Resumo
O suicídio afeta pessoas de quase todas as idades e tem elevado custo social e econômico. Sabe-se, porém, que sua ocorrência é subestimada. O objetivo deste artigo é estudar o suicídio em São Paulo segundo dados da Segurança Pública, comparando com os do Ministério da Saúde (SIM/MS), a fim de mensurar possíveis ganhos de informação. Foi elaborado um banco (Banco SSP) a partir de planilhas de boletins de ocorrência policial, complementado com informações do Instituto Médico Legal, o qual foi comparado com os dados do SIM/MS. O Banco SSP (2.469) mostrou-se 7,5% mais elevado que o SIM/MS (2.297), resultados que se refletiram no sexo e idade das vítimas, mostrando taxas mais elevadas em homens idosos (taxa 12,8 por 100 mil habitantes). Quanto ao meio utilizado, verificou-se predomínio do enforcamento (60,2%); 92,5% de casos não especificados puderam ser esclarecidos, verificando-se aumento nas mortes por intoxicações exógenas (55,7%). O histórico policial permitiu conhecer variáveis consideradas como possíveis fatores de risco para o suicídio, como menção a transtornos mentais (39,4%), outras patologias (5,0%), outros problemas (23,2%) e tentativas anteriores (10,0%). A fonte estudada possibilitou ganho quantitativo e qualitativo em relação ao SIM/MS.
Palavras-chave: Suicídio; Epidemiologia; Mortalidade; Causas externas; Sistemas de informação em saúde
Abstract
Suicide is prevalent among people of almost all ages and has a high social and economic cost. It is widely known, however, that its true prevalence is underestimated. This article aims to study suicide in São Paulo based on Public Safety data, compared with mortality information system data (SIM/MS), in order to assess possible information gains. A database (Banco SSP) was assembled from spreadsheets for police reports, complemented with existing Forensic Medicine Institute information, which was compared with the SIM/MS data. The Banco SSP database (2,469) was 7.5% higher than SIM/MS (2,297), with results reflected in the sex and age of the victims, showing the highest rates among elderly men (rate of 12.8 per 100,000 inhabitants). In relation to the method of suicide, there was a predominance of hanging (60.2%); 92.5% of unspecified cases were clarified, with an increase in deaths from exogenous poisoning (55.7%). The police reports revealed variables considered as possible risk factors for suicide, such as the mention of mental disorders (39.4%), other pathologies (5.0%), other problems (23.2%) and earlier attempted suicides (10.0%). The source studied enabled obtaining quantitative and qualitatively enhanced data compared to the SIM/MS data.
Key words: Suicide; Epidemiology; Mortality; External causes; Health information systems
Introdução
O suicídio, definido como o ato voluntário e consciente de tirar a própria vida, é tratado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), no contexto da Classificação Internacional de Doenças (CID), como um dos tipos de causas externas de morte. Consequentemente, seus dados são extremamente importantes no estabelecimento do panorama epidemiológico de cada área. Trata-se de um tipo de causa que, em muitos países, encontra-se em ascensão, afetando pessoas de quase todas as idades, com elevado custo social e econômico1,2. O montante de seus dados, entretanto, é questionado por pesquisadores, visto que conceitos, religiões, hábitos de vida, legislação, formas de coleta e registro podem variar entre países e mesmo dentro de cada país, em geral, subestimando sua verdadeira ocorrência na população1,3-6.
No Brasil, desde os trabalhos clássicos de Mello Jorge7 e Drumond et al.8, assim como no exterior5,6,9, estudiosos buscam métodos e soluções para minimizar essas lacunas, trazendo dados mais robustos de forma a permitir a elaboração de um “retrato”, quantitativa e qualitativamente, mais fiel do que se verifica em cada área10,11.
