando o significado da medicina moderna no universo dos entrevistados.

Nas conclusões o autor retoma as principais implicações teóricas e práticas de seus dados, confrontando-os com a vasta literatura consultada e argumenta sobre a possibilidade de generalização de seus resultados. A esse respeito, gostaria aqui de ressaltar que existem muitas semelhanças da experiência subjetiva dos moradores de Ocuituco com a da comunidade agrícola do interior de Nova Friburgo (RJ) - onde moro e realizo estudos -, e o quanto me foram pertinentes e enriquecedores os insights do autor, assim como as categorias de análise por ele produzidas, para a compreensão deste contexto. São exemplos de aspectos em comum: a incerteza e a sensação de precariedade, fruto de condições concretas de privação, levando a uma tendência a se atribuir um caráter aleatório e inesperado às doenças, e a uma preferência por explicar como conseqüência de "acidentes" acontecimentos que, em outros contextos, dificilmente se explicariam como tal; a conseqüente disposição para enfrentar o inesperado como normal; a sensação de estarem localizados ao fundo da escala social, de serem "os de baixo"; a familiaridade com a impossibilidade de terminar um projeto; a relação ambígua com médicos e diagnósticos, reforçando-lhes a sensação de incerteza; a prevalência de uma visão negativa de si mesmos refletindo a opressão econômica e de gênero... Mas é melhor deixar que os leitores se encontrem com a obra, ou corremos o risco de descontextualizar as análises realizadas.

Finalmente, cabe ressaltar que o leitor é conquistado no breve capítulo de introdução: "Fragmento de um desencontro discursivo em saúde". Nele, o autor descreve os esforços de uma médica, na condição de entrevistadora, por extrair de uma moradora rural, uma resposta "coerente" ao seu marco de expectativas. Por sua vez, em tom exasperado, a entrevistada repete pela terceira vez a resposta que lhe parece adequada àquela pergunta, dentro de seu próprio marco referencial. É preciso ler o livro para conseguir entender a moradora rural em sua própria lógica, vinculada às suas condições de vida. Sendo assim, ao brilhantismo do trabalho de pesquisa, somam-se as habilidades literárias do autor.

Acidentes Industriais Ampliados - desafios e perspectivas para o controle e a prevenção.

Carlos Machado de Freitas, Marcelo Firpo de Souza Porto e Jorge Mesquita Huet Machado (org.). Fiocruz, 2000, 316pp.

Ubirajara Aluízio de Oliveira Mattos

DESMA/UERJ

A imprensa falada, escrita e televisiva tem nos últimos tempos noticiado, com maior freqüência, a ocorrência de eventos com conseqüências trágicas para a sociedade e o meio ambiente de um modo geral em todo o mundo. Muitos desses eventos têm a sua origem na produção de bens e serviços voltados para o atendimento das necessidades humanas. Estes últimos eventos têm como causas fatores de risco presentes nos processos de trabalho e nas formas de organização dos sistemas produtivos. São os chamados acidentes de trabalho, eventos previsíveis e, portanto, passíveis de prevenção.

Uma parcela desses acidentes tem conseqüências que se ampliam no espaço e no tempo, podendo atingir o trabalhador, a sociedade e o meio ambiente. São os denominados Acidentes Industriais Ampliados (AIA), "eventos agudos como explosões, incêndios e emissões nas atividades de produção, isolados ou combinados, envolvendo uma ou mais substâncias perigosas com potencial para causar simultaneamente múltiplos danos sociais, ambientais e à saúde dos seres humanos" (Freitas, Porto e Machado, 1999, p. 28).

Instituições e especialistas de vários países e de diversas áreas do conhecimento científico têm investigado nas últimas décadas fatores que contribuem para ocorrência desses eventos; avaliado os danos por eles gerados aos trabalhadores, consumidores, comunidades de um modo geral e à ecologia; estudado e sugerido diversas medidas de intervenção, voltadas para a prevenção, controle ou correção dos danos causados por esses acidentes.

Dada a importância do tema e a carência de estudos e de bibliografia que permitam à sociedade, de um modo geral, obter uma maior compreensão desses fenômenos, tanto em nível mundial quanto no contexto brasileiro, o livro Acidentes industriais ampliados - desafios e perspectivas para o controle e a prevenção vem, sem dúvida, trazer importantes contribuições ao estudo do tema, servindo como uma valiosa ferramenta voltada para a prevenção e o controle dos fatores de riscos geradores de AIA.

