Open-access Acolhimento integral em Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas na perspectiva da proteção dos direitos humanos

Resumo

Este artigo tem por objetivo avaliar se os resultados do acolhimento integral em Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas III (CAPS AD III) atendem aos padrões de qualidade para proteção e respeito dos direitos humanos dos usuários. Desenvolvemos um estudo avaliativo, quantitativo e de desenho longitudinal com 122 usuários acolhidos integralmente em dois CAPS AD III, com follow-up após 14 e 90 dias. Os resultados dos indicadores qualidade de vida, consequências da dependência de substâncias e reabilitação psicossocial, foram posteriormente analisados à luz do referencial QualityRights. Três temas e nove padrões foram avaliados. Quatro padrões foram classificados como alcance total, quatro como alcance parcial e um como alcance iniciado. O direito a usufruir do padrão mais elevado possível de saúde física e mental foi o padrão mais atingido pelo acolhimento integral (tema 2). O direito a exercer a capacidade legal e o direito à liberdade pessoal e segurança foi atendido com algumas fragilidades (tema 3). O direito de viver de forma independente e ser incluído na comunidade, necessita de outros recursos sociais, além do cuidado especializado em saúde mental, para ser melhorado (tema 5).

Palavras-chave: Centros de Tratamento de Abuso de Substâncias; Acolhimento; Avaliação do Impacto na Saúde; Direitos humanos

Abstract

This article aims to assess whether or not the results of integrated embracement in Psychosocial Care Centers for Alcohol and Drugs III (CAPS AD III) meet the quality standards necessary for the protection of and respect for users’ human rights. An evaluative, quantitative, and longitudinal design was developed through a study with 122 users, embraced in two CAPS AD III follow-ups after 14 and 90 days. This study analyzed the quality of life indicators, consequences of substance abuse, and psychosocial rehabilitation in the light of the QualityRights framework. Three themes and nine patterns were evaluated. In this study, four patterns were classified as total reach, four as partial reach, and one as initiated reach. The right to enjoy the highest possible standard of physical and mental health was the standard most achieved by integrated embracement (theme 2). The right to exercise legal capacity and the right to personal freedom and security were achieved, but with some weaknesses (theme 3). The right to live independently and be included in the community requires other social resources, in addition to specialized mental health care in order to be improved (theme 5).

Key words: Substance Abuse Treatment Centers; User embracement; Health Impact Assessment; Human rights

Introdução

Os problemas decorrentes do uso de álcool e outras drogas vêm crescendo, sobretudo em países em desenvolvimento, relacionados a uma série de fatores biopsicossociais e determinantes sociais, o que demanda de abordagens específicas dos serviços de saúde. A Organização das Nações Unidas (ONU) afirma que para lidar com o problema mundial da questão das drogas é preciso total conformidade com os direitos humanos, visto que a complexidade que envolve o uso substâncias e sua relação com o estigma e consequente exclusão, rejeição e marginalização dos usuários, têm implicações diretas na garantia dos direitos humanos1.

A violação dos direitos humanos no contexto da saúde mental é significativa e se apresenta sob conceitos errôneos de “pessoas com desabilidades”, justificando condutas de privação de liberdade, de impossibilidade de tomada de decisão e escolhas, de negação de espaços de trabalho, saúde e educação, dentre outras, que ocorre geralmente em instituições psiquiátricas totais2. Nesse sentido, essa conexão (saúde mental e direitos humanos) gera controvérsias diante de intervenções, como por exemplo, as ações involuntárias já regulamentadas por algumas políticas como “conduta médica”. Em um sentido mais amplo, o reconhecimento de práticas coercitivas nesse campo necessita romper paradigmas e englobar em sua discussão fatores sociais, políticos e econômicos que discriminam os direitos das pessoas com problemas de saúde mental, a partir das práticas dos serviços3.

Esse cenário reconhecido globalmente não é mais aceitável e, uma iniciativa concreta para nortear essa reestruturação, é o referencial QualityRights (QR) da Organização Mundial da Saúde (OMS). O QR foi desenvolvido para avaliar os serviços de saúde mental na perspectiva da proteção dos direitos humanos das pessoas com alguma deficiência intelectual, problemas de saúde mental e decorrentes do uso de álcool e outras drogas. É um referencial que tem por objetivo contribuir para a identificação de práticas negligentes e melhorar a qualidade da assistência e o respeito pelos direitos humanos nos serviços de saúde2.