Os sistemas de informação em saúde têm servido à elaboração de políticas públicas e, nesse aspecto, a importância de informações completas e corretas é inegável12. Os dados de mortalidade sobre causas externas, por lei, são oriundos dos Institutos de Medicina Legal (IML). É sabido, entretanto, que, apesar de o Sistema de Informações sobre Mortalidade, gerido pelo Ministério da Saúde (SIM/MS), já ser conhecido internacionalmente como tendo dados de boa qualidade2,13, no que tange aos acidentes e violências deixam, ainda, a desejar, seja porque apresentam número não desprezível de casos sem especificação, seja porque, com relação aos suicídios, parece manterem-se subenumerados14,15.
Algumas experiências com busca ativa de informações têm sido feitas para o aprimoramento desses dados, tais como o retorno ao IML a fim de checar os laudos de necropsia, a utilização dos Boletins de Ocorrência Policial (BO) que contém a descrição do evento, ou mesmo servindo-se de dados da imprensa8,10,11,16.
Isso posto, justifica-se esta pesquisa que objetivou estudar o suicídio em São Paulo segundo dados da Segurança Pública (SSP/SP), comparando com os do Ministério da Saúde (SIM/MS), a fim de mensurar possíveis ganhos de informação.
Métodos
Trata-se de estudo transversal, descritivo, relativo à comparação de dados sobre suicídio no estado de São Paulo em 2015, a partir de duas fontes de dados: SSP/SP e SIM/MS.
A fonte da Segurança Pública consistiu em um banco de dados elaborado pelos próprios pesquisadores (Banco SSP), elaborado a partir de três planilhas extraídas do sistema de Registro Digital de Ocorrência fornecidas pela SSP/SP. Essas planilhas continham registros de Boletins de Ocorrência Policial (BO) nos quais poderiam existir casos de suicídio: BOs de suicídios consumados (2.105 registros), BOs de suicídios tentados (3.462 registros de vítimas que tentaram suicídio sem consumar o evento em um primeiro momento) e BOs mortes suspeitas (19.450 registros que continha casos para os quais, à primeira vista, não havia sido possível, à autoridade policial, classificar o caso sequer como acidental ou intencional). Para os registros de suicídio tentado, foi pesquisada a existência de laudo de necropsia no IML o qual, quando presente, indicava ter ocorrido morte posteriormente à tentativa; estes casos foram avaliados, sendo incluídos aqueles cujo óbito estava relacionado a suicídio ocorrido em 2015 (83 casos). Para os registros de mortes suspeitas, foi utilizado um sistema de busca através de palavras-chave que pudessem ter relação com suicídio (por exemplo, “suicídio”, “precipitação”, “chumbinho”, entre outras), tendo sido encontrados 347 casos (Figura 1). A seguir, os laudos necroscópicos e toxicológicos de cada caso foram levantados no Sistema Gestor de Laudos (GDL) do Instituto Médico Legal de SP, e o banco foi complementado com informações destes laudos. Todos os BOs e os laudos de cada caso incluído no Banco SSP foram lidos e analisados para inclusão somente dos casos pertinentes, sendo excluídos os casos duplicados e os não relacionados a suicídio. Ao final, foi atingido o total de 2.469 casos de suicídio (universo e não amostra) ocorridos em SP no ano de 2015 (Figura 1).
Esse número foi comparado ao total dos suicídios captados pelo SIM/MS - códigos X60 a X84 da CID-10 para a mesma área e ano, em um total de 2.297 casos17,18.
Além do total de casos, foram estudadas e comparadas, nas duas fontes, as seguintes variáveis: sexo (masculino e feminino), idade (agrupada nas seguintes faixas etárias: 10 a 19 - adolescente, 20 a 39 - adulto I, 40 a 59 - adulto II e 60 anos ou mais - idoso, além de uma classe denominada “não especificada”) e tipo de suicídio, onde foi estudada a causa básica da morte classificada nos códigos X60 a X84 da CID-1018.
Importante salientar que essa comparação foi feita globalmente, já que foi impossível utilizar a metodologia do “linkage” por não ter sido disponibilizado o banco identificado do SIM/MS. As alterações resultantes dessas comparações - para mais ou para menos - e sua quantificação, foram apresentadas em números absolutos, proporções e taxas de mortalidade. A população de SP, em 2015, segundo a Fundação Seade, foi estimada em 43.046.555.