Esta obra, organizada em 13 capítulos, agrupados em quatro assuntos (Aspectos teóricos e metodológicos; Cenários; Planejamento de emergências e Estratégias institucionais de controle e prevenção), reúne o trabalho de 19 autores de diversas instituições nacionais e internacionais, com experiências acadêmica e profissional nas áreas de Segurança e Saúde do Trabalhador, que desenvolvem pesquisas, prestam consultorias ou atuam na Vigilância Sanitária em empresas do país.

A Parte I, composta por três capítulos, apresenta os Aspectos Teóricos e Metodológicos, propostos para abordagem do fenômeno. Inicialmente, é feita, no capítulo 1 - "Perspectivas para uma Análise Interdisciplinar e Participativa de Acidentes (AIPA) no contexto da indústria de processo" -, uma apresentação dos pressupostos conceituais e metodológicos propostos para análise de acidentes industriais e suas causas, com ênfase na indústria de processo químico. O capítulo 2 - "Uma abordagem ergonômica da confiabilidade e a noção de modo degradado de funcionamento" -, discute a relação entre confiabilidade e o modo de funcionamento de sistemas complexos de produção, introduzindo o conceito de modo degradado de funcionamento como uma falha latente oriunda de incidentes e acidentes ocorridos nas indústrias. O capítulo 3 - "A produção social do erro - o caso dos acidentes ampliados" -, mostra que o risco de acidentes ampliados é aumentado quando não é dada importância às relações sociais na produção de acidentes.

A Parte II - Cenários, constituída por três capítulos, mostra experiências com acidentes ampliados na Itália e no Brasil. No capítulo 4 - "O acidente industrial ampliado de Seveso: paradigma e paradoxo", é feita uma análise do acidente ocorrido em Seveso, Itália, em 1976, com a explosão de um reator, liberando dioxinas, em uma indústria química de grande porte, e um balanço das medidas adotadas de controle da saúde da população. Segundo os seus autores, Seveso continua sendo um grande paradoxo, pois não há como afirmar que está totalmente segura para se viver ou ainda apresenta riscos para a saúde de sua população. Nos capítulos seguintes, são tratadas questões relacionadas com a realidade brasileira. No capítulo 5 - "A experiência do movimento sindical na análise de acidentes químicos ampliados" -, é feito um relato da atuação sindical em um caso de explosão e morte no complexo petroquímico de São Paulo e de estratégias usadas pelas indústrias para dificultar o acesso aos locais de ocorrência de acidente e na cessão de informações para a realização de análises desses eventos por parte dos sindicatos. O capítulo 6 - "'Seguuura, Peão!' - alertas sobre o risco técnico coletivo crescente na indústria petrolífera (Brasil, anos 90)" -, apresenta um quadro nacional de insegurança na indústria petrolífera que precisa ser revertido para uma situação que possibilite a preservação da saúde do trabalhador e das comunidades circunvizinhas a essas indústrias.

A Parte III - Planejamento de Emergências apresenta propostas para atuação em situações de emergência, visando à redução das perdas, quando ocorre um acidente. O capítulo 7 - "Principais critérios para julgamento da gestão de desastre e aplicação nas sociedades em desenvolvimento" -, estabelece critérios que devam ser considerados na concepção de uma "boa gestão". O capítulo 8 - "Implantação de sistemas de resposta para emergências externas em áreas industriais no Brasil" -, apresenta e discute a experiência de implantação de um sistema de resposta para emergências externas no Pólo Industrial de Campos Elíseos, Duque de Caxias (RJ). Fechando esta parte, o capítulo 9 - "Papel dos setores envolvidos no atendimento médico de emergência em acidentes químicos ampliados" -, mostra que o atendimento médico, em larga escala, nas situações de acidentes químicos ampliados apresenta diferenças na aplicação das medidas de primeiros socorros em relação aos outros tipos de acidentes, envolvendo um número elevado de vítimas.