Foi estruturado a partir de sete artigos definidos pela Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD) e organizado em cinco temas, que definem direitos humanos como: (1) O direito a um padrão de vida adequado (Artigo 28); (2) O direito a usufruir do padrão mais elevado possível de saúde física e mental (Artigo 25); (3) O direito a exercer capacidade legal e o direito à liberdade pessoal e à segurança da pessoa (Artigos 12 e 14); (4) Prevenção contra tortura, tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes e contra a exploração, violência e abuso (Artigos 15 e 16); (5) O direito a viver de forma independente e de ser incluído na comunidade (Artigo 19). Para cada tema, o referencial do QR determina entre quatro e sete padrões que são critérios de avaliação da qualidade e da garantia dos direitos humanos, que devem ser assegurados pelos serviços. A avaliação de cada padrão permite determinar se o tema global foi cumprido4,5.

O modelo do QR tem contribuído para documentar de forma sistemática os resultados de avaliações de serviços de saúde mental hospitalares e ambulatoriais e melhorar a qualidade dos serviços com redução das práticas coercitivas e respeito pelos direitos humanos6,7. Foram documentadas experiências de avaliação pelo QR no Chile8, na Índia9 e no Brasil10,11, em serviços comunitários de saúde mental geral, onde aparentemente a abordagem e a discussão sobre os direitos humanos está mais presente7.

Especificamente no Brasil, foram avaliados Centros de Atenção Psicossocial Adulto (CAPS) nas regiões Centro-Oeste, Nordeste e Norte10,11. Avaliações de CAPS Álcool e outras Drogas (CAPS AD) pelo QR não foram identificadas, tal como avaliações ao modelo do acolhimento integral (CAPS AD III).

O CAPS AD é um modelo de cuidado recente e singular que assume centralidade na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) brasileira e orienta o cuidado especializado em álcool e outras drogas, na lógica da Redução de Danos (RD). Foi implementado a partir do processo da reforma psiquiátrica brasileira e tem por objetivo redirecionar o cuidado para a atenção psicossocial e garantir a proteção e os direitos das pessoas que apresentam problemas com o uso de drogas, enquanto política social e de saúde12. A modalidade III compreende o acolhimento integral 24h nos CAPS AD, incluindo pernoitar, no máximo, 14 dias por mês, no mesmo serviço, sendo um modelo de caráter particular em comparação com outros atendimentos comunitários no cenário internacional. É dirigido às pessoas que necessitam de suporte para necessidades mais complexas e graves como, situações de crise, riscos face ao estado de saúde, vulnerabilidade social, entre outras, devendo garantir a proteção dos direitos humanos13.

Neste sentido, avaliar serviços de tratamento para o uso de drogas com o referencial do QR pode contribuir para ampliar as concepções sobre diferentes modelos de atenção, preencher lacunas científicas e subsidiar políticas públicas para a concretização da saúde mental enquanto direito humano14. Sendo assim, este estudo tem por objetivo avaliar se os resultados do acolhimento integral em CAPS AD III atendem aos padrões de qualidade para proteção e respeito dos direitos humanos.

Métodos

Trata-se de uma pesquisa avaliativa, quantitativa e de desenho longitudinal, parte do projeto matricial “Resultados do tratamento para álcool e outras drogas em Centros de Atenção Psicossocial modalidade III: estudo de coorte” que pretendeu avaliar o impacto do acolhimento integral em dois CAPS AD III da região central de São Paulo a partir dos indicadores biopsicossociais: qualidade de vida, consequências da dependência de substâncias e reabilitação psicossocial (definidos com base em estudos preliminares e políticas públicas sobre drogas)1,8,15-18.

Neste estudo, propomos uma avaliação na perspectiva da proteção dos direitos humanos, para verificar se os resultados obtidos com o acolhimento integral se atendem aos padrões de qualidade para proteção e respeito dos direitos humanos dos usuários dos serviços, proposto no referencial QR.