Com relação ao “histórico policial” contido no BO de cada caso, tendo sido verificada a riqueza de informações existentes, seus dados foram coletados e agrupados para as seguintes variáveis, que foram incluídas no Banco SSP: menção a transtorno mental (em caso positivo, quantos e quais); menção a outras patologias (em caso positivo, quantas e quais); menção a outros problemas que poderiam corresponder à motivação para o suicídio (por exemplo, problemas de relacionamento, problemas financeiros, estar preso, problemas no trabalho, perdas familiares, entre outros); e menção à existência de tentativa anterior de suicídio.
A pesquisa foi autorizada pela SSP/SP, pelo IML/SP e pelo Comitê de Ética em Pesquisa da FSP/USP (Parecer nº 2.614.508).
Resultados
O Banco SSP resultou em 2.469 casos de suicídios ocorridos no estado de São Paulo, em 2015. A Tabela 1 mostra, para cada tipo de suicídio, a distribuição dos casos segundo o SIM/MS (2.297 casos) e a encontrada nesta pesquisa, bem como as alterações ocorridas em cada categoria, de se notar que a fonte SSP mostrou-se mais elevada em número de casos que o SIM/MS e que houve melhor detalhamento dos tipos de suicídio, com menor número de casos de suicídio por meio não especificado, que passou de 53 (2,3%) para apenas 4 (0,2%). O maior aumento em números absolutos (142 casos) ocorreu entre as autointoxicações, que passaram de 11,1% para 16,1%.
Na Tabela 2, os casos foram distribuídos segundo sexo e agrupamento etário nos bancos SSP e SIM/MS, bem como as alterações ocorridas em cada categoria e as taxas de mortalidade para cada sexo e faixa de idade. Observa-se que 45,4% das vítimas pertenciam ao grupo de 20 a 39 anos (1.122 casos - taxa de mortalidade de 7,7 por cem mil habitantes), 33,1% ao grupo de 40 a 59 anos (817 casos - taxa de mortalidade de 7,4 por cem mil habitantes), 15,4% ao grupo de 60 anos ou mais (380 casos - taxa de mortalidade de 6,7 por cem mil habitantes) e 5,4% ao grupo de 10 a 19 anos (133 casos - taxa de mortalidade de 2,1 por cem mil habitantes).
Os tipos de suicídio segundo sexo estão apresentados na Figura 2, que mostra o comportamento de homens e mulheres quanto à escolha do método utilizado para tirar a própria vida; foi observado que o enforcamento ocorreu em 1.243 homens (64,4%) e em 244 mulheres (45,3%), intoxicação exógena em 241 homens (12,5%) e em 156 mulheres (28,9%), suicídio por arma de fogo em 152 homens (7,9%) e em 25 mulheres (4,6%) e precipitação de lugar elevado em 150 homens (7,7%) e em 80 mulheres (14,8%).
As variáveis estudadas a partir dos “históricos policiais”, ou seja, menção a transtorno mental, outras patologias, outros problemas que poderiam corresponder à motivação para o suicídio e a existência de tentativa anterior de suicídio estão demonstradas na Tabela 3, distribuídas segundo sexo. A existência de transtornos mentais foi mencionada em 37,2% dos homens (718 casos) e em 47,3% das mulheres (255 casos), outros problemas em 23,9% dos homens (461 casos) e em 20,6% das mulheres (111 casos) e menção a tentativa prévia de suicídio em 162 homens (8,4%) e em 85 mulheres (15,8%).
Discussão
O banco de dados construído nesta pesquisa demonstrou ser 7,5% mais elevado do que o total de suicídios provenientes do SIM/MS, para a mesma área e ano. Esse aumento alterou a taxa de mortalidade, que passou de 6,1 (calculada com os dados do SIM/MS) para 6,6 por cem mil habitantes quando utilizados os dados da SSP, valor esse que, apesar de corrigido, é ainda baixo em relação às taxas verificadas em países desenvolvidos como Canadá (12,5), Austrália (13,2) e Japão (18,5), e equivalente às observadas no México (5,1) e Colômbia (7,2), todas medidas por cem mil habitantes2. Razões culturais, além da subnotificação, poderiam explicar estas diferenças.