A última parte, Parte IV - Estratégias Institucionais de Controle e Prevenção, é composta por quatro capítulos, sugere a adoção de medidas de intervenção nos sistemas produtivos, visando à eliminação e/ ou controle das situações de riscos. O capítulo 10 - "As metodologias de análises de riscos e seu papel no licenciamento de indústrias e atividades perigosas" -, aponta para a necessidade dos órgãos governamentais de fiscalização e as empresas de implementarem metodologias que permitam a análise de riscos, possibilitando uma atuação preventiva e auxiliando no gerenciamento integrado da segurança e do meio ambiente nas empresas. Os três últimos capítulos discutem as experiências internacionais de gestão voltadas para o controle e prevenção de riscos de acidentes químicos. O capítulo 11 - "Prevenção e resposta a acidentes químicos - situação na América Latina e no Caribe" -, destaca as ações da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), em particular as atividades desenvolvidas pelo Programa de Preparativos de Desastres para Situações de Emergência e Coordenação de Socorro (PED), sob a coordenação da OPAS. O capítulo 12 - "Análise e registro de acidentes - a experiência dos países nórdicos" -, discute a importância de se encontrar meios efetivos para utilizar todas as experiências existentes em casos de incidentes e acidentes anteriores, em diferentes tipos de situações em que seja necessário tomar decisões. As situações ocorrem durante a operação normal de produção, nas fases de análise de riscos, na concepção de novos projetos de processos industriais ou em modificações de antigos, durante o reparo ou a manutenção. Finalmente, no capítulo 13 - "A prevenção e os trabalhadores - aspectos comparativos da legislação dos EUA, da Grã-Bretanha e da Holanda" -, são apresentados os principais aspectos e características, bem como realizadas algumas comparações das legislações trabalhistas de países de Primeiro Mundo, voltadas para prevenção de acidentes industriais ampliados, que adotaram a Diretiva de Seveso (Grã-Bretanha e Holanda) e possuem grande experiência em prevenção de AIA ou, como é o caso dos EUA, que é responsável por cerca de 25% da produção química e petroquímica do mundo.

Antropologia, saúde e envelhecimento.

Maria Cecília de Souza Minayo & Carlos E. Coimbra Jr. (org.). Fiocruz, 2002, 209pp.

Renato Peixoto Veras

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

O livro Antropologia, saúde e envelhecimento veio cobrir uma lacuna na literatura da saúde coletiva sobre a questão atual da saúde do idoso no Brasil. Não que esse fosse um tema menor, dentre as preocupações do setor no final do século 20 e início do século 21. Pelo contrário, a partir de alguns autores cujos textos e ações são seminais para nosso campo, dentre os quais ouso modestamente citar minha obra e todo o corpo de pesquisadores e técnicos da Unati/Uerj, assim como o trabalho pioneiro do dr. Mário Sayeg, e de outros sanitaristas nucleados por ele nos cursos de especialização sobre a saúde do idoso na Ensp/Fiocruz, muitas questões têm sido desvendadas e muitos cuidados ressaltados. Até uma proposta de Política de Atenção aos Idosos foi formulada, com a colaboração de profissionais de todo o país.

O que torna diferenciada a presente obra é seu enfoque e sua perspectiva. Pela primeira vez no Brasil, a discussão do envelhecimento na área da saúde se faz sob o olhar antropológico. Trata-se de uma coletânea onde vários temas são unificados pela voz dos idosos. Os autores iniciam o livro com um belo poema de Carlos Drummond de Andrade, no qual nosso poeta maior diz que ser velho ou moço, pouco importa, importa-nos sentir-nos alvoroçados pela vida e pela beleza, sempre reinaugurando a perpétua procura e a perpétua criação. Na introdução Minayo & Coimbra Jr. referem-se às velozes mudanças no perfil demográfico do país, à presença cada vez maior dos idosos em todos os espaços sociais, e à definição da vivência da velhice como tempo simultâneo do orgasmo da vida e da liberdade; da medida do possível e também da maior dependência. Constroem uma detalhada elaboração teórica sobre o envelhecimento como híbrido biológico-social, "desnaturalizando" a idéia muito corrente dos ciclos da vida coincidindo com a idade cronológica. Nesse sentido, explicam que a manipulação de categorias etárias exige um investimento político de definição de poderes e de estabelecimento de direitos, deveres e privilégios.

A relação entre etapas da vida regidas pelo controle social, sobretudo em nível da saúde reprodutiva é eixo central de um dos textos escritos neste livro por Parry Scott, comparando dois países em acelerado processo de envelhecimento: Brasil e Japão. O Japão, ocupando o primeiro lugar na escala do desenvolvimento humano (na classificação da OMS em 2000); e o Brasil, perfilado no 125o lugar. O trabalho mostra como os idosos, na dinâmica atual, vão mudando seu perfil, em ambos os países, num redimensionamento das expectativas sociais que envolve todos os grupos etários. Brasil e Japão são muito diferentes. No entanto, nos dois países, o que chama atenção em relação aos idosos, é uma busca por eles próprios, de sua maior independência em relação aos filhos e a orientação de seu cotidiano para uma vida mais ativa e com mais qualidade.