Os CAPS AD III avaliados são referência de um território marcado pela vulnerabilidade social onde se concentra mais de 45% da população em situação de rua do município de São Paulo e engloba a maior cena de consumo público de crack do Brasil. Os dados foram coletados com 122 usuários selecionados por conveniência nos dois CAPS AD III de fevereiro de 2019 a fevereiro de 2020. Estes foram acompanhados por 90 dias e entrevistados em três momentos: (1) T0 - Acolhimento (n=122); (2) T1 - após 14 dias (n=67); (3) T2 - após 90 dias (n=49). Os participantes foram abordados pelos pesquisadores no dia da admissão em acolhimento integral nos CAPS AD III. Aqueles que aceitaram participar na pesquisa responderam a um formulário contendo dados pessoais, números telefônicos, endereços e informações de outras pessoas que pudessem estabelecer contacto com o participante. Estes dados foram utilizados para o follow-up que implicou realizar até cinco tentativas de localização dos participantes. Os que não foram encontrados e/ou não concluíram as respostas no T2 foram consideradas perdas amostrais.

A pesquisa foi interrompida devido a pandemia da COVID-19 o que impediu a inclusão de mais participantes na amostra e a continuidade do seguimento. Os critérios de inclusão foram indivíduos com 18 anos ou mais, em tratamento nos CAPS AD III, admitidos para acolhimento integral no período da pesquisa e que responderam no mínimo a uma entrevista do follow-up. Foram excluídas as perdas amostrais.

Para avaliar se os resultados do acolhimento integral nos CAPS AD III atendem aos padrões de qualidade para proteção e respeito dos direitos humanos, seguimos as diretrizes do QR descrito no kit de ferramentas “Direito é Qualidade”5. Constituiu-se uma equipe de avaliação, composta por três especialistas na área de álcool e outras drogas, para avaliar os padrões dos temas 2, 3 e 5 do QR por meio das respostas dos usuários. O tema 1 (sete padrões) - O direito a um padrão de vida adequado -, não é aplicável a serviços ambulatoriais, como os CAPS AD III e o tema 4 (cinco padrões) - Prevenção contra tortura ou tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes e contra a exploração, violência e abuso -, não responde ao objetivo do estudo matricial e não pode ser avaliado. Portanto, estes temas não foram incluídos na avaliação.

Dentre os 13 padrões dos temas 2 (cinco padrões), 3 (quatro padrões) e 5 (quatro padrões), nove foram avaliados. Um padrão do tema 2 (2.2. O serviço possui profissionais qualificados e oferece atenção de boa qualidade em saúde mental); dois padrões do tema 3 (3.3. Os usuários do serviço podem exercer sua capacidade legal e recebem o apoio necessário para exercer sua capacidade legal; 3.4. Os usuários do serviço têm o direito à confidencialidade e ao acesso a suas informações pessoais de saúde); e um padrão do tema 5 (5.3. O direito dos usuários do serviço a participar da vida política e pública e a exercer a liberdade de associação é apoiado), não puderam ser avaliados pelos indicadores selecionados neste estudo.

Para cada padrão avaliado existem as seguintes hipóteses de classificação determinadas pelo kit de ferramentas da OMS: (AT) - Alcançado Totalmente: há evidência de que os critérios, padrões ou temas foram completamente realizados; (AP) - Alcançado Parcialmente: há evidência de que os critérios, padrões ou temas foram realizados, porém melhorias ainda são necessárias; (AI) - Alcance Iniciado: há evidência de medidas que estão a ser tomadas para cumprir os critérios, padrões ou temas, porém, melhorias significativas ainda são necessárias; (NI) - Não Iniciado: não há evidência de cumprimento dos critérios, padrões ou temas; (NA) - Não Aplicável: Os critérios padrões ou temas não são aplicáveis ao serviço em questão5.

Considerou-se como evidências para classificar as respostas aos padrões dos temas do QR: os indicadores biopsicossociais avaliados longitudinalmente (qualidade de vida, uso de álcool e outras drogas, consequências da dependência de substâncias e eixos da reabilitação psicossocial) que tiveram diferença significante ao longo do follow-up, além das características da população, outras variáveis descritivas e diretrizes do modelo do CAPS AD III.