Em relação à subnotificação, Mello Jorge et al.10 verificaram que o número de suicídios quase dobrou quando foi utilizada a fonte IML + BO, em investigação visando ao aprimoramento da informação sobre óbitos por causas externas. Silva11, analisando suicídios de adolescentes no Recife, encontrou subnotificação nos dados do SIM/MS em comparação com os existentes no IML (variação entre 31,1% a 48,1%). Cascão19 refere que, no estado do Rio de Janeiro, em 2015, os suicídios passaram de 188 para 513 quando as causas externas de intenção indeterminada (SIM/MS) foram relacionadas com o banco de dados do Instituto de Segurança Pública do Estado (aumento de 172,9%).
Com relação ao maior número de eventos encontrado no banco SSP, é importante referir que uma das hipóteses baseia-se no fato de que o suicídio é, em geral, imediato e, na maioria das vezes, ocorre no domicílio, fazendo com que a presença da polícia seja necessária. Por outro lado, nos casos de óbito tardio verificado em hospital, pode ocorrer que, em havendo complicações, o próprio médico do hospital forneça a DO e coloque, como causa de óbito, somente a complicação, sem menção ao suicídio, que é a causa básica da morte.
Necessário referir que a diferença entre os sistemas aqui encontrada (172 casos) se fez sentir tanto no que tange às características das vítimas, quanto nos diferentes meios utilizados para tirar a própria vida.
O suicídio: número e tipos
Os diferentes métodos utilizados para o suicídio foram estudados nesta pesquisa, sendo este ponto considerado fundamental para a prevenção do evento, já que sua escolha, em geral, está relacionada à disponibilidade de meios e, consequentemente, a restrição dos mesmos tem o potencial de prevenir suicídios. Efeitos preventivos já foram demonstrados em razão de mudanças na legislação sobre armas de fogo20, tamanho reduzido de pacotes de medicamentos21 e construção de barreiras nos locais de precipitação22, por exemplo.
Comparando os dados sobre suicídio nas duas fontes, quanto a cada tipo de suicídio (códigos X60 a X84 da CID-10), além do número total mais elevado nos dados da Segurança, chamam atenção, na Tabela 1, os seguintes aspectos:
1º) Suicídios por meios não especificados (X84): apresentaram queda de 92,5% (apenas 4 casos não puderam ser esclarecidos em virtude de os corpos estarem em decomposição). A possível razão para isto é que se tratava de casos em que, pela DO (fonte SIM/MS), não se conhecia o tipo do suicídio e, segundo informações da SSP, estes casos migraram para tipos bem definidos, principalmente para suicídios por intoxicação exógena (X60-69), os quais, por sua vez, tiveram um aumento global de 55,7% (142 casos). Cabe destacar que, no momento do preenchimento da DO pelo legista, o resultado do exame toxicológico não está disponível e, dessa maneira, a causa da morte, registrada geralmente como “aguardando resultado de exames”, vai constar nas estatísticas oficiais como “indeterminada”. Esse fato vem sendo apontado como um dos responsáveis pela subenumeração de suicídios nas fontes oficiais, sugerindo, vários pesquisadores, busca ativa de dados complementares nos IMLs a fim de melhorar a qualidade da informação7,8,10,23. No mesmo sentido, Katz et al.5 referem que métodos menos violentos de suicídio - como as intoxicações exógenas - são mais propensos a mascarar a intencionalidade do evento, o que faz com que sejam classificados erroneamente como indeterminados.