Minayo & Coimbra Jr. apresentam uma fundamentada crítica do envelhecimento como "problema" e propõem que o tema seja tratado como "questão pública". No primeiro caso, o estereótipo do velho é o de um ser "descartável" e "decadente", estigmas com os quais as sociedades costumam rotulá-los e assim, decretar sua "morte social". Mostram que o Estado sintetiza a negação do idoso e sua contribuição cultural, sobretudo, na constante divulgação dos deficits da Previdência, como se fosse provocado por um grupo considerado oficialmente "improdutivo". Ora, essa miopia economicista reduz a situação do idoso a uma avaliação utilitária da vida, como se eles estivessem fazendo uma apropriação "indébita" de bens e serviços.

No caso do envelhecimento como "questão pública", os autores colocam uma nova perspectiva, tratando os velhos como atores sociais, que, num momento de seu crescimento em número, em expectativa e em qualidade de vida, exigem uma redefinição dos contornos de seus papéis tradicionais. Discutem o assunto, mostrando a variedade de perfis que os velhos possuem hoje, como sujeitos individuais e coletivos em vários espaços privados e públicos. Apresentam-nos como consumidores, produtores e atores políticos, portanto, trazendo uma contribuição específica para a construção da sociedade "pós-moderna". Nesse sentido, o já referido texto de Parry Scott revela como no Japão, um vasto setor da economia se dirige ao atendimento e à demanda dos idosos; e no caso do Brasil, está cada vez mais clara a constatação de que elevados percentuais deles estão mantendo sua família ampliada pois têm renda per capita acima da que seus filhos recebem. Não são, portanto, um peso social.

Ainda no mesmo sentido de redefinição cultural do lugar social do idoso, há um belo texto de Maria Rita Heck e Esther Langdon sobre a antropologia dos colonos no Rio Grande do Sul que destaca três pontos centrais: em primeiro lugar, as diferenciações de gênero no processo do envelhecimento. Enquanto os homens perdem seu espaço social e tendem à rigidez no desempenho de seus papéis de velhos, as mulheres, principalmente a partir da década de 1990, quando conquistaram a aposentadoria rural, conseguem superar o isolamento e constroem a si próprios como novas pessoas, criando espaços de convivência e possibilidades de vida sadia em propostas que abrangem o grupo e várias comunidades rurais. Em segundo lugar, as autoras mostram que o "benefício" da aposentadoria rural (freqüentemente visto pelos governantes de plantão como insuportável custo social) foi uma chave importante para que o grupo vislumbrasse novas possibilidades de vida. Em terceiro lugar, evidenciam como na vida cotidiana se redesenham papéis alternativos para os idosos, no caso concreto do grupo pesquisado: as pessoas na fase do envelhecimento são as que dispõem de mais tempo para discutir os problemas do cotidiano, empreender iniciativas de intervenção de acordo com os interesses comunitários, conciliar grupos com interesses políticos opostos.

Ainda no sentido de valorização do grupo etário, Ana Zahira nos oferece uma excelente reflexão sobre a emergência de um novo momento histórico do envelhecimento no Brasil: a autora trabalha com biografias de vida de mulheres comuns, cujo enredo leva a concluir que não podemos nos fixar apenas nas perdas e limitações da velhice e numa única forma de viver o curso da vida. Seu estudo revela o envelhecimento como experiência diversificada e sujeita às influências de diferentes contextos sociais, históricos e culturais. Essa pluralidade subjetiva provoca uma pluralidade de demandas que nem sempre corresponde às idéias que os especialistas médicos têm: primeiro porque os velhos apresentam uma representação muito mais positiva sobre sua condição; segundo, porque não existe um "tipo ideal" de idoso, uma vez que as vivências pessoais são fortes componentes da vida saudável. Isso contraria os receituários positivistas que desconhecem ou negam a subjetividade.