Os indicadores foram mensurados por: 1) Escala WHOQOL-BREF, possui 26 itens que avaliam a qualidade de vida geral e as dimensões: (a) Físico; (b) Psicológico; (c) Social; (d) Meio ambiente. É o instrumento indicado pela OMS para avaliar resultados de tratamentos comunitários sob uma perspectiva mais ampla do que a sintomatologia de doenças ou indicadores biomédicos19; 2) Escala Consequência da Dependência de Substâncias (CDS) foi utilizada para avaliar as consequências relacionadas com o consumo de substâncias nos domínios: (a) Psicológico e familiar; (b) Funcionalidade; (c) Autocuidado; (d) Econômico e Laboral. É composta por 16 itens que permitem mensurar o nível de severidade das consequências do consumo20; 3) Reabilitação psicossocial dos usuários foi avaliada pelo alcance dos eixos trabalho, rendimento, moradia e rede de apoio, como indica a política brasileira de saúde mental e o referencial QR4,15.

O conjunto dos instrumentos de avaliação, além dos dados de identificação e questões socioeconômicas e de uso de substâncias, agregaram-se num instrumento aplicado nos três momentos da pesquisa (T0, T1 e T2), com recurso da plataforma Google Forms. Integrou-se ainda, questões sobre os motivos da admissão, tempo de permanência e tipo de alta do acolhimento integral, atividades desenvolvidas (grupos, atendimentos individuais, uso de medicação) e outros acompanhamentos atuais, que serviram como variáveis de controle na análise, para evitar vieses.

Os dados foram analisados pelo programa R 3.5.1 com análise descritiva (média, mediana, desvio padrão (DP), frequências) e modelo de regressão logística de efeito misto. Consideramos valor de p menor ou igual a 0,05 e utilizamos intervalo de confiança de 95%. Os resultados serão apresentados em tabela organizados pelos temas do QR.

Este estudo foi aprovado pelos comitês de ética e pesquisa da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (2.759.176/2018) e da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo (2.832.670/2018).

Resultados

Dos 122 participantes incluídos no baseline (T0), a maioria foi de homens cisgêneros (79,5%/97), com média de idade de 44 anos (DP=10,3), solteiros (72,1%/88), vivendo em situação de rua (81,1%/99), com escolaridade média de oito anos (DP=3,7) e tempo médio de 25 anos de consumo de álcool e outras drogas (DP=11,8). Quanto ao consumo nos últimos 30 dias, por ordem de prevalência, relataram uso de tabaco (22 dias), álcool (21 dias), maconha (nove dias) e crack (oito dias).

A média de tempo de tratamento nos CAPS AD III foi de três anos (DP=6,3) e cada participante já tinha sido acolhido integralmente duas vezes antes da pesquisa. No acolhimento estudado, o tempo médio de permanência foi de sete dias e as razões para admissão foram a redução do consumo de substâncias (82%/100), desintoxicação (69,8%/85) e a situação de vulnerabilidade social (46,7%/57). A maioria dos participantes fazia uso de algum medicamento (88%/107), estava em acompanhamento individual (98,5%/120) e participava em atividades em grupo (86,6%/105).

As altas do acolhimento integral foram planejadas com auxílio de vagas em centros de acolhida temporária (52,2%/64) e o acolhimento integral foi avaliado como positivo por 83,6% (102) dos participantes. Apenas o acompanhamento em Unidades Básicas de Saúde (UBS) foi referido por 25% dos participantes ao mesmo tempo em que o CAPS AD III.

A avaliação dos resultados do acolhimento integral nos CAPS AD III à luz dos direitos humanos está apresentada no Quadro 1. Os temas do QR foram avaliados com base nas evidências de resposta para cada padrão, sendo elas: características dos usuários; diretrizes do CAPS AD III; uso de substâncias e suas consequências (CDS); qualidade de vida (WHOQOL-BREF); eixos da reabilitação psicossocial, e depois, foram classificadas em conjunto, de acordo com o nível de realização.

Quadro 1
Avaliação do acolhimento integral em Centros de Atenção Psicossocial Álcool e outras drogas III pelos temas do QualityRights. São Paulo, Brasil, 2020.

Dos nove padrões avaliados apenas um padrão do tema 5, acesso a oportunidades de educação e de trabalho, foi considerado como alcance iniciado, quatro foram alcançados totalmente e quatro parcialmente.