2º) Lesão autoprovocada intencionalmente por objeto contundente (X79): segundo dados oficiais, existiam 30 casos e, nesta pesquisa, não foi identificado nenhum. Ressalta-se que “objeto contundente” se refere a uma energia de ordem física mecânica, na qual o agente lesivo age por pressão através de uma superfície plana24. Nesse sentido, lesões decorrentes de precipitação de lugar elevado (X80), precipitação ou permanência diante de objeto em movimento (X81) e impacto por veículo a motor devido a “provocar” acidente de trânsito (X82) também são contusas, não devendo, entretanto, ser classificadas como X79, mas sim na categoria que melhor detalhar o modo pelo qual o evento foi cometido. Necessário lembrar da definição de causa básica, que se refere, sempre, às circunstâncias do evento e não à lesão provocada18.
3º) Precipitação de lugar elevado (X80): os dados desta investigação mostraram um aumento de 43 casos, que correspondeu a uma elevação de 23,0%. O possível motivo para isto é que este tipo de suicídio pode ser confundido com queda acidental e ser codificado, portanto, como tal, no SIM/MS.
4º) Lesão autoprovocada intencionalmente por precipitação ou permanência diante de objeto em movimento (X81): neste trabalho houve um aumento de 358,3% e a possível razão é que este tipo de suicídio pode ser confundido com atropelamento acidental e ser, oficialmente, codificado como acidente. De se notar que, nesta pesquisa, a determinação da causa jurídica da morte nos casos citados nos 3º e 4º itens foi considerada como suicídio, em razão de as vítimas terem deixado mensagens ou por relato de testemunhas, uma vez que, nos históricos policiais, a descrição de como o evento ocorreu é, em geral, bem mais detalhada.
5º) Afogamento (X71): trata-se igualmente de tipo de suicídio facilmente confundido com morte acidental, razão pela qual, pelo depoimento de testemunhas ou mensagem deixada pela vítima, a alteração no número de casos é também justificada. Nesta situação, o que ocorre, geralmente, é que o legista coloca na DO “afogamento”, referindo-se à “causa médica” e quando é feita a codificação nas Secretarias de Saúde, “afogamento” é entendido como a “causa jurídica” (causa básica) e, de igual sorte, por recomendação do Ministério da Saúde25. Feita a correção, verificou-se declínio de 66,7% no número de casos neste trabalho (16 casos);
6º) Impacto de um veículo a motor decorrente de “provocar” acidente de trânsito (X82): o declínio de 76,2% do número de casos (16) foi também, apreciável, em razão de o histórico do BO referir, somente em alguns casos, relato de testemunhas capazes de distinguir o evento como intencional e não acidental.
Características das vítimas
Quanto às características da vítima, embora os dados oficiais mostrem similaridade com os de outros países2,4, verifica-se que, na comparação com dados da SSP, a elevação dos casos ocorreu maiormente no sexo feminino, com ganho proporcional de 11,1% para as mulheres e 6,5% para os homens. Analisando essas alterações em conjunto com os tipos de suicídio, é possível afirmar que o maior ganho no sexo feminino se deveu, principalmente, ao aumento de casos por intoxicação exógena, em especial por ingestão de medicamentos.
Em relação à distribuição etária, é interessante observar diminuição no número de adolescentes, bem como aumento de casos entre os suicídios de idade não especificada. Apesar de considerar que afirmações mais categóricas só poderiam ser feitas por meio de “linkage” entre os dois bancos, o que não foi feito neste trabalho pelas razões já expostas, algumas hipóteses podem ser formuladas:
-
1ª) No momento da elaboração do BO, a idade informada pode, por exemplo, constar como “mais ou menos 20 anos” e, posteriormente, ser corrigida para 18 ou 19.
-
2ª) Quanto ao aumento de casos com idade ignorada, é possível tratar-se de casos em que a vítima é recolhida ao IML com dados ignorados no BO e, no momento do reconhecimento do corpo, realizado posteriormente, a idade é esclarecida, podendo-se constatar, assim, que, quanto a essa variável, os dados da DO sejam mais precisos.
Em relação às taxas de mortalidade, verifica-se que, para todas as faixas etárias, as taxas masculinas sobrepujam, em muito, as femininas, chamando atenção o fato de a taxa mais elevada pertencer ao homem idoso (12,8 por 100 mil habitantes), delimitando um novo panorama epidemiológico para o suicídio no estado de SP4.