Os textos de Elisabeth Uchoa e colaboradores sobre a vida dos velhos em Bambui (MG), e de Alda Motta sobre experiências existenciais de idosos em Salvador vão no mesmo sentido das reflexões de Ana Zahira. Ademais de cumprir um importante papel de explicitar e de oferecer uma visão positiva do convívio cotidiano com as limitações e as possibilidades próprias da idade, o primeiro trabalho contribui para uma reflexão aprofundada sobre a associação entre velhice, doença e morte. Os autores evidenciam também as representações muito mais negativas dos familiares sobre "o que é envelhecer" quando comparadas à visão dos próprios velhos. Os parentes ressaltam as dificuldades próprias da idade e as limitações provocadas por vários tipos de dependência; enquanto os idosos tendem a valorizar a própria vida, a convivência cotidiana e as expressões de solidariedade e afeto da rede de relações por eles construídas.

O texto de Alda Motta aprofunda a percepção do sentimento do corpo no processo de envelhecimento, ressaltando as dificuldades de aceitação dos sinais físicos de identificação. A autora desenvolve uma complexa reflexão sobre os processos desiguais do envelhecer, diferenciado entre estratos sociais, entre sexos e sobretudo, entre as pessoas e como experiência pessoal. Nesse último sentido, Alda mostra que há partes de nós muito envelhecidas assim como há outras bastante jovens e até crianças, o que evidencia a complexidade da dinâmica física e subjetiva na composição da biografia. Isso, propõe a autora, torna a vida muito mais rica e sedutora do que a mera consideração das dependências e das rugas.

Há quatro trabalhos no livro que tocam com maior força no lado difícil do envelhecimento. Um deles, o de Cornélia Eckert, apresenta uma análise das narrativas de velhos habitantes de classe média de Porto Alegre sobre as transformações do espaço urbano. A autora mostra a presença de uma cultura de medo que ressalta os cenários de violência dominando o imaginário, contrastada com as lembranças de um passado idealizado. Nessa rigidez do imaginário que narra a cidade como medo, muitos idosos, sentindo-se desamparados pelo poder público, passam a orientar suas vidas cotidianas pela obsessão da segurança, fechada intramuros, não como um desejo, mas como uma contingência de um tempo que estranham.

O texto de Edinilsa R. Souza e colaboradores analisa notícias de jornais do Rio de Janeiro, num período histórico recente, onde a visão do idoso é cristalizada na imagem de "velho como problema" através do discurso de três atores sociais: as famílias que os abandonam em asilos ou clínicas; os donos e gestores de casas geriátricas e hospitais públicos ou conveniados, destinados aos pobres desse grupo social; e a mídia que, com poucas exceções, tende a reforçar os estigmas do "peso social", e a "seqüestrar a voz do idoso" ouvindo, sobre temas que lhe diz respeito, sempre os que crêem representá-los: a família, os donos de clínicas e asilos e os gestores públicos.

Paulo César Alves introduz a narrativa de mulheres idosas que se definem como "nervosas" a partir de um processo de vida onde acumularam vivências de acontecimentos fragilizantes. O autor mostra que esse culminar da vida sintetizada na expressão do sofrimento nervoso remete a situações reiteradas de aflições e crises provocadas por uma experiência existencial de eventos de consumição marcados pela pobreza e pela violência. As próprias pessoas que cronificaram o sentido de sua história nos termos da fragilidade e vulnerabilidade narram sua biografia por meio da gramática do sofrimento mental.

Por fim, o texto de Célia Caldas fala da radicalização das limitações, quando o idoso, em processo demencial, pouco pode dispor de suas forças físicas e mentais e tem de depender de outros, geralmente os familiares. Aqui é o cuidador que oferece a lógica interna de sua dedicação. A autora revela o jogo de luzes e sombras desse momento em que o envelhecimento costuma perder todo o seu sentido positivo. E no sofrimento de ambas as partes, paciente e cuidador, ressalta-se um balanço da vida e de sua dignidade, muito maior e mais elevado que todos os papéis que possamos desempenhar. Célia ressalta o sofrimento do cuidador pela progressão da enfermidade demencial; as dificuldades do processo cotidiano do cuidar; e a necessidade de se cuidar do cuidador.

Ao terminar esta resenha, gostaria de convidar à imersão nessa obra cuja riqueza não cabe numa resenha, em que apenas alguns pontos que me tocaram foram passados aos leitores. Hoje no Brasil, o fenômeno demográfico do veloz envelhecimento populacional demanda de nós uma abertura para rever preconceitos e uma compreensão mais aprofundada das relações entre todas as etapas da vida em prol da redefinição do lugar do idoso, mas como um bem para toda a sociedade.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Jul 2002
  • Data do Fascículo
    2002
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