Na Tabela 1 descrevemos os resultados dos indicadores longitudinais que subsidiaram as avaliações dos temas do QR. Observamos resultados mais significativos no T1 com aumento dos dias de abstinência, redução dos dias de uso de substâncias e de suas consequências e melhoria na qualidade de vida, em quase todas as dimensões. No T2 o resultado manteve-se, sobretudo na qualidade de vida e o eixo rendimento da reabilitação psicossocial também foi afetado positivamente.

Tabela 1
Resultados longitudinais dos indicadores do acolhimento integral nos Centros de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas III. São Paulo, Brasil, 2020.

Discussão

O direito a usufruir o padrão mais elevado de saúde física e mental

As questões de saúde física e mental foram as que mais beneficiaram, com o acolhimento integral nos CAPS AD III avaliados. Esse resultado era em parte esperado devido a diretriz política do modelo do acolhimento pautada nos direitos humanos, que garante aos usuários assistência de enfermagem 24h, local protegido para a satisfação das necessidades básicas de alimentação, higiene e repouso, além do acesso ao uso de medicamentos, quando necessário13.

Ademais, estar no acolhimento integral melhorou a capacidade dos participantes viverem de forma independente na comunidade e de usufruírem de padrões mais elevados de saúde física e mental porque reduziram o consumo problemático e as consequências negativas do consumo de álcool e outras drogas. Tiveram ainda, melhoria expressiva da qualidade de vida em todos os domínios e disponibilidade de suporte medicamentoso quando necessário.

No entanto, pela avaliação desse tema, destacamos dois desafios que limitaram o alcance total do direito a usufruir o padrão mais elevado de saúde física e mental: a indisponibilidade do acolhimento integral nos CAPS AD III para todos que necessitam e a dificuldade do trabalho em rede.

Esses desafios já foram apontados por outros estudos que identificaram a existência de barreiras de acesso às camas dos CAPS AD III com relação ao gênero, pois, mulheres e pessoas transgênero encontram dificuldades em serem acolhidas nos tratamentos oferecidos pela falta de singularidade nas ações16,21.

As diretrizes internacionais consideram as mulheres como um dos grupos prioritários de obrigação política resultante dos direitos humanos de grupos específicos. Reforça que “as mulheres que usam drogas têm o direito de acessar os serviços de saúde, inclusive os sexuais e os reprodutivos, de maneira não discriminatória” e nesse sentido, o estado deveria tomar as medidas necessárias para garantir a disponibilidade e o acesso aos serviços necessários “de boa qualidade e sensíveis ao gênero”1.

Outro desafio são as ações em rede. Como identificado por outro estudo que utilizou a avaliação pelo QR em CAPS Adulto, os serviços especializados de saúde mental tendem a centralizar todas as necessidades de saúde dos usuários, devido ao vínculo e às relações de confiança que estabelecem, o que facilita o cuidado10. No entanto, para garantir o padrão mais elevado de saúde para esta população, a integralidade das ações deve ser compartilhada com a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), sobretudo com a atenção primária22, como indica o artigo 25 da CDPD.

O padrão 2.5 que avaliou a disponibilidade de serviços adequados para as necessidades de saúde geral e reprodutiva, foi atendido parcialmente porque apenas 25% dos participantes receberam suporte das unidades básicas de saúde ao mesmo tempo em que os CAPS AD III, apesar da boa cobertura desses serviços na região estudada. Destacamos que os determinantes sociais de saúde da população estudada, podem ter interferido na manutenção de resultados mais positivos e refletem as desigualdades vivenciadas cotidianamente por essa população no acesso a um cuidado de saúde adequado e consequentemente, na garantia dos direitos humanos.

O direito a exercer a capacidade legal e o direito à liberdade pessoal e segurança da pessoa

Este tema trata de questões subjetivas que seriam melhor evidenciadas por dados qualitativos e por isso, conseguimos responder a dois dos quatro padrões previstos no QR. Aborda basicamente a autonomia e o conceito de “tomada de decisão apoiada”, onde as pessoas têm acesso a opções de apoio (pessoas em que confiam) para fazer escolhas por si própria5. Vai de encontro ao que nomeamos de promoção da contratualidade nos CAPS, é o “estar com” o usuário na vida cotidiana mediando relações para criação de novos espaços e ampliando oportunidades12.