Quanto à forma escolhida para a prática do suicídio, pode-se constatar diferente distribuição entre os sexos (Figura 2). Apesar do enforcamento predominar em ambos, ele teve maior peso entre os homens (64,4%) do que entre as mulheres (45,3%). Por outro lado, as intoxicações exógenas, que ocupam o segundo lugar, foram mais frequentes no sexo feminino (28,9%) do que no masculino (12,5%). Foi observada, também, uma inversão da distribuição entre os sexos nos terceiro e quarto tipos mais frequentes de suicídio, uma vez que, nos homens, aparece a utilização de arma de fogo (7,9%) seguida de precipitação de lugar elevado (7,7%), enquanto que, nas mulheres, ocorre precipitação de lugar elevado (14,8%), seguido de arma de fogo (4,6%). Em relação ao tipo de intoxicação exógena, é de se destacar que, entre os homens, as intoxicações por ingestão de substâncias como pesticidas, solventes orgânicos, monóxido de carbono, soda cáustica (X65 a X69) foram 2,4 vezes maiores do que a ingestão de medicamentos e outras substâncias farmacêuticas; nas mulheres, predominou a ingestão de medicamentos, com ênfase nos antidepressivos. Ainda com relação à escolha de métodos para a realização do suicídio, os autores justificam a maior mortalidade masculina sugerindo, como possível explicação, o fato de os homens desempenharem comportamentos, como competitividade, impulsividade, maior sensibilidade às instabilidades econômicas, maior facilidade de acesso às armas de fogo, além de considerarem que as mulheres apresentam menor dependência ao álcool e às drogas e têm percepção mais precoce de sinais de risco para transtornos mentais, buscando, a tempo, tratamento adequado1,4,26.
A contribuição dos “históricos policiais”
Vários estudos vêm buscando identificar fatores de risco para o suicídio e como agiriam sobre as pessoas, ficando claro que o seu conhecimento é fundamental no sentido de prevenir novos eventos1,3,27. Em trabalho recém-publicado, os autores dividem esses fatores em predisponentes e precipitantes, incluindo, entre os primeiros, principalmente transtornos mentais pré-existentes, história de suicídio na família e tentativas anteriores. Entre os precipitantes, mencionam, como importantes, o uso de álcool e de drogas e o diagnóstico de algumas patologias27. O estudo dessas variáveis, entretanto, e sua possível ligação com o suicídio, têm sido pouco realizados, visto que os trabalhos, em geral, partem de sistemas de informação sobre mortalidade, fonte na qual essas informações são inexistentes. Outros, baseiam-se em entrevistas pessoais com o próprio indivíduo que tentou se matar e não logrou êxito, ou com suas famílias, situações que viabilizam o conhecimento, mas essas são raras28.
Nesta pesquisa, esses fatores puderam ser analisados a partir do histórico policial contido no banco de dados trabalhado, sendo interessante notar que, com pesos variados, todos eles aparecem mencionados, em geral por familiar da vítima, como possíveis motivadores do ato suicida (Tabela 3).
Transtornos mentais e comportamentais foram referidos em 39,4% dos casos de suicídios. A maior frequência esteve a cargo de depressão, que preponderou no sexo feminino (mencionado em 30,2% das mulheres que cometeram suicídio), destacando-se, também, o uso/abuso de álcool e/ou de drogas (mais frequente entre os homens), bem como a associação de álcool e depressão, achados que estão em conformidade com a literatura1,3,27.
O problema da tentativa anterior também tem sido estudado e os autores são unânimes em referir que sua existência representa importante fator de risco para nova tentativa, bem como para a consumação do ato1,29,30. Neste trabalho, tentativa anterior foi referida em 10,0% dos casos de suicídio, tendo ocorrido mais no sexo feminino.