Ao que foi passível de avaliação, consideramos o padrão 3.1 como atendido totalmente, pois o acolhimento integral no CAPS AD III é um modelo de cuidado totalmente voluntário e acordado entre equipe e usuário, no projeto terapêutico. Além disso, quando acolhido 24h, há um aumento considerável da atenção pela equipe multiprofissional, especialmente com os profissionais de referência, ou gestores de casos, e os usuários podem optar por ser atendidos individualmente e participar nas atividades de grupo que desejarem17.

A fragilidade deste tema foi evidenciada pela ausência de um consentimento informado específico para o período do acolhimento integral, que garanta a total segurança e liberdade dos usuários, por isso foi avaliado como não iniciado. O estudo de Pitta et al.10 considerou na avaliação do QR, padrão 3.2, como atendido parcialmente, pois como o consentimento do acolhimento é assinado na elaboração do projeto terapêutico pelo usuário e gestor de caso, entende-se que garante o direito de participação do sujeito no tratamento e a corresponsabilidade do profissional na escolha das abordagens terapêuticas.

Ainda assim, identificamos a necessidade de um consentimento específico que previna a privação do direito do usuário no acolhimento integral, como por exemplo, o direito em participar da decisão sobre o tempo de permanência, bem como, em ter alta antes do tempo previsto, garantindo o direito total à liberdade e capacidade de tomar decisões sobre o seu cuidado, visto que na clínica de álcool e drogas além de todas as questões inerentes e comuns a saúde mental preocupa a criminalização dos usuários1.

Outro aspecto considerado foi o modelo de cuidado dos CAPS AD III direcionado pelos princípios da RD. Esta evidência sustentou o alcance de padrões tanto no tema 2 como no 3, pois não se refere apenas à ampliação das possibilidades de cuidado pelos serviços, mas à garantia de escolha e decisão pelos usuários, respeitando os limites de cada um e estimulando para a cidadania. Práticas de RD estão previstas nas diretrizes para políticas públicas em álcool e outras drogas da ONU como uma das obrigações para a garantia do direito do mais alto padrão de saúde possível dos usuários de substâncias, incluindo o acesso voluntário a serviços e a informações sobre RD e uso de drogas, como uma prática comprovadamente eficaz para a garantia dos direitos dessa população1,6,16.

O direito de viver de forma independente e de ser incluído na comunidade

Este tema, relacionado com a reabilitação psicossocial, representa os eixos de maior dificuldade não somente para o acolhimento integral nos CAPS AD III estudados tanto a curto (T1) como em médio prazo (T2), como também por outros contextos avaliados usando o referencial QR8,9. Aborda o direito das pessoas viverem na comunidade e terem acesso a trabalho, educação, apoio social e financeiro, minimamente necessários para desempenhar a cidadania4.

Um estudo que avaliou 15 serviços comunitários de saúde mental no Chile, identificou que o tema 5 apresentou a maior diferença entre os grupos entrevistados. Tanto usuários, como familiares, responderam a todos os padrões do tema 5 com pontuações mais baixas do que os profissionais, ou seja, os profissionais consideravam que os critérios para viver de forma independente e ser incluído na comunidade estavam a ser atendidos, enquanto os usuários e familiares referiram o contrário, apontando para a dificuldade de os serviços apoiarem as questões de moradia, trabalho e educação7. Não foram encontradas avaliações sobre o tema 5 em outros estudos.

No caso desta avaliação, importa primeiramente considerar que o acolhimento 24h é breve (média de sete a 14 dias) e tem como objetivo principal o cuidado de situações de maior gravidade relacionadas ao uso de substâncias na comunidade, mas no geral, constatamos uma boa articulação dos profissionais durante o acolhimento integral com as respostas de apoio social, o que mudou a condição de direito a renda dos participantes, com acesso, sobretudo aos benefícios sociais após 90 dias do acolhimento e pode ter contribuído para mudanças importantes nos outros eixos.

No que se refere ao eixo moradia, trabalho e educação, esses serviços apoiam os usuários na busca por vagas em centros de acolhimento temporário após a alta do acolhimento integral o que muda a condição de dormir na rua, bem como, não restringem o acesso a oportunidades de educação e trabalho, pelo contrário, observamos durante a pesquisa que muitos participantes retomaram o seu envolvimento nessas atividades devido ao apoio do acolhimento integral e por isso, foram padrões avaliados como atendidos.

Todavia, destacamos que as ferramentas utilizadas não foram suficientes para promover uma mudança significativa nesses eixos. Tal é corroborado com as evidências que apontam uma dificuldade de apoio das equipes dos serviços para estratégias de garantia do direito dos usuários de viverem de forma independente e de ser incluído na comunidade por meio do acesso à moradia, rendimento, trabalho e educação8,16. Como bem destaca o artigo 19, as pessoas têm o direito de decidir onde e com quem viver, de escolher onde e o que estudar e em qual função gostariam de trabalhar4, o que amplia os conceitos de inclusão e participação na comunidade e consequentemente a abordagem dos serviços diante dessas questões, o que não foi possível avaliar neste estudo.

Os padrões avaliados por este tema são resultados importantes para serviços de saúde mental, pois indicam recovery e não somente redução de sintomas ou do consumo de substâncias4,23. Nos serviços de tratamento para álcool e outras drogas, principalmente aqueles que atendem populações em situação de rua, são objetivos ainda mais desafiadores de serem alcançados visto que este fenômeno ainda necessita de grande investimento nos determinantes sociais da saúde e interação entre os poderes públicos para garantir políticas públicas mais efetivas como Housing First e de inclusão social pelo trabalho24.

Relativamente ao padrão 5.4, observamos que o acolhimento integral para os participantes desse estudo, contribui para as oportunidades de adquirir novas informações e habilidades, ter atividades de recreação/lazer e conexão espiritual/religiosa, bem como, reduziram os danos relacionados ao isolamento e solidão provocados pelo uso problemático de álcool e outras drogas, medidas pelas escalas. Experiências semelhantes já foram relatadas em serviços de saúde mental da Índia após receberem a intervenção do QR, onde identificaram uma melhora significativa do sentimento de capacidade e satisfação dos participantes9. No Brasil, verificou-se que os CAPS Adulto, asseguram o direito de participação dos usuários no tratamento e apoiam o seu protagonismo na comunidade com a promoção de atividades sociais, culturais e de lazer10.

Como limitações deste estudo temos: as perdas amostrais no follow-up, que podem ter interferido na significância de alguns resultados; a impossibilidade de resposta para todos os padrões dos temas do QR, que poderia ampliar a avaliação sobre a proteção dos direitos humanos; a impossibilidade de generalização dos dados visto que correspondem a dois serviços de uma região específica de São Paulo, Brasil.

Conclusão

Ao avaliar os resultados do acolhimento integral de dois CAPS AD III da região central de São Paulo, identificamos que esse recurso atendeu parcialmente aos padrões de qualidade para proteção e respeito pelos direitos humanos. Estar no acolhimento 24h melhorou a condição de saúde geral e bem-estar dos usuários, reduziu a gravidade das consequências negativas decorrentes do uso de álcool e outras drogas e possibilitou mudanças para a reabilitação psicossocial e inclusão na comunidade.

As fragilidades apontadas pela avaliação com o QR podem ser revistas e melhoradas com o suporte da rede de atenção psicossocial. Os desafios identificados para o alcance da qualidade na garantia dos direitos humanos, correspondem a questões comuns vivenciadas no cuidado a pessoas que usam drogas e vivem em situação de vulnerabilidade, as quais beneficiam-se do suporte de políticas públicas inclusivas.

Sugerimos uma análise realista da aplicação do QR em CAPS AD III para adaptar a avaliação para este modelo de resposta integral e uma avaliação qualitativa para ampliar as respostas sobre a qualidade de outros padrões. Consideramos que foi possível responder ao objetivo do estudo e contribuir com o conhecimento científico sobre a temática dos direitos humanos das pessoas que usam drogas no contexto da atenção psicossocial.

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Editado por

  • Editores-chefes:
    Romeu Gomes, Antônio Augusto Moura da Silva

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    Jun 2022

Histórico

  • Recebido
    22 Maio 2021
  • Aceito
    16 Out 2021
  • Publicado
    18 Out 2021
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