Menção a patologias diversas dos transtornos mentais, bem como a outros problemas que poderiam ter funcionado como possíveis motivadores do ato de tirar a própria vida, ocorreram, também, em valores não desprezíveis, destacando-se a menção à existência de doenças, principalmente nos idosos27,29, assim como problemas de relacionamento pessoal, aí incluídos os conjugais, familiares ou entre amigos, homo ou heterossexuais. Foi importante a constatação de que o fato de estar na prisão foi mencionado em número apreciável de casos, que preponderou em homens de 20 e 39 anos, como, aliás, já salientavam alguns autores31. Problemas no trabalho e sua consequência mais direta - problemas financeiros - verificaram-se principalmente entre os homens, enquanto que as perdas familiares tiveram maior representação no sexo feminino.
Quanto à pertinência, validade e fidedignidade desses dados, poder-se-ia argumentar que os mesmos deveriam ser vistos com cautela, em razão de terem sido informados por terceira pessoa, o que poderia significar uma limitação deste trabalho. Entretanto, é o próprio Ministério da Saúde quem, ao referir-se aos dados do Programa de Vigilância de Fatores de Risco para Doenças Crônicas e Não Transmissíveis (Vigitel), enfatiza que “se os mesmos não podem aferir diretamente a frequência dos fatores de risco, podem estimar suas frequências”32. No mesmo sentido, a OMS, quanto ao uso/abuso de substâncias psicoativas, observa que “a identificação de substâncias psicoativas deve ser feita a partir de todas as fontes de informações possíveis, tais como... relatos de terceiros bem informados”18. Importante referir que essas citações justificam a utilização e a análise desses dados.
Considerações finais
A comparação entre os dois bancos mostrou que os dados da SSP foram, não só mais elevados, mas, inclusive, mais robustos do ponto de vista de sua qualidade. Os laudos necroscópicos foram importantes na determinação das causas médica e jurídica da morte, visto que sua leitura permitiu maior e melhor detalhamento das circunstâncias do evento. Os resultados de exames toxicológicos trouxeram contribuição aos tipos de intoxicação exógena em razão da especificação das substâncias encontradas. O histórico policial de cada caso possibilitou não só um reforço para muitas das variáveis trabalhadas, mas, acima de tudo, o conhecimento de possíveis fatores de risco para o suicídio. De se lembrar que o conhecimento sobre esses fatores constitui-se em aspecto relevante quando se pensa em prevenção, visto que sinaliza caminhos a serem seguidos para fazer baixar as taxas de mortalidade.
Isso posto, os resultados convergem para que se recomende, fortemente, a utilização dos dados da Segurança Pública e do IML como fontes complementares ao SIM/MS, como já sugeriam outros autores7,8,10,11,19,33,34. Trata-se de uma conclusão extremamente importante e que, a partir de acordos governamentais entre as Secretarias da Saúde (Estaduais e Municipais) e de Segurança Pública, no sentido da disponibilização das informações policiais para os profissionais do IML e da própria Saúde, se possa dispor de dados mais completos e mais corretos, tal como mostra a experiência do estado do Rio de Janeiro19. Quanto à inserção destes dados na plataforma SIM/MS, deve ficar a cargo dos gestores do sistema.
Importante salientar que, diante das evidências tornadas claras pelos dados obtidos, torna-se possível que as autoridades tenham mais elementos para traçar estratégias mais eficazes para a prevenção do suicídio entre nós. Recomenda-se, assim, que os dados das DOs continuem a ser a fonte do SIM/MS, mas que os bancos de dados da Segurança Pública sejam disponibilizados à área da Saúde, a fim de que, por meio da “linkage” entre eles, utilizando dados chave como nome e data de nascimento da vítima, data e local de sua morte, sejam obtidas melhores informações sobre o tema35.
Agradecimentos
À Secretaria de Segurança Pública e ao Instituto Médico Legal do Estado de São Paulo por possibilitarem a realização desta pesquisa.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
27 Maio 2022 -
Data do Fascículo
Jun 2022
Histórico
-
Recebido
17 Nov 2020 -
Aceito
24 Set 2021 -
Publicado
26 Set 